Atibaia
Edgard de Oliveira Barros
& sua gente
Atibaia tem mais de 120 mil deliciosas hist贸rias para contar.
Estas s茫o algumas dessas hist贸rias, narradas por pessoas que amam esta cidade. Edgard de Oliveira Barros 1
Atibaia & sua gente Um passeio pela alma da cidade vista
atravĂŠs dos olhos de tantos de seus filhos ilustres. Edgard de Oliveira Barros Fotos: Ana Maria Brejeiro, Jean Claude Latin Projeto grĂĄfico: Jean Takada
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Um incrível músico dos “Incríveis” declara o seu amor por Atibaia
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le era um garoto que como eu e certamente como você, caro leitor amava os Beatles e os Rolling Stones. E esses Beatles e Rolling Stones ainda engatinhavam como conjuntos musicais, apenas começavam sua história quando Ernesto Luiz Gomes de Abreu, o Tinho, garoto de 9 anos de idade ganhou um violão e ficou nove meses
tocando sempre a mesma música. “Não era nem uma música completa, apenas uma frase musical que os Beatles cantavam. Meu pai não agüentou mais ouvir aquilo e me levou para uma escolinha de música”. Nascido em São Paulo, no bairro do Bixiga, memorável “cantão” de Adoniran Barbosa, Tinho mergulhou definitivamente no mundo da música, convivendo com crianças e jovens que, alguns anos depois iriam formar aquele time de artistas da chamada “Jovem Guarda”. Tinho ficou tão bom no violão que acabou entrando nessa história, pois passou a fazer parte de “Os Incríveis”. E “Os Incríveis”, para quem não se lembra (será que tem alguém que não se lembra deles?) foi um grande conjunto musical que nasceu nos idos de 1962. Literalmente enlouqueceu os jovens da época. Era composto pelo Netinho na bateria; o Neno no contrabaixo; o Risonho na guitarra-solo; o Mingo, na guitarra-base e também cantor; o Manito no sax e teclados e o Nenê, no contrabaixo. No auge da fama “Os Incríveis” chegaram a filmar “Os Incríveis neste mundo louco”, um longa metragem bem no estilo dos Beatles. Realizavam shows ao vivo no Brasil inteiro e suas músicas tocavam em todas as emissoras de rádio. São dessa época os sucessos: “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”, “O Milionário” (2a. versão), “Czardas”, “Israel”, “Te Amo”, “Mundo Louco”, “Menina”, “Kokorono-Niji” e muitos outros.
Era um garoto “Eu participei de uma das fases do conjunto e vivi intensamente essa época. Fazer parte dos 5
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“Incríveis” foi muito gratificante”, revela Tinho contando que, apesar do sucesso, a banda acabou se desgastando. “Seus componentes se separavam e voltavam se separavam e voltavam, mas “Os Incríveis” nunca saíram da memória das pessoas”. Conversar com o Tinho é ouvir saudosas histórias de um tempo gostoso. “Já rodei muito, vivi uma vida de aventuras. O Tinho de hoje é um cara muito feliz. Mas muito feliz mesmo. Não por ter atingido algum tipo de objetivo, mas por ter vivido intensamente um momento gostoso da música brasileira”. Ainda jovem Tinho se enturmou com o pessoal que um dia formaria os “Mutantes”, conjunto revolucionário formado por Arnaldo, Serginho e Rita Lee e mergulhou definitivamente no mundo da música quando se reuniu com alguns amigos formando um conjunto que passou a tocar nos “mingaus dançantes” do Pinheiros, do Paulistano e até no Circulo Militar, clubes badaladíssimos da sociedade paulistana. “Boa parte desse pessoal que tocava com a gente ficou muito famosa. O Fábio, por exemplo, virou o Fábio Júnior. E o Lourival até hoje é o baterista do Roberto Carlos. Grande figura o Roberto Carlos, um cara muito humano”, relembra Tinho. Sua primeira apresentação com “Os Incríveis” foi em Mogi das Cruzes, em 1972. “Naquele dia estava só quebrando galho. Só entrei definitivamente para o conjunto em 1980, quando o Nenê foi para o Alasca. O conjunto tinha o Risonho, o Netinho, eu e o Manito. Eu tinha uns 27, 28 anos. Fizemos várias regravações e produzimos uns 4 ou 5 CDs com os sucessos mais significativos da banda”. Uma das canções que marcaram época e virou coqueluche em todos os finais de ano, foi aquela canção que a TV Globo colocou no ar comemorando a chegada de um novo ano e que dizia: “este ano, quero paz no meu coração, quem quiser ficar comigo, que me dê a mão...”. O leitor certamente há de se lembrar e até cantar a música...
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Idas e vindas e voltas Tinho curtiu 17 anos com “Os Incríveis”, mas nunca parou de tocar e cantar, mesmo naquelas fases duras quando os membros do conjunto resolviam “dar um tempo”. “O pessoal tinha muito disso: vez por outra tinha alguma desinteligência e o conjunto parava. Não, não eram propriamente brigas; o fato da gente viver sempre junto, viajando feito louco, aquela pressão dos shows, aquela tensão natural, acabava criando uma rotina desgastante. A solução era mesmo parar e dar o tempo”. Tinho sempre se considerou um operário da música. “Sempre gostei de tocar e tive a sorte de conviver com grandes figuras da música. Um deles foi o Roberto Leal, um cara excelente. Tudo começou quando ele me procurou um dia e disse: “Preciso de alguém para me acompanhar em uma excursão. Quer ir?” - Eu perguntei: “Pra onde?” - E ele respondeu: “Pro Canadá” – “Pro Canadá, aquela lonjura?” – retruquei. Como detesto viajar de avião coloquei mil obstáculos. Inclusive pedi um cachê altíssimo. O Roberto falou: “Não tenho tempo para discutir. “A gente tem que viajar depois de amanhã...”. E lá fomos nós. Fizemos um milhão de shows no Canadá, fomos para os Estados Unidos, rodamos o país inteiro. Tocamos até na famosa Rota 66. “Nos anos seguintes a coisa se repetiu, fizemos essa turnê uns cinco anos seguidos...”. Tinho deu a volta ao mundo trabalhando em sofisticados cruzeiros percorrendo os cinco continentes. “Imagine só, virei um cara de alta classe”, brinca. “Ainda me lembro das viagens que fiz no Pegasus, um dos maiores transatlânticos do mundo, o maior luxo...”.
As incríveis viagens “Aprendi muito com “Os Incríveis”. Viajei o Brasil inteiro com eles. Conheci tudo, cantamos até nos garimpos. Cheguei a receber cachê em pepitas de ouro...”. Tinho conta que no ano passado “Os Incríveis” foram convidados a fazer uma excursão pelo Nordeste. “Eles me 7
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chamaram porque o pessoal que convidou para o show queria que o conjunto se apresentasse com os seus componentes “antigões”. Juro que nem me sentia um “antigão”, mas como o pessoal do conjunto me considerou assim, lá fui eu. Para variar, foi o maior sucesso. Agora você me pergunta: você ganhou dinheiro? Claro que ganhei. A gente era como uma família. Aliás, vivíamos mais juntos do que com a própria família. Chegávamos a passar meses longe de casa, descíamos de um avião para pegar outro, uma loucura. Em 1995 nós fizemos um show que foi gravado ao vivo e vendemos 300 mil cópias. Vender 300 mil cópias naquele tempo era um absurdo. Outra coisa que eu não esqueço foi a turnê que fizemos ao lado do Ronnie Von, da Wanderléia, do Eduardo Araújo, dos Golden Boys e aquele pessoal todo comemorando os 30 anos da Jovem Guarda. Nós nos apresentamos em todas as capitais do país. Minha vida é cheia de histórias bem legais. Sabe quem tem histórias bem legais sobre esse tempo tão gostoso da Jovem Guarda? O Ronald, dos Vips. Ele também mora em Atibaia. Merece uma entrevista...”.
Cheio de amores Casado com Neusa Nilson, pai da Marina, publicitária formada pela FAAP, dono de 13 cachorros e 10 gatos (um deles está sumido e preocupa), Tinho, 54 anos, hoje um feliz morador de Atibaia, diz que foi aqui que encontrou a sua paz. “São Paulo que me desculpe, mas lá não dá mais. Fomos assaltados com arma apontada para a cabeça; perdi um carro numa enchente. Sabe onde? No Portal do Morumbi, cara. Se isso acontece no Portal do Morumbi, imagine o resto... Gosto muito daqui, sim. Na verdade eu acho que estou doente e vou até consultar um psiquiatra. Namoro, ou estou casado com a Neusa há 26 anos e ainda continuo apaixonado por ela. Isso não é normal, é? Não, não publique isso. É capaz dela “ficar folgada”, brinca. Tinho veio para Atibaia em 1999. “Fui convidado para fazer um show no antigo 8
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Dionísio, (que hoje é o Alegro) e me apaixonei pela cidade. “Minha mulher também gostou daqui e nós viemos para ficar”. Tinho ainda ficou indo e vindo para São Paulo durante um bom tempo, pois tinha muito trabalho por lá. “Fiquei quase um ano tocando na abertura de um show do Jô Soares no famoso Tom Brasil, na Capital. Eu ia quinta-feira e voltava no domingo”. De qualquer forma era cansativo contrariava a meta que Tinho havia se proposto: “Quero ser vagabundo. Já trabalhei demais”, proclama e vai cantando bem baixinho aquela música dos “Incríveis”: “Um vagabundo como eu, que vive a vida a procurar, alguém que siga o meu caminho e viva a vida como eu”. Pois é. Fazendo o que gosta, ou não fazendo nada, Tinho “trabalha” na Terra Azul, uma loja do tipo Pet-Shop do seu amigo Ricardo. Vez por outra vai para São Paulo, participa de algum show, alguma apresentação, algum encontro com amigos. Além de cuidar de seus gatos e cachorros, anda todo empolgado pelas apresentações que vem fazendo nos happy-hours do Bourbon, do Village e do Hípica, hotéis de primeira linha da cidade. “Ganhei um monte de “bases originais” de um amigo e graças à essa técnica, eu consigo tocar e cantar com o Frank Sinatra, o Louis Armstrong e tantos gênios da música. Estou adorando fazer esses shows”. O garoto que como eu e como você, leitor, amava os Beatles e os Rolling Stones e largou tudo para curtir Atibaia. Incrível como esses músicos brasileiros são criativos...
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NinguĂŠm esquece da professora Eunice Varella Massoni, 51 anos de aulas e muita saudade
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la estava no meio da multidão que circulava pela estação rodoviária de São Paulo e de repente ouviu um alerta: “Ei, senhora! A senhora aí!”. Assustada, pensou nos perigos da cidade grande e fingiu que não era com ela. Só que era, e o alerta continuou, mais forte: “Senhora! A senhora mesmo, é a senhora aí sim!”. Ela percebeu que era
mesmo com ela. Mas, não atendeu. Olhou de viés e percebeu que quem gritava era um policial fardado: “Senhora. É, é a senhora, a senhora mesmo! Pare, por favor...”. Gelou. E pensou: “O que será que eu fiz?” O policial se aproximou e disse: “É a senhora mesmo!” Ela tremeu. “A senhora não se lembra de mim?”. Não, não lembrava. Apavorada como estava, não lembraria nem de seu nome... “Pois sou eu, professora. Eu fui seu aluno, lembra?” Eunice Varella Massoni, que deu aulas durante 51 anos já está cansada de ser cultuada e levar sustos ao ver seus ex-alunos, hoje homens e mulheres formados, maduros, na lida da vida, mas que nunca se esqueceram dela. O policial que chamou pela professora, conduziu-a depois pela capital, levou-a onde ela queria ir, ajudou-a a resolver todos os seus problemas. “Mas dessa vez eu tremi mesmo...”, conta. Lembrada e sempre admirada, provavelmente muita gente de Atibaia só está lendo este jornal porque aprendeu a ler com ela.
Nos trilhos da SPR Falar da professora Eunice é mergulhar num mundo de histórias incríveis, cheias de poesia e muita fantasia. Filha de Roldão Varella e de dona Durvalina Sansoni Varella, nasceu num lugar chamado Arpui, à época, um bairro de Piracaia. “Até hoje eu não conheço Arpui. Meu pai era ferroviário da SPR e trabalhava como chefe de trem. Vivia para baixo e para cima, viajando, não tinha parada. Na verdade ele e minha mãe eram obrigados a morar no trem. Moravam em um vagão de trem, exclusivo para eles. Eu também morei no vagão durante algum tempo. Até que um dia meu avô disse para minha mãe: uma criança, especialmente uma menina, não pode 11
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ficar pra lá e pra cá, andando de trem. Isso não é vida. Angelo Sansoni, esse meu avô, pai da minha mãe, me levou e praticamente me criou”, conta a professora. Angelo Sansoni era oficial de justiça de Atibaia, um cargo importante e de muita relevância. Tanto que se relacionava com a chamada cúpula política da cidade. “Ele, o médico e ex-prefeito Osvaldo Uriosti, o também ex-prefeito Edmundo Zanoni, o Vinicius Chiochetti e outras pessoas importantes ficavam conversando ali na Praça da Matriz, onde tinha a loja do Abrão Zigaib, pai do Omar Zigaib. Enquanto eles conversavam e discutiam política, eu ficava brincando com a criançadinha da época”, lembra.
As várias caras da praça Essa Praça da Matriz, por sinal, já teve várias caras, conforme o gosto do prefeito da época, conta a professora Eunice. “Teve um tempo que fizeram uma escadaria enorme com a estátua do Major Alvim. Ficava bem na frente da igreja e a criançada brincava por lá. Veio outro prefeito desmanchou tudo e construiu um chafariz. Foi um horror, um desatino. A molecada jogava água, uma porcaria. Tiraram o chafariz e ficou pior ainda, pois construíram umas montanhas horríveis. Tiraram as montanhas e a praça ficou como está hoje. Se não me engano estão reformando de novo, não estão? É uma bobagem atrás da outra. Pois não tinha umas árvores anãs ali na praça? Tiraram. Tiraram, sem mais nem menos. Tão bonitas. Quem tirou? A troco de que?”, reclama a professora. “Com o coreto foi a mesma coisa. Já teve coreto, já tiraram o coreto; o coreto voltou e saiu de novo. Agora tem coreto ou tiraram de novo?”, e a professora Eunice ri da insensatez dos políticos, quase todos seus ex-alunos. Ela não mostra muito orgulho de alguns deles não...
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Crianças batendo nos adultos Dona Eunice não tem medo de dizer que as crianças que concluíam apenas o curso primário na sua época sabiam escrever muito mais corretamente do que qualquer aluno de hoje. “Talvez até melhor que muita gente já formada e diplomada em curso superior. E veja que isso só com o quarto aninho viu que beleza?.E por que? Porque talvez a escola fosse mais severa. Naquele tempo, para passar do primário para o ginásio o aluno tinha que se fazer exame de admissão. Como não existiam colégios aqui, em Atibaia eu fui para o colégio das freiras em Bragança e tive que fazer o tal exame de admissão. Fiquei lá em regime de internato, pois naquele tempo não tinha ônibus daqui para lá. Lembro que fiz uma redação no exame e uma freira passou e recolheu as provas. Mandou que a gente esperasse até que fossem corrigidas. Depois devolveu a prova para todos os alunos, menos a minha. Perguntei porquê e me disseram que eu tinha que ir para o Parlatório. Me assustei: parlatório? Com esse nome pensei que fosse um castigo. Na verdade me levaram para falar com a madre superiora. E ela disse que não acreditava que eu tivesse feito a prova sozinha. Queria saber quem tinha me ajudado. Ainda disse: “isto aqui não é linguagem de criança”. Foi preciso que eu a desafiasse e dissesse: “a sra. dá um tema e eu desenvolvo aqui, na sua frente”. Ela duvidou e eu fiz. Fui aprovada. Ela não sabia, mas eu cresci dentro de um fórum. Eu ia junto com meu avô quando ele ia trabalhar. Tive uma educação privilegiada”, conta. E explica: “parlatório era um local parecido com um confessionário das igrejas. Uma pessoa ficava de um lado e a outra do outro lado, separadas por uma parede, com apenas uma pequena janela através da qual conversam. Era coisa séria...”, justifica.
Até nas barrancas do rio Formada no chamado Curso Normal, fez inúmeros cursos habilitando-se em várias áreas do ensino. Tão logo se formou a professora Eunice casou-se com Antonio Borghi Massoni. “Eu 13
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conheci meu marido em um baile da Sociedade Italiana de Bragança. Depois fui saber que ele morava na mesma rua que eu, aqui em Atibaia”, conta sorrindo. O casal teve dois filhos, Luiz Antônio Massoni, professor de Biologia e Liliene de Cássia Massoni, funcionária da Caixa Econômica Federal, mas também artista. Pinta, toca piano, canta, já deu aulas e tem um coral que se apresenta na Igreja Matriz. Elogia Giancalo, o neto de 11 anos. “Um primor de garoto”. Depois de ter dado aulas em Bragança, a professora Eunice veio para Atibaia lecionar na escola José Alvim. “Esse tempo me dá muita saudade. Naquela época as escolas da cidade tinham tradição de promover desfiles maravilhosos nas datas festivas. Levavam carros alegóricos, cada um mais lindo que o outro. Eu criava a história, o roteiro e depois meus colegas me ajudavam na montagem dos carros. A comunidade toda, os pais dos alunos participavam e cada um oferecia o que podia, enfim, fazíamos grandes desfiles que passavam por todo o centro da cidade e as festas eram lindas. No último desfile que fiz nós contamos a vida de São João Batista, padroeiro da cidade. Você tinha que ver que beleza. Uma pena que essa tradição tenha sido esquecida”. E os professores ganhavam bem nessa época? - pergunta o repórter. “Você já viu professor ganhar bem alguma vez na vida?” foi a resposta.
A educação vem do lar Viajada, a professora Eunice já correu o Brasil inteiro e o mundo. “Comecei a viajar com 15 anos. Meus pais diziam: precisa viajar para conhecer... E eu viajei muito”. E deu muitas aulas, 51 anos de aulas. De manhã, à tarde e à noite. Impossível dizer quantos alunos já teve na vida. “Acho que a cidade inteira já passou por nós”, conta. Sem falar que já deu aulas até em Emilianópolis, na barranca do rio Paranapanema, para um grupo de prisioneiros do Carandiru que estava trabalhando por lá. “Não eram bandidos perigosos; até dava gosto trabalhar com eles”. A professora Eunice já foi diretora do Departamento de Cultura da 14
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Prefeitura de Atibaia, durante o governo do prefeito Pedro Maturana, quando o secretário de Cultura era o professor Orlando Gigliotti. Criativa, como sempre, severa como sempre, foi ela quem implantou cursos de teatro nas escolas da municipalidade. Até hoje não se conforma com as mudanças promovidas na educação. “Acho que o governador Mário Covas estava bem intencionado, mas não foi feliz nessas mudanças. Ele tirou a força do professor. Os pais não ligam, e a garotada fica largada. A escola tem que ser uma complementação do lar. Só isso. Mas eles querem que a escola faça tudo, e não é assim. O aluno tem que trazer a base da educação de casa, a escola só completa”, ensina.
Atibaia é um poema Poetisa, ela fica triste quanto vê a serra do Itapetinga totalmente desmatada. Contando e cantando o tempo bom que viveu, já escreveu três livros: “Idéias esparsas”, “Brumados” e “Encontro”. Em versos e rimas vai enaltecendo a sua “Atibaia, cidade serrana, pequenina, aconchegada ao pé do Itapetinga, bafejada pelo vento aromático que desce da serra escorregando pela pedra, em cascatas de prata nas manhãs plúmbeas de Junho! Onde estás agora, Atibaia dos meus ais?, das ruas de terra, dos vizinhos nas calçadas, das noites sem barulho de ontem? Oh! Paraíso – para onde fostes? – Crescestes! Não és mais uma paulista provinciana; és “paulistana” agora Que pena! Por que?” (*) Canta a professora os seus versos de saudade e enche a todos de melancolia. Tinha mais histórias dessa linda e brilhante professora. Pode esperar, a gente conta numa outra vez. (*) Versos do poema “Lembranças”, contido no livro “Idéias Esparsas” – autoria de Eunice Varella
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Quando não tem problema, ela inventa. Por isso, não provoque, porque a Eliana é cor de rosa choque
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liana (da antiga Pizzaria Codorna, lembra?) é artista plástica e alguns de seus trabalhos ornamentam salões oficiais e as mais lindas casas de Atibaia. Já foi empresária, já foi estilista, já desenhou moda sexy (“essa roupitcha que se vende em “sexy shopp”, como costuma dizer...). Já plantou, já comprou, já vendeu, já
aprendeu, mas seu maior orgulho é passar pelas ruas de Atibaia e ser reconhecida, por algum jovem, ou até mesmo um adulto que lhe diz: “Você foi minha professora? Lembra de mim?” Eliana fica comovida e com vontade de chorar. A Eliana Roque Dantas de Vasconcellos, uma mulher destemida, extrovertida, maluca assumida, é muito sensível.
Aos fatos “Anote aí: a Eliana é feliz, contraditória e gosta de novidades. Não sou de fincar raízes, não gosto e nem quero enraizar. Sou meio cigana, andarilha, não me apego às coisas. Acho que herdei isso da minha mãe”, conta. Ela nasceu em São Paulo e veio para Atibaia em 1964. “Como boa descendente de espanhóis minha mãe era cigana também, por isso já morei em uma porção de cidades. Essa coisa de mudar de ares está no sangue”, afirma. E ela só veio para cá porque o tcheco Godofredo Spaceck, casado com uma irmã de sua mãe ficou muito doente. “O pessoal mais antigo deve lembrar-se dele. Fazia umas malhas que duravam uma eternidade. Morreu e minha tia convidou meus pais para virem”, conta Eliana. O pai, Valdemar Mallet Roque, tinha vasta experiência em laboratórios, tendo trabalhado até naquele laboratório que produzia o Sal de Frutas Eno. Veio e criou o seu laboratório onde produzia laquês, shampoos e outras perfumarias. A coisa deu certo, o laboratório cresceu e gerou outros dois laboratórios. “Eu lembro que toda a família ajudava”, conta Eliana. “Minha mãe, Guadalupe Marcos Roque era terrível, excelente vendedora. Ia vender nas boutiques, era uma mulher atirada e sacoleira. Esperta, apostava no progresso, comprava terrenos, que na época não 17
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valiam nada e ganhava muito dinheiro quando vendia”, explica.
Das mulheres O orgulho de Eliana vai mais longe: “As mulheres da minha casa sempre foram muito fortes, lutadoras. Nenhuma foi fragilzinha, trabalhavam muito. Não faziam tricô, crochê, nem cozinhavam bem como as mulheres de antigamente. Não eram submissas e eram bravas mesmo. Tinha até a história da minha bisavó que ia buscar o meu bisavô nos bares e até na zona do baixo meretrício. E ia na pancada mesmo”, Eliana ri gostoso. A avó tinha uma pensão em São Paulo, e a mãe, que trabalhava na Companhia Telefônica, ajudava. “Foi lá que ela conheceu meu pai. Se casaram e foram felizes por 70 anos. Ela agitava tudo. Nossos laboratórios tinham fórmulas muito boas e produtos com muita saída. Remédios moderadores do apetite, que vendiam como água e o xarope Queiroz, que ficou muito famoso. O Brasil inteiro comprava, e não só a minha mãe, mas a família inteira viajava para vender. Eu também”.
No tudo bem A situação era boa e seus dois irmãos tiveram condições para estudar. Sérgio (Sérgio Marcos Roque) fez faculdade de Direito; Hélio (Hélio Marcos Roque) fez Administração. Prestaram concurso, ingressaram e fizeram carreira no funcionalismo público, Sérgio como delegado de polícia e Hélio como fiscal federal. Um dia Eliana quis fazer jornalismo, levou bomba, terminou em Letras. “Fui estudar em Bragança. Ia numa Kombi do Odair Bedore, que fazia transporte de estudantes”, lembra. ]
Meninas tontas Atibaia no seu tempo de jovem? “Chii, nem te conto. Uma cidade cheia de preconceitos. 18
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Uma opressão danada na base do: “o que os vizinhos vão pensar?”. Um horror. Não se podia nem andar de carro com o namorado. Eu era noiva e tinha horário para chegar em casa. Dez horas e meu pai esperando. Mais pela preocupação com os vizinhos: “o que eles vão falar...”. Estudar em Bragança era a oportunidade para Eliana sair, ficar livre e fazer o que tinha vontade. “Aquela bobagem de matar aula para ir com os colegas em um botequinho. Mas, reconheço, eu era terrível. Tudo o que não podia, o que era proibido ou criticado na época, me atraía muito. “Claro que nada comparável com as coisas de agora...”, explica, rindo das suas lembranças. “Naquele tempo, as meninas com 14, 15 anos eram bem tontinhas. Ou muito “tontonas”, perto das meninas de agora”, justifica.
Dos namoricos Eliana lembra bem do lance do “footing”, os rapazes parados e as meninas dando voltas na praça da Matriz. “Tudo tontinho mesmo. A muvuca era em frente ao Clube Recreativo. Quando eu já era mais mocinha, 17, 18 anos, o grande programa em Atibaia era ir ao cinema. Não para ver o filme, mas para ficar no escurinho. Pegar na mão do namorado, e o namorado por a mão nas costas da gente. Ó, que emoção! Era um delírio. Depois a gente escreveria no diário: “Ele pegou no meu ombro. Ó! ele colocou a mão no meu joelho! “Era muito gozado”, sorri. “Teve uma vez”, conta, “que um delegado novo em Atibaia mandou acender a luz do cinema e todo mundo que estava namorando acabou preso. Calma! eu juro que não estava lá, nesse dia. Mas essa fofocaiada correu pela cidade inteira. O delegado prendeu tudo quando era filho de gente “importante”. Um tremendo escândalo. Filhos da mãe e malditos cinemas de Atibaia que acendiam as luzes toda hora. Vai ver, faziam de propósito. Na hora do ligeiro amasso, do beijo fugaz, a luz acendia... Todo mundo sem graça...”, Eliana gargalha.
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Das mudanças No dia em que se formou em Letras ela se casou com Orlando Dantas de Vasconcellos Neto, com quem teve três filhos: Daniela, Camila e Ricardo. “Meu pai vendeu o laboratório, meus irmãos já tinham ido para a Capital e as coisas começaram a mudar. Comecei a dar aulas e fiquei vinte anos nessa vida. Aula de Português é uma chatice, os alunos detestam. Por isso eu não dava aquelas aulas cheias de regras. Fazia teatro, entrevistas, brincadeiras, agitava, e a moçada aceitava muito bem. Pela vida que levava, a gente diria que aquela garotada não iria longe. Felizmente eu estava enganada. Hoje eu vejo moços e moças que tiveram aulas comigo e que se saíram bem na vida. Me sinto gratificada”, orgulha-se. “Alguns amigos diziam que eu era meio a Rita Lee, porque nunca me prendi a regras; minha vida era buscar a liberdade. Nada me assusta, nada dá medo e sei que não sirvo para ser patrão. Meus filhos são bem melhores do que eu. Eu fugia às regras, eu sou ousada, eu vou à luta”.
Da Codorna E como nasceu a tão famosa Pizzaria Codorna? “Meu marido gostava tanto de cozinhar, fazer pizza na casa dos amigos, e tal, que acabou mudando a nossa vida. Sem grana, e sem o que fazer chegamos à conclusão óbvia: montar uma pizzaria. Onde? Na Lucas Nogueira Garcez. Diziam que a gente era maluco; a Lucas era muito longe e tudo acontecia no centro. Aquilo era um matagal. Naquele tempo só tinha o barzinho do Alemão na Estância Lince. Depois de nós veio a padaria da Mama. E a pizzaria virou um sucesso. Na pizzaria eu fui garçonete, picadora de legumes, ficava no caixa, só não aprendi a fazer pizza. Por que Codorna? Porque meu marido foi o primeiro criador de codornas por aqui. Ele criava codornas e vendia para o sr. Joanino, pai do João Losasso, com quem estou casada hoje. O sr. Joanino tinha um restaurante no Clube Recreativo. Quando o meu marido chegava diziam “chegou o homem 20
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das codornas”. Ficou o apelido”.
Dos enroscos A pizzaria durou 15 anos. O “Codorna” morreu, morreu o pai e a mãe da Eliana e ela ficou perdidinha “Só que eu sou uma criadora de casos; quando não tem problemas eu invento. Toquei em frente sem a mínima noção de como administrar. Mas aquela pizzaria estava me matando, me sufocando. Cheguei ao ponto de pensar: vou tentar vender. Se não conseguir, eu dou. Queria ficar livre. Eu doaria mesmo, faria qualquer coisa. Meu desapego vai até esse ponto: quando não quero, não quero, e ponto. Só fico com as coisas que me dão prazer. Resolvi virar a página. Apareceu alguém para comprar a pizzaria e eu pedi um preço que até eu toparia... (risos). Vendi. Não tirei nada de lá. Minha filha levou só uma fotografia onde aparecia o pai dela. Para quem diz que eu sou louca, eu digo: sou louca sim. Não faço mal a ninguém, só quero ver todo mundo feliz. Tirei uns 800 quilos de peso das minhas costas quando fiquei livre da pizzaria. Continuei dando aulas, fiz curso de maquiagem, pintava, vendia objetos da casa, vendi o carro, ia sobrevivendo. Eu e meus filhos fomos à luta. Você nem imagina as coisas que eu fiz. Maquiava noivas, pessoas, criava modelos de roupas, até me especializei em criar roupas eróticas e exóticas para sex-shop, imagine só. Tinha umas primas que entendiam de costura. Eu criava, elas produziam e eu saia vendendo pelo mundo à fora. Roupinha de oncinha, de diabinha, de coelhinha, a mulherada adorava vestir aquilo para seus namorados, maridos, sei lá... Eu vendia muito...”.
Dos erros sem acertos Na falta de administração, deu tudo errado. E Eliana buscou novos caminhos que também não deram certo, claro. “Tinha um espaço que pertencia a uma prima e nós montamos um 21
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instituto. Lá perto do Hospital Atibaia. Cursos alternativos e modernos de tudo quanto é coisa: yoga, dança indiana, pintura, teatro, neurologia, tinha até aulas de clown, nessa coisarada. Demorou só um ano para não dar certo”. E neste ponto Eliana não contém a gargalhada. “Minha sorte foi que o João Losasso já tinha entrado na minha vida e eu comecei a trabalhar, a pintar, revivi. Como sempre, sou consciente do que sou; quando não tenho problemas, invento. Só o desafio me mantém viva. O fato do João ser administrador de empresas e viajar por todo o país fazendo auditoria ajuda muito, pois eu viajo com ele. Estou sempre ao lado dele e sou muito feliz”. Eliana ressalta que o João não é daquele tipo de marido que chega em casa, coloca o chinelo e fica vendo televisão. “Nada, ele chega e diz: “Vamos embora”. Eu nem pergunto para onde, e vou. Toda hora a gente está indo embora. Vamos, ficamos, voltamos. É bem legal isso, a gente aprender o como é bom voltar”, conclui essa auto-declarada maluca que se chama Eliana.
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Que pena, a Eliana foi embora Eu acho que já não tem mais graça a gente brincar de criança como a gente brincava. Eu acho que já não tem mais graça a gente cantar como a gente cantava. Nem dançar como a gente dançava. Eu acho que já não tem mais graça a gente fazer festas como a gente fazia. Eu acho que já não tem mais graça a gente se encontrar para comemorar a vida. E a gente curtia tanto a vida! Eu acho que já não tem mais graça toda aquela gente, toda aquela turma de malucos cantando essa bendita vida que a gente levava. Eu acho que perdeu a graça porque nós perdemos muito da graça que ela fazia. Ela era muito forte, ela era muita vida. Ela gostava da vida, ela era tão querida quanto a vida. Eliana Vasconcellos era louca como toda a nossa loucura. Amiga como toda a nossa amizade. Alegre como toda a nossa alegria. Um dia desses, ela falou bem alto pra todo mundo ouvir, que adorava problemas. E que quando não tinha problemas ela inventava. Pois ela inventou um problema danado para todos nós. Ela inventou de partir. Inventou de ir, inventou de deixar a gente. E foi embora com um sorriso lindo. Como quem ri da nossa tristeza. Nos deixou chorando com a sua alegria. Eu acho que já não tem mais graça a gente brincar de criança. Não tem mais graça a gente ser criança. Não tem mais graça porque ela foi embora sorrindo e levou a nossa alegria. Eu acho que agora já não tem mais graça. 23
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inda uma vez se torna necessário parafrasear o poeta e dizer que “o artista é um fingidor, finge tão completamente, que às vezes finge que é dor a dor que deveras sente”. Inácio Rodrigues, pintor cearense (já mais do que atibaiense) é um poeta da cor e, mais que isso, um fingidor que costuma esquecer de suas próprias dores
para deveras sentir todas as dores do mundo. “Faço arte porque sou artista, sou criativo. Se bem que hoje em dia todo mundo é artista, já reparou? A USP desova centenas de pessoas formadas em artes plásticas; a Santa Marcelina também, a PUC idem. Fora outras escolas. Todo mundo desova artistas plásticos todos os anos. Mas será que são artistas mesmo? E sem que a gente perceba uns viram designers, outros arquitetos, têm arquitetos que viram designers e até vice-versa. Fora isso, milhões de revistas ensinam artesanato e o leitor mais ou menos aplicado grita “Shazam!” e vira artista plástico. Só que, na verdade a questão é ser criativo e ter o caráter de sobreviver da arte para manter a família. Raras pessoas conseguem encarar isso. E raras são as companheiras de artistas que conseguem conviver com isso. Porque poucos ou poucas conseguem conviver com artistas. Por natureza, o artista já é um bicho neurótico, e também não é sempre que dispõe ou pode oferecer segurança em nível econômico”, desabafa Inácio.
Um navegante Com toda a certeza são muitos os atibaienses e atibaianos que conhecem a arte de Inácio já que possuem pinturas, gravuras ou alguma de suas artes. Mas todos, com certeza, conhecem aquele painel maravilhoso que reproduz o Hotel Municipal, ali na praça da Matriz. Foi obra dele. Dele e de seus amigos Zago e Eduardo. Painel que já serviu como fundo cenográfico de novelas da TV, tal a sua beleza e perfeição. A história de Inácio Rodrigues começa em Acarú, uma praia de Sobral, Jericoaquara, um dos pontos turísticos mais freqüentados do Ceará. Foi 25
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lá que ele passou infância e adolescência. Sua vida sempre foi uma aventura. “Meu pai tinha uma escuna e a gente saía do Ceará e ia até a Guiana Francesa. Entrávamos pelo rio Amazonas e caiamos em Roraima. Tive uma vivência totalmente ecológica num tempo em que ninguém falava nisso. Em 1962 eu já viajava pelo rio Amazonas, de Belém ao Acre. A necessidade de trabalhar me transformou em taifeiro, aquele camarada que prepara comida nos barcos. Foi um grande curso de sobrevivência. Saí de casa aos 12 anos, sou autodidata em quase tudo. Fiz esse curso de vida na selva propriamente dita para depois viver na dita selva de pedra. Viajava naqueles regatões, barcos que andam pelo rio Amazonas. De vez em quando afunda um”, brinca. Inácio começou a pintar ainda criança, rabiscando figuras na praia. Depois, fazia desenhos nas paredes das casas caiadas, usando lápis, carvão e o que tivesse nas mãos. E que o dono nem visse, se não...
Um trapezista De viagem em viagem, Inácio se integrou a um circo mambembe. “Eu era trapezista, imagine só...”. Acabou em Porto Velho, conheceu um grande pintor local, Alfonso Ligório, e participou da pintura de grandes painéis da Catedral da cidade. “Depois eu fui para Manaus e conheci o Fernando Pinto, um jornalista que era diretor do Jornal do Brasil e que estava fazendo uma grande reportagem por lá. Ele viu minha pintura e disse que eu tinha muito talento e deveria ir para o Rio de Janeiro. Como na música, peguei um Ita no Norte e cheguei no Rio em 1966, em plena ditadura, O Fernando me deu muito apoio. Comecei a pintar e participar profissionalmente do grande metiê de Arte”. Inácio começou a frequentar a Escola Brasileira de Artes em contato com grandes professores. “O Aldemir Martins, meu conterrâneo, me chamava de “Sobrinho”. A arte estava efervescente naquele tempo. Eu convivi com Helio Oiticica, Arturo Barrios, grandes artistas”. 26
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Um aprendiz “A arte não dá dinheiro, dá prazer. Quem quiser ser artista tem que se preparar muito, tem que fazer um curso de sobrevivência e persistência. Não ganhei dinheiro, mas ganhei muitos prêmios, muita emoção, muito prazer. Viagens pelo país, viagens para a Europa. Fiquei dois anos na Espanha graças a um prêmio do governo espanhol. Podia viajar para onde quisesse, tudo pago. Fiz curso de restauração na Universidade de Salamanca convivi com Miró, no atelier do grupo 15 uma instituição que tinha 15 galerias e imprimia gravuras. Miró vinha de Palmas de Mallorca e passava semanas para imprimir as suas litografias. Essa convivência fez com que eu me interessasse pela gravura. Voltei para o Brasil e comecei a minha vida de artista, participando de telões. Em outro grande prêmio, fui para Cuba e até dei aulas por lá. Ganhei fama, vendia bem os meus trabalhos que sempre foram voltados para o lado social. Em plena ditadura eu via o ser humano como um degradado, aprisionado por grades. Se bem que hoje a gente vive mais aprisionado do que antes. Só não se vê as grades. Mais tarde, quando surgiu aquele filme “2001 – uma odisséia no espaço”, fiquei envolvido e comecei um trabalho espacial, desenvolvi os Espermonautas, grandes naves viajando pelo espaço, a metafísica da coisa”, delira.
Um sonhador Depois de vinte anos no Rio, Inácio veio para São Paulo, sem esquecer as suas ligações com os artistas de lá. “Até hoje recebo convites para participar de exposições. Recentemente fui convidado para participar de uma exposição nos Correios, não pude ir em função do lançamento do livro “Navegador de Espaços”, que reproduz vários dos meus trabalhos, editado pelo Instituto Olga Kos de Inclusão Social e da exposição que farei no Museu Brasileiro de 27
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Escultura, em São Paulo”. Profissional da arte Inácio fazia muita gravura, muita litografia, pintando, expondo em galerias, salões. Em São Paulo conheceu sua mulher, Antonieta, com quem tem uma filha, Marina. Antonieta é designer, decoradora e “Marina promete ser um gênio em cinema”, garante o artista. Aos 16 anos, Marina já faz cinema como gente grande. “Como vim parar em Atibaia? Pois é, um dia eu e a Antonieta passamos por aqui e ficamos encantados com a visão da Pedra Grande. Procurei e encontrei um terreno que fica bem em frente, visão total da Pedra. Comprei. Aí fiz uma permuta com o dr. Uip Pinheiro, aquele infectologista famoso, que também tem uma fábrica de artefatos de cimento em Minas Gerais. Dei quatro quadros e ele mandou duas jamantas de blocos de cimento. Minha rua praticamente nem existia. Gastei um dinheirão com tratores que tiveram que alargar a rua para as jamantas passarem. Acho que o serviço custou mais caro que os blocos”, conta sorrindo. Loucuras do Inácio.
Um brigador “Aqui eu faço os meus trabalhos vou para São Paulo vendo minhas gravuras, meus quadros. Antonieta, minha mulher, acabou sacrificada em sua carreira e trabalha muito pouco. A arte que ela faz só se sustenta nas grandes cidades. Pelo talento que ela tem poderia estar fazendo muito sucesso”, lamenta-se. Apesar de estar sempre de bom humor, confessa: “Eu sou quase neurótico. Nessa convivência com a arte, submetido a essas condições de vida às vezes precária que a arte oferece, a gente acaba neurotizado mesmo. Se quer saber, eu sofro muito com isso. Em função da arte acabo sacrificando a família. Às vezes estou numa condição muito boa; outras estou sem um tostão no bolso, incapaz até de pagar o que quer que seja. É tudo muito instável. E olhe que eu vendo bem. Dia destes tinha não sei quantos mil reais no bolso, ontem eu tinha só quarenta reais. O artista sofre. A família sofre mais. Questões de mercado, 28
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de lobbies. Eu não tenho coragem de fazer lobby. Sou muito tímido, muito puro, não consigo forçar a barra. Sou muito simples e acho que a simplicidade é uma dádiva divina. Não pago fretes ao sucesso”, impõe. “Eu represento a resistência. Sou um sobrevivente”, declara.
Uma esperança Muitas de suas obras apareceram em várias novelas. Ele nunca recebeu nada. “Agora até macaco pinta, estão ridicularizando a arte...”, lastima-se. Inácio acredita que tudo pode mudar com o advento de uma associação que vai reivindicar os direitos dos artistas. “Nem o Cristo Redentor pode ser usado em publicidade, assim como a torre Eiffel. Espero que os direitos autorais sejam levados a sério. Minha relação com Atibaia é muito boa. Tenho muitos amigos aqui e sempre fui muito prestigiado. Minha mulher sempre diz que eu sou um egoísta, um vaidoso. Será?”, se pergunta, afirmando que o grandioso livro que está sendo lançado mostrando suas obras poderá dar bons frutos. Suas últimas palavras na entrevista falam de Antonieta, sua mulher e Marina, sua filha. “Sem elas eu seria pior ainda. São meu ponto de apoio, meu porto seguro”. E num toque final Inácio se abre todo para dizer que “a vaidade é a migalha de lucro que o artista tem”. Seja lá como for, Inácio deixa de lado toda a sua angústia o mundo maravilhoso que imagina, todo feito em cores e amores.
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Um breve passeio pela Atibaia que jรก nรฃo existe mais
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uem vê, quem conversa, quem convive, quem trabalha com ele, quem assiste a um jogo do Timão, sim do glorioso Coringão, ao lado do atibaiense Mário Pereira Leite, nunca, jamais e em tempo algum vai acreditar que ele tem 91 anos e meio de idade. Vai pedir documentos comprobatórios e, ainda assim
continuará duvidando. Você duvida? Então dê uma passada lá na Selaria Esporte, uma das lojas mais tradicionais de Atibaia e procure “levar um lero”, bater um papo com ele. Mário Pereira Leite é, definitivamente, “O Cara”. Uma pessoa simples como a simplicidade, corinthiano doente, selador de primeira, história viva desta Atibaia às vezes tão mal tratada. Conhece o seu ofício como poucos, da mesma forma que conhece esta cidade desde quando ela era quase um povoado. “Começava ali em baixo na Jerônimo de Camargo, onde passava o trem, vinha até aqui em cima, na Treze de Maio; ia da Rodoviária, onde era a máquina de café, até o cemitério. Um quadrilátero. E o resto era mato e plantação de café, não tinha mais nada...”, recorda-se. Tinha Caetetuba, onde o trenzinho fazia conexões, seguindo para Bandeirantes, que hoje se chama Vargem, passando por Bragança Paulista ou para Piracaia. Atibaia sempre foi a delícia de lugar onde ele nasceu, cresceu, viveu a vida simples e gostosa dos simples.
O Alvinópolis era um mato só Nem sempre Mário foi selador. Antes ajudou o pai na lida da roça. Depois, como não poderia deixar de ser, trabalhou 32 anos na fábrica, a Companhia Textil Brasileira, que deu emprego para mais de meia Atibaia naqueles gloriosos tempos. “Eu fazia serviços gerais. A vida lá era uma maravilha. A fábrica era uma família. Quando comecei a trabalhar lá tinha uns 1.200 operários entre a fiação e a tecelagem. A fábrica trabalhava em três turnos, não parava nunca. Naquele tempo a vida era mais fácil. Meu pai tinha oito filhos. O primeiro salário dele foi 100 reais, ou cem mil réis, que era como se falava naquele tempo. Ele trabalhava no Alvinópolis 31
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e tomava conta do lugar. Era zelador do bairro que ainda estava se formando. Aquelas ruas, aquelas praças que hoje estão ocupadas eram tudo mato. Meu pai tomava conta e eu ajudava. Eu tinha uns sete anos de idade. Antes a família morava no bairro de Caetetuta, uns seis quilômetros adiante da estação. Foi lá que eu nasci. Meu pai chegou a trabalhar na fazenda do Zico Ferraz, que também ficava em Caetetuba. Depois nós viemos para o Alvinópolis”, conta. “Se eu conheci o Major Alvim? Nossa, se conheci. É aquele baixinho que tem uma estátua em frente ao prédio do Museu, onde era a cadeia daquele tempo...”. O homem era 100%, garante Mário. “Ele tinha criação de gado lá no Alvinópolis. E também tinha a máquina de beneficiar café que ficava bem em frente onde hoje está a rodoviária. Ali era tudo fábrica de beneficiar café, do Major”. Mário lembra que o café era beneficiado, escolhido pelas mãos das mulheres e depois mandado, pelo trenzinho até Santos, para exportação.
As gabirobas do Alvinópolis A imagem que Mário tem do trem que corria pela cidade era imensa. “Apesar de ser um trenzinho movido à lenha, aquilo era um “trenzão” pra mim. Não cabia na minha cabeça...”. Mário ajudava o pai na lida diária e ainda freqüentava a escola José Alvim. Não chegou a concluir o curso primário, mas três anos de escola daquele tempo era ensinamento mais do que suficiente para a vida. “Era uma caminhada todo dia, do Alvinópolis até aqui, no centro. Nós éramos oito irmãos e só tínhamos uma mala para carregar os livros. Servia para todos os irmãos. Vinha um e voltava, vinha outro e voltava, a mala de livros era a mesma...”, ri, gostosamente. Mário era o mais velho dos oito irmãos. Só um deles faleceu. Quando saía da escola voltava para casa e ia roçar ruas e praças, tapar buracos do loteamento num dia-a-dia que não acabava nunca. “Naquele tempo só tinha quatro casas por lá. Quando meu pai recebeu um aumento, passando a ganhar 120 mil réis ao invés de 100 mil réis, foi uma festa. Ele pulava 32
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de alegria...”. Doces tempos. “Mas lá a gente tinha tudo. Tinha leite, tinha sal, podia ter galinhas, era bom...” Mário não esquece das gabirobas, uma frutinha parecida com a jabuticaba. “O Alvinópolis vivia forrado de gabirobas. E a gente catava tudo e trazia para o escritório do Major, aqui na praça da matriz. Eram cestas e mais cestas de gabiroba. Ele gostava muito. E dava gabiroba para tudo quanto era amigo...”.
O trabalho na fábrica O tempo passou e quando tinha uma certa idade Mário perdeu o pai. Sua voz fica embargada quando lembra. A família já morava “aqui em cima, na Treze de Maio”, conta. “Minha mãe é que teve força para continuar cuidando dos filhos. Não foi fácil. Eu dava uma força. Daí foi indo, né?”. Mário acabou aprendendo o ofício de seleiro e, mais adiante, casou-se com Laura Toledo Leite, cinco anos mais nova que ele, falecida há quatro anos. De novo a emoção mareja seus olhos. O casal teve um filho, Reginaldo Pereira Leite, também já falecido. Três netos e três bisnetos. “A Elis Andra, minha bisneta, já tem 18 anos. Está sempre comigo. Me ajuda, fica de olho em mim. Adoro meus netos, adoro minhas netas”. Mas, voltando à história, Mário tinha aprendido o ofício de seleiro que não pagava tanto assim. Casou-se com dona Laura, que já trabalhava na fábrica e também foi trabalhar na CTB, onde ficou durante 32 anos, até se aposentar. “Minha mulher saiu de lá antes de mim, para trabalhar no Banorte. Eu também andei uns tempos por lá, para não ficar vagabundeando depois que me aposentei...”, sorri. Dona Laura também se aposentou tempos depois.
Os desencontros no cinema Ser seleiro naquela época em que o mundo andava a cavalo e em charretes era coisa muito importante. “Eu faço de tudo em selaria. Sela de tudo quanto é tipo. Conserto, faço tudo com 33
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o couro”. Mário não tem queixas da vida em Atibaia. “Sempre foi muito boa, tenho grandes amigos. Teve um tempo que o divertimento era ir ao cinema. Desde criança eu ia muito no cine República. Eu saía lá do Alvinópolis e vinha aqui pra cima. Como era de noite, meu pai vinha me buscar. Um dia a gente se desencontrou e ficamos assim: o cinema terminou, meu pai demorou e eu fui pra casa. Cheguei lá e meu pai tinha saído para me buscar. Eu voltei, não encontrei e voltei para o cinema. Ele tinha chegado em casa e voltado para me buscar... Perdemos a noite inteira nesse vai e vem. Aí a gente se encontrou e eu falei: de hoje em diante eu não quero mais que o sr. vá me buscar; eu vou sozinho. Ia com aquele medo...”, gargalha. Doces lembranças. Vida boa! “O perigo, naquele tempo, era cachorro, animais, essas coisas e não essa insegurança de hoje”. Ao que se lembra, “tinha uns quatro polícias na época...”. A cadeia era onde hoje está o Museu. “A gente passava e os presos estavam pendurados nas grades. Jogavam coisas na gente. A gente jogava coisas os presos. Engraçado, né?”, suspira.
O motor da cidade Atibaia começou a crescer no tempo da fábrica. “A fábrica era o motor da cidade. Dia de pagamento o comércio fervia. Era uma festa”. Hoje ele mora sozinho aqui no centro da cidade. Demorou, mas conseguiu comprar sua casa. “Vivo bem. Compro uma marmita aqui no vizinho, levo para casa, almoço, descanso e volto para o trabalho. À noite faço um lanche, uma sopinha e quando tem, vejo o jogo do Corinthians. Minhas netas e bisnetas ficam sempre de olho e me cuidam. Elas são adoráveis...”. Na hora de dizer os nomes delas se complica e complica o repórter. “Minha bisneta se chama Elis Andra, e minha neta, mãe dela, se chama Elisandra”. O repórter não entende e os dois se enrolam. Elisandra e Elis Andra? A outra neta se chama Elisângela. Ou seria Elis Ângela? O neto se chama Leandro. As netas que nos perdoem, ao repórter e ao avô e bisavô. O papo estava tão bom que era melhor pular e deixar 34
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que Mário revelasse a verdadeira adoração que tem por todas elas e pelo neto. Qualquer hora destas a gente coloca os nomes corretos em pratos limpos...
Mário no “bando de loucos” Ainda dá dinheiro fazer selas? “Agora não; o mais é conserto”, conta, lembrando que existem selas que chegam a custar mais caro que um Mercedes Benz. “Sela de gente rica”. Mário não tem noção de preços, “eu faço por gosto”. Enquanto conversava com o repórter, Mário trabalhava o couro que serviria para encosto de cadeiras. Ao seu lado, uma peça de azulejo com o escudo do Corinthians. “Um dia ainda vou colocar desses azulejos em toda a minha casa”, sorri. Atrevido revela: “Nasci corinthiano. O Corinthians tinha 8 anos quando eu nasci. E já vai comemorar o centenário...”. Ter ido várias vezes a São Paulo para ver jogos do Coringão é um de seus orgulhos. “Eu ia muito. Fui naquele jogo São Paulo X Corinthians quando o São Paulo estreou o Sastre, lembra? Quem lembra do Sastre, aquele jogador argentino que diziam ser muito bom. Ganhamos de 2 a 1. Eu tinha uma namorada em São Paulo e ia sempre lá, aproveitava para ver o Corinthians. Aliás, eu nem sei se ia mais para ver a namorada ou para ver o Timão...”, sorri. Provando que aquilo sempre foi um “bando de loucos”, Mário cita, de cór e salteado a escalação do time na época. Fala de Chico Preto, Begliomini, Baltazar, Jango, Brandão e Dino. Hércules, Rui e Milani. “Eu vi todos eles jogarem. Naquele tempo era muito bom, não tinha brigas entre torcidas. Quer dizer, tinha briga, mas não era essa violência toda...”.
A história viva Enquanto costura o couro, Mário vai recordando essa vida inteira passada nos campos do Alvinópolis, no barulhão da fábrica, nos dias de pagamento, na dona Laura, no filho, 35
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nos netos, bisnetos, na Atibaia tranqüila, no cine República, no Major, o pai, no trem. Mas se você olhar bem para ele vai duvidar que esse homem tão jovem tenha 91 anos e meio de vida. Mesmo que ele apresente documentos. Mário Pereira Leite é simplesmente uma grande história de Atibaia.
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As mãos são mais rápidas que os olhos no mundo mágico de Renato Cruz
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odo cuidado é pouco, amável e esperto leitor, atenta e observadora leitora. No correr deste texto, corre-se o risco de se ser enganado, tapeado, tungado, e até de se ficar totalmente apalermado e bestificado. Pois foi assim que ficou o repórter, apalermado e com cara de besta depois de passar mais de uma hora, ouvindo histórias de Renato
Cruz, um personagem realmente mágico. Mistura pura de prestidigitador, brincalhão, pessoa terna e respeitosa, ilusionista, piadista e ex-relojoeiro, Renato Cruz é uma das figuras mais marcantes e queridas desta Atibaia que também tem lá suas mágicas. Um amigo das antigas diz que quem vem para cá, ou simplesmente passa por Atibaia e não conhece Renato Cruz, não veio e nem passou por Atibaia. Renato passou 52 dos seus 70 anos consertando jóias raras como os antigos relógios Ômega, Tissot, Mido e tantas outras marcas de expressão. Foi com esse trabalho que cuidou da família, educou seus dois filhos e encheu um pequeno pé-de-meia ou um pé de uma pequena meia, que dá para o gasto até hoje.
Fazendo hora sem relógios Porque o mundo já não fabrica relógios à altura do seu talento, hoje Renato só faz hora. Passa o dia inteiro de maneira mágica na sua tradicional loja de 21 metros quadrados na rua José Inácio, quase esquina com Benedito de Almeida Bueno. Ali recebe, diverte, tapeia e instiga os amigos com seus truques e mágicas incríveis. Fora isso conta e reconta histórias de vida e esparrama filosofia. “Relógio hoje custa 10, 15 merréis. Quem vai mandar consertar relógio?”
Cuidado, aí vêm as cartas Com um simples maço de cartas de baralho nas mãos, Renato surpreende, assusta, provoca espantos e transforma todo mundo em criança. Truques e mais truques. Em suas mãos, as cartas aparecem e desaparecem; mudam de naipe, mudam de cor, mudam de lugar. Intrigadas, as 39
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pessoas não acreditam no que estão vendo. “Escolhe uma carta”, ordena. O repórter escolhe. Renato brinca com a emoção do espectador mais atento. Por mais esperta que a pessoa seja, por mais atenta, não vai conseguir acompanhar a agilidade das mãos e dedos do mágico. As cartas somem e reaparecem. Mais de uma vez já ouviu a insinuação de que teria parte com o diabo. Terá? Renato ri, disfarça, se sente bem, se realiza alegrando e comovendo as pessoas. Pronto, ele acabou de tapear o repórter de novo, que nem viu onde sua carta foi parar. “Escolhe outra...”, ordena, e assim o dia passa.
Um bom dom É bem provável que a primeira mágica de Renato tenha sido esconder a própria mamadeira. Ele ri e diz que é exagero. Mas confessa, quase gargalhando que começou sua vida de ilusionista aos 6 anos. Seis anos? “É, ao que eu me lembre comecei com seis anos. E nem me pergunte como. Acho que é dom de Deus...”, explica cheio de humildade. Talentoso Renato também começou cedo a mexer com relógios. “Aí eu já tinha 10 anos”, conta. Talvez fosse dom, agilidade mental, versatilidade, talvez fosse uma criança prodígio, com certeza tratava-se de pessoa prodigiosa. Renato é simples demais para se julgar melhor que os outros. “Cada um tem o seu talento, sua habilidade. Não sei fazer uma porção de coisas, mas procuro fazer bem feito o que faço...”.
E tome mágica De novo ele pega o maço de cartas e insiste em fazer o repórter de trouxa, o que também nem é tão difícil. “Escolhe uma carta”, ordena. “Decore a figura e recoloca no maço”, manda. Renato move as mãos turbinadas, vira daqui, mexe dali, esconde, tira, põe, volta, os dedos não param, as cartas se aceleram, os olhos do espectador procuram seguir e, se atropelam. De repente, Renato revela a carta escolhida. E não erra nunca. “Qualquer coisa que eu faça espanta as pessoas...”. 40
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Fenômeno ou tapeação? Quase indignado consigo mesmo por não conseguir acompanhar os movimentos das mãos de Renato o repórter pergunta se mágica é coisa do outro mundo ou tapeação, esperando que Renato ofereça uma resposta altamente filosófica e transcendental. Ele surpreende ao declarar: “É pura tapeação. Agilidade com as mãos”, sorri. Será que Renato conseguiria revelar o grande truque dos “mágicos” do mundo que fizeram sumir trilhões e trilhões de dólares da atual economia mundial? Ele ri solto e revela: “Não, mas foi um belo truque, hein?” Lamentavelmente nem todos os “mágicos” são honestos como Renato... Baralho nas mãos, lá vem Renato com outro truque. Fique claro que o baralho não é especial, “é igual aos outros, coisa comum. O que muda é a habilidade. As mãos fazem tudo. As mãos são mais rápidas que os olhos. As pessoas ficam malucas, se sentem tapeadas, se sentem iludidas e eu me sinto feliz. Gosto de deixar todo mundo curioso pensando: “Como é que ele consegue fazer isso?” Cheio de amigos, respeitado por todos, Renato é visitado por gente do povo e gente importante, empresários, juízes, delegados, promotores, policiais. Todo mundo fica bobo com tanto truque e tanta arte. “Não, não pode, isso não existe. Você fez isso na minha cara e eu não posso acreditar no que estou vendo. O camarada está me tapeando, assim, na minha cara...”, desabafou uma alta autoridade da cidade. Renato ri, Renato se realiza. “Gosto de surpreender as pessoas. Gosto de agradar, gosto de instigar”.
Quem paga a conta? Às vezes Renato brinca e surrupia moedas e até carteiras de amigos. “Aí eu convido: “vamos até à padaria”. Digo que vou pagar a despesa e dou um tempo para que o amigo insista em pagar. Ele tenta pegar a carteira, mas ela está comigo. Eu pago com o dinheiro dele e devolvo a carteira. 41
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O cara quer me matar...”. Um bom batedor de carteiras poderia ser um bom mágico? “De jeito nenhum”, responde Renato. “Apesar de ser truque, a mágica exige honestidade, habilidade e lealdade, coisas que já vêm do berço. Quem faz, faz porque gosta”.
Convide o Renato Admirador explícito de David Cooperfield, que considera o maior mágico nos tempos atuais, diz que não gosta desses números mirabolantes, “Meu gosto é brincar com pequenos truques, usando só as mãos. Dou muito valor ao trabalho das mãos”. Pena que Renato não se exiba profissionalmente. Apenas atende convite de amigos e se apresenta em festinhas ou pequenos espetáculos. Deveria cobrar pelas suas apresentações, mas não, apenas agradece quando alguém lhe oferece algum pagamento, “Sempre ajuda...”.
Criança fica de olho Que público é o melhor, adulto ou crianças? “O adulto é mais esperto, mas a criança é mais lógica e observadora. O adulto se deixa levar pela magia, a criança é mais centrada, mais atenta e observa os movimentos das mãos”, revela. Querem ver Renato feliz? Coloquem à sua frente aquele tipo de pessoas metidas, do tipo sabe-tudo, espertinhas. “Adoro tungar essa gente. Os espertos sempre se dão mal. Quanto mais esperto mais gostoso de tapear. Quando a pessoa chega e diz: “a mim ninguém tapeia”. Aí é que eu tapeio mesmo”. O gosto, a diversão de Renato é provocar o espanto nas pessoas.
Ele tem partes De novo com o baralho nas mãos, manda que o repórter escolha uma nova carta e o truque recomeça. Vai para lá, vai para cá, ele prova que o repórter é um tonto em matéria de mágicas. 42
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Apalermado, abestalhado, totalmente tapeado, ao final da entrevista o repórter conclui que Renato engana até aqueles que costumam dizer que ele tem partes com o diabo. Nada disso; é o diabo quem tem partes com Renato. E certamente também fica bobo com tanta arte.
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Ora, direis, esperar por cometas... Mas foi um cometa que ajudou Luppi a lanรงar o nome de Atibaia no mundo
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egue um cometa charmoso e famoso que há milhões de anos vive rodando feito bêbado no espaço sideral. Junte com uma montanha igualmente charmosa e famosa que tem uma Pedra Grande como destaque. Imagine que um dia esse cometa ensandecido pudesse ter uma aproximação, sabe-se lá de que tipo, com
a tal pedra, questão de atrações meramente físicas e muito loucas, cujo entendimento não é nada fácil. Coloque tudo isso na cabeça de um publicitário criativo e visionário. O resultado seria imprevisível. Como foi. O cometa em causa era o Halley, que lá pelos anos 90 cismou de visitar a tal orbita onde circula o planeta terra. E havia uma possibilidade dessa aproximação acontecer justamente em Atibaia, onde fica a tal montanha da Pedra Grande. O publicitário, ninguém menos que Augusto Francisco Luppi Filho. O resultado foi uma tremenda campanha publicitária nacional e até mesmo internacional. O nome de Atibaia correu o mundo como um dos locais onde melhor se veria a aproximação do cometa Halley. Um verdadeiro furor. Milhares de pessoas foram motivadas a visitarem a cidade. No fim o bandido do cometa veio, mas ficou de longe. Pior que as condições atmosféricas não foram tão propícias. E assim acabou não acontecendo nada e a vida da cidade continuou na mesma. Alguém se lembra desse episódio? Sorrindo, quase gargalhando, o próprio Luppi conta que, tempos depois, viajando pela Europa, foi abordado pelo gerente de um hotel famoso que lhe perguntava sobre Atibaia a Pedra Grande, o cometa. A vida do Luppi sempre foi cheia de surpresas e episódios marcantes nesse nível. “O cometa me decepcionou. Mas foi muito legal. Se ele tivesse vindo mesmo, Atibaia teria ficado muito mais famosa”, conta.
Viajar de trem é fogo Essa é apenas uma das passagens vividas pelo Luppi, casado com Beatriz Miraglia Luppi, pai de Augusto, que atua no setor de logística de Comércio Exterior; Caetano, advogado e diretor 45
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jurídico da Câmara Municipal, Ana Carolina e Ana Beatriz, formadas em Administração. Sua ligação com a cidade é, no mínimo desde sempre, como diz. “Eu tinha uma tia com problemas pulmonares e o médico indicou Atibaia como o local ideal para que ela se recuperasse. Aliás, frise-se, o turismo de Atibaia nasceu de receitas e recomendações médicas, graças aos ares que aqui se respira. Meu pai comprou uma casa e, de lá para cá, nunca mais sai daqui”. Naquele tempo, conta, era um desafio vir para cá. “Demorava-se horas numa estrada que era um pó. Eu só gostava quando vinha de trem com alguns amigos. Aí era uma farra. A gente pegava o trem na Lapa e ia até Campo Limpo de onde saía o trenzinho até Piracaia. Demorava meio dia para chegar, mas era uma festa. Cara, um dia a gente estava no último vagão do trem e tinha umas meninas junto. A locomotiva era a vapor e soltava brasas para tudo quanto é lado. De repente caiu uma brasa no meio dos seios de uma menina. Ela urrava de dor e ninguém tinha coragem de colocar a mão nela. Imagine, naquele tempo, pegar nos seios de uma moça. E em público... Eu não tive dúvidas: meti a mão e tirei a brasa. A menina, que urrava de dor, parou de chorar, mas nunca mais olhou para a minha cara”. A gente pode passar horas ouvindo as histórias que o Luppi tem para contar...
Um publicitário criativo No correr da vida Luppi tornou-se publicitário. “Trabalhei com Roberto Duailibi, José Zaragosa e Francesc Petit, os famosos fundadores da DPZ, uma das agências mais criativas do país. Trabalhei também na Alcântara Machado e depois no Laboratório Squibb. Até que fui para o Itamarati, a convite do embaixador Paulo Tarso Teixeira de Lima. A gente fazia divulgação das grandes feiras nacionais, aqui e no exterior. Rapaz, às vezes eu ficava 30, 40 dias viajando sem ver a família. Cansei. E vim para cá definitivamente”. Aqui, Luppi entrou no mercado imobiliário. “Nós lançamos a maioria dos grandes edifícios da cidade. E até 46
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aquele Shopping, na José Alvim que, infelizmente não prosperou como deveria. Uma pena”. Luppi sempre teve participação ativa social e politicamente na cidade. Nunca foi político, mas desde criança brigava para que a Fernão Dias fosse asfaltada. “Aquilo era uma vergonha. Historicamente, quem impedia que a estrada fosse asfaltada era o então presidente Getúlio Vargas que não queria que São Paulo e Minas Gerais se unissem fisicamente. Tinha medo da chamada “política do café com leite”. Precisou vir um mineiro, Juscelino Kubistchek para dar um jeito na estrada. Depois, outro mineiro, Itamar Franco, assumiu a Presidência e determinou a duplicação da estrada”.
Quem não tem coronel, vai de major mesmo Será que alguém, em algum tempo, conseguiu impedir o progresso de Atibaia? Sem papas na língua Luppi responde: “O coronelismo da cidade. Se bem que Atibaia, diferente como sempre, nunca teve coronéis, no máximo major...”, brinca. Em contrapartida, Luppi enaltece, por exemplo, a figura de César Memolo. “Era um visionário. Ao que consta, Memolo era garçom em São Paulo e foi convidado para montar um hotel por aqui. Nasceu então o Hotel Estância Lince e tudo aquilo que existe em volta, a padaria da Mama, o primeiro condomínio fechado da cidade e tal. Ele estava sempre vinte anos à frente. Chegou a construir o primeiro colégio particular de Atibaia, que funcionava justamente onde hoje é a escola do Major, visto que o colégio foi encampado pelo governo do Estado”. Incorporações, terrenos e áreas à parte, Luppi ainda teve tempo de trazer outra novidade para Atibaia: a Antena 1, primeira rádio FM da cidade. “Era um grupo de 13 emissoras e nós pegamos uma franquia. Eu era muito pequeno nesse grupo, mas a rádio fez sucesso, trouxemos grandes atrações artísticas para memoráveis shows no São João Tênis Clube. Era muito profissional. A rádio foi vendida 47
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e Atibaia perdeu”, lastima-se.
Salvando o dinheiro da cidade E o “briguento” e participativo Luppi não ficou só nisso. Também entrou na guerra da antiga fábrica da CTB. “Um dia aqueles “prédios fantasmas” da fábrica foram desapropriados pela Prefeitura. Só que, logo depois ela desistiu dessa desapropriação. Os antigos proprietários entraram em juízo pedindo indenização pelo “uso” da fábrica durante o período. Ganharam a causa e Atibaia teria que pagar alguma coisa como três milhões de dólares como indenização. Um absurdo. Foi então que eu e alguns companheiros das lojas maçônicas da cidade compramos a briga através de uma ação popular que saiu vitoriosa, desobrigando o município do pagamento daquela quantia exorbitante. De qualquer forma, “o fantasma dos prédios” continua lá. É preciso formular uma saída para aquilo. Quem sabe desapropriar de vez e criar ali um grande centro cultural com teatros, cinemas, áreas de lazer, coisas assim. Atibaia precisa disso, atrações que incrementem o nosso turismo”, propõe.
Hora de ousar Sempre irriquieto e criativo, Luppi diz que Atibaia tem tudo para se desenvolver e assumir um lugar de destaque. “Já se cansou de dizer que estamos num eixo de penetração fortíssimo formado pela Fernão Dias e Dom Pedro. Precisamos aproveitar melhor isso. E as coisas já estão acontecendo com uma infinidade de empresas se estabelecendo no município ao largo dessas rodovias. Precisamos incrementar ainda mais esse esforço. Temos que reconhecer que algumas atitudes já foram tomadas favorecendo o desenvolvimento da cidade, inclusive politicamente. O nosso Centro Empresarial já conta com um número expressivo de indústrias de ponta. Temos que investir ainda mais na área da Educação, oferecer cursos tecnológicos. 48
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A FAAT já está aí, representando um extraordinário avanço. Não podemos parar, é preciso sonhar, pois a cidade e o povo merecem”.
A terceira idade é o futuro De sua parte, Luppi prepara-se para outra ousadia: “Além de estar desenvolvendo o projeto de um grande condomínio fechado na cidade, eu penso em lançar, apoiado por um grupo de investidores, um empreendimento totalmente voltado para a terceira idade. Estive viajando recentemente pela Europa e constatei que a terceira idade é o grande filão, o grande alvo para esse tipo de negócio. Que, por sinal, também já é comum nos Estados Unidos, por exemplo. A preocupação com a terceira idade, lá fora, mostra que esse é um mercado que Atibaia pode trabalhar e tem todas as condições para isso. É próxima da Capital, tem um clima extraordinário, tem carisma e pode atrair esse público tão importante. Vai ser um condomínio com destinação específica, com todos os serviços e o atendimento que a terceira idade requer. Porque, junto com a terceira idade vai se atrair a segunda e a primeira idade, ou seja, avós, pais e filhos se encontrando em um lugar que abrigue a todos com todo o conforto”, especula.
A volta do cometa Ao final, Luppi volta a “viajar” no cometa. “Esse Halley poderia ter feito muito mais por Atibaia”, suspira. Voltando no tempo, Luppi lembra que Atibaia foi lançada mundialmente como a Capital do Halley. “Nós conseguimos isso. Até tentamos criar uma linha esotérica, na qual a nossa Pedra Grande seria uma linha de contato com o cometa. Um dos pontos focados então era que toda cidade tem um Cristo olhando para ela, mas só Atibaia tem um Cristo olhando para o céu. Explico: há muito foi feita uma foto da Pedra Grande e nela aparece, com clareza, o rosto de Cristo, deitado, olhando para o infinito. É de arrepiar. Essa foto está 49
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no nosso Museu para quem quiser ver. Que loucura, não? Pois é, mas quase deu certo. O diabo é que, conforme asseguraram os especialistas do Observatório Mackenzie, o maluco do Halley mudou sua rota...”. Quando mudou a rota, o Halley deixou Atibaia sem ver cometas. “O Halley pode demorar para voltar, mas o nosso Cristo está lá, esperando deitado...”, suspira Luppi, em mais uma de suas grandes e criativas tiradas...
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Atibaia, a cidade que nunca teve dinheiro para nada
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ão é de hoje que o fermento utilizado na quase centenária padaria Legè, que fica na Avenida da Saudade, não só faz crescer as massas do seu pão inconfundivelmente delicioso como, também, e com certeza, mexe com a política de Atibaia. Alguns, mais críticos, chegam a classificar o local como “ponto
político da cidade”. Onde as idéias ganham ou perdem forças. Mais ainda, onde não faltam fofocas muito bem fermentadas. Realmente a Legè sempre reuniu, alternada e aleatoriamente, membros da situação e da oposição em infindáveis cafés da manhã ou da tarde. Com direito a pão quente, pão na chapa, pão com manteiga, pão com tudo, pão sem nada, mas, acima de tudo pão com muita política no meio. Pois foi num cantinho da padaria Legè que o repórter conversou com Gilberto Sant´Anna. Fora o fato de já ter sido prefeito eleito de Atibaia, tendo governado a cidade entre 1983 e 1988, Gilberto é o que se pode chamar de: “um sujeito viciado em política”. Ele mesmo confessa: “Eu tenho política nas veias”, um gosto que o acompanha desde criança.
E nascia o Cesua Gilberto nasceu em São Paulo e veio para Atibaia aos 6 anos. Freqüentou o José Alvim e o Colégio do Major. Sonhador, agitado e inquieto na defesa de suas idéias, era um garoto quando ajudou a criar e passou a participar ativamente do CESUA, Centro de Estudantes Universitários e Secundaristas de Atibaia, órgão que reunia a estudantada secundarista de Atibaia. “Era um movimento muito forte, uma frente ampla de jovens e das melhores cabeças da cidade. Durante o governo João Goulart essa moçada promovia debates e desenvolvia muita atividade política”, lembra. Esse CESUA que Gilberto tinha na cabeça, ainda traria muita dor de cabeça para ele, como se verá mais adiante.
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Em São Paulo, aprendendo Direito Depois de ter concluído o ginásio e o colégio em Atibaia, Gilberto Sant´Anna foi para São Paulo sonhando com o curso da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. “Não era fácil. Fui com a cara e a coragem. Trabalhava e estudava, morando em pensão. Apesar de sempre ter proporcionado uma boa vida à família, meu pai, Alfredo Sant´Anna, que tinha um escritório de Contabilidade em Atibaia, não conseguiria me manter por lá. Por sinal, é bom que se diga, meu pai foi o primeiro Contador formado a se instalar na cidade”, lembra. Estudando e fazendo política, Gilberto viveu e conviveu com a maioria dos políticos hoje em evidência no país como José Serra, Fernando Henrique Cardoso, Aloísio Alves, fora Ulisses Guimarães e Franco Montoro, entre outros, já desaparecidos. Eles faziam parte do MDB. “Eu pertencia à Juventude do partido e a gente vivia no olho do furacão da resistência”, orgulha-se. “Fui perseguido, mas não cheguei a ser exilado. Ajudei muita gente a fugir do país. Apesar de ter muito trânsito e muita atividade política, ninguém tinha acusações concretas contra mim. Ainda assim fui muito perseguido pelas forças da repressão”, lembra Gilberto.
Fugindo na madrugada Mesmo contra a vontade do pai vez por outra Gilberto aparecia em Atibaia. “Em 64 a coisa andava feia. Começou uma terrível perseguição a todas as lideranças do país, inclusive aqui. Se contar ninguém acredita, mas, segundo diziam, por mais absurdo e inacreditável que possa parecer, havia uma lista com 120 comunistas em Atibaia. Tudo era muito perigoso. Muita gente sofreu sem merecer”, desabafa. Um dia em que estava na cidade, seu pai recebeu um telefonema, misto de aviso e ameaça: “Vai ser hoje à noite; daqui a pouco vão prender seu filho...”. O pai de Gilberto saiu ao seu encontro. Ao lado de amigos, ele caminhava pela 54
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Avenida da Saudade, próximo de sua residência, quando seu pai lhe disse: “Nem apareça em casa. Trouxe algum dinheiro, roupas e esta japona para você se agasalhar. Desapareça, já!” Assustado diante da intimação, Gilberto mal teve tempo de raciocinar para onde ir àquela hora da noite. Lembrou-se de um amigo que prefere não citar o nome. “Ele também estava “na fita dos homi”, como se dizia naquele tempo. E ainda hoje...”. Os dois seguiram até à casa de um amigo de seu pai no bairro da Ressaca. Chegaram e quase mataram as pessoas de susto. “Imaginem dizer que a polícia estava atrás da gente...”.
Um susto quase mortal Os dois esconderam-se no porão da casa e passaram a noite. Antes que o sol raiasse, foram para a beira da estrada e ficaram esperando pela “jardineira” que ligava Atibaia a Nazaré Paulista. “Foi a viagem mais longa da minha vida. Cada vez que o ônibus parava o nosso coração disparava”, conta Gilberto que hoje morre de rir da “aventura”. De Nazaré foram para Guarulhos onde, estrategicamente, se separaram. “Me lembro que era perto da hora do almoço e eu estava diante de uma banca de jornais, no centro de Guarulhos, vendo as manchetes para saber das “novidades”: quem foi preso, quem não foi. Distraído, senti que alguém se acercou de mim e me abraçou forte, muito forte, por trás. Gelei. Pensei: me pegaram! Morri um pouco. Foi quando o abraço relaxou e eu ouvi a voz de um tio meu dizendo: “Que saudade! “Que é que você está fazendo por aqui?”, ele perguntou. Eu queria bater. Eu queria matar o meu tio. “Foi o maior susto que tomei na vida”, deságua Gilberto.
Entrando na política No meio de tantas reuniões, pressões, impressões e luta política, Gilberto foi convidado e aceitou candidatar-se a deputado estadual nas eleições de 1978. Fique claro que naquela época, 55
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a pessoa precisava ter muita coragem para se candidatar pelo MDB, partido da oposição. Para falar a verdade muitas pessoas tinham medo até de votar no partido. Gilberto não foi eleito, mas recebeu excelente votação em Atibaia. O que daria forças para, mais tarde, ainda nesse mesmo ano, tornar-se candidato a prefeito da cidade. Também não foi eleito, mas, de novo a sua votação foi tão expressiva que ele tornou-se o candidato natural às próximas eleições municipais que seriam realizadas em 1982. Ganhou e governou a cidade no período de 1983 a 1988. “Naquele tempo, Atibaia era exatamente a metade do que é hoje. E, como sempre, era muito pobre, sem recursos, sem apoio...”, desabafa Gilberto. “A minha administração foi a administração da miséria. Aliás, todos os prefeitos da cidade pegaram miséria. O Takao, o Cido, etc. O único prefeito que teve dinheiro para administrar a cidade foi o Beto Tricoli, mas isso, já no seu segundo mandato. Isso tudo graças às reformas introduzidas na Constituição em 1988 que propiciaram maior volume de dinheiro para os municípios”, revela Gilberto, deixando claro que o governo de Atibaia teve três grandes momentos que propiciaram bom volume de recursos para serem investidos: “na era do café; durante o governo do professor Walter Engracia, que teve todo o apoio do então governador Lucas Nogueira Garcez e, agora, na segunda gestão do Beto Tricoli”, explica.
Resumo da sua obra Pai de quatro filhos, João Rodrigo, que trabalha com Nutrição; Valéria, que trabalha em Administração; Luiz Fernando, Arquiteto e Pedro Afonso, estudante de Ciências da Computação e guitarrista nas horas vagas, Gilberto Sant´Anna diz que, enquanto prefeito preocupou-se, basicamente, com a questão da mortalidade infantil. “Esqueci o resto. A taxa de mortalidade infantil de Atibaia era de 59 óbitos por mil. Para se ter uma idéia, em Campinas a média era de 20 por mil. Eu concentrei toda a minha administração em baixar essa taxa de 56
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mortalidade infantil. Pensei: enquanto não conseguir isso não faço outra coisa, o resto que se dane”. Ele conta que conseguiu recursos para o necessário saneamento básico, assistência médica e nutrição da cidade com o governo do Estado através de José Serra, então Secretário da Fazenda. “Aumentamos em 30% a rede de água e esgotos. Fizemos todo o saneamento básico na baixada do rio Atibaia, que vai até Caetetuba. Com isso, em dois anos, conseguimos baixar em 30% as tais taxas de mortalidade infantil na cidade”.
Cumprindo o que prometem “Todo mundo, todo governo diz que suas prioridades são educação e saúde, só que, no meu caso, eu fiz questão de levar a sério essas premissas. Na minha gestão foram construídos e adaptados o Greca, Estação de Caetetuba e mais dez novos prédios escolares. Fui o único prefeito a se preocupar com uma proposta educacional”, desabafa o todo orgulhoso Gilberto. Ele ainda tem papo para mais de metro. Histórias escondidas dos primórdios da cidade, coisas que pesquisa por amor e por querer, como já fez no livro “Terra de Jerônimo – Histórias do quase paraíso”, que escreveu e foi publicado pela Degaspari Editora, em 2004. Para contar tudo o que sabe, seriam necessários mais livros, que, por sinal já vem ensaiando escrever. Diante desse monte de informações, o repórter brinca: “É verdade ou lenda que o sr. trouxe gente de outras cidades, de ônibus, para ocupar aquela região do lixão, nos terrenos da antiga Fepasa?” Gilberto Sant´Anna escancara o riso e diz, convicto: “É lorota da oposição. Mas ainda falam nisso, até hoje, né? Uma mentira deslavada. Aquilo já estava invadido muito antes da minha gestão na Prefeitura”, gargalha. Talvez não tenha sido politicamente correto, mas o repórter não resistiu ao torturante cheiro de pão quente saindo do forno da padaria Lége e sugeriu: “Que tal um pãozinho, uma “manteiguinha esperta, um belo café com leite?” Gilberto Sant´Anna não vacilou e topou na hora. A entrevista foi encerrada, mas ficou 57
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combinado que um dia, mais pra frente, a gente volta a se falar neste mesmo espaço. Afinal o ex-prefeito ainda tem muito o que contar. Aos pães quentes e ao café com leite da Legè, portanto! O leitor está servido?
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Quando o Coral Sertanejo São João Batista canta até os anjos dizem amém
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ão certo quanto dois mais dois são quatro, ou matematicamente quase isso, em algum lugar da memória o ilustre leitor vai encontrar a canção “O menino da porteira”. Antes de começar a cantarolar prepare-se para trocar a letra original da música por uma paródia. Com certeza a canção vai se transformar quase num
hino religioso. Então vamos lá, cante a canção com esta letra: “Toda vez que venho aqui, na igreja pra rezar/ também agradeço a Deus por tudo que Ele me dá/ todos juntos num só coro cantando com muito amor, também levo tão feliz, o canto a nosso Senhor”. “O menino da porteira” é a música que abre a já afamada Missa Sertaneja que vem arrebatando as atenções e emoções de um punhado de pessoas da cidade. Elas esperam ansiosamente a chegada do último domingo do mês para participar desse ato religioso na Igreja Matriz de São João Batista. Depois do “Menino da Porteira” são entoadas outras jóias do cancioneiro sertanejo acompanhando a liturgia da missa. Todas elas têm letras adaptadas, parodiadas, de acordo com cada momento da celebração. No “Ato Penitencial” se entoa a canção “Cuitelinho”; na “Glória”, se canta “Chuá-Chuá”; na “Aclamação” a música é “João de Barro”; no “Ofertório” se canta “Chico Mineiro”; no “Santo” se canta “Xororó”; na “Paz”, “Chalana”; no “Cordeiro”, “Índia”; na “Comunhão” se canta “Ave Maria Sertaneja” e no final se canta “Tchau Amor”. A missa termina todo mundo aplaude e pede bis. É de arrepiar.
Veja bem Essa Missa Sertaneja não é coisa para lida, é para ser vista, ouvida, curtida, cantada e chorada, pois invariavelmente os mais sensíveis se derretem em lágrimas de emoção. É uma missa sim, mas também é um espetáculo. Ou é um espetáculo que também é uma missa. Talvez mais que isso: é um momento mágico que conforta e transporta. Que emociona e enleva a alma sertaneja que todo interiorano carrega, lembranças dos pés no chão de terra batida. 61
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E muito mais, é um encontro com a simplicidade tão pungente e comovente do caipira que existe em cada um de nós. Quem explica essas coisas? E é aqui que se começa a falar do Coral Sertanejo São João Batista, criado há três anos em Atibaia, inspirado num coral idêntico que infelizmente já não existe mais em Piracaia. O Coral é coordenado por Luiza Ferreira, 61 anos, filha de João Antônio Ferreira e Gertrudes Pavesi Ferreira, irmã de José Carlos Ferreira. “Nasci em Piracaia e vim para Atibaia bem criança, com nove anos. Sempre adorei cantar. Quando conheci o coral sertanejo nas missas da matriz de Piracaia fiquei apaixonada pela idéia e sonhei que um dia faria um trabalho igual. Demorou, mas ele nasceu. Há muito tempo nós tínhamos formado um grupo que cantava hinos sacros nas missas da matriz. Daí à criação do coral sertanejo foi um pulo. Contamos com a anuência do padre Eugênio, então pároco da igreja matriz que, inclusive “batizou” o coral”, relata Luiza.
Procurando as raízes A partir do momento em que o Coral foi criado, a primeira providência tomada por Luiza foi procurar os remanescentes do coral sertanejo de Piracaia. “O pessoal foi muito generoso e forneceu todo o material do grupo. Trouxemos um pouco da experiência deles e as letras, ou paródias que já haviam sido feitas. Começamos a ensaiar com muita determinação. Eu contava com o apoio do meu irmão José Carlos. No início ele só tocava violão. Estudioso e aplicado, hoje ele também toca sanfona quando necessário. O mais importante de tudo nós já tínhamos: todo o amor e o entusiasmo daquele pessoal que freqüentava e cantava na igreja. Os cantos litúrgicos foram substituídos por apaixonantes canções sertanejas, de grande alcance popular. Devidamente adaptadas, com nova letra, deixaram de ser profanas. Quando o coral nasceu contava com 24 pessoas. Hoje já somos 44”, relembra Luiza. Fundamentalmente o coral tem um sanfoneiro, viola, violões e alguns instrumentos de percussão como timba e um 62
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pandeirinho. O objetivo dos componentes do coral, todos católicos praticantes, é a evangelização. Levar a palavra de Cristo a um número cada vez maior de pessoas”, emociona-se.
Sucesso em todo lugar Como se disse o Coral Sertanejo São João Batista “se apresenta” nas missas sertanejas rezadas às 19 horas, no último domingo de cada mês. Desnecessário dizer que a igreja fica lotada. “No mínimo umas quinhentas pessoas. E todos participam cantando com o coral, pois a gente distribui folhetos contendo as letras das canções. É uma emoção indescritível. Tão lindo que leva às lágrimas. Tem gente que vem de longe só para assistir à missa. Gente de São Paulo, de São Vicente, do interior bem longe e das cidades vizinhas. Todos fazem questão de vir conversar conosco e nos cumprimentar. É a nossa paga”, orgulha-se Luiza. O Coral Sertanejo é formado por pessoas de todas as camadas sociais e toda faixa de idade, dos 10 aos 80 anos. A maior parte é gente humilde. “Do que vive o Coral? Vive dele mesmo. Verdade! Nós pagamos para cantar. Cada componente contribui com o pouco que pode, e quem não pode faz de contas que pode. Nós fazemos rifas e nós mesmos compramos as rifas; tudo vai para uma caixinha que serve para comprar instrumentos e para pagar o custo da impressão das folhas que contém as letras das músicas. Quer saber? Somos felizes, pois adoramos o que fazemos. Já estamos próximos da nossa centésima apresentação. Além de Atibaia, já cantamos em Piracaia, Jarinú, Itatiba, Nazaré Paulista, Lorena, São Paulo e uma porção de outras cidades. A maneira carinhosa com que somos recebidos é a nossa paga”.
A música do coral na praça Como será que a igreja vê essa “invasão”? “Como já contei, o padre Eugênio festejou quando soube que o nosso grupo estava pronto. E monsenhor Giovanni Barrese, nosso pároco atual, 63
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também nos apóia muito. Aliás, quando ficam sabendo do nosso coral, párocos de outras cidades fazem questão de nos convidar. Há menos de um mês nos apresentamos em uma missa em Jarinú. Tanto os fiéis quanto o pároco ficaram literalmente deslumbrados. Ao término da missa o nosso CD foi reproduzido através dos alto-falantes da igreja e toda a praça da cidade parou para ouvir. Ficamos comovidos. Agora mesmo acabo de atender o pároco de Jarinú. Ele quer que a gente volte lá para cantar”. CD na praça, que história é essa? Sim, o Coral Sertanejo São João Batista já tem um CD. Ele foi mixado, editado e masteurizado no Mountain Studio - do Raul Sucena, um artista atibaiense, aqui mesmo em Atibaia. “Gravamos as canções da missa sertaneja e tem sido um grande sucesso. Dizem que santo de casa não faz milagres, mas nós temos tido muito apoio não só aqui como em todas as cidades onde nos apresentamos”, revela Luiza. A fama do Coral já ultrapassou as fronteiras de Atibaia. A TV Vanguarda ficou tão entusiasmada com o Coral que fez questão de gravar entrevista e vários trechos da apresentação do Coral. A reportagem foi exibida e repetida em vários horários da sua programação. “O pessoal da TV Altiora também tem prestigiado bastante o Coral e deu a maior cobertura no lançamento do nosso CD”.
Quem quer comprar É comovente ver a missa sertaneja ao vivo ou ouvir o CD do Coral Sertanejo. Não há quem não cante, não há quem não chore, não há quem não se irmane, não há quem não se alegre. Dona Lourdes Rocha Scapin, aquela doce senhora que recentemente foi entrevistada pela coluna, a mesma Dona Lourdes que “fala” com Deus e encomenda almas, é uma das maiores entusiastas do coral. Claro que não perde nenhuma missa. “E ela é a grande “vendedora” dos nossos CDs”, brinca Luiza, que não gosta de ser chamada de “regente”. “Sou apenas a coordenadora do Coral. Aqui ninguém tem formação musical, todos cantam por amor”. Luiza, 64
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que trabalhou na parte administrativa da Secretaria de Agricultura, Indústria e Comércio da Prefeitura de Atibaia hoje está aposentada. Solteira, adora viver, adora cantar, adora o que faz. Seu irmão José Carlos, parceiro importante no coral é contabilista afamado e competente na cidade, além de violeiro e sanfoneiro. Todo primeiro sábado do mês ele promove concorridas cantorias de violeiros no coreto da praça do Mercado. Hoje é dia que as violas e violões vão comer solto. Não perca. “Não, nós não cobramos nada para cantar. Solicitamos apenas que nos forneçam a condução e um lanche para o pessoal. Às vezes a gente até canta em casamentos e solenidades. A prefeitura de Atibaia sempre ajuda fornecendo ônibus quando precisamos”, conta.
Não dá para perder Como é que faz para ver o Coral Sertanejo São João Batista? Fácil: reze para chegar logo o último domingo do mês e a missa sertaneja das 19 horas. Se você não tiver paciência e não quiser esperar, basta ser esperto e comprar o tal CD do grupo. Por enquanto custa 10 reais e pode ser encontrado naquela loja de artigos religiosos que fica na praça da Matriz. Ou, então, peça pelo telefone 4413-0588. O coral pode até aceitar convites para cantar em solenidades. “Todo o grupo vai com um sorriso nos lábios. Quem quiser participar do Coral é só aparecer. Não precisa conhecer música, basta ser cristão e gostar de cantar e servir”, conclui Luiza Ferreira. Diante de tanto canto lindo, não é de se duvidar que Deus arranje um jeito do Coral Sertanejo São João Batista comprar um ônibus para levar sua cantoria pelo mundo afora. Por que não? Que os anjos digam amém. Ao término da entrevista Luiza fez questão de deixar claro o seu agradecimento, primeiro a Deus, depois a todos os componentes do coral por tanta dedicação. “Que Deus nos proteja”, 65
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ela pede. Claro que Deus vai proteger Luiza. Mais que isso, com certeza vai fazer com que o último domingo do mês chegue logo para todo mundo assistir o Coral Sertanejo São João Batista na missa sertaneja da Matriz.
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É um doce em pessoa essa doce doceira chamada Dona Luiza
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doce perguntou para o doce qual o doce que era mais doce; o doce respondeu para o doce que o doce que era mais doce não era o doce de batata doce, mas, sim, o doce de batata doce feito por dona Luiza. Covardia falar do doce de batata doce de dona Luiza. Isso para não falar das frutas cristalizadas, dos
brigadeiros, cocadas (brancas ou pretas), das geléias de pinga, dos pés de moleque e uma infinidade de atrações de dar água na boca. Não por acaso dona Luiza Alves da Cunha Gonçalves se transformou na maior e mais afamada doceira de Atibaia. Em suas mãos até Atibaia fica muito mais doce. O segredo de tudo isso? Simplicidade, carinho e dedicação. “Aprendi a fazer todos esses doces com uma tia quando eu era bem novinha. A gente procura fazer da mesma forma como eles eram feitos nas fazendas, antigamente”, conta dona Luiza, 74 anos, casada com João Gonçalves, 78 anos, mãe de Elisabete Aparecida, Elizete Aparecida, Heloisa Maria, Edson Antonio e Ed Nilson, todos devidamente formados e que lhe deram os netos Aline, Ana Luisa, Tiago, Mariana, Camila, Fernanda, Rafael, Thais e Helen, seus doces orgulhos.
Da Usina para cá Dona Luiza nasceu no bairro da Usina, que naquele tempo nem era bairro. Na verdade tudo aquilo formava a fazenda que pertencia a seus avós. “Os Alves, e os Amaral. Era gente importante. Eles eram donos de tudo aquilo lá na Usina, inclusive aquele lago lindo que enfeita o lugar. Naquele tempo nem tinha tanto valor...”, conta. “Quem tomava conta de tudo era meu pai. Mas ele morreu muito cedo, com 35 anos. Ficamos eu, minha mãe, meu irmão e minha irmã. Meu pai morreu de pneumonia, veja só. Naquele tempo a medicina ainda não tinha tantos recursos como hoje. Inclusive o dr. Zeferino do Amaral, que era primo dele, fez tudo para salvá-lo, levou para São Paulo, mas não teve jeito. Quando meu pai morreu ficou todo mundo desnorteado”, lembra. “Aí meu tio, meu primo, minha mãe e minha avó acharam 69
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melhor mudar para Atibaia. Venderam a propriedade, compraram uma casinha muito humilde lá na Rua 13 de maio e foram trabalhando e tocando sua vida”, conta. Dona Luiza casou-se com João Gonçalves quando tinha dezesseis anos e meio. E não era muito cedo para se casar? “Acho que não. Era costume da época a gente casar bem cedo”, responde.
Aprendendo com a tia A casa onde dona Luiza mora, na Rua José Alvim, foi construída no começo do século passado e pertencia a uma de suas tias. “Depois ela doou para meu sogro. Quando casei vim morar com ela e meu sogro deu a casa para a gente. Eu moro aqui há 58 anos. Meu marido era mecânico na Volkswagen”. E como foi que o doce entrou na vida de dona Luiza, a doceira mais famosa de Atibaia? “Minha tia é quem fazia doces. Esses doces caipiras mesmo. Fui aprendendo com ela e aperfeiçoando. Doce de figo, cocada, uma ensinava uma coisa e outra ensinava outra, eu fui pegando o jeito. Continua tudo da mesma maneira. Não tem química nenhuma; é a fruta e açúcar. Como eu disse, eu era bem novinha e essa tia, chamada Colaca, que era dona da Pensão Gonçalves me ensinou muito”, conta. A propósito, a casa onde dona Luiza mora foi totalmente refeita por seu marido. “Apesar de ser mecânico dos bons, sempre teve muito jeito com as coisas. Um dia veio um engenheiro aqui, olhou a casa por fora e disse: “Nossa, isto aqui ainda vai cair”. Depois ele entrou na casa, examinou e olhou tudo e disse: “Eu me enganei, a casa é muito boa, muito bem construída, não vai cair nunca...”, dona Luiza sorri com suas lembranças. “Meu marido era muito versátil, tudo o que a gente tem foi ele quem fez”.
A falta de um Casarão Dona Luiza diz que não tem nada do que se arrepender. “Nada mesmo. Tive uma vida muito 70
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boa, muito gratificante. Gostava de trabalhar e nem via as horas passarem. Agora, não. Agora já estou mais mole e ando muito folgada”. Doce de mamão, de abóbora, de laranja azeda, figo, batata roxa, pé de moleque, cocada, geléia de pinga, são as especialidades de Dona Luiza. Inicialmente os doces eram vendidos em sua própria casa. A fama foi crescendo e dona Luiza abriu uma loja no famoso Casarão, na Praça da Matriz. “Um dia apareceram uns repórteres da revista “Veja” lá no Casarão procurando por mim. Eu não estava. Eles experimentaram tudo quanto era doce, mas adoraram a geléia de pinga. A reportagem foi publicada na revista. Elogiaram os doces todos, mas destacaram a geléia de pinga. Todo mundo comentou a reportagem. A fama aumentou, claro”. Apesar de ter sido tão enaltecida pela revista, a geléia de pinga não é a atração mais procurada. “O que mais vende mesmo é o brigadeiro”, diz. Por que a senhora saiu do Casarão, dona Luiza? “O pessoal da Prefeitura falou para eu sair porque iriam reformar o prédio. Só que, até hoje nunca mexeram em nada. As pessoas reclamam: por que a senhora não volta para o casarão?” Todos na cidade sabem que o Casarão era um dos cartões postais de Atibaia. Foi tombado pelo Condephaat. Prometeram que ele seria reformado. “Fiquei mais de quarenta anos lá e não acredito que possa voltar”, lamenta-se. O Casarão continua abandonado. Por enquanto, tombado; qualquer hora destas estará caído e esborrachado. Coisas das administrações públicas. Alguém entende ou explica?
Doce dinheiro Enquanto o Casarão não volta, a doceria de dona Luiza fica na Rua José Lucas, 62. Seus doces também são marcas registradas nas barracas armadas durante as festas juninas da cidade. Ou no Bon Odori, festa japonesa. Ou ainda, para sorte sua, caro leitor, durante as festas juninas no Estância Park. E que doces! Dá dinheiro vender doces em Atibaia? “Dá dinheiro sim, mas não para sustentar a família. Só ajuda. Eu faço doces por gosto. Sempre ganhei um 71
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dinheirinho, mas quem sempre garantia tudo era o meu marido, que tinha um bom salário”, explica. “Aqui, lá no casarão, nas festas, já vendi muito doce. Eu enrolava três caixas de brigadeiro por dia, cada caixa com 60 brigadeiros. Eram quase duzentos brigadeiros! Agora vende menos. Acho que é por causa dessa coisa de ninguém querer engordar. Doce tem fama de engordar, né? Tem uma história muito engraçada de uma senhora que era diabética num estágio bem elevado. Ela adorava doces e queria porque queria que eu fizesse doces diet. Eu disse: não, minha senhora, só faço doces com açúcar mesmo, nem conservantes eles levam. Pois não é que a mulher comprava os doces e colocava debaixo da água da torneira para tirar o açúcar? Mulher maluca. Eu morria de rir...”. Aventuras de dona Luiza. Apesar de sentir saudade de alguns momentos vividos, dona Luiza não se fixa muito no passado. “Como eu disse, tive uma vida muito boa, não tenho do que me queixar. Casei cedo porque era normal naquele tempo. Não ia muito ao cinema, que era a grande diversão da época. Meu marido gostava, mas eu não ligava muito. Nem ia aos bailes do Recreativo, preferia ficar em casa. Hoje as mulheres, os casais se soltam mais, se divertem mais. Tudo tem o seu tempo, não é?”.
Os orgulhos da vida Dona Luiza se orgulha de ter criado bem a família, dos filhos que cresceram bem, se formaram, dos netos que vieram, seus orgulhos. “Imagine que a minha neta, Ana Luiza, está terminando o curso de Direito na FAAT e quer ser Juíza! A Aline é veterinária e adora os bichos, Mariana e Camila jogam futebol lá na escola onde estudam. E dizem que são craques... Minha neta Fernanda é música, está estudando Baixo. Só que é muito tímida, a danada, difícil fazê-la tocar para mim, mas, enfim, cada um dos meus netos tem uma característica que me emociona”, conta. No momento dona Luisa está vivendo a fase de viajar. “Gosto muito. Já fui à Bahia, fui de carro naquela lonjura. Uma aventura muito gostosa. Daqui a alguns dias 72
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vou para Brasília”, conta, sem falar que está sempre em Caraguatatuba, onde tem residência montada. “Eu vou muito lá. Até cheguei a ter uma doceria na cidade, mas não deu certo. Faz muito calor em Caraguá, o pessoal prefere sorvete...”, justifica.
Tem brigadeiros no ar Realizada na vida, contente com todos os que lhe cercam, dona Luiza só pede que tudo continue igual. “Eu sou feliz. Sempre fui feliz. Vivo com o meu marido há 58 anos, vamos fazer 60 anos de casados, bodas de diamante, não é?”, e o semblante de dona Luiza confirma toda essa felicidade. Talvez em função da boa receita de vida que teve. “Claro que, como todo mundo também tive meus momentos amargos, mas sempre procurei deixar o que era ruim para trás. Não vale a pena a gente ficar remoendo problemas. A vida sempre segue em frente e é para a frente que a gente tem que ir”, ensina. Diante de tão oportuna receita, o repórter pede que dona Luiza dê uma de suas receitas de doces. Que tal um bom brigadeiro? “Ora, fazer brigadeiro é a coisa mais fácil do mundo. Então anote aí: uma lata de leite condensado, uma colher de manteiga e uma colher grande, cheia de chocolate. Só isso. Depois coloca no fogo e vai mexendo até aparecer o fundo da panela. Aí tira, espera esfriar e enrola. Pronto. É um doce simplesinho, mas todo mundo gosta”, explica dona Luiza. Siga a receita de dona Luiza, com certeza sua vida vai ficar mais doce.
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Ao mestre que merecia muito mais carinho
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Lição primeira ão necessários apenas dez minutos de conversa com o professor Orlando Gigliotti para que qualquer um se convença de que o mundo poderia ser bem melhor. Mas, muito melhor. Inclusive Atibaia, que, se tivesse prestado a devida atenção nas aulas que o mestre lhe deu durante mais de quarenta anos, seria outra cidade. O mundo
e Atibaia seriam muito mais honestos. O mundo e Atibaia seriam muito mais humanos. O mundo e Atibaia seriam muito mais cultos e melhor preparados para a vida. O mundo e Atibaia com certeza seriam o paraíso possível que um dia o poeta cantou. Vai ver que, à época, o mundo e Atibaia se comportaram como alunos displicentes, ausentes, indolentes e impertinentes enquanto o professor ministrava as suas aulas. Até hoje o Mestre, com M maiúsculo mesmo, pois tem diploma de Mestre outorgado pela USP, Universidade de São Paulo, busca ensinar, para quem quiser ouvir, lições de humanidade, fraternidade, honestidade e liberdade. Como sempre os muitos ouvidos continuam poucos e moucos.
Lição segunda Para quem já foi seu aluno ou se tornou e continua sendo aluno, ouvir o papo descontraído, instrutivo e ilustrativo do professor Orlando Gigliotti representa, com certeza, a parte mais bonita da cara de Atibaia. A cara da luta, a cara da dedicação, a cara do trabalho, a cara do desafio, a cara da perseverança, a cara da bondade, a cara do carinho e da atenção para com os seus semelhantes. Bonita essa cara de Atibaia que o Mestre exibe no seu sorriso largo quando o Corinthians ganha, por exemplo. Constante essa cara de preocupação que o professor mostra quando se fala do futuro dos jovens da cidade e do País. “Um grande país se forma através da educação. E o nosso nível educacional está péssimo. Ao invés de construírem, fecham escolas aqui na cidade. Ao invés de se exigir, se facilita através dessa coisa chamada 75
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avaliação continuada”, reclama. As lições estão todas aí na história, só que ninguém ouve os grandes Mestres.
Lição terceira De origem pobre, nascido no tradicionalíssimo bairro do Brás, em São Paulo, reduto de operários que trabalhavam nas fábricas do Conde Matarazzo, Orlando Gigliotti adorava aquele clima de gente que era feliz por ter trabalho e que podia descansar gostosamente nos fins de tardes, nas calçadas das ruas tão tranqüilas do bairro. “Naquele tempo não tinha televisão. O máximo que se podia fazer era ouvir rádio. Que nem todos tinham. Eu me criei assim”, relembra. Conseguiu estudar, com muito sacrifício da família, até ingressar na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no curso de História Natural. Foi lá que conheceu e ficou amigo de Adhemar de Barros Filho, cujo pai era o governador do Estado de São Paulo. “Cultivei essa amizade durante muitos anos. O Adhemar pai passou a gostar muito de Atibaia, esteve aqui várias vezes”, conta. Formado, fez concurso público e, advinhem... foi o primeiro colocado. Escolheu a cidade de Bragança Paulista para iniciar sua carreira de professor. “Ih! Era um sacrifício danado. A estrada já tinha sido asfaltada, mas as viagens eram longas e demoradas”, lembra. Com o tempo abriu-se um concurso para a vaga de professor de Ciências Naturais aqui para Atibaia e ele, para variar, passou em primeiro lugar. Isso foi em 1949. Acabou dando aulas também em Atibaia. No velho Major.
Lição quarta Apesar de ganhar relativamente bem (sim, naquele tempo os professores ainda eram reconhecidos), Gigliotti se via obrigado a cumprir malucas jornadas de trabalho. Afinal casouse cedo com Odila, que desde criança foi o grande amor de sua vida, sua companheira de 76
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todas as horas. Boas e más. Algumas horríveis e dolorosas. Coisas que serão narradas mais adiante. De qualquer forma, neste correr da vida o professor também viveu seus momentos de jornalista, pois foi revisor e até escrevia matérias para o jornal “A Época”, propriedade de Adhemar de Barros. Era um dinheirinho a mais que reforçava o orçamento, além de poder dar vazão ao seu lado crítico.
Lição quinta Pai de cinco filhos, quatro homens e uma mulher, avô de nove netos, Orlando Gigliotti marcou sua passagem como professor no velho “Major”, como é conhecida a tradicional escola que fica defronte ao hoje lago do Major. “Ah! mas naquele tempo aquilo era um mato só, não tinha lago nem nada. Eu me lembro que morava bem perto da praça da Matriz, numa casa que consegui comprar com financiamento do IPESP e tinha que descer e subir aquela ladeira danada, enfrentando o matagal, até chegar na escola. Meu companheiro de descida e subida do morro era o professor Contesini. Fui muito feliz naquele tempo. Eu sempre gostei do que fazia”, diz o professor. Gigliotti deixou marcas profundas no Major, não só entre seus alunos, mas pelos dois avançados laboratórios que conseguiu montar. “Tive alunos excelentes. Inclusive chegamos a defender uma tese na Universidade de São Paulo, provando que o feijão é um produto tóxico”, conta, provocando susto no repórter que não se contém e pergunta: “O feijão é tóxico?” Gigliotti sorri e confirma: “Sim. E não deve ser comido cru. Claro que ninguém come feijão cru, mas, antes de ser cozido, ele deve permanecer imerso em água. As mulheres sabiamente já seguem esse ritual. O fato é que nós defendemos essa tese na USP e fomos aprovados”, orgulha-se, enaltecendo o trabalho dos alunos que participaram desse trabalho.
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Lição sexta Mas nem tudo são flores na vida desse professor que, afora tantas conquistas já escreveu nove livros que ensinam Português, que ensinam História, que ensinam a vida. Seu espírito libertário, sua posição vanguardista acabaram provocando a ira e os ciúmes de alguns “revolucionários” de ocasião, puxa-sacos dos militares, que colocaram as manguinhas de fora durante o golpe de 1964. Ele não gosta e se nega a citar nomes, no entanto, ao lado de alguns amigos foi acusados de ser comunistas. Gigliotti pagou caro por isso. “Comunista? Nunca participei de política. Apesar de ter as minhas convicções políticas e filosóficas, pois o homem é um animal político, não gosto da política partidária. Para falar a verdade, esse tipo de política cada vez mais me causa asco”, declara. O mestre foi um dos cidadãos mais visados pelos ditos “revolucionários” da cidade. Sua casa foi literalmente invadida e revistada cômodo por cômodo, móvel por móvel por militares armados. “Nem sei o que eles procuravam. Queriam assustar, provocar pânico, medo. E conseguiram. Até hoje minha esposa vive traumatizada. Eu me lembro que eles invadiram minha casa e me levaram enquanto minha mulher amamentava meu filho. Foi um horror”. Gigliotti ficou vários dias preso, aqui, no DOPS e na Oban. Viveu momentos de muito medo. Ficou horrorizado com os muitos gritos de dor provocados pela tortura. Foi assim que, lamentavelmente, alguns afoitos e interesseiros, delatores e detratores, colaboracionistas ou dedo-duros de plantão da Atibaia da época conseguiram manchar a história da cidade.
Lição sétima Não, a história não termina aqui, ela está viva em cada aluno desse grande mestre. Se bem que nem todos reconheçam o seu valor. Nunca lhe deram um reconhecimento oficial, nunca se lembraram de lhe outorgar um título de Cidadão de Atibaia. Há algum tempo, o 78
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então prefeito Pedro Maturana, de quem foi secretário da Educação, deu o nome de Orlando Gigliotti para uma escola rural. A escola foi se acabando, se deteriorando e o professor chegou a gastar do seu dinheiro para mantê-la em pé. Recentemente o então prefeito Beto Tricoli, que foi seu aluno num passado distante, fez o que fez, optando por fechar todas as escolas rurais. “Claro que eu fiquei chateado. É inconcebível fechar escolas num país analfabeto como o nosso”, desabafa o mestre. Realmente Atibaia não chegou a aprender tudo o que precisava com esse grande mestre, Orlando Gigliotti.
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Um passeio no táxi do Café, pelas ruas de Atibaia
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É
muito pouco provável que alguém tenha rodado tanto por esta Atibaia e região quanto o Café. Café, para quem não sabe é o taxista mais antigo da cidade. 45 anos “na praça”, como se costuma dizer. Pelo tanto que já circulou e pelo tudo que já conhece deveria, no mínimo ser prefeito da cidade. Ninguém conhece como
ele rua por rua, viela por viela, avenida por avenida e, principalmente buraco por buraco de Atibaia. O solteirão José Roberto Arantes, esse o seu verdadeiro nome, está na flor dos 71 anos de idade e continua forte, decidido, sempre pronto para servir. Orgulha-se de ter atendido e transportado, milhares de pessoas nos melhores momentos de sua vida ou nas horas de mais precisão. Dá para imaginar o tanto de histórias que têm para contar. A começar pelo seu apelido, Café.
Foi assim “Em 1950 meu pai, Sebastião Arantes, cismou de comprar uma empresa de torrefação de café que ficava onde hoje está o Banco Itaú. Era o Café Sublime, que muita gente conheceu. Eu era garoto e ajudava. Fazia de tudo, até entregava café, montado numa bicicleta. Nas horas vagas ia jogar bola num campinho que ficava onde hoje está a FAAT, antiga Escola de Comércio. Lá era o “campinho da Prefeitura”. E eu chegava cheirando café e os meninos gritavam: “chegou o Café”. O cheiro saiu mas ficou o apelido...”, explica. O corinthiano Café confessa que nunca foi um craque, mas ainda assim também batia bola com os amigos num outro campinho que ficava justamente onde hoje está a Estação Rodoviária. Café chegou a jogar no juvenil do São João, mas positivamente a bola não seria o seu destino. Como se disse, Café é filho de Sebastião Arantes e de dona Hermínia Milanello, ambos falecidos. Irmão de Arlindo, Helenice, Benedito e Irazê.
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Na estrada Outra coisa que não deu certo foi seu pai ter comprado a torrefação. “Foi uma má idéia do meu pai”. Tanto que cinco anos depois a empresa foi vendida. Foi quando Café resolveu postar-se definitivamente atrás do volante. Um belo caminhão, Ford F600 tinha sobrado do negócio e Café conseguiu encaixar-se no DER, Departamento de Estradas de Rodagem que, então, tomava conta da parte paulista da Fernão Dias. A estrada tinha sido aberta em 1950. Chamar aquilo de estrada era um crime. Era terra pura em toda a sua extensão, buraco para tudo quanto é lado, desmoronamentos seguidos, não resistia ao mínimo chuvisco. Quando chovia para valer parava tudo. Café rodava o dia inteiro com seu caminhão, contratado para transportar terra, cobrir buracos e fazer aterros. Ia daqui para São Paulo, daqui para a divisa com Minas Gerais. “Ô trabalho duro, sô”, resmunga Naquele tempo não existiam caminhões basculantes. “O trabalho de carregar e descarregar era tudo na pá. O dia inteiro...”. Cansava. Quando a estrada foi asfaltada Café procurou uma nova maneira de ganhar algum dinheiro com o caminhão.
Aos táxis Café começou a comprar tijolos por aqui – “Tinha um monte de olarias em Atibaia” - e levar para São Paulo com o caminhão. “Ainda tinha bondes lá. Eu não ganhava dinheiro com o tijolo, ganhava com o frete. Mas vi que não ia longe e aí comprei o meu primeiro táxi. Era um Chevrolet 46, preto, um carrão na época. A lataria era forte barbaridade”. Quando montou no bichão, pronto para trabalhar lembrou-se de um detalhe: quanto iria ganhar? Quanto se cobra por corrida? Como era feito esse cálculo? Nessa época, conta ele, Atibaia tinha 19 carros de praça. “Não existia rodoviária, os ônibus paravam na José Lucas, antiga Rua Direita. A rua era estreitinha e com duas mãos, ia e voltava. Ainda bem que os carros eram tão poucos. 82
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Tinha muito cavalo e charretes...”, brinca. “Quem me ajudou muito foi o “Quinzinho”, que já era um taxista antigo. Perguntei pra ele como deveria cobrar. Ele explicou: a corrida pequena, aqui na cidade, você cobra dois litros de gasolina. E cobra um litro de gasolina por quilômetro rodado. Comecei a fazer isso. Com o tempo vendi o primeiro carro e comprei outro Chevrolet, já do ano 1950. Era mais bonito. Fiquei um ano com ele. Na sequência tive dois Simca Chambord. Eram carros bonitos, macios, mas fraquinhos de motor. Eram chamados de “Belo Antônio”, brinca.
E tome táxis Café passou pelo Aero Willys, que comprou de um médico lá de Bragança e chegou num Aero Willys novinho, zero-bala. “Táxi nunca deu muito dinheiro, dá pro gasto, para a sobrevivência. Naquele tempo, eu fazia muitos casamentos. Era bonito a noiva chegar de táxi na igreja e meu carro era muito requisitado. Atibaia tinha poucos automóveis. Táxi é uma coisa que o pessoal usa só em última necessidade, né? Para levar gente para o hospital, para atendimento de emergência, só em caso de muita precisão”. A Rodoviária surgiu em 1966 e Café passou a trabalhar por lá. Já era a época dos Fuscas e ele comprou um. Ano 68. “Ótimo para as estradas de terra da cidade. A Avenida São João só recebeu calçamento em 1950. O prefeito Walter Engrácia calçou muitas ruas, melhorou muito”. Café lembra que um bom momento da sua vida de taxista ocorreu quando do surgimento de uma figura carismática chamada “Padre Rosa”. Ficou famoso por curar pessoas. “Ele curava mesmo!”, empolga-se. “Ele atendia no bairro da Boa Vista e dava o remédio certinho para as pessoas. Eu fazia muitas corridas para lá. Vinha gente de todo lado para se consultar com o padre. Pensando bem, acho que nem padre ele era... As pessoas chegavam na Rodoviária e a gente levava. O padre pegou uma fama que Deus o livre!”. Tão famoso quanto um certo japonês, Hiroga, até hoje 83
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muito consultado por tantas pessoas de fé. O Padre Rosa foi “um santo remédio” para taxistas, empresas de ônibus, para a cidade, enfim. “Dava movimento”.
Zero bala Em 1970 Café comprou um Fusca zerinho e foi tocando em frente sem dormir no ponto. Chegou a ter 19 Fuscas, quase a metade dos táxis que a cidade tinha à época, 39. Hoje Atibaia tem 73 táxis. Literalmente aos prantos, Café lembra que em 1981 aconteceu a primeira tragédia que entristeceu a classe de taxistas da cidade: a perda de Antonio Garcia Lara, morto durante um assalto. “Ele atendeu o freguês na Rodoviária numa corrida até à Fernão Dias, antes do bairro do Tanque. O corpo dele foi encontrado no bairro de Maracanã. Uma tristeza. De lá para cá aconteceram mais oito casos de morte de colegas. O último deles em 1990. Tem havido vários assaltos, mas felizmente só levam carro ou dinheiro”. Emotivo, Café não segura o pranto. O perigo levou os taxistas da cidade a criarem códigos de sobrevivência. Os cuidados são extremos na análise, ainda que superficial dos fregueses. Tudo funciona por gestos, olhares, tempo de saída do ponto, de cada companheiro, atenção total, trabalho muito bem integrado com a Polícia, “A Polícia de Atibaia tem dado um grande apoio. São muito bacanas”, diz Café, consciente de que, ainda assim, perigo é o que não falta na profissão.
É engraçado Mas nem tudo é tristeza na vida de um taxista como Café. Correr para levar futuras mães para a Maternidade é coisa que não falta. “Por pouco não nasceu criança nos meus táxis. Uma vez eu levei uma senhora que já estava mais do que na hora. Foi o tempo de chegar na maternidade e ela deu à luz quase na rua. Respirei aliviado...”. Engraçada aquela vez que foi chamado para buscar uma senhora grávida num bairro distante. Quando chegou ficou 84
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sabendo que ela não queria ir para a maternidade, de jeito nenhum; queria dar a luz com uma parteira que morava em outro bairro mais distante ainda. Só que a hora estava chegando e ela não se decidia. “Chovia, que Deus mandava. E a mulher não queria ir. O marido insistia, e nada. Eu já estava aflito. E ela não cedia. Precisaram sair às pressas para buscar outra parteira, que morava perto da casa. Eu ali, esperando. Sorte que a parteira veio e a criança nasceu normalmente. Fiquei duas horas naquela agonia. Nem lembro se recebi alguma coisa. Só sei que fiquei feliz, pois no fim tudo deu certo...”, suspira o emotivo Café.
Mais duas viagens Para encerrar, dois casos engraçados. No primeiro, Café estava atendendo uma senhora que queria ir até um determinado endereço atrás do marido. No caminho ia falando em vingança... “Tinha coisa ali, pensei. A mulher estava furiosa. Fui tentando acamá-la dizendo: “Não vai adiantar nada a senhora ir atrás dele. Vai terminar em briga, em tragédia. Deixe o tempo passar, o tempo resolve tudo”. A gente ia rodando e a mulher foi se acalmando. Consegui convencê-la e levei de volta para casa. Sei lá o que aconteceu na vida deles. A gente ouve tanta coisa num táxi... Traição de marido e mulher é fogo, não?” Outra vez Café atendeu a um sujeito muito fino, bem vestido. Levou-o para o aeroporto de Congonhas. Chegando lá o homem pagou com cheque. “Esqueci de dizer que não tinha dinheiro e iria pagar com cheques”, justificou-se. “O que é que eu podia fazer? Era uma sexta-feira e não deu tempo de receber no banco aqui de Atibaia. Ai eu fiquei sabendo que o camarada era um pilantra mesmo e tinha aprontado todas na cidade. Comprou móveis, gastou no hotel, montou uma casa, comprou até caixão de defunto pagando com cheque. Conseguiu ludibriar algumas pessoas e descontou um cheque alto, fez um dinheirão. No final de semana veio com um caminhão e levou todos os móveis que havia comprado em várias lojas da cidade. Na segunda-feira todo 85
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mundo correu para o banco para trocar os cheques. Advinha! Tudo sem fundo. Todo mundo perdeu e eu também. Foi a pior viagem”. Pensam que Café ficou preocupado? Nada. “O castigo para essa gente vem do céu”, sorri, conformado. Café, o homem do táxi Santana branco que fica na Rodoviária e na pracinha do Museu é uma figura incrível. É mais que Bandeira 2, é 10! Toque em frente, Café.
Aos copos Agradecendo ao apoio do ilustre professor e jornalista Orlando Gigliotti, meu produtor de reportagens, subo no táxi do Café e vou aos copos ao lado do meu pediatra favorito Sérgio Azevedo.
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O avô era feirante, o pai era feirante, aí veio o João que ficou conhecido como “João da Feira”
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ara começo de conversa a feira não é tão livre assim. Aquela tradição mundial e milenar de se gritar preços, enaltecer qualidades de produtos ou brincar com os fregueses que se vê em todas as feiras é absolutamente proibida em Atibaia. Aqui não pode gritar, aqui não se pode cantar: “Moça bonita não paga, mas também
não leva”. Ou: “Aê, dona Maria, baixou o preço da mercadoria...”. Ou, mais ainda: “Vamos gastar o dinheiro do marido, se não ele gasta com as outras”. O povo ria, o povo gostava, o povo comprava. Na feira de Atibaia não se pode cantar, não se pode gritar, não se pode ofertar. No máximo se pode conversar. E olhem lá, bem baixinho. Vacilou, o fiscal multa. Coisas de Atibaia. João Bernardino da Cunha, 46 anos, o “João da Feira”, um dos mais velhos feirantes de Atibaia, que há mais de 30 anos vem trabalhando no ofício, não liga muito para esse absurdo que os próprios clientes criticam. No entanto, uma porção de colegas seus ficaram e continuam irritados com a proibição. “Onde é que já se viu? Tem tanta coisa pra mexer na cidade e eles mexem justamente no que não precisa?”, reclamam. “É, o pessoal não gostou nada disso. Mas, eu não estou nem aí. Mesmo quando podia, o máximo que eu fazia era gritar para anunciar minhas ofertas. Se agora não pode, não pode, vai fazer o quê, né?”, conforma-se o João. Dizer que ele praticamente nasceu na feira não é mentir muito. “Minha mãe morreu muito cedo, com 23 anos e eu tinha 3 anos quando isso aconteceu. Meu pai não casou de novo e resolveu me criar sozinho. Ele também era feirante e me levava.
Produzindo para vender Além da feira João trabalha na chácara que herdou e fica bem ali na Vila dos Netos. “A área já foi maior. Quando meu pai era vivo tinha uns 12 alqueires de chão. Ele morreu a gente teve que dividir com a família. Eu fiquei com um alqueire, mais ou menos. Com as crises, os gastos, fui vendendo e hoje eu tenho uns 10 mil metros. Planto de tudo. Só parei com o morango que 89
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exige muita mão de obra”, conta. Como todo bom produtor de gêneros alimentícios do Brasil, João se queixa: “Antigamente eu levava muita mercadoria para o Ceasa. A gente trabalha feito louco e quem ganha são os “caras”. Além de pagarem pouco, demoram para pagar. É tudo mercadoria consignada. Fica um mês para vender e quando vendem ainda mandam cheques para 30 dias. No meio do bolo vêm cheques de terceiros. Os terceiros não pagam e a gente fica no rolo. Desisti, fiquei só na feira”. A bem da verdade, apesar de acompanhar o pai como feirante, João da Feira só entrou na profissão para valer aos 13, 14 anos. “Fiquei trabalhando como empregado e procurei aprender tudo. Fazendo compras e aprendendo como funcionava a coisa toda. Depois montei a minha própria banca e nestes últimos 20 anos vivo disso. Aqui a gente ganha menos, mas o risco é menor”, explica.
Com contas pagas Feliz da vida João da Feira diz que não pode se queixar. “Com a feira eu pago minhas contas, criei minhas duas filhas, Cíntia, que já se formou em administração, e Ieda que está no colegial. Não vivo vida de rico, mas não me falta nada”. João é casado com Léia Rosa da Silva Cunha. “No começo a minha filha mais velha também vinha e ajudava, até que entrou na faculdade. De vez em quando ainda dá uma força. Minha mulher também. Quando eu preciso até a filha mais nova vem pra cá. Faço questão de pagar alguma coisa para elas não ficarem resmungando”, brinca. Hoje, João têm ajudantes, mas não dispensa a presença das meninas. “Quando a coisa aperta, nos fins de semana, elas vêm comigo. E sempre levam “algum”...”.
Vida dura A vida de um feirante não é nada fácil. “Pior é quando chove. Não é fácil montar a banca com chuva”, reclama. Entre um dia e outro João acorda às três da madrugada. E trabalha 15 90
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horas por dia. “Acordo e vou para a feira. Descarrego o caminhão, monto a banca. É demorado sim. Às vezes a gente demora até quatro horas para montar a banca. O dia que ela tem menos metragem fica com dez metros lineares; dependendo da feira, chega até a trinta metros lineares. Bem grande mesmo”, explica. João faz feira cinco dias por semana. “Só não monto a barraca às segundas e quartas-feiras. Mas não pense que fico vagabundeando. Segundas e quartas eu vou fazer compras no CEAGESP, em Campinas. Fiquei muitos anos comprando em São Paulo, agora eu só vou em Campinas mesmo. Todo dia saio de casa de madrugada e só volto às duas da tarde, depois de fazer entregas para os meus clientes fixos, os restaurantes, pizzarias. Chego morto de cansaço. Não é fácil”, resmunga.
No roteiro Às terças-feiras, a feira acontece na rua Otávio Passos, ao lado do estádio de futebol; às quintas, no bairro do Portão; sextas em Caetetuba; sábado no Cristo Rei e domingo na praça do Mercado. As melhores são sempre nos finais de semana. “Sabendo trabalhar, a feira dá dinheiro. Tem gente que como eu, que está na feira há mais de trinta anos. E vai vivendo. Tem o João Olivato, o sr. Akira, eles também tem histórias para contar”, exemplifica. “Rico ninguém fica, claro, mas dá para ir levando a vida...”. A propósito, como é que se “entra” na feira, ou, como é que uma pessoa pode se transformar em feirante? João responde à curiosidade do repórter: “Tem que protocolar um pedido na Prefeitura, especificando o local onde pretende trabalhar e o que vai vender. Aí o pessoal da fiscalização vai analisar o pedido e ver se tem vagas. Se o pedido for aprovado a pessoa começa na ponta da feira, nunca no meio, que é o lugar que sempre acumula mais gente, né?”, explica. Os feirantes pagam um imposto anual para a Prefeitura, dependendo dos metros quadrados que ocupem na feira. “E pagamos também uma quantia para a Vigilância Sanitária. Vem junto com o imposto”, conta. 91
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Amigo dos amigos O orgulho de João são os clientes que o acompanham desde quando começou. “Fiz muitas amizades”, gaba-se. Só que não consegue encontrar-se com ninguém fora da feira: “Não posso ter uma vida social. Minha vida é aqui, meu trabalho é aqui, minha casa é aqui. Meu avô era feirante, meu pai era feirante, eu sou feirante. Aqui na feira tem muita gente assim. A criança vem ajudar o pai e acaba ficando para o resto da vida”, conta. João conhece gente em tudo quanto é canto. “As pessoas são quase sempre as mesmas, o que muda são os bairros”, explica. Apesar de serem quase todas iguais as feiras são diferentes. “Varia de bairro para bairro, até nas mercadorias. Tem bairro que a gente leva produtos mais baratos e tem bairros que a gente tem que caprichar e levar coisas mais caras. Não adianta levar mercadoria que o povo do lugar às vezes nem conhece...”. Como a durabilidade dos produtos é pequena o preço vai caindo à medida que o dia vai passando. “A gente põe para vender a 10. Se não vende, põe a 9, se não vende, põe a 8, e assim por diante. No fim da feira tem a chamada xepa. Alguns só chegam nessa hora, para comprar o que restou”, lembra, explicando que as sobras no geral são destinadas às entidades de caridade. “Todo o pessoal da feira colabora com essa gente mais pobre”, garante João.
Do “seo” Pedro Falar de feira em Atibaia e não falar de Pedro Maturana é cometer heresia. “Desde que eu me conheço por gente, o Maturana vai em tudo quanto é feira”, conta João. “E é sempre bem recebido. O pessoal gosta dele. Tirando o Maturana, os outros políticos pouco aparecem. Prefeitos? Não, nunca vêm. Que eu me lembre, tirando o Maturana, nunca vi um prefeito da 92
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cidade aqui na feira. Eles só aparecem época da eleição. Só sabem prometer e nunca fazem nada”, espeta. Pedro Maturana, vereador não se sabe em quantas legislaturas, ex-prefeito da cidade, o homem das balinhas, é figura carismática das feiras de Atibaia. “Quer ver o Maturana? Vem na feira”, proclama o João da Feira. Para não dizer que tudo são flores, João reclama que sua categoria é desunida. “Não temos associação e nem sindicato para brigar por nós. Quando a gente tenta falar alguma coisa os colegas vêem como interesse pessoal. Fica difícil, né?”
Sem crise “Crise? Não percebi. Até porque todo mundo é obrigado a comer. A única coisa que atrapalha na feira é a chuva. Chuva, para nós, é uma tragédia. O movimento chega a cair 50%”. Já foi dito que o João da Feira não liga, mas quem freqüenta as feiras de Atibaia não para de reclamar do silêncio que lembra cemitério. Reclamando, as pessoas esperam pelo dia em que, alguém mais sensato pouquinha coisa, revogue essa proibição de se brincar, cantar, ficar alegre e anunciar para vender seus produtos na feira. A história mostra que feira é alegria. “Quando esse pessoal de São Paulo chega por aqui estranha o silêncio dos feirantes. Um dia um deles me perguntou: “Aqui ninguém fala, ninguém grita, ninguém canta? Nunca vi feira tão morta”. Eu respondi que aqui ninguém é morto; o pessoal está é amordaçado...”, espeta João. Torcendo para que não chova em Atibaia, pelo menos nos dias e horários de feira, o repórter pede a Deus que chegue o dia em que alguém tire essa mordaça do povo que trabalha nas feiras da cidade e torne as suas vidas mais alegres. Quem pode ficar feliz fazendo uma feira tão triste?
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Eles fazem barba, cabelo e com muita conversa fazem a cabeรงa de muita gente
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ode até parecer exagero, mas se não fossem os Beatles, os irmãos Tito e Gentil, barbeiros tão conhecidos quanto a Pedra Grande, em Atibaia, seriam, com certeza, muito mais ricos. Claro que neste caso está se falando só de riqueza material, “Não dá para sermos mais felizes do que somos e sempre fomos”, endossam eles.
Mas, o que é que os Beatles têm a ver com a história desses irmãos tão famosos? “Na época dos Beatles quase todo mundo queria ser cabeludo e a gente cortava menos cabelos e deixava de faturava”, brincam. “A garotada chegava até a escarnecer, zombar da gente”, emendam. Como na canção, a vida vem em ondas como o mar, e, se a onda dos cabelos compridos não foi embora de vez, pelo menos sossegou e amainou um pouco. Melhor para Tito e Gentil que realmente ficaram ricos, material e espiritualmente. “Trabalhando de sol a sol chegamos a comprar uma porção de propriedades”, justifica Tito.
Barbeiro de família Somando tudo bem somado, esta história de hoje tem mais de 200 anos, querem ver? Tito, por exemplo, já completou 86 anos de idade; seu irmão Gentil, já fez 81 e há mais de 61 anos os dois trabalham juntos na mesma rua a tão conhecida José Alvin, que alguns chamam de rua do “calçadão”. Calçadão que naquele começo de vida deles era terra batida pura. Sorte que tinha calçadas largas guarnecidas por pedras enormes com mais de metro de largura. Com um detalhe: de espaço em espaço, existiam argolas parafusadas na beira das calçadas para que cavaleiros e charreteiros pudessem amarrar seus burros, cavalos ou “veículos”. Foi ali que os irmãos começaram a trabalhar exercendo o ofício de barbeiros. No começo como empregados; depois como donos. Ficaram famosos. Por que barbeiros? “Tradição de família”, explica Tito. O pai da gente também era barbeiro e dizia que o primeiro emprego dos filhos teria que ser como barbeiro também. Nós começamos e ficamos...”, conta. E por que 95
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tanta fama? “Porque nós inovamos. A gente vinha trabalhar vestindo roupa branca, sempre bem passada e engomada, além de sapatos brancos, que era para dar um toque de requinte. Além disso procurávamos oferecer atendimento personalizado, já naquela época. As pessoas aprovaram e ficaram freguesas”, explica Tito. “Quem não morreu, ainda continua com a gente”, brinca.
Um ponto de encontro Aqui e ali, em todos os cantos do mundo, as barbearias sempre foram um ponto de encontro marcante. E os barbeiros sempre estiveram por dentro de tudo o que se passava em suas cidades. Muitos se tornaram famosos, alguns se transformaram em personagens de lendárias peças musicais, como no caso da apreciadíssima “O barbeiro de Sevilha”, ópera de Gioacchino Rossini. Tito e Gentil são os “figaros”, os “barbieri” de Atibaia. E o seu salão sempre foi freqüentado pela chamada “nata” da sociedade. Durante muitos anos foi o recanto preferido do cantor Silvio Caldas, por exemplo. E de políticos da cidade e dos arredores. “Todo mundo passava por aqui. Aqui se fez muitos negócios e se resolveu muitos problemas. Se comprava e vendia fazendas, propriedades, se ajeitava situações, se resolviam problemas políticos. Por aqui passaram todos os prefeitos, todos os vereadores ao longo desses anos todos. A gente só escutava e não se metia. Segredos da profissão”, conta Tito, fugindo da pressão para contar episódios mais apimentados.
Mas esta história “escapou” Devidamente “apertado” pelo repórter, Tito deixa vazar a engraçada e histórica disputa entre dois políticos dos antigamentes da cidade. Sabe-se lá porque, dois vereadores viviam se espetando, se desentendendo, até que a crise chegou ao auge das ameaças: “Eu mato esse 96
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f. da p.”, dizia um para todo mundo ouvir. “Eu mato esse f. da p.”, respondia o outro, também para todo mundo ouvir. F. da p. para cá, f. da p. para lá, a cidade inteira sabia da encrenca e acompanhava curiosa os lances da contenda. Até que um dia os dois se cruzaram justo na barbearia de Tito e Gentil. Parecia filme de terror. Ou aquele faroeste “Matar ou Morrer”. Quem mataria quem? Suspense. “Eu mato esse f. da p.”, disse um. “Eu mato esse f. da p.”, respondeu o outro. Foi quando o então patrão de Tito e Gentil pegou sua navalha e a navalha de Tito e entregou uma navalha para cada um dos litigantes dizendo: “Gente a cidade não agüenta mais essa briga de vocês. E a coisa não ata e nem desata. Pois agora vocês têm que se resolver”. Nem demorou tanto. Os dois supostos briguentos devolveram as navalhas, viraram as costas e sumiram. Já se viu que bravata de político não é novidade. E faz tempo...
Como se fosse um filme Provavelmente só os mais antigos hão de se lembrar, mas ali onde fica a barbearia do Tito e do Gentil, somada com o estacionamento ao lado, era onde funcionava o Cine República, que já foi muito famoso na cidade. Tanto quanto o Itá, o Paraíso e o Cine Atibaia, o República acendeu suas luzes e apagou suas telas deixando só lembranças. Caindo aos pedaços em seu abandono, acabou se transformando num bom negócio para quem comprasse. E os dois resolveram comprar. “Era muito bem construído. Pensamos que iríamos ficar ricos só vendendo os materiais da demolição. Aí, chegava um e pedia uma porta, outro pedia uma coluna, outro pedia não sei o quê, a gente ia dando e, quando vimos, não tinha mais nada. Na época, em dinheiro de hoje, aquilo valeria uns 3 ou 4 milhões de reais, afinal, são 700 metros de área. Ficamos com o salão da barbearia e com o terreno que virou estacionamento”, conta Tito. Teje preso! 97
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Fofoca para lá e fofoca para cá, um belo dia nas águas de março ou num primeiro de abril de 64 estourou a dita revolução que alguns chamam de “redentora”. Que para outros era golpe de Estado mesmo. E eis que, no chamado “pega-pra-capar”, sem avisos ou mensagens, entraram uns militares na barbearia do Tito e do Gentil. “Pois não, um minuto só que a gente já atende”, disseram os dois. Só que os fardados ou não, não quiseram esperar, pois chegaram na base do “teje preso!”. Tito tinha sido apontado como comunista. Disseram que ele estava indiciado. “Eu nem sabia o que a palavra “indiciado” queria dizer. Muito menos sabia era comunista. Me levaram assim mesmo”, conta. A ficha caiu e ele se tocou: era amigo do Dr. Geraldo de Barros, um advogado famoso na cidade, conhecido como advogado dos pobres. Era comunista, diziam. “O Dr. Geraldo era meu amigo. Toda a vida foi meu freguês. Era muito humano e ajudava o povão. Ele se candidatou e foi eleito prefeito. Arregaçou com a base política dos ricos e poderosos que apanharam feio. E ficaram bravos. Quando veio a tal da revolução, aproveitaram para ir à forra. Tudo quanto era amigo do dr. Geraldo foi taxado de comunista. E indiciado...”, relata Tito.
Escapando de uma temporada no navio “A coisa foi feia. Sabe lá o que é ser chamado de comunista naquele tempo? Os homens andavam atrás da gente, um grupo de dez ou quinze pessoas aqui na cidade. Enquadraram a gente num artigo que dizia: “Reunião com mais de 3 pessoas”. Imagine só. Se fosse agora, por exemplo, estaríamos todos presos, afinal estamos aqui em 3 ou 4 pessoas neste momento no salão. E você também iria”, caçoa Tito, apontando para o repórter. Reunião entre 3 ou mais pessoas era coisa de comunista? Pior que era. E dava cadeia. Tito e seus amigos “comunistas” ficaram desaparecidos por uns dois meses. Até que foram “encontrados”. Pela 98
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primeira alternativa seriam encaminhados para curtir pena no navio Raul Soares, ancorado na baixada Santista, onde ficou muita gente famosa. “Vai ver que chegaram à conclusão que não éramos tão “bandidos” assim e nos deixaram por aqui. Ficamos todos presos na cadeia de Perdões”, narra Tito.
Uma festa na cela Falar que a cadeia de Perdões é pequena é falar pouco. Mas foi lá que Tito e “seu” grupo de “comunistas” ficaram. “Por ordem do delegado dr. Antônio, que eu não lembro do sobrenome. Tinha um soldado tomando conta da gente. Era um só mesmo. Quinze dias depois o delegado concluiu que esse soldado seria mais útil em outra função. Então chegou pra gente e disse: “Sei que vocês são gente boa e não vão dar problema e nem fugir. Então, vou dar a chave da cadeia para vocês, tá? Cuidado, por favor”. E foi assim que nós ficamos presos durante quase quatro meses”, conta Tito, que prefere não citar nomes dos seus “companheiros comunistas...” Eles alugaram uma casa em frente ao prédio da cadeia e passavam seus dias por lá. Só se recolhiam à cadeia à noite. “A gente fazia churrasco quase todo dia, tomava umas e outras, no fim até que ficou divertido. Tinha muita gente amiga que ia lá para que eu cortasse o cabelo. Até o delegado...”. Ainda bem que para eles a “famosa” revolução terminou desse jeito. Muita gente teve sorte bem pior.
E teria muito mais histórias Não era à toa que o Silvio Caldas não saía da barbearia do Tito e do Gentil. Aquilo é um mundo de contos e a cidade inteira deveria passar lá todos os dias para ouvir suas próprias histórias. Pena que a idade já não permita tanto trabalho para os dois. Gentil, por exemplo, já não dá aulas de Judô (um de seus filhos, por sinal, é campeão sulamericano). Pior ainda, 99
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a tradição de família de barbeiros também vai terminar nos dois. Afinal, Tito tem quatro filhas: duas formadas médicas, uma formada em fisioterapia e outra estudando Física no Paraná. Gentil tem três filhos e os três são médicos. O bom é que eles não conseguem deixar a barbearia. Amam o que fazem. Têm fregueses da cidade e em tudo quanto é canto. Que só não são atendidos quando Tito e Gentil vão para Coxim, ao lado de amigos, em pescarias tradicionais e antológicas. Melhor parar por aqui, pois aí não seriam histórias de barbeiros, mas sim de pescadores.
Tristeza Registro, com pesar e muita tristeza a morte do Tito, ocorrida pouco tempo depois desta entrevista. Uma pena.
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O vinho é muito mais vivo do que você está pensando
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em gente que não vê a hora do frio chegar para botar a boca no vinho. Se esse é o seu caso vá até à Cantina Nardini, abra a boca e feche os olhos. Claro que você sabe onde fica o Nardini, afinal, o vinho que ele faz é uma das tradições de Atibaia. “Nossa família está aqui desde 1923”, garante Adolfo Nardini, que daqui a um mês
vai completar 84 anos. “Na verdade eu nasci em Jarinú, mas posso dizer que sou atibaiense mesmo, pois naquele tempo Jarinú pertencia à Atibaia, né?” Adolfo Nardini, casado com dona Rosa Luisa Betschart Nardini e pai do Ricardo, da Roseli, do Renê e da Regina, indiscutivelmente produz os mais afamados vinhos da cidade. E da região. Talvez do Estado. Quem sabe do país, por que não? Sua fama chama pessoas de tudo quanto é canto. Elas vêm atrás das preciosidades guardadas em cartolas de carvalho ou em tonéis de amendoim. No dia em que esta entrevista foi feita Adolfo foi obrigado a acordar às cinco horas da manhã para atender um pessoal de Santos. “São amigos da casa e eu não posso deixar de atender. Eles vêm todos os anos”. Vinho e mais vinho e mais vinho, e não se sabe quem é mais velho: o vinho, o lugar, o Adolfo, os tonéis, as dornas ou as cartolas. Tudo depende do volume de vinho que se beba nessa enlouquecedora degustação própria de quem visita a vinícola. Afinal, são onze variedades de vinho à disposição dos bons de copo. Vai um golinho aí para experimentar?
Da história Para falar dos Nardini, e se o leitor não se importar, a gente vai voltar dois séculos no tempo. Encha o copo e vamos nós. O patriarca dos Nardini é Giácomo, casado com Angela Paviati, casal de imigrantes italianos que veio para o Brasil em 1891 para trabalhar no campo. Rodaram e se fixaram em Jarinú. O casal teve cinco filhos, um deles, Angelo. Que casouse com Luisa Squisato, com quem teve quatro filhos, Narciso, Osvaldo, Adolfo e Gentil, já falecido. No ano de 1923 Angelo veio com a mulher e os filhos para Atibaia e comprou a 103
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propriedade de 27 alqueires que ficou famosa, ali no bairro da Loanda, ao lado do Morumbi atibaiense. Já estamos em 1923. O mato existente se transformou em uma vasta plantação de hortaliças e legumes. Vendiam para a cidade e região e exportavam para Santos. Ia tudo de trem, e os produtos eram vendidos para abastecer os navios que aportavam na cidade. A família foi levando a vida até que iniciou a plantação de uvas e a elaboração do vinho. Em 1947 nascia a Cantina Nardini e até hoje o seu vinho continua sendo produzido de forma artesanal. Mas não se vê parreiras. Onde estão as parreiras? Renê, um dos filhos de Adolfo informa: “Atualmente nós compramos as uvas. Mas continuamos usando métodos antigos para produzir o vinho, exatamente como fazíamos há 50 ou 60 anos. Dá um vinho gostoso, saboroso, bem artesanal mesmo”.
Prove este gosto Adolfo e Renê são constantemente interrompidos enquanto contam sua história. Faz frio e chega gente. Daqui, dali e de todos os lugares buscando vinhos. Uma enorme bancada redonda abriga inúmeras garrafas com diferentes qualidades. Os que chegam vão direto aos copos para provar. Seco, suave, branco, Porto, cabernet, sauvignon... Infinitos sabores, infinitos copos. Tanta gente provando, o repórter olhando, torcendo para que a entrevista termine para experimentar também... Renê e Adolfo retomam as explicações. Ensinam detalhe por detalhe os santos mandamentos da elaboração de um bom vinho. “Sim, existem várias maneiras de se fazer. Inclusive esse jeito que você lembrou esmagar as uvas com os pés, bem artesanal mesmo. Pode esmagar até com as mãos, mas, se forem 100 quilos de uva vai ficar o dia inteiro pisando ou apertando...”, sorriem. Renê lembra que os métodos de esmagamento evoluíram muito. “Nós usamos o sistema garola, uma máquina que tira os cabos da uva e depois esmaga levemente. Nos sistemas antigos, quando o esmagamento era feito 104
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com cilindros, os cabos também eram esmagados e o resultado era um vinho mais amargo. Hoje as pessoas preferem um vinho não tão amargo”, conta.
Fazendo vinho Renê nasceu vendo seu pai Adolfo fazer vinho, da mesma forma que seu pai via o avô, e o avô via o bisavô, o tataravô, tudo na mesma arte. E é por isso que Renê conhece como ninguém e faz questão de explicar cada fase do processo. “Vou falar grosso modo, claro, pois o processo é muito delicado. Depois que se esmaga a uva sem o cabo, na garola, sobra um suco que chamamos de mosto. Esse líquido vai para as dornas onde ocorre um processo de fermentação que dura três dias. Uma vez por dia e durante os três dias, se pega os resíduos que vão se formando por baixo de toda essa massa e se joga de novo por cima das cascas que subiram graças ao processo de fermentação. As cascas da uva é que dão o aroma e a cor do vinho. A cor está por lado de dentro da casca; no lado de fora da casca está a levedura. A parte interna da uva armazena as sementes e a polpa, que é sempre igual, sempre verdinha e vai gerar o volume do vinho. No terceiro dia a polpa já derreteu, já se obteve o aroma e a cor e já se tem um líquido mais apurado, que vai ser colocado em um outro tonel. Nesse processo de fermentação aquela cerinha que fica do lado de fora da casca da uva, que é a chamada levedura, começa a “comer” o açúcar da uva, transformando-o em álcool. Cada dois por cento de açúcar vira um GL, o Gay Lusac, uma medida de álcool. A levedura come o açúcar da uva transforma em álcool e vai dar um vinho de aproximadamente 10 ou 11 graus de álcool. É por isso que se diz que vinho é o seco. Os suaves e licorosos são considerados vinhos do tipo aperitivo porque recebem açúcar por saturação, de forma natural. Vinhos bons para a saúde são os vinhos secos, que tiveram os açucares transformados em álcool”.
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No processo Três dias depois o processo já derreteu a polpa e tirou aromas e cor da casca. O mosto vai ficar por mais 20, 25 dias fermentando num outro tonel. Até que ele pare de soltar aquelas bolinhas, que são os gases. O mosto solta mais de cem tipos de gases nessa fermentação. O de maior volume é o gás carbônico que depois vai para as plantas e vira oxigênio para a gente. E já não é mais mosto e sim vinho. Ele fica repousando mais 20, 25 dias e acumula borras no fundo das dornas. Aí se faz a transposição, separando o líquido da borra e se obtém o vinho mais ou menos limpo. Resta então esperar o inverno chegar para precipitar o excesso de sal de fruta que também fica no fundo das dornas em forma de cristais. Um dos benefícios do vinho é esse sal de fruta. O mesmo sal de fruta que se conhece como remédio e onde apenas se adiciona o bicarbonato que produz aquelas bolinhas no contato com a água. Se não fosse o bicarbonato, o sal de fruta levaria meia hora para derreter. Quando o inverno termina, o vinho já está bom para ser engarrafado e consumido. E aí temos o vinho seco”.
Bebendo saúde Por essas e por outras já se viu que o vinho é ótima bebida para a saúde. Já vem até com sal de frutas... Adolfo, por exemplo, jura que toma um garrafão de vinho a cada três dias. “Dois copos na hora do almoço, dois copos do jantar. E não são copinhos, são taças grandes mesmo”, reforça. “A vida inteira tomando vinho, acabei passando o hábito para os filhos”, conta, sorrindo. Adolfo é ágil. Acorda às 6 da manhã, trabalha o dia inteiro pra lá e para cá, atendendo fregueses. Jura que não bebe em serviço. “O pessoal vem, prova, bebe, e eu fico só olhando, com uma tremenda vontade...”, conta. “Meu pai sempre dizia: beber vinho só na hora do almoço e do jantar”. O filho Renê endossa: “Vai ver que puseram vinho na minha mamadeira”. Secos suaves e licorosos haja vinho na Cantina dos Nardini. Ricardo, o outro 106
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filho também ajuda em tudo. Renê conta que para aprender tudo isso, além da prática, passou por vários cursos ministrados por enólogos que vieram dar palestras em São Paulo e em Campinas. “Aqui tudo é feito de forma muito simples, bem artesanal. Hoje em dia, em termos industriais, usa-se o inox no lugar dos tonéis de madeira. Tem vantagens e desvantagens. Usando a madeira consegue-se extrair mais as propriedades da uva”.
Aos copos Quanto vende quanto não vende, bobagem falar em números. “Nós fazemos o vinho, enchemos nossos tonéis e vendemos tudo. Depois fazemos mais vinho, vendemos tudo e assim vai. Nossos vinhos são jovens, têm no máximo dois anos. A não ser o vinho Marsala, que chamam de vinho do Porto, e que precisa envelhecer. O nosso já tem oito anos”, conta Renê. Será verdade que quanto mais velho melhor o vinho? “Depende. Se for do tipo Marsala é bom. Agora, se o vinho ficar muito velho corre o risco de morrer, ou perder as suas qualidades. Grosso modo, o vinho se apóia num tripé: o azedo, o amargo e o álcool. Se algum desses componentes se enfraquecer o vinho fica chocho, morre. Beber um vinho jovem é certeza de se ter os anti-oxidantes intactos”. Já que é assim, e o vinho é tão vivo, por que esperar para provar o vinho dos Nardinis? Corra aos copos, leitor, antes que o vinho morra e tudo se acabe.
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Dona Catarina esperou 87 anos para ser campe達 no Carnaval de rua de Atibaia
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la tem 87 anos, a cara e a postura nobre daquelas vovós de cinema. Parecidíssima com a “Miss Daisy”, daquele filme “Conduzindo Miss Daisy”, lembram? Super elegante e altamente vaidosa. Ao mesmo tempo é uma pessoa gostosa para se conversar, desprendida, engraçada, diz altos palavrões e morre de rir de tudo. Até
das coisas tristes. “Ê, meu filho, eu trabalho desde criança. Já vi de tudo e já passei por tudo. O mundo é uma viagem e a gente é apenas passageiro. Tem mais é que rir, brincar, ajudar aos outros, consolar ser feliz”. Ouvir dona Catarina Soldera Cesar é tomar uma injeção, dose tripla de otimismo. E na veia. Apesar de Atibaia ser seu canto, seu lar, seu mundo, ela não nasceu aqui. “Eu vim de Rocinha, que hoje nem Rocinha é mais virou Vinhedo. Minha família saiu de lá e foi para Catanduva, porque meu pai ficou meeiro de um fazendeiro e cuidava de 10 mil pés de café. Éramos dez irmãos. Minha mãe não gostava muito, mas meu pai sonhava em comprar um bar ou uma fazenda e fazer a vida por lá mesmo. Mas, aí, morreu uma irmã da minha mãe e a minha casa virou uma choradeira só. Minha mãe chorava querendo vir embora e meu pai chorava porque queria tocar o seu sonho de homem do campo. O choro da minha mãe ganhou e nós viemos para cá”. No jeitão despojado quando está entre amigos, Dona Catarina alterna lampejos de risos e tristezas enquanto conta sua saga. “Eu deixei de abanar café para trabalhar na fábrica de tecidos, a CTB, Companhia Têxtil Brasileira”. Significa dizer que dona Catarina “abanou” café durante 7 anos, pois foi para Catanduva aos 6 e ficou até os 13 anos por lá. Para quem não sabe “abanar café” significa ficar limpando os grãos de café catados junto aos pés da fruta. Digamos que não seja uma tarefa fácil, no mínimo tem que ter muito tutano...
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A Atibaia da Dona Catarina “Para falar a verdade eu nem fui direto para a fábrica. Quando cheguei aqui era “de menor”, como se dizia, tinha 13 anos e não podia trabalhar. Fiquei ajudando na casa de uma outra tia até que cheguei nos 14 anos e o meu tio, Luiz Passador, que era o gerente da fábrica, arrumou emprego para mim. Atibaia inteira trabalhava na fábrica. A fábrica era a vida da cidade. E olha a desgraça que está aquilo hoje em dia, um abandono, uma tristeza. Fiquei dez ou onze anos trabalhando lá. Saí para casar”, conta. Casou com Antônio Adalberto da Silva Cesar e teve dois filhos, Marco Antonio e José Carlos. De certa forma, o marido também trabalhava na fábrica, pois ele fazia transporte de cargas em geral para a empresa usando o caminhão que pertencia a seu pai. “Ficou dez anos trabalhando com o meu sogro. Naquele tempo tudo quanto é mãe, pai, sogro, sogra, os mais velhos enfim, mandavam na gente né?”, espeta Dona Catarina, aos risos. “Vai ver, vai ver, hoje também é meio igual, não acha?”, minimiza... O repórter aproveita para perguntar sobre a situação das mulheres naquele tempo. Sem papas na língua, Dona Catarina responde: “Mudou muito. E como mudou! Mudou para melhor. Só que em alguns pontos piorou...”. Diante da surpresa Dona Catarina emenda: “Sabe o que eu acho? Hoje em dia a mulher não se dá ao respeito. Eu fico vendo o que acontece pela televisão. A mulher arranja um marido, tem filhos, larga o marido e logo arruma outro homem, outros filhos... É justo isso?” A pergunta fica no ar. Conceitos de Dona Catarina...
Das artes Ainda falando das mulheres dos antigamentes, ela se queixa da pouca liberdade que tinha. “A vida da gente foi diferente. Meu pai era muito durão e eu era alegre, adorava cantar. Quando tinha festinhas, teatrinhos, eu estava sempre no meio. E tinha um senhor, o sr. Melquiades, que também trabalhava na fábrica e tocava violão. Ele falou: “você gosta de cantar, vai lá em 110
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casa que eu ensino você a tocar. Fiquei feliz da vida. Mas meu pai deixou? Deixou nada. “Tá louco! Estudar violão à noite? Nem pensar”, ele dizia. Até hoje eu tenho essa frustração, eu queria tocar violão e não consegui aprender. Tinha alguma coisa de mais? Mas ele não deixou. É como eu digo: em certos pontos a situação melhorou muito, mas hoje a mulher tem liberdade até demais. E eu não concordo com muitas coisas...”. Dona Catarina se encanta ao lembrar dos bailes que a cidade realizava em seu tempo. “Eram nos salões do CTB, ali onde hoje é o calçadão. Com o tempo o salão ficou com o Clube da Saudade, lembra?”. Dona Catarina diz que também freqüentou muito o Clube Recreativo. “Tinha bailes de Carnaval, baile caipira. Meu marido não gostava de nada disso. Eu ficava nervosa porque ele ficava com cara feia. Mas, ainda assim, acompanhava. Minha família inteira sempre foi muito alegre e eu sempre fui muito feliz. Vivia cantando, o dia inteiro mesmo que estivesse na roça ou na fábrica. A gente viajava muito, fazia pic-nics, cantoria, saudade!”, dona Catarina fica alegre com suas lembranças. “No carnaval, então, era uma alegria só nas ruas. Tinha blocos organizados, muita fantasia e eu sempre no meio da folia”. Já e viu que não foi essa a primeira vez que Dona Catarina sambou na avenida do Carnaval atibaiense...
Do trabalho Trabalhando desde pequena, Dona Catarina garante que nunca sentiu falta de nada. “No começo a gente ajudava a família. Depois de casada eu também trabalhava para completar o orçamento. Porque as despesas sempre foram grandes, né? Quando eu tinha uns 25 anos aprendi a fazer bolo com minha cunhada, mulher do meu irmão Nerino, e me tornei “confeiteira de bolo”. Minha cunhada fazia bolos para casamento e pediu que eu ajudasse. Fiquei um bom tempo com ela. Depois comecei a fazer bolo para fora, como se diz. Ensinei outra cunhada e a gente foi levando a vida. Minha vida sempre foi trabalho, trabalho e trabalho. 111
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Tanto é que nem consegui aprender a dirigir e nem tocar violão. Que tristeza...”. Além de ajudar nas despesas conseguiu fazer uma poupançazinha muito boa com o seu trabalho. “Ainda bem que meu marido se esforçou e recolheu religiosamente as contribuições sobre dez salários para a aposentadoria. Foi muito bom, foi minha sorte. Hoje eu tenho uma boa aposentadoria. E ainda me aposentei também, por idade. Ficou melhor ainda...”. Apesar de adorar fazer bolos, Dona Catarina teve que parar. “Os filhos não queriam que eu continuasse, pois às vezes eu ficava trabalhando a madrugada inteira...”. Tudo cansa e Dona Catarina já não conseguia acompanhar o ritmo moderno. Ainda assim, durante muito tempo ajudou o filho no box Empório Cafona, no Mercadão. E então que descobriu uma nova alegria: foi ajudar na ASA, Assistência Social de Atibaia. Trabalhou durante 25 anos no Lar Mariquinha do Amaral. “Eu era responsável pelo Bazar. Recebia doações e tinha uma equipe de amigas, além das minhas irmãs que estavam sempre junto. Íamos para lá às 8 horas da manhã e fazíamos de tudo. Varríamos, limpávamos, tudo o que tinha que ser feito. Cheguei até a fazer parte do Conselho diretivo da entidade”, conta, toda orgulhosa.
Vai dar bolo “Fui feliz durante 25 anos por lá deixei o Lar com muita tristeza. O bazar que a gente promovia era sempre um sucesso. O problema é que lá tinha muita poeira e o pó começou a fazer mal para mim, eu sofria muito com alergias. O médico me falou: “A senhora tem que parar de mexer com essas roupas e coisas velhas”. Meus braços e minhas pernas ficaram uma ferida só. Foi uma tristeza. Acabei largando. Saí de lá tão triste, tão arrasada que nem me despedi de ninguém. Eu não conseguiria dizer adeus para as pessoas de quem gostava tanto. Sei que fui mal educada, mas, se for possível, quero aproveitar e dizer adeus e agradecer agora através desta entrevista. Quero dizer obrigado para minhas três irmãs, Helena, Lina e Cide. 112
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Obrigado para as minhas amigas Yvone e seu filho Diogo; para a Tereza, a Lurdes, a Dalva, a Mapi, a Madalena, a Renata e a Regina. Vocês foram muito importantes na minha vida. Espero que me perdoem”, emociona-se Dona Catarina. Só que esta entrevista não vai terminar triste assim. Dona Catarina, que sambou e alegrou a avenida da cidade no último em todos os carnavais, inclusive no último, representa a alegria, o encantamento. A Independência, sua escola preferida foi a campeã e fez tão bonito que teve que voltar a sambar na terça-feira gorda. Dona Catarina continua ouvindo os muitos aplausos que recebeu. Depois de emocionar a avenida inteira já está pronta esperando um outro carnaval chegar. Talvez ela arranje um bom professor e passe a estudar violão. Talvez até volte a estudar. “Sou capaz de fazer o supletivo, prestar vestibular e entrar no Curso de Direito da FAAT, por quê não?”, emocionase. Talvez este ano ela faça alguns bolos a mais para aniversários de pessoas queridas. Talvez tudo isso, mas com certeza neste ano e em muitos outros anos ela vai continuar espalhando sua alegria, seu bom humor, seu jeitão de vovó bondosa e gostosa que todo mundo queria ter. Dona Catarina a batalhadora campeã do carnaval é imprescindível na Atibaia de todos nós.
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Justiça seja feita, o ideal desta mulher é promover a Justiça
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o soy blando com los blandos y soy duro com los duros”. Esse verso de Atahualpa Yupanqui (*), inconfundível poeta, payador, milongueiro e filosofo argentino, celebrado em todo o mundo, define bem a postura da doutora Arlete Del Mastro, promotora da 1ª Vara Cível da Comarca de Atibaia. Que ninguém se iluda, portanto,
com a aparência frágil e delicada dessa mulher, pois seu ideal é ser justa e promover a Justiça. Auto-proclamando-se uma pessoa comum, garante que escolheu ser promotora de Justiça por adorar a carreira. Ou, mais que isso, porque tem paixão pela profissão. “Não sei se adoro o que faço porque faço com gosto ou se faço com gosto porque adoro o que faço”, costuma repetir. O fato é que a Dra. Arlete “vive” o que faz. Com certeza as luzes de sua casa são as últimas a apagar na rua onde mora, porque ela invariavelmente passa a noite e invade a madrugada estudando processos. “Claro que com um fundo musical. Adoro uma boa música, da mesma forma que vou muito ao teatro, cinema. Procuro estar sempre atualizada”, explica.
As andanças de uma promotora Neste mês de dezembro de 2008 a Dra. Arlete está completando 12 anos de carreira. Normalmente os promotores começam suas carreiras servindo em cidades menores e a sua primeira missão da Dra. Arlete foi na cidade de Miracatu, no Vale do Ribeira. Dali saiu para Caraguatatuba, nas praias do Litoral Norte. Se trabalhar numa cidade que tem praia é o sonho de muita gente, falando sincera e francamente a Dra. Arlete não gostou muito, para não dizer que não gostou nada dessa virada. “Cidades com praia costumam ser trabalhosas porque boa parte de sua população é flutuante. São muitos os turistas que se envolvem com problemas legais de difícil solução, na medida em que a gente fica obrigada a trabalhar com precatórios. E isso torna as decisões muito demoradas”. A Dra. afirma que além dos problemas urbanos, Caraguá tem muitas questões jurídicas de propriedades de terra e a questão ambiental recorrente da Mata 115
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Atlântica. “Trabalhei muito por lá, me dediquei dei a minha colaboração, mas gostei muito quando fui removida, ou, promovida. Porque nunca me senti uma pessoa de praia, entende? Praia é bom para férias e não para trabalhar...”, desabafa.
Tinha Atibaia no caminho Na época da promoção a Dra. Arlete quase foi parar em Bragança Paulista. “Até que seria bem interessante. Meu marido, João Antonio Garreta Prats é procurador do Estado e trabalha na Capital. Ele tem família e propriedades em Bragança e tudo se encaixaria. Só que lá não tinha vaga”. Como Atibaia tinha essa vaga a Dra. Arlete veio. Para falar a verdade verdadeira, veio meio a contra-gosto. “Que Bragança me perdoe, mas hoje não troco Atibaia por nada deste mundo”. E aqui a Dra. Arlete leva a vida que todo atibaiense ou atibaiano adora levar. Muito provavelmente o leitor já deve ter visto e cruzado com a doutora pelas lojas, pelos mercados, pelas ruas, nas festas, na vida da cidade, porque ela faz questão de ser uma pessoa comum. “Minha vida é simples e normal igual à de todas as pessoas”, relata. Dona de casa pela manhã, promotora de Justiça à tarde (se bem que na verdade, ela se sente e age como promotora 24 horas por dia). De uns tempos para cá, também virou estudante à noite, freqüentando a Faculdade. Promotora freqüentando a Faculdade? É. Depois de uma carreira muito bem estruturada e do sucesso como promotora, a Dra. Arlete resolveu encarar um novo desafio: ingressou no curso de Jornalismo da nossa FAAT – Faculdades de Atibaia. Já está no quarto ano, praticamente concluindo o curso. Loucura? “Loucura nada”, responde a promotora. “Eu já tinha uma queda pelo Jornalismo desde quando era jovem. Resolvi fazer Direito, lutei para ingressar na Promotoria e deixei o Jornalismo como um sonho adormecido...”.
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Um caso sério, muito sério Já que o Jornalismo ficou muito tempo adormecido na vida de Arlete, também vai ficar adormecido, por enquanto, nesta entrevista. Porque neste momento ela vai falar sobre o caso que mais marcou a sua vida como promotora de Justiça. O assunto ganhou manchetes nos jornais locais e até na mídia nacional. “Ah! isso aconteceu em 1999 e foi um caso de pedofilia. Foi aqui em Atibaia e na verdade o pedófilo era de São Paulo e trabalhava como monitor de acampamentos infantis. Ele vivia abordando pré-adolescentes com preferência por crianças do sexo masculino na faixa de 11/12 anos. Essa perversão foi descoberta aqui em Atibaia”. A Dra. Arlete diz que não gosta de lembrar da história; apenas revela o acontecimento por ser marcante em sua carreira e especialmente para que crimes dessa natureza possam ser evitados e punidos exemplarmente. Ela conta que quando a polícia local teve conhecimento do caso imediatamente acionou o Ministério Público. “A partir daí nós estivemos juntos durante toda a investigação, durante toda a apuração dos fatos. Descobrimos então que o pedófilo já vinha praticando esses mesmos crimes em outras cidades pelas quais havia passado, Botucatu, Ilha Bela, por exemplo, e até em cidades do Mato Grosso”. O caso acabou tendo uma repercussão muito grande numa época que pouco se falava em pedofilia. “De qualquer forma vivi uma experiência muito gratificante em termos profissionais e conseguimos uma condenação inicial de quase 30 anos. Claro que depois teve recursos, a pena foi diminuindo, essas coisas. Pode ser até que, lamentavelmente o pedófilo hoje até esteja em liberdade...”.
É a lei que se tem. E quem muda a lei? Logicamente a Dra. Arlete não se nada sente feliz em saber que esse pedófilo, que alguns consideram verdadeiro monstro já esteja em liberdade depois de crimes tão horrendos. “Eu me sinto feliz por ter feito o melhor trabalho possível para condená-lo na forma da lei. Agora, se 117
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ele conseguiu a liberdade também na forma da lei não posso fazer nada. Às vezes as pessoas criticam juízes e promotores por algumas de suas atitudes que aparentemente beneficiam os infratores. Só que juízes e promotores não são a lei; eles são obrigados a seguir as leis. Os juízes e promotores não fazem as leis; apenas buscam fazer cumprir o que as leis determinam”. A Dra. Arlete admite que existem falhas na nossa legislação. “Às vezes as pessoas ficam comparando a nossa legislação com a de outros países, como os Estados Unidos da América, por exemplo, ou países da Europa. Os juízes e promotores também estudam detidamente essas legislações. Só que nada é tão simples. Às vezes o que é bom para os outros povos pode não ser tão bom para nós. Isso acaba gerando algumas distorções na nossa realidade. O Brasil é um país com cultura própria, com sua forma específica de vida. Talvez as punições no nosso Direito Penal, na execução das penas, não sejam tão severas como deveriam ser e, por isso, existam casos em que alguns descumprem a lei por não terem medo da punição. Porque, repito: em alguns casos a punição prescrita por nossas leis é pequena”, explica.
Deduções lógicas Enquanto a promotora ensina os caminhos do Direito, o repórter passa a filosofar e chega à conclusão de que a dra. Arlete está absolutamente certa quando diz que a culpa por não se punir criminosos com maior severidade, no Brasil é das nossas leis. E essa culpa deve se estender a quem faz as leis, no caso, o Poder Legislativo. Por via de conseqüência, o povo, que tanto critica as leis que têm, passa a ser o maior responsável por tudo aquilo que está errado por aí, na medida em que ele, povo é quem elege as pessoas que vão formar o Poder Legislativo, encarregado de criar tantas leis inócuas que tanto nos afligem. Dura lex, sed lex, diziam os latinos. As leis são fundamentais e têm que ser cumpridas.
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A promotora repórter “Apesar de adorar o que faço, insisto em dizer que o jornalismo sempre me atraiu. É uma profissão que não tem rotina. Tanto o jornalista como o cultor do Direito acabam analisando os fatos da vida, embora cada um tenha seu próprio foco. Nós trabalhamos com a vida, com gente, com o ser humano, sempre buscando o bem social. Exatamente como o promotor de Justiça, com o seu trabalho, com a sua atuação, o bom jornalista procura o que é melhor para a sociedade. Isso acaba abrindo ainda mais os horizontes”, declara. A Dra. Arlete tem consciência de que, mesmo formada em Jornalismo não poderá exercer a profissão enquanto for promotora de Justiça. “No futuro eu vou fazer questão de viver um pouco a vida de um repórter. Escrever sobre Ética, legislação, coisas afins”, especula.
Dos carentes de Justiça Preocupada com as pessoas mais humildes, se sente mal ao perceber que são os mais humildes e mais necessitados os que menos recebem as atenções que mereceriam. “Fico triste com a falta de afeto, a falta de respostas na saúde, na educação e na segurança que atinge a essas pessoas. O Brasil, como país, ainda não valoriza o ser humano como deveria. Me magoa muito receber pessoas que vem até aqui na promotoria reclamar por atendimento médico, pela falta de remédio, pela falta de segurança, pela falta de vagas para os filhos na escola...”. E quais seriam as soluções para tantos problemas? “A educação. Com certeza a resposta está na educação. A educação no lar, a educação normal, a educação clássica. Porque as pessoas vão se moldando através da informação. E a formação vem através da conscientização”, conclui a promotora, lutadora e futura jornalista Dra. Arlete que, por enquanto ainda não redige notícias e nem manchetes de jornais, como faz uma boa jornalista. Por enquanto, como boa promotora de Justiça, ela é a noticia, ela é a manchete dos jornais. 119
(*) Um click no Google e você ficará sabendo quase tudo sobre Atahualpa Yupanqui.
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Foi por causa dele que Atibaia sempre saiu bem na foto
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ode até não ser um recorde mundial, mas indiscutivelmente esta é a maior demonstração de amor que alguém pode dedicar a uma cidade: o atibaiense Flávio Luiz Pileggi já fez mais de 15 mil fotos mostrando todos os cantos e encantos da sua Atibaia. “É, mas ainda tem muita beleza para mostrar da minha cidade. Eu adoro fotografar”, conta Pileggi, incansável pesquisador das belezas da vida. É
praticamente impossível encontra-lo sem uma máquina fotográfica a tiracolo. A não ser, claro, quando está atrás do balcão de sua tradicional loja, a Papelaria Cromo, ex-papelaria Santa Terezinha, ao lado do Mercadão. “Eu sou alucinado por fotografia”, revela, numa afirmação totalmente dispensável para quem já fez mais de 36 mil fotos. “Aliás, se fizer as contas, bem direitinho de tudo o que já fotografei é capaz de passar das 40 mil fotos”, garante. Essa paixão pela fotografia nasceu aos 18 anos, quando conheceu o alemão Ernesto Venkovisk, grande fotógrafo que, à época, também rodava a cidade inteira com seu táxi servindo aos clientes e buscando cenas, rostos, enquadramentos, para fotografar. “Meu pai também gostava da fotografia e me incentivava bastante. Ele emprestava a sua Kapsa uma daquelas máquinas bem simples, fabricação nacional mesmo, que qualquer um poderia operar. Se procurar nos meus arquivos pode ser que encontre alguma foto feita com ela”, orgulha-se.
Nos cliques da vida Flávio é filho de Miguel Pileggi Contesini e de dona Ondina Guzzi Pileggi. É irmão de Sônia, formada em Letras. “Meu pai veio de Jarinú para se estabelecer aqui em Atibaia. Ele tinha uma gráfica, a Santa Terezinha, que ficava exatamente onde hoje está a minha loja. Era muito ligado às artes também. Chegou até a imprimir um jornal, “Tentativa”, feito por André Carneiro e César Memolo. Era uma publicação cultural muito apreciada na época. Eu gostava de ajudar, trabalhando na gráfica nas horas vagas da escola. Estudei na José Alvim 121
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e acabei fazendo o curso de Administração de Empresas aqui mesmo em Atibaia”, conta Flávio, queixando-se das mudanças que ocorreram na sua cidade. “Atibaia era muito tranqüila, muito gostosa. Eu morava aqui no centro mesmo, ao lado da gráfica. Tive uma infância bem legal, e lembro que a garotada daqui zoava e brigava contra a garotada dos bairros lá de cima e lá de baixo. Mas não eram essas brigas de gang de hoje não, era coisa para a gente dar boas risadas...”, relembra saudoso. Como não poderia deixar de ser, Flávio fala com saudade do tempo em que a cidade era cortada pelo trem. “Eu ficava fascinado. Sonhava em viajar, ir para longe, conhecer outros lugares. Até que um dia fui com meus avós para Campinas. Deus do céu, nunca vi trens tão grandes. Teve um momento em que me perdi deles e me senti sozinho no mundo, um desespero danado vendo aquele movimento todo que assustava o garoto simples da cidade pequena. Cheguei a pensar: não volto mais lá, não ando mais de trem. Depois superei, claro”, conta, sorrindo.
Da vida Pai de três filhos, Ronaldo, hoje professor de Letras no famoso Colégio Porto Seguro, referência de ensino na Capital; Giseli, que mora em Londres e Rogério, estudante de Direito, Flávio se sente feliz por ter passado a eles o seu gosto pela fotografia. “Eles eram meus companheiros nas minhas “viagens” pela fotografia. E eram bons fotógrafos também”, garante. Um dia Flávio percebeu que não estava sozinho em seu amor pela fotografia. Além de seus filhos, uma porção de amigos também se dedicava à nobre arte de registrar pedaços da vida, pessoas, rostos, expressões, seus lugares, seus destinos. Foi então que veio a idéia de formar um clube, o Clube Atibaiense de Fotografia surgido em 1991. “A idéia era sair em grupo clicando, clicando e clicando. Pode-se dizer com quase toda a certeza que não existe pedaço, flor ou caminho da região que não tenha sido contemplado, admirado, curtido e clicado por 122
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algum dos membros do Clube”, conta. Andando, clicando, adorando o que faziam, os malucos do Clube decidiram mostrar o seu trabalho de arte. Foi então que Atibaia se viu bonita na foto pela primeira vez numa exposição coletiva mostrada no Museu Municipal João Batista Conti, em 1992. Foram vinte trabalhos de doze fotógrafos. Um sucesso que merecia bis. Daí para a frente, o caminho estava aberto. As exposições sempre foram temáticas mostrando flores, congadas, a fábrica da Companhia Têxtil Brasileira, Pedra Grande, Atibaia, enfim. O Clube já completou 40 exposições. E durante toda essa existência, a entidade reuniu mais de 400 fotógrafos. “Muitos deles já “penduraram as máquinas”...”, brinca Flávio. Hoje, o clube tem 60 sócios ativos. E cada um paga uma mensalidade de 10 reais. Apesar de tão pouco, só alguns pagam. “Graças à falta de recursos as reuniões são feitas na Papelaria Cromo mesmo. Quando falta tempo, o pessoal “se reúne” via internet ou pelo telefone. E são reuniões muito engraçadas, muito divertidas, apesar de produtivas...”, diz, sorrindo.
Uma vida de aventuras Atrás de boas cenas, Flávio e seus companheiros de Clube já ultrapassaram, e muito, as fronteiras de Atibaia, da região, do Estado e até do País. “A gente viaja muito. De máquina em punho já fomos parar no deserto de Atacama, no Chile e até no Peru. Neste ano a gente vai ao Jardim Botânico e Museu do Ipiranga, em São Paulo; nos Monumentos Históricos e fazendas de café, em Itu; Tiradentes, São João Del Rey; em Minas; no Festival do Folclore e Termas dos Laranjais, em Olímpia; nas Cavernas do Petar e Caverna do Diabo, em Iporanga; nas fazendas das novelas e Serra Bocaina, em Bananal; em Búzios, Ilha Grande e Maceió, em viagens de navio e em Santos e São Vicente, para vermos do Teatro do Descobrimento”, conta Flávio. Ainda para este primeiro semestre o Clube já tem várias “saídas” e exposições previstas. É clique atrás de clique, exposição após exposição. 123
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Preferências e críticas “Quantas fotos você já fez na vida?”, foi a pergunta que deixou Flávio mais embaraçado. “Precisava de uma máquina de calcular. Comecei a fotografar aos 18 anos; faço em média umas 1.200 fotos por ano, tal e tal, devo ter feito mais de 40 mil fotos. Só de Atibaia umas 15 mil”, garante. Da Kapsa, primeira máquina, até hoje, já teve umas 15 máquinas, analógicas ou digitais. Prefere a Nikon. Não gosta e se recusa a fazer “foto posada”, aquela que a pessoa fica sorrindo antes do clique do fotógrafo. “Gosto do momento, do real, da expressão pura e simples. De olhares, caras, modos, jeitos, maneiras, tudo bem natural. Evito ver exposições e fotos de grandes e comentados fotógrafos que usam e abusam de cenas pré-elaboradas. Gente que chega a contratar pessoas para posar e formar cenas dramáticas. Tudo muito falso. Prefiro o real, o instantâneo e o espontâneo”, desabafa. Na verdade além das paisagens e da arquitetura, ultimamente Flávio vem se dedicando bastante às fotos que retratam o rico folclore da região. “Até porque minha mulher, Lilian Vogel, que recentemente publicou livro sobre o folclore regional, ilustrado com fotos minhas, tem se revelado uma excelente folclorista. Ela está preparando um novo livro e eu já tenho ótimas fotos para complementar o trabalho”, conta. E, sem mais delongas, Flávio deu por encerrada a entrevista porque um bando de pombos se aninhava nos fios elétricos que circundam o Mercadão, formando uma paisagem marcante da cidade. Bem nesse momento, acontece também um incrível e deslumbrante por de sol característico de Atibaia. Fim de papo. Nada segura Flávio Pileggi quando é para fotografar coisas bonitas da sua cidade.
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Renato Zanoni, o homem que tem todas as hist贸rias de Atibaia na cabe莽a
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le tinha menos de seis anos e já gostava de ver as figuras dos “gibis”. Foi daí que veio a enorme vontade de aprender a ler. Perturbou tanto os seus irmãos mais velhos que eles acabaram ensinando. Aos seis anos Renato Zanoni, hoje com 76 anos, passou a devorar os saudosos “gibis” de antigamente, especialmente o “Globo Juvenil”, que era riquíssimo em aventuras. E dos “gibis” aos livros do Tarzan, de
Edgar Rice Burroughs foi um pulo. Depois, vieram romances de toda espécie, até que Renato se concentrou em livros que contavam a história romanceada. Adorava ler Lígia Fagundes Teles, a sra. Leandro Dupré e tantas outras escritoras paulistas. “As escritoras paulistas eram grandes narradoras da história”, justifica. Filho de Edmundo Zanoni, que por duas vezes foi prefeito de Atibaia, Renato é casado com Ida Amaral Zanoni, pai de José Roberto e Ana Lúcia, e acabou se transformando em um dos maiores historiadores de Atibaia.
Mergulho na história Renato é autor do livro “Atibaia no Século XX” e concluiu recentemente “Bandeiras e Tropeiros – Caminhos do Rio Atibaia”, seu mais novo trabalho. As duas obras foram patrocinadas pela Prefeitura da cidade. Conversar com Renato é mergulhar na história de Atibaia, do Estado e até do país. Ele realmente conhece tudo, quase que nos mínimos detalhes. Não é à toa que desde criança, lê pelo menos três horas por dia. Isso quando não passa 24 horas seguidas lendo, quando o assunto realmente lhe interessa. “Adoro ler. Entro no enredo e acabo perdendo a noção do tempo”, confessa.
Um estudioso fanático Começa a entrevista e vai logo justificando: “Que ninguém me cobre por eu, às vezes, destoar e mudar de opinião. A vida é dinâmica e a gente muda mesmo de pensar”, aponta. Católico 127
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praticante, exemplifica que mudou de opinião sobre o problema da excomunhão das pessoas envolvidas no caso da menina de 9 anos que foi estuprada pelo padrasto e engravidou de gêmeos. “Depois que li a revista Veja desta semana, comecei a pensar de forma diferente”. Renato não explicou qual a sua nova leitura sobre o caso, até porque, ele mesmo enfatizou, nosso assunto é Atibaia. “Vim para cá aos 13 anos de idade, Eu morava em São Paulo e foi lá que estudei as primeiras letras”. Sua paixão pela história veio da curiosidade sobre as origens das coisas. E ele conhece a história de Atibaia desde que ela era uma simples vila. E fala das disputas dos Camargos e dos Pires. “Disputa que começou em Portugal e veio terminar aqui. Eu não sou, como dizem, o maior conhecedor da história da cidade, sou, sim, um estudioso fanático dessa história. Procuro conhecer tudo a respeito”. Renato conta também do seu interesse histórico sobre a revolução de 1932. “É que meu tio, Anselmo Zanoni, esteve no “front”, em Guaratinguetá”, revela, dizendo que a gripe espanhola também esteve no seu foco. “Eu venho pesquisando tudo isso em jornais locais e publicações em geral editadas entre 1901 até 1968”, conta. “Uma fonte importante foi o livro de Waldomiro Franco da Silveira, “A história de Atibaia”, fora outras edições que tenho encontrado na biblioteca do Museu João Batista Conti, que eu considero muito bem equipado”, explica.
Falando do Major “Uma vez me acusaram de enaltecer demais a figura de Juvenal Alvim. O problema é que os jornais da época só falavam dele. Era o Major Juvenal Alvim para cá, Juvenal Alvim para lá, impossível não se falar dele. Claro está que a tendência da imprensa é sempre enaltecer o belo e o que está em evidência, mas em todos os escritos que consultei, notei que o Major era carismático. E estava com tudo na mão. Ele soube usar a fortuna que tinha. Quando faleceu deixou doze fazendas”, conta Renato Zanoni. Eram fazendas de café, a riqueza do país. “Atibaia passou por todos os ciclos normais da agricultura; a cana de açúcar, o algodão, que foi aniquilado por 128
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uma praga que destruía os algodoais. “Era uma lagarta chamada “coruquerê”. Foi tão terrível que até os vagões dos trens exibiam faixas e cartazes alertando: “Acabe com o coruquerê antes que ele acabe com você...”, lembra Renato Zanoni com seu jeito gostoso de contar. “O crak de Nova York jogou o café no chão”, conta, acrescentando que o “luxo” que o café bancava para os fazendeiros caiu junto.
Da escravidão Renato faz questão de dizer que a escravidão custou a acabar por aqui. “E não acabou pela Lei Áurea. As pessoas que trabalhavam no campo, de alguma maneira continuaram escravos. Brancos ou negros, imigrantes ou não, eles nunca recebiam dinheiro, apenas faziam suas compras nos armazéns onde, digamos, descontavam os seus“salários”. Coisas que continuam acontecendo até hoje em alguns rincões do país...”, critica. “Pelo menos ao que se conta, o Major era muito caridoso. Anos depois da sua morte meu pai contratou um empregado, que no fim acabou sendo “da casa”. Esse homem contava que seu pai tinha trabalhado com o major, e toda vez que se falava do major ele se emocionava, dizendo que ele tinha sido um homem muito bom”, conta Renato. “O fato de Atibaia não ter se desenvolvido é realmente um mistério. E eu não sei se o Major Alvim chegou a influir nisso. Bragança se adiantou porque, na época em que Atibaia era Vila e Bragança Freguesia, subordinada portanto à Atibaia na hierarquia geo-política, descobriam ouro no rio Sapucaí. Houve uma corrida para lá. Como Bragança era muito mais próxima, levou vantagem. Muitos políticos daqui abandonaram a Câmara da cidade e foram morar na Freguesia de Bragança e ela se emancipou. Foi aí que ela passou adiante”. Exemplo disso foi a família Pimentel, que teve participação efetiva no desenvolvimento de Bragança. A família Pimentel saiu de Atibaia e foi para lá. “Isso tudo ocorreu em 1760, por aí”, lembra Renato.
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No embalo da história E já que estamos no ano de 1760, não custa nada Renato voltar uns poucos anos mais e contar logo o início da nossa cidade. “Pelos meus estudos, os Pires e os Camargos já brigavam há muito tempo lá em São Paulo. Foi uma verdadeira guerra que durou 40 anos. Jerônimo de Camargo saiu fugido da Capital e veio para a Freguesia de Atibaia, onde se estabeleceu em uma fazenda. Ele estava jurado de morte por uma Pires. É, por uma Pires. Isso aconteceu em 1660, por aí. Em 1665 veio o padre Mateus e entrou na história como fundador da cidade por ter celebrado uma missa num dia 24 de junho de 1655. Logo os Pires vieram atrás para infernizar a vida do Jerônimo de Camargo. Os Pimentel que eram casados com os Camargo, saíram sem levar essa briga e foram para Bragança. Até que Camargos e Pires se casaram entre si e acabaram com a briga”, conta. Voltando um pouco mais no tempo, Renato Zanoni conta que os Pires vieram de Portugal junto com Martim Afonso, que aportou em São Vicente, em 1534. “Eles subiram para São Bernardo à procura de João Ramalho, que vivia no planalto e havia ficado amigo dos índios, tendo-se casado com a índia Bartira e se tornado genro do cacique Tibiriçá e acabou mandando em todo o mundo. Já os Camargo surgiram no Brasil em 1611, na figura do espanhol Giusepe Camargo e aí começou a briga”, conta Renato.
De amigos e inimigos Conversar com Renato Zanoni é ficar extasiado com cada detalhe, cada acontecimento desta Atibaia tão bonita e tão maltratada. Histórias antigas, ou mais ou menos recentes, histórias de hoje, histórias. De como as coisas se formavam, de como as terras eram ocupadas. Renato conta que aqueles que, por algum motivo desagradassem à corte, que na época era única, pois de 1580 até 1640 as coroas da Espanha e Portugal foram unidas, eram deportadas. Dom José I, o rei das duas coroas, dava uma certa importância em ouro para a pessoa e mandava embora 130
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mesmo. Certamente porque eram “inoportunos”. Os degredados chegavam por aqui, na província, marcavam suas sesmarias e ficavam donos das terras. Terras que não tinham tamanho. “Eu descobri, por exemplo, que o bairro de Canedos foi fruto da sesmaria de um tal Canedo de Compostela. Ele pediu a sesmaria e tomou conta. Teve também o caso de uma mulher que em 1680 pediu a sesmaria que ia do rio Atibaia até o rio Jaguari, veja só quanta terra! Bastava ter uma certa importância política para pedir e ganhar as sesmarias. Quem outorgava era a Capitânia de São Vicente. Simples assim”, conta Renato. O repórter não se contém e especula que pouca coisa mudou no Brasil; a velha máxima do: “para os amigos tudo, para os inimigos a lei”, aparentemente continua até hoje. Renato sorri enigmaticamente. Será que ele concorda?
Falta muito Ficou muito ainda por contar. Faltou espaço para Renato falar de seu pai, o prefeito Edmundo Zanoni; de seu padrinho, o dentista Edgard Gniper da Rocha, que saiu de Araraquara para brigar na Revolução de 1932 e que voltou cheio de ouro; do padre que fugiu com uma dama da cidade e tantas outras histórias. Uma pena que Atibaia não aproveite melhor o talento, o conhecimento, as histórias de Renato Zanoni. Ele que tem tanto para contar, ensinar sobre a história da cidade nunca é chamado para esses eventos importantes. Bem que ele poderia, e seria obrigação das autoridades, fazerem com que ele desse aulas, fizesse palestras, comparecesse em cada escola da cidade para contar e enaltecer a história de Atibaia. Autêntica biblioteca ambulante, Renato poderia ensinar, mostrar caminhos idos e percorridos, acertos e desacertos comprovados pela história. Enquanto lê, buscando causos e casos Renato, que sabe tanto, talvez ainda não saiba o quanto é importante, a ponto de já ter se transformado em uma história. Por sinal, uma das mais bonitas histórias da história de Atibaia.
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O delegado que se prendeu de amores por Atibaia
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sonho do garoto humilde era voltar como delegado para Garça, sua cidade natal. Queria chegar orgulhoso por ter conquistado o tão distante lugar ao sol. Ao invés disso, foi designado para cumprir sua missão em Atibaia. E que quando seu superior hierárquico lhe entregou o termo de posse no cargo de delegado ainda disse: “Se prepare porque você vai encarar uma
cidade que é um ponto negro em termos de criminalidade”. Foi assim que Sebastião Alves de Oliveira chegou por aqui. Hoje, dezesseis anos depois ele é o delegado titular da cidade e garante que “Se depender de mim, não saio mais de Atibaia”. O susto inicial se transformou numa alegria imensa. “Adotei a cidade e sinto que a cidade me adotou”, conta orgulhoso. Filho de Valdomiro Alves de Oliveira e Lenita Maria de Oliveira, nascido e criado em Garça, Sebastião sempre teve paixão pelo Direito. Fez o curso na faculdade de Marília e sonhava com a magistratura. Ao tempo prestou concurso e se tornou escrevente no Fórum de Garça. Participou de outro concurso público e tornou-se delegado de polícia. “Meus pais e meus quatro irmãos ficaram com muito medo, pois é uma carreira perigosa. No entanto, eu me sinto muito feliz”.
A chegada O delegado Sebastião chegou em Atibaia em fevereiro de 1993. “Confesso que naquele tempo fiz de tudo para ir para Garça. Ainda assim procurei me dedicar e desempenhar minhas funções com todo o amor. A gente só é feliz quando faz o que gosta”, sentencia. Ele diz que polícia civil vem se reformulando constantemente, tentando oferecer o melhor para a sociedade atibaiense. “Claro que existem alguns momentos negativos. A gente tem que se superar, afinal, segurança é coisa fundamental para as pessoas”. Sebastião nunca esqueceu a frase do seu superior hierárquico, que falava no tal do “ponto negro da criminalidade”. “Ele 133
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tinha razão, Atibaia tinha e ainda tem muito trabalho. Naquele tempo o efetivo de policiais da cidade era maior que hoje. Tínhamos 6 delegados, inclusive uma Delegacia da Mulher. Atibaia cresceu hoje são só quatro delegados e já não temos a Delegacia da Mulher. Houve a duplicação da Fernão Dias e o trabalho aumentou. Acho que o problema é que a administração geral não consegue repor as pessoas que se aposentam, ou são removidas. São questões burocráticas que não se consegue resolver. Não é um problema local; a gente sabe que na capital existem delegados que são obrigados a fazer plantões e responderem por várias delegacias ao mesmo tempo”, pondera.
O ponto negro Sebastião garante que ainda assim, dependendo do tipo de crime, houve até redução na criminalidade por aqui. “Se pegarmos os homicídios como exemplo, veremos que hoje ocorre média de 20 casos por ano, menos de 2 por mês. Naquela época, 16 anos atrás eram mais de 25 homicídios por ano. E a cidade era bem menor”. Em sua maneira de ver é difícil avaliar as causas dos homicídios. “Existem homicídios relacionados ao tráfico de entorpecentes, acertos entre traficantes, mas também existem os homicídios em conseqüência de vingança, desentendimentos em bares, problemas passionais. É um crime difícil até de se prevenir. Quando os números aumentam, o máximo que se pode fazer é desenvolver ações preventivas em bares, realizar revistas para verificação de porte de arma, coisas assim”. Para ele a questão dos homicídios não deveria ser o termômetro para avaliação do comportamento da criminalidade. O crescimento da cidade provocou o aumento de crimes como furtos, roubo, furtos de veículos. “Lamentavelmente continuamos sendo o ponto negro da região bragantina até hoje, com o maior número de crimes de todos os 16 municípios da região. Inclusive os crimes mais graves ocorrem por aqui”, diz. Diante da pergunta dos porquês dessa situação pondera: 134
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“São vários fatores: estrutura policial inadequada e a posição geográfica da cidade. Duas das mais importantes rodovias do estado passam por aqui”.
Os porquês Analisando o problema, Sebastião aponta que os fatores sociais influenciam o processo de forma decisiva. “Falta uma política social que vá até a raiz dos problemas. O menino criado no meio de traficantes vai acabar se transformando em traficante. A proximidade com a Capital também favorece. A maioria dos crimes graves que ocorrem por aqui não é praticada por pessoas daqui, mas por gente que vêm de São Paulo. Isso já está mais que configurado nas prisões em flagrante que realizamos depois de roubos ou assaltos”, garante. Dezesseis anos depois, Sebastião já coleciona a solução ou pelo menos sua participação em vários casos policiais ocorridos em Atibaia e região. “Claro que nunca estive sozinho, sempre trabalhamos em equipe”.
A tragédia “A Chacina da Boa Vista foi, sem dúvida, o caso que mais marcou a nossa participação. Para quem não se recorda, o crime ocorreu num bar do bairro da Boa Vista. Foi literalmente um banho de sangue; morreram sete ou oito pessoas. Quando chegamos ao local do crime, sem mentira nenhuma, o piso do bar, inclusive nas imediações, estava forrado de sangue, uma crosta de sangue. Me recordo que tinha uma porção de bicicletas encostadas nas paredes, pois entre as vítimas tinha gente inocente que voltava do trabalho e estava ali para tomar uma cervejinha. Tinha até uma frigideira com pedaços de lingüiça num fogão, sinal que o pessoal estava tranqüilo bebendo e comendo seu tira-gosto. Chegaram os assassinos e executaram todos. Só pouparam uma criança. As apurações levaram para o tráfico de drogas. Foram todos 135
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presos e até hoje tem gente pagando por isso”. As razões da chacina? “Ao que se constatou aquele bar pertencia a um senhor que estaria envolvido com o tráfico. Ele teria “vendido” o ponto para uma traficante de Guarulhos, mas continuava a traficar por sua própria conta, fazendo concorrência ao “esquema”. Inclusive no dia da ocorrência encontrou-se farta quantidade de entorpecente lá no bar. Quando soube disso, a traficante determinou à sua “tropa de choque” que executasse o dono do bar. Morreu toda aquela gente. Isso me marcou muito. A polícia agiu rápido e o caso foi resolvido em poucas horas, os pistoleiros foram presos. Um deles foi morto pelos colegas no próprio carro de fuga, na Fernão Dias, perto de Mairiporã. Deve ter havido algum desentendimento entre eles”, conta.
Coisa de cinema Em compensação, o fato mais engraçado ocorreu em um plantão que Sebastião estava fazendo na Seccional de Bragança. “Era noite de Natal e de repente parou um carro na porta da delegacia. Desceu um Papai Noel conduzindo um sujeito algemado. Quando o Papai Noel se aproximou percebi que ele era um policial da cidade, o investigador Tito. O Tito participava de uma festa de Natal representando o Papai Noel para a criançada. Foi quando um sujeito que havia cometido um roubo na rua, perseguido pela multidão entrou na festa. Acabou preso pelo Papai Noel. Foi o meu presente de Natal. Daria um filme, não?”, pergunta sorrindo...
Planejamento “O fato de Atibaia necessitar de uma estrutura melhor em termos de policiamento nos levou a uma parceria muito boa com a Polícia Militar, com a Guarda Municipal, com a policia rodoviária federal e até com o Poder Judiciário e o Ministério Público. Temos feito operações 136
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em conjunto com ótimos resultados. Reduzimos alguns índices como o furto de veículos. Praticamente zeramos o furto de fios e cabos telefônicos com a prisão de uma quadrilha de Francisco Morato, que agia por aqui. A população já sentiu os bons resultados dessa parceria e acho que é isso que o cidadão quer e espera. O Conseg tem tido uma participação efetiva oferecendo recursos materiais que às vezes não conseguimos do governo. Nossas viaturas são novas e todos os policiais, civis ou militares dispõe de bons armamentos, coletes a prova de bala. Infelizmente falta gente e a valorização na questão da carreira policial”, pondera, propondo que a população pressione os seus políticos para que se tenha melhoramentos.
Sem presídio Sebastião é contra a implantação do presídio na divisa de Atibaia. “Vai ser muito negativo, implicando na área da saúde, na questão ambiental e na questão segurança. Fatalmente o atendimento médico vai cair na nossa Santa Casa. Além de agredir a Pedra Grande, um dos marcos do nosso turismo ambiental. Com certeza serão criados bolsões de pobreza no entorno do presídio. Enfim, foi uma má escolha. A sociedade vem se mobilizando contra essa idéia e espero que ela consiga reverter o processo”, resume.
O grande perigo Uma das grandes preocupações do delegado é o tráfico. “Ele é o nascedouro de muitos outros crimes. Temos buscado combatê-lo de forma incessante, principalmente a PM que inclusive se preocupa com a população infantil e juvenil e vem promovendo encontros e palestras para a garotada, mostrando os malefícios e perigos da droga. Um belo trabalho. O duro é que as prisões ocorrem sempre no mesmo lugar. Prendemos um traficante e dali a pouco aparecem outros no mesmo lugar. A melhor maneira de se combater o tráfico é combater o 137
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usuário. Enquanto tiver gente querendo comprar vai ter gente para vender. Esse programa que a PM faz junto à juventude é muito bom, as crianças precisam dessa informação. E os pais precisam saber com quem seus filhos andam, pois as más companhias são o início do problema”, sentencia.
Eu fico No conceito do delegado Sebastião uma delegacia de polícia poderia ser classificada como “a pá que remove o lixo social”, frase que ouviu de um colega. “Por aqui passa tudo de ruim que acontece na cidade. De bom só quando se encontra uma pessoa desaparecida há muitos anos, quando se ajuda pessoas com problemas mentais ou coisa mais grave, quando se desvenda um crime”. Uma delegacia de polícia amadurece a pessoa diz o delegado. “Aprendi muito e ainda tenho muito que aprender”. Sebastião Alves de Oliveira, casado com Erika Campos Tamani Oliveira, pai dos gêmeos Lucas e Felipe, nem pensa em sair de Atibaia. “Eu amo esta cidade. Tenho grandes amigos, gente que gosta de mim. Só saio compulsoriamente...”, conclui o delegado que a cidade prendeu com seu carinho.
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O dia em que a estรกtua chorou
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omo nos versos do poeta, talvez a estátua estivesse mirando estrelas, ou, quem sabe, só pisava nos astros distraída. Enquanto andava e sonhava, dois pivetinhos, desses muito mal criados, bem safadinhos, fizeram a estátua chorar. Tratava-se de um assalto e a estátua distraída acabou perdendo cinco ou seis reais, o dinheiro que tinha no bolso. Perdeu também um sanduíche e
uma garrafa de coca-cola. O pior é que perdeu o celular. Nesse dia a estátua chorou.
Você conhece Sim, você já deve ter visto essa estátua. Ela passa os dias parada como costuma ficar uma estátua que se preze, na Rua Benedito de Almeida Bueno, bem no centro da cidade. Atrás dessa estatua impassível está Carlos Alexandre da Rocha, 32 anos. Nascido em Itajaí, Carlos é um artista performático que se transforma em estatua viva há 29 anos. Aprendeu a arte quando tinha apenas 3 anos de idade. Abandonado pelos pais foi encaminhado para um orfanato da cidade. “Pode acreditar que eu ainda me lembro disso. Triste, abandonado, me sentia sozinho no meio de tantas crianças de vida igual à minha. Ganhei esse dom de Deus. As pessoas diziam que eu ficava parado feito estátua e eu ficava mesmo. Me habituei e com o tempo fui me isolando cada vez mais. Eu sou uma estátua viva desde criança”, desabafa.
Do limão para a limonada Carlos transformou o azedo limão da sua vida numa doce limonada. Assumiu sua solidão e seu lado estátua. Aos 6 anos foi adotado por um casal já maduro e sua arte passou a ser reconhecida. Com autorização dos pais adotivos e do juizado de menores da cidade era atração em festinhas e seu repertório aumentava: além de fazer a estatua, ainda interpretava 141
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robôs. A criançada gostava e ele também, pois ganhava algum dinheiro, além de ver a sua fama crescer. A ponto de ter sido chamado várias vezes para participar daquele famoso coral que se exibe nos natais de todos os anos no centro de Curitiba. De pulo em pulo, de ano em ano, de cidade em cidade, Carlos virou uma estátua viva das mais marcantes requisitadas. Para não dizer que já rodou o país inteiro, pelo menos o Sul do Brasil já conhece a sua arte. Vive disso. Ganha um contratinho aqui, outro ali, “Dá para o gasto”. É pai de uma filha que já tem 16 anos. “Ela fica com meus pais adotivos em Itajaí. Só vejo duas ou três vezes por ano”.
De lá para cá Como e por que essa estatua veio parar em Atibaia? “A primeira vez fui contratado para atuar na festa do morango, há três anos. Tenho vindo todos os anos. Agora, por exemplo, fiz a Festa do Morango e estive na Festa do Pêssego. Fui ficando e venho realizando minha performance na rua. O povo passa, admira, gosta, e sempre me dá uns trocados”. Quem ainda não reparou precisa ver. Carlos, a estátua viva, passa todos os dias, absolutamente imóvel sobre um caixote. Nove horas ininterruptas. Aí as pessoas perguntam: “E ele não come, não faz xixi e outras necessidades?”. Ele responde: “Meu organismo já se habituou nessa vida. Eu subo no meu caixote às 9 horas da manhã e fico até ao meio dia absolutamente estático. Descanso meia hora e depois vou de meio dia e meia até às seis”. A vida é difícil. Carlos vive do reconhecimento dos passantes. Nem todos ligam. Alguns pensam: “...o cara é um louco...”. Ele não liga. As crianças olham admiradas, querem tocar nele, querem bater palmas. Ele adora. Não é todo o dia que ganha o suficiente para comer e pagar o quarto da pensão onde está hospedado. É a pensão da Dona Renata, perto da Rodoviária. “E foi lá pertinho que me roubaram o celular”, lastima-se. 142
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Uma estátua sem celular Porque o celular faz falta? Faz falta porque Carlos, a estátua viva, vive melhor quando consegue ser atração em festinhas infantis. “Os pais querem fazer algum agrado para as crianças e eu vou para ganhar um cachezinho. Seja como estátua, como robô, como palhaço ou como anjo. Tenho várias personagens e consigo agradar as crianças...”. Realmente os pais se interessam, contatam Carlos e pedem o número do telefone. “Não tenho. Roubaram o meu celular!”, responde. Ele pede para os pais anotarem o número do telefone e promete ligar depois. Os pais anotam, ele guarda o papel onde o telefone foi anotado e, no fim do dia, tragédia! Carlos é analfabeto... “Eu me sinto mal em confessar que não sei ler. As pessoas acham que eu desprezei o convite, não é nada disso. Não sei ler, não consigo ligar, tenho vergonha de pedir para as pessoas fazerem a ligação para mim. Acabo perdendo o trabalho e passando por irresponsável...”, conta, tristonho.
Você conseguiria? Como é que uma pessoa consegue ficar parada feito estátua, toda pintada com purpurina, durante 9 horas seguidas? “Questão de treino”, responde Carlos. “Como eu contei, comecei criancinha. Depois fui aprendendo técnicas. Fiz Yoga e muita meditação para conseguir o equilíbrio do corpo”. Nove horas parado feito estátua, pensando na vida, pensando na sorte, agradecendo a Deus. “Tenho muita fé. O perigo é essa purpurina que eu passo no corpo. É preciso tomar muito cuidado para não pegar um câncer, conforme me alertou um, como é mesmo o nome? Ah! um dermatologista”.
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Um sonho de Natal Sabem o que o Carlos, estátua viva, vem sonhando? Fazer um Natal feliz para a criançada que passa pela Benedito de Almeida Bueno. Ele até já arrumou uma caixa de papelão e pede para as crianças depositarem uma cartinha dizendo o que gostariam de ganhar do Papai Noel. “No Natal eu vou me vestir de Papai Noel e distribuir os brinquedos. Têm umas pessoas maravilhosas aqui no pedaço, alguns comerciantes, gente-gente mesmo, que vão me ajudar. Eles prometeram comprar os presentes e nós vamos distribuir”, revela emocionado. Os olhos brilham. Sim, as estátuas também choram de amor pelo próximo.
Será que só Deus ajuda? Ninguém sabe se essa idéia da estátua viva chamada Carlos vai dar certo. Ele confia em Deus e confia na ajuda das pessoas que confiam nele. Nesse circulo de confiança ele vai pensando e fica sonhando, parado feito estátua, nove horas todos os dias. A cidade precisa ajudar esse sonhador e brigador pela vida. Ele sabe e já sentiu como é triste o abandono. Ele sabe e já sentiu a dor que as crianças desvalidas sentem. Ele sabe e já sentiu que as crianças são tão crianças quanto ele e acreditam no Papai Noel. Ah! e mais: é preciso arrumar um telefone celular para o Carlos. Você que está lendo esta história não teria um telefone velho para ele? Seria tão bom! Hoje em dia é fácil, qualquer chip resolve. E uma estátua viva e cheia de vida e de amor precisa de um telefone para receber convites, se comunicar e ganhar um dinheirinho para poder sobreviver. Tem estátua que também é gente. Tão gente quanto a estátua que o Carlos representa.
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AtĂŠ o MEC estĂĄ impressionado com a Faculdade de Atibaia
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le se emociona quando fala do seu Corinthians e dos gols do Ronaldo. Vibra e grita junto quando a torcida proclama que ali “tem um bando de loucos...”. São loucos mesmo. Ele também. Cativante loucura! Mas os olhos do professor Júlio César Ribeiro brilham mesmo quando ele fala da FAAT - Faculdades Atibaia. Aí, sim, ele enlouquece de vez. E se empolga, e conta e canta, nos mínimos
detalhes, a grande obra, a grande marca cultural que Atibaia ganhou nos últimos dez anos, e que se orgulha de ter. Nos seus 50 anos de vida, o professor Júlio César Ribeiro confessa que nunca se sentiu tão vivo, tão eufórico, tão feliz, tão realizado quanto agora, quando a escola que ele ajudou a crescer desponta num glorioso 25º lugar entre as quase 300 (299, para ser mais preciso) instituições de ensino de nível superior em todo o Estado de São Paulo. Ou em 87º lugar entre as 1.440 escolas superiores do Brasil. “Meu Deus! Não é para ficar feliz sabendo que tudo isso aconteceu em menos de dez anos?”, pergunta. Se é, professor, se é! Júlio César Ribeiro nasceu na “grande Tupã”, como ele faz questão de dizer, interior do Estado de São Paulo. Pai advogado, o dr. José Adair Ribeiro, que Tupã conhece como “Xavantes”, e a mãe professora, dona Maria Terezinha Catini Ribeiro. “Foram eles que me encaminharam para a vida acadêmica”, enaltece. Tem um irmão, também advogado. Júlio César ficou em Tupã até os 16 anos e foi para Campinas viver a vida de estudante, morando em repúblicas, cursando Ciências Econômicas na PUC. Não foi fácil.
O caminho das pedras Para segurar a barra e garantir a bóia começou a trabalhar no Banespa. E confessa que foi no banco que conseguiu o melhor contrato da sua vida: “Conheci a atibaiense Maria Ignácia de Lima Ribeiro, filha do já saudoso Tito Barbeiro, uma das figuras mais marcantes e queridas de Atibaia”, conta emocionado. A dra. Maria Ignácia tinha concluído o curso de 147
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Medicina e foi cumprir o período de residência em hospital de Campinas. “Eu atendia em um posto do banco dentro desse hospital onde ela fazia residência”, conta o professor. “Um dia ela foi abrir conta no banco e a nossa vida mudou. Abrimos uma conta-conjunta”, brinca. O casal teve três filhos, a médica Maria Flávia, o advogado Júlio César e Maria Paula, que cursa Fonoaudiologia. Depois da faculdade de Economia o professor Júlio ainda completaria seus estudos formando-se em Direito. Terminada a residência, sua esposa veio trabalhar em Atibaia e, claro, o casal mudou-se para cá. Ele ficou indo e vindo para Campinas até cansar. “Decidi ficar por aqui e fiz estágio durante dois anos com o dr. Marcos Contesini, um grande escritório de advocacia da cidade. Me estabeleci como advogado e abracei a carreira acadêmica, que estava no meu sangue, dando aulas na Faculdade de Direito de Bragança e na Faculdade de Ciências Administrativas e Contábeis de Atibaia, que um dia seria a FAAT”.
Gente que fez história Durante três anos o professor Júlio foi assessor jurídico da Câmara de Atibaia. “E isso me aproximou do universo político da cidade. A ponto de ser convidado pelo então prefeito Flávio Callegari para ser secretário de Assuntos Jurídicos do município. Acumulei o cargo de chefe de gabinete nos dois últimos anos do governo”. Ao fim, voltou às suas atividades escolares com aulas em Bragança e na faculdade de Atibaia. “A família fundadora da escola sofreu perdas de alguns de seus membros importantes e estava se criando um vácuo na instituição, que começava a definhar. Apesar de ter um grupo de profissionais de alta responsabilidade. E neste momento eu quero fazer referência aos professores João Pereira Dias, José Calazans da Silva e Sidnei Cotrin, que fizeram história na faculdade pelo seu denodo e aplicação. Eles foram muito importantes no processo. Diante da perspectiva de um desfecho não desejado, eu e mais quatro professores da escola, Marilisa 148
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Pinheiro, Hércules Brasil Vernalha, João Carlos da Silva e Manoel Ferraz buscávamos assessorar e orientar a professora Celiza Pereira Dias, única remanescente da família fundadora, com o encargo de reviver a instituição. Na época a escola oferecia dois cursos, Administração e Ciências Contábeis, já com poucos alunos. Conhecendo o nosso apreço, amor verdadeiro pela causa, a família nos ofereceu a instituição. Era um mundo de problemas. Em todas as áreas. Assumimos a instituição como um todo, e esse todo eram problemas em todas as áreas”, relata o emocionado professor.
Garra, orgulho, determinação A primeira missão do grupo foi reestruturar o corpo docente dentro das exigências do MEC - Ministério da Educação e Cultura. “E foi então que aconteceu o mais importante de tudo: os alunos abraçaram a nossa causa. Até hoje ficamos comovidos com a atitude daquelas pessoas. Atibaia precisava manter a sua escola. Foi lindo. E suado. Trabalhamos os cursos e a resposta foi tão grandiosa que nos motivou ao extremo. O empenho foi geral, do corpo docente, e dos alunos. A turma de Administração teve a nota máxima, a letra A, no antigo “provão” que o MEC realizava”, enaltece o professor. Na sequência, trabalhou-se junto ao MEC para a aprovação de novos cursos para que a escola crescesse. “A sociedade atibaiense também participou vivamente e as portas se abriram para alavancar a instituição, importantíssima para o orgulho da cidade”. Foram aprovados então o curso de Pedagogia e o Curso Normal Superior, que hoje estão integrados e já se sonhava com o curso de Direito. “Conseguimos a ajuda de importantes docentes com Mestrado, Doutorado, que tinham trânsito no MEC e partimos para a aprovação do curso de Direito. Em um segundo do provão do MEC, a FAAT repetiu a nota A. “Esse sucesso abriu as últimas portas. A escola tinha um diferencial: a pessoalidade. Ou seja, os diretores são professores. Sempre estavam, como estão, disponíveis a 149
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toda hora, para atender os alunos. Foi e é fundamental”.
O sonho possível A parceria com a instituição beneficente Nosso Lar, que cuida de crianças carentes e vítimas de abusos e maus tratos familiares, coroou o sonho, conta o professor Júlio. “Nós precisávamos de um campus e a entidade tinha um terreno com 72 mil metros quadrados no Jardim Brogotá. Ela não queria simplesmente vender, pois o dinheiro iria se escoar. Em contrapartida, nós não teríamos dinheiro para comprar o terreno e erguer as edificações. Depois de uma engenharia financeira muito bem conduzida, fizemos uma parceria que resolveu o problema da FAAT e da entidade”. A FAAT construiu 19 casas que proporcionam rendimento suficiente para a entidade se manter nos seus propósitos. ”Conseguimos financiamento no BNDES e hoje a FAAT possui um campus verdadeiramente invejável, capaz de atender com qualidade de ensino os seus diversos cursos, já incluindo Direito, Psicologia, Pedagogia e Comunicação Social, com habilitações em Jornalismo, Publicidade e Propaganda e Relações Públicas. Quem entra na FAAT de hoje realmente fica impressionado com a grandeza, a beleza e a praticidade de suas instalações. São 40 salas de aula, a maioria com data-show residente e micro-computador conectado à internet. Sistema wirelless, para que o aluno possa acompanhar as aulas com seu note-book. Laboratórios específicos para cada curso, um estúdio de rádio completo, estúdio de televisão que tem até cromaquis. “É uma das mais bem equipadas do país, de acordo com a avaliação comparativa do MEC. Se considerarmos a nossa região e todo o Vale do Paraíba, sempre de acordo com os critérios estabelecidos pelo Ministério da Educação, só perdemos para o ITA. E se falarmos na região campineira, envolvendo Piracicaba, Limeira e outras importantes cidades, a FAAT fica com o terceiro lugar”. O leitor atibaiense pode avaliar e se orgulhar do significado de tudo isso. 150
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Para se ver de perto Além desse campus no Jardim Brogotá, o Colégio FAAT, campus dois, funciona no centro e oferece ensino fundamental e médio. “Além de alguns cursos como Letras e Pós-Graduação em Artes, MBA e até de Direito, tudo com chancela do MEC. Com isso, em dez anos pulamos de 260 para 3 mil alunos”, emociona-se o professor Júlio. “Já não somos uma escola local, mas regional. 50% dos nossos alunos moram em cidades circunvizinhas, incluindo o Sul de Minas, Bragança, Perdões, Piracaia, Jarinu, Nazaré, Mairiporã e até Jundiaí. Não é uma beleza?” Beleza também o desempenho dos alunos formados pela primeira turma de Direito da FAAT nos exames da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil. “70% deles foram aprovados na primeira fase do exame. Na segunda fase, a definitiva, a aprovação foi 20% acima da média”. Objetivando oferecer ensinamentos compatíveis com as exigências do mercado de trabalho, a FAAT já disponibiliza cursos tecnológicos com graduação em nível superior. Esta história também daria um livro. O espaço acaba e chega um momento em que o repórter se vê obrigado a interromper o discurso inflamado do professor Júlio falando dessa obra grandiosa chamada FAAT. Afinal, além de escola, a FAAT já se transformou até em atração turística da cidade. Talvez seja melhor o leitor conhecê-la, ao vivo, com todas as suas cores e os seus ensinamentos. Por que não?
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Frente a frente com 97 anos de hist贸ria
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onversar com alguém que tenha 97 anos de idade corresponde, praticamente, a folhear, de uma só vez, todos os livros de uma biblioteca. Melhor ainda quando esse alguém é uma lenda viva da cidade como o advogado Jacintho Silveira. A bem da verdade e se é que isso possa fazer alguma diferença, o dr. Jacintho não tem ainda os 97 anos, só vai completar essa idade no próximo
dia 26 deste mês de fevereiro. Lúcido, risonho, sabe receber muito bem e não foge das perguntas. Difícil é o repórter sintetizar essa vida inteira de atividades em umas poucas palavras. Advogado convicto livrou muita gente da cadeia, combateu o bom combate jurídico, buscou justiça, ganhou e perdeu causas. Foi quem implantou a secção da OAB, Ordem dos Advogados do Brasil em Atibaia, da qual foi também o primeiro presidente. Aliás presidiu a OAB em dois mandatos. Nos contrapontos da vida, quem tirou tanta gente da cadeia também foi preso. “Eu estava naquele grupo de pessoas da cidade que foi muito perseguido pela revolução”. Atrevido o repórter pergunta: “O sr. era comunista?” O dr. Jacintho não hesita: “Era. Talvez dizendo melhor, eu tinha idéias que não batiam com as idéias dos ditos “revolucionários”. Se bem que houve muita injustiça e muita gente pagou pelo que não fez. Foi um episódio muito triste”, revela.
O começo foi na Light Recuando um pouco no tempo o dr. Jacintho faz questão de lembrar da época em que era um “quase” ativista político. “Quando trabalhava na Light (que antecedeu a Eletropaulo e era a grande empresa distribuidora de energia elétrica na época), eu me envolvia muito com os problemas sociais e sindicais. Não que fosse um comunista realmente, mas as injustiças me incomodavam e eu reagia mesmo”. O dr. Jacintho conta que inclusive seu emprego chegou a ficar em perigo por causa da sua atuação política. “Minha sorte é que eu tinha um chefe muito 153
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equilibrado, muito justo, que me garantiu. Ele chegou a me contar um dia que “alguém lá de cima”, lá da diretoria da empresa estava de olho em mim por causa, digamos assim, dessas minhas “atividades”. Bem ou mal eu fui tocando até que me aposentei. Isso lá pelo ano de 1967”. O dr. Jacintho não perde o seu jeitão caipira, a maneira tranqüila de narrar os fatos. “Sou caipirão mesmo, nascido no sítio. Meu pai veio de Jarinu, minha mãe veio de Perdões, os dois se encontraram aqui e casaram”. Eram lavradores, plantavam café, o ouro verde que tanto empurrou a economia brasileira.
Uma rotina imperdível Por falar em café, o dr. Jacintho não ofereceu café nem para o repórter e nem para o professor Orlando Gigliotti, seu amigo, que acompanhava a entrevista. Que ninguém veja isso como indelicadeza, ao contrário, ele insistiu várias vezes que tomássemos um trago. E olhem que era pinga da boa, a afamada pinga do Portão, muito requisitada pelos bebedores mais exigentes da cidade e região. Pois saibam todos que a pinga do Portão é uma das criações do dr. Jacintho. Talvez, uma de suas maiores paixões, por que não? “Aquele meu sítio era uma das minhas alegrias. Quando cheguei lá no bairro do Portão a propriedade estava totalmente abandonada há muito tempo. Entrei com um processo de usucapião e fui criando tudo. Fiz até o alambique, uma beleza”. A pinga e o sítio do Portão, do dr. Jacintho é ponto de referência da cidade reconhecido por todos os atibaienses. “Hoje em dia é muito difícil para mim ir lá no sítio. Quem toca a propriedade é meu neto e ele me manda a pinga”, confessa, sorrindo. Meio brincando, meio provocativo, meio falando sério, o dr. Jacintho declara para quem quiser ouvir que sua atividade diária consiste em levantar-se, tomar café, ler os jornais do dia até por volta de 10 da manhã, mais ou menos. “Quando chega essa hora, ali pelas 10 e meia, eu tomo o meu primeiro gole”. Ele aponta seus copinhos tradicionais nos quais costuma beber. São 154
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aqueles copinhos de boteco mesmo, aqueles que são próprios para se beber um “rabo-de-galo” ou uma “pinga-cortada” com vermouth ou com groselha, quem não conhece? “Depois eu dou uma espiada na TV, leio alguma coisa e aguardo o almoço. Que é precedido do segundo gole”, continua o dr. Jacintho. Sempre sorrindo ele diz que o terceiro gole acontece no meio da tarde. “O último é o aperitivo para o jantar. Aí é uma talagada boa, de copo cheio”, confessa. Não querendo acreditar no que ouvia, o repórter pergunta: “O sr. está brincando?” O dr. Jacintho faz cara marota, não confirma e nem desmente e volta a oferecer: “Não querem um trago?” Doce figura o dr. Jacintho, marcante e cativante.
Em São Paulo e nas Arcadas O advogado fez o curso primário aqui em Atibaia. “Naquele tempo, do primário para a frente, quem quisesse estudar mais tinha que ir para a Capital. Eu fui. Consegui um emprego na Light. Trabalhei lá toda a minha vida, naquele prédio famoso, ao lado do Mappin, defronte ao Teatro Municipal, junto ao Viaduto do Chá. Casei, fiz o ginásio, o colegial, prestei vestibular e realizei meu sonho ingressando na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, as famosas Arcadas. Foi um tempo muito gostoso, apesar das dificuldades”, conta o dr. Jacintho. A Light foi praticamente seu único emprego. Se aposentou em 1967, quando voltou definitivamente para Atibaia para exercer a advocacia. “Já naquele tempo Atibaia tinha bons advogados. Dei sorte, trabalhava bastante em todos os ramos do Direito: Civil, Penal. Peguei boas causas, não fiquei rico, mas ganhei o suficiente para viver”, revela. Tímido, conta que chegou a fazer alguns júris, mas não gostava muito. “O júri tem que ter encenação, aquela agitação, e eu não me dava bem”, confessa. Casado com dona Maria Morales tem dois filhos, Antonio Ivo da Silveira e Sonia Leda Silveira, do primeiro casamento com dona Carmem Sander Silveira.
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De pouco andar Como prefere ficar em casa e porque sai muito pouco, o dr. Jacintho nem percebe e nem consegue dizer se Atibaia mudou tanto assim. “Claro que tudo se modernizou, tem mais lojas, mais movimento. Mas ainda é uma cidade tranqüila”. E por que Atibaia não foi para a frente, não se desenvolveu mais, pergunta o repórter. “Porque aqui nunca teve indústria, e a indústria é que traz o progresso, né? A cidade ganhou fama de turística e vive disso”, responde. “Teria faltado vontade política?”, insiste o repórter. “Eu acho que sim. O pessoal daqui sempre foi meio arredio, não gostava de se expor muito. Talvez tenha faltado determinação e vontade de abrir a cidade para os forasteiros”. Segundo ele, o pessoal de Bragança Paulista era mais progressista, “eles sempre pensaram maior. Eu também acho que a questão política influiu bastante. Atibaia tinha um chefão político que segurava tudo”, lembra o dr. Jacintho, referindo-se ao major Juvenal Alvim. “Ele era um grande proprietário de terras e, de alguma maneira impedia a cidade de crescer. Evidentemente queria manter o seu status, o seu poder. De alguma forma isso pode ter sido ruim para a cidade”. Ao que se conta, o major era um fazendeiro muito rico, ganhou muito dinheiro com café e ia aplicando tudo em propriedades na cidade.
Botando para correr Folclore ou não, contam alguns que o Major Alvim procurava mandar em tudo. Se visse alguém na rua, fosse quem fosse, portando-se de maneira que ele não gostasse, enquadrava para valer: “Quem é você? Que é que está fazendo aqui? Ponha-se para fora”. E ai do sujeito que não obedecesse... Contam até que ele botou para correr um jornalista vindo de São Paulo e que tinha montado um jornal contestador e bem critico em Atibaia. Não durou muito ou durou o tempo que durou a paciência do Major. Quem viveu a história ou ouviu 156
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dizer, garante que o jornalista foi obrigado a sair correndo daqui. O major Alvim morreu em 1936. “Sem lideranças, sem desafios, a cidade continuou no seu velho e tradicional ritmo, enquanto Bragança despontava politicamente na região. Quando não se sonha, quando não se tem desafios, nada se conquista”. O único e importante fato novo que ocorreu na cidade foi a fábrica da CTB, que proporcionou empregos para tanta gente. “Foi muito pouco”, lastima o velho causídico. Muito pouco, na verdade, foi o tempo que se pode conviver com o dr. Jacintho nesta entrevista. Tão pouco tempo que não deu nem tempo para se tomar uma branquinha daquelas que ele inventou lá no Portão. Ele pode nem saber, mas esse momento raro que proporcionou em sua entrevista valeu como um porre de história da cidade. É por essas figuras que Atibaia está viva.
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As “Delícias do Paulo” são as verdadeiras delícias de Atibaia
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oga-se encarecidamente aos ilustres leitores que, de preferência, não leiam esta entrevista perto da hora do almoço ou do jantar. Especialmente os glutões, apaixonados por uma boa mesa. É que aqui vai se falar de comida, muita comida, ótima comida. Vai se falar das “Delícias do Paulo”, que há uns 50 anos, mais ou menos, vem dando o que falar e o que comer em Atibaia. Strogonoffs
de filé mignon, lasanhas de presunto e queijo, tortas de frango com molho branco, frangos inteiros, desossados e recheados à moda caipira e o imperdível filé mignon à parmegiana. Quer mais? Tem sobremesas inenarráveis. Os leitores mais comportados receberão a receita completa da última delícia salgada, filé à parmegiana, ditada pelo próprio Paulo. Seguremse, pois que lá vai história.
Com fome de vida Esta história de amor de Paulo Fernando Geribello Catta-Preta com Atibaia começou em 1958 quando ele era recém chegado de Itu, onde nasceu há 82 anos. Paulo veio para ser gerente da Estância Lince, “um hotel de campo que era muito bom para os padrões da época”, conforme conta. Ficou na Estância até 1963. De lá para cá começou a abrir restaurantes e não parou mais. O primeiro foi no Retiro das Fontes, ao lado do Flamboyant, onde ficou por seis meses. Depois veio para o centro da cidade, ao lado do antigo Cine Itá, onde montou o restaurante Cinelândia. “Fiquei mais ou menos um ano por ali. O padrão dos meus restaurantes era sempre o mesmo: aquela comidinha caseira, muito bem feita. Minha mulher comandava tudo com a maior competência. Aliás, sem a minha mulher eu não seria nada, ela sempre foi o meu braço direito e o meu braço esquerdo”, sorri. Paulo é casado com dona Iracema Serrano Catta-Pretta e o casal teve cinco filhos, Paulo Fernandes, Sonia Maria, Angela Maria, Elza Helena e Ana Cristina, nove netos e seis bisnetos. 159
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Com muitas idéias Apesar de mudar muitas vezes de endereço, sempre cativando e conquistando clientes, Paulo nunca mudou de ramo. “Eu sempre fiz o que sempre gostei: me relacionar com as pessoas, atrair clientes, cativar, conquistar amigos, aumentando a freguesia”. Depois do Cinelândia Paulo montou um novo restaurante, e de novo na Estância. Era o Retiro do Paulo, e ficava mais para o lado do loteamento Floresta, que estava sendo lançado na cidade. “Na verdade era um pouco mais que um restaurante, quase uma pousada. Eu tinha sete quartos e o lugar ficava lotado nos fins de semana”, conta. O padrão, tanto da comida como do atendimento continuavam os mesmos. Mas o sucesso do empreendimento levou Paulo a voltar para a Estância Lince que, nessa altura, já não era mais hotel, mas sim um clube. “Eu fui chamado pelo Tito Garini, que era presidente do Clube Recreativo. O Tito tinha feito um contrato com a Estância para proporcionar recreação aos sócios do clube. Como eu conhecia bem a Estância, ele pediu que eu montasse um restaurante. Fiquei por lá um bom tempo. Cheguei a fazer dois carnavais só para as crianças, porque os bailes para os adultos eram realizados na sede do clube. Quando o clube desfez o contrato com a Estância eu também saí”.
Comendo no Parque E onde foi parar o Paulo? No Parque Edmundo Zanoni. Sim, porque deixando a Estância, o Clube Recreativo arrendou o Parque. E também não deu certo. “Foi então que o Orlando Ferro, que era o presidente do clube na época, me convidou para assumir o lugar e abrir um restaurante. Só que eu tive que arrendar o local da prefeitura. O prefeito era o Takao Ono, que me ajudou muito e eu comecei minha vida de novo. Fui muito bem lá. Fora o restaurante eu montei um Buffet. Fiz muitos casamentos, conquistei uma clientela muito boa. Cheguei 160
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a servir mais de mil pessoas em um evento em Itatiba, por exemplo. Sempre com a ajuda da minha mulher. Fiquei no Zanoni de 1969 até 1984 quando a prefeitura pediu o espaço para fazer um Centro Cultural. Na época o prefeito era o Gilberto Sant´Anna. O tal de centro nunca saiu do papel, mas eu perdi o lugar”, conta Paulo, sem demonstrar nenhum tipo de mágoa. “O Gilberto também foi muito bom comigo. São coisas da vida...”, conforta-se. “Sempre tive um princípio básico, um lema de vida: respeitar sempre as pessoas para ter o respeito delas. Acho que é por isso que tenho os mesmos fregueses há mais de quarenta anos...”, proclama feliz. Também, não há quem resista àqueles filés à parmegiana do Paulo. Tem que ser amigo dele sim...
A avenida tem Saudade Do Parque Zanoni Paulo foi para o endereço que ficou famoso na avenida da Saudade, o “Delícias do Paulo”. “Fiquei quinze anos ali. Foi muito bom. Cheguei a servir 500 pessoas ao mesmo tempo. Também era um Buffet e eu fazia casamentos e todo tipo de eventos. Aos domingos formavam-se filas enormes. Como nem tudo são flores acabei encerrando as minhas atividades em 1999. Quando completei 77 anos de idade perdi tudo. Confesso: perdi tudo mesmo, fiquei a zero. Coisa de negócios mal feitos. Também não lamento. A vida é assim mesmo. Juntei todas as minhas forças e resolvi levantar a cabeça. Meus amigos me ajudaram muito”, lembra. Incentivado pelos filhos e netos montou outro restaurante, ainda no ano de 1999. A nova casa ficava ao lado do atual Empório Big, na mesma Avenida da Saudade. Tudo ia bem até que em 2004 aconteceu o pior: Paulo foi acometido por uma doença muito grave. E foi obrigado a passar adiante o restaurante. “Aí tive que parar mesmo. Minha filha Sonia tinha resolvido montar uma doceria ao lado do restaurante, e as irmãs, Angela e Elza resolveram dar uma força. Para não me verem triste e inativo propuseram que eu ajudasse, 161
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ainda que a doença atrapalhasse um pouco. Queriam que eu ficasse ali, que pelo menos ficasse com alguma atividade. Resolvi atender. Fiquei com elas durante quatro anos. A Sonia tocava a parte administrativa e a Angela e Elza tocavam a empresa. Botei na cabeça delas que deveriam ir além dos doces e produzir aqueles pratos que a gente sempre ofereceu nos restaurantes. Elas tinham todo o potencial, afinal, nasceram dentro de restaurantes. As duas toparam e a coisa está indo do bom para o melhor”, conta.
Comendo os congelados Mas essa idéia de entrar no ramo dos produtos congelados, só vingou depois de quatro anos da venda do antigo restaurante. Paulo insiste em dizer: “Era uma questão de ética. Só voltaria a oferecer os nossos produtos quando a pessoa que comprou o restaurante deixasse de se interessar em trabalhar com eles”. E foi assim que as “Delícias do Paulo” passaram a ser feitas e vendidas na Rua Dr. Zeferino Alves do Amaral, 177, no bairro Loanda. É lá que se pode encontrar o tradicional filé mignon à parmegiana; o strogonoff de filé mignon ou de frango; a feijoada magra; lasanha de presunto e queijo, tortas de morango, de palmito, frangos e doces incríveis que vão de tortas a mousses, de cocadas a bolos recheados com chocolate, côco, abacaxi, e bolos, e bolos, e bolos, bolachinhas, brigadeiros, tranças de erva doce, tudo o que você possa imaginar, glutão leitor, ansiosa leitora. Paulo Fernando Geribello Catta-Preta está muito feliz, obrigado. Sempre amando a sua Atibaia, sempre lembrando dos ensinamentos de seu avô, Graciano de Souza Geribello, “um grande médico. Me ensinou os princípios básicos da vida, me passou muito do que sei e sinto”, conta. Vivendo a vida que gosta, atendendo a todos os seus amigos e clientes de tantos anos, Paulo tem sempre um sorriso e uma história para contar.
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A receita do filé Ao final, depois de devidamente “prensado” pelo repórter, Paulo soltou a receita do filé mignon à parmegiana que há tantos anos encanta gregos, troianos, atibaienses e atibaianos. Pegue uma peça de filé mignon e limpe bem, tirando todas as nervuras. Mas todas as nervuras mesmo. “Você perde pelo menos uns 30% da peça”, explica Paulo. Corte os bifes no tamanho de sua escolha. Bata os ovos necessários para a quantidade de bifes que você vai fazer; passe bife por bife nesse “omelete”, e depois passe um a um na farinha de rosca. Repita a operação. A farinha de rosca tem que ser limpíssima. Frite em óleo limpo. Você já tem o bife à milanesa. E aí é que entra o segredo: o molho, bem suave (cuja receita vai a seguir). O molho deve ser colocado numa frigideira grande, ou panela, como se fosse um “colchão” para deitar os bifes já fritos à milanesa. Coloque fatias de queijo prato de qualidade, PJ, e jogue mais molho por cima. Coloque em fogo normal por alguns minutos, até que o queijo derreta totalmente.
O molho do molho Este é molho famoso que pode fazer a diferença. Como não se conhece o tamanho da sua fome, estamos propondo a receita de um “molhão”, com 10 quilos de tomate; 4 quilos de cenoura e 4 quilos de cebola. Tomate escolhido a dedo, bem maduros, cenoura e cebola também. Faça o seu molho nas devidas proporções. Corte os tomates em 4 partes e coloque na panela com água. Coloque também as cenouras, devidamente limpas e raladas. Deixe ferver. Corte as cebolas em rodelas. Coloque-as na panela com meio quilo de manteiga. Frite até dourar. Junte tudo ao molho do tomate e cenoura e bata no liquidificador. Passe por uma peneira. Não pode ficar nem um resíduo. Depois, volte a ferver, colocando o sal a gosto. Pode chamar porque qualquer um vai com muita vontade aos pratos.
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A melhor maneira para se chegar ao cĂŠu ĂŠ falar com Dona Lourdes
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É
certo que ninguém viu (ainda). Só que alguns dizem e outros têm certeza absoluta que Dona Lourdes fala com Deus. E ela deve falar sim, deve falar abertamente, pedindo bênçãos, pedindo proteção, pedindo abrigo, pedindo apoio e atenções para quem precisa.Pede sempre pelos outros, nunca por ela. Além de tanto rezar, Dona Lourdes faz a “encomenda” das pessoas que já morreram. Ela
é Ministra da Igreja Católica, com certidão e tudo, conforme os cânones sagrados, na tradição da Igreja. Dona Lourdes Rocha Scapin tem 91 anos e é conhecida e muito reconhecida pela cidade inteira. Especialmente por aquelas pessoas que costumam freqüentar as igrejas de Atibaia, os asilos, as instituições de caridade. Dona Lourdes tem sempre uma palavra amiga, uma atenção, uma prece para quem necessita. É descendente em linha direta da família Thomé Franco e foi casada com Dácio Scapin, com quem teve dois filhos, Flaubert, hoje com 70 anos, morando em Itu, e Terezinha, 68 anos, moradora em Atibaia. Dona Lourdes nasceu no bairro do Itapetinga perto da Fazenda Santana, aquela que pertencia ao Major Alvim. “Minha avó tinha uma propriedade ao lado das terras do Major”, conta. “Se bem que, perto da fazenda do Major, as terras da minha avó não passavam de uma “fazendinha”. Isso apesar de serem imensas”, lembra, sorrindo.
Era um ouro verde “Naquele tempo toda aquela área era um cafezal só, o “ouro verde”, como se dizia”. E dona Lourdes explica que seu pai era neto de Thomé Franco, que dá nome a uma das importantes ruas da cidade. “Eu sou bisneta dele”, orgulha-se. “Já a família Scapin veio da Itália. Meu sogro morou em Bragança e depois veio para cá onde nasceram seus dois filhos, o Euzécio Scapin e o Dácio, que veio a ser meu marido. Meu inesquecível marido”, reforça. “Tudo o que o sr. enxerga lá pelos lados da serra de Itapetinga era plantação de café. Agora está tudo destruído. 165
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Era uma maravilha, muito bonito, muito café”. Apesar de sua mãe ter tido dez filhos, Dona Lourdes era filha única. “Meus irmãos nasceram muito frágeis. Nasciam e morriam, apesar de todos os cuidados médicos que meus pais lhes davam”. Mesmo tendo completado apenas o curso primário da época, Dona Lourdes fala um português corretíssimo, com vocabulário amplo e generoso. É gostoso ouvi-la. As palavras saem como se ela fosse uma jovem locutora de rádio ou TV. Dona Lourdes é realmente jovem no espírito. Muito jovem. Elegantíssima. “Mamãe tinha um filho, perdia, e logo tinha outro. Famílias com prole grande eram muito comuns naquele tempo. Quando surgiam os primeiros sintomas de doença em meus pequenos irmãos, saíamos do sítio e vínhamos para a cidade. Era inútil”, lamenta-se.
Andando de trole Situadas bem ali, margeando a avenida Santana que hoje é tão movimentada, as fazendas do major ou dos antepassados de Dona Lourdes evidentemente não dispunham de energia elétrica. “Eram lampiões de querosene mesmo”, conta. “Também tínhamos uma casa na cidade, bem ali, na rua José Lucas. Vir para cá era uma viagem. Não usávamos charretes, tínhamos troles, um tipo de carruagem rústica. O trole de minha avó era grande, com quatro rodas, um assento enorme atrás, onde cabiam quatro pessoas e um outro assento menorzinho que a gente chamava de boieiro (acho que era isso, não lembro direito) onde ia o condutor. O trole era puxado por dois animais. Já o trole de papai só tinha um assento grande. Íamos eu, mamãe e ele. O trole era puxado por um só cavalo. Até hoje eu fico com uma dó danada dos animais fazendo tanta força, puxando a gente”, penaliza-se. “Mudemos de assunto. De qualquer forma, eu estava sempre ao lado de papai e mamãe, praticamente fui filha única. Só muito tempo depois nasceu o Rubens, meu irmão. Ele faleceu há uns dois anos, com 72 anos de idade. Agora estou sozinha. Sem pai, sem mãe, sem marido, sem irmão”, desconsola166
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se. Que bobagem, Dona Lourdes, a senhora nunca está sozinha, afinal, fora os filhos, tem os seus sete netos, seis bisnetos, e uma tataraneta com dez anos de idade. E os seus amigos, muitos amigos, tantos amigos, todos os amigos. Dona Lourdes é muito querida. “E que fim levou a fazenda, Dona Lourdes?”, a pergunta que não quer calar... “Ah! se papai não tivesse vendido! Imagine só, eu seria riquíssima hoje. Mas não me queixo, não é o dinheiro que traz a felicidade. Papai vendeu a fazenda e entrou para o comércio. Comprou uma loja em Nazaré Paulista. Só que ele era uma negação para o comércio. Era bom para trabalhar com a terra. Mas, nem sei porquê ele nunca mais voltou a ter terras, nem sei porquê”.
Mulheres caseiras “Quando menina o meu ideal era ser professora. Não estudei porque tinha que ajudar minha mãe, sempre grávida, sempre perdendo os filhos. Mas eu não tenho como condená-la. De qualquer forma eu sempre lia muito”, conta. “As mulheres de antigamente eram muito caseiras. Minha mãe era e eu também sou”. Dona Lourdes não gosta muito das mulheres de hoje. “Eu não falo nada. Às vezes aprecio, às vezes não, mas não gosto de certas coisas que as mulheres fazem hoje”, espeta. O que ela não aprecia: “eu não gosto da mulher autoritária, da mulher mandona. Lembro das minhas avós, que eram dóceis e doces, tratavam todos muito bem. As mulheres ficavam em casa porque gostavam de ficar, faziam pães, eram boas cozinheiras e doceiras. O mundo delas era a casa e os filhos. Hoje as mulheres deixam tudo e vão trabalhar fora. Nem todas precisam disso. Nem sei porquê saem para trabalhar e abandonam os filhos. Para falar a verdade, hoje elas nem sabem ficar com os filhos e isso é muito ruim. O pai trabalha, a mãe trabalha, e os filhos? Ficam nas mãos de empregadas, de babás. Então, tem muita coisa que acontece e assombra a gente e a culpa é a falta da mãe no lar. Eu falo mesmo. Não vou dizer que a mulher tenha que ser “escrava do marido”, como se dizia antigamente. 167
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Aliás eu acho que as mulheres nunca foram escravas de ninguém. Tem exceções, claro, mas a mulher não é escrava, ao contrário, se souber, domina através do amor”.
Vida boa E por falar nisso, Dona Lourdes lembra o ritual das famílias de antigamente: “a gente levantava cedo, tomava o café da manhã reforçado, com bolo e pão feito em casa, e depois também almoçava cedo: dez horas, dez e meia. E vinha o café do meio dia. Dona Lourdes lembra que as mulheres da sua época trabalhavam normalmente, cuidavam da casa, mas não era como agora. “Meu pai ajudava quando minha mãe fazia pão, a família convivia mais. Não posso negar, gosto de ver que a mulher de hoje tem mais liberdade, sai mais, se integra mais na sociedade. Só que já estou com 91 anos, não dá para mudar o que penso”. E acrescenta: “Tem mais: não gosto muito de mulher na política, para mim, lugar de mulher continua sendo em casa”, proclama, radical.
A igreja é sua vida Católica mais do que praticante, freqüenta a igreja e reza o terço diariamente. Não perde uma missa. Elogia o atual vigário da igreja matriz, Monsenhor Giovani. “Ele é italiano, bom moço. Dona Lourdes é Ministra da Eucaristia há 25 anos e leva comunhão para os doentes. São as exéquias, a encomendação do corpo. “Antigamente, quando a cidade era bem pequena, quem ia fazer as exéquias era o padre. Os corpos eram levados para a igreja e o padre fazia a encomendação. Agora essa encomendação é feita nos velórios. E não é sempre que os padres podem ir. As pessoas não sabem, mas os padres têm muitas ocupações e às vezes não conseguem atender a todos. Então as pessoas me chamam: você pode vir, tal hora e tal? Eu vou. Para as coisas da igreja e para os pobres, eu sempre posso; sempre fui e sempre vou. Não 168
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é agora, que estou velha, que deixarei de fazer. Eu tiro um pedacinho do dia e vou. Às vezes me chamam para encomendar um corpo e eu estou ocupada em casa, ou tenho visitas. Mas peço licença e vou. Eu tenho o meu ritual. Rezo direitinho, falo umas palavrinhas de consolo para familiares e amigos do morto. Já perdi muitos dos meus entes queridos e sei a dor que atinge alguém perde um ente querido. Rezo e venho embora. A cerimônia demora uns quinze minutos. Às vezes as pessoas choram. Eu não choro. Como diz a oração é morrendo que se nasce para a vida eterna...”, explica, concluindo que “O céu começa aqui na terra”.
Não me deixam parar Dona Lourdes já pensou em parar. “Chega um padre novo na igreja e eu digo que vou me afastar porque estou velha. O padre diz que não e vai renovando, vai renovando o meu ministério. E eu estou até agora. Sou Ministra, sou da Irmandade do Santíssimo Sacramento, sou presidente do Apostolado da Oração, adoro participar”, diz. A idade exige que ela ande amparada por uma bengala. Dona Lourdes é filosofa, poetisa, segura e firme em suas opiniões. “Tem gente que não gosta de andar de bengala, dizem que bengala é coisa de velho. O que adianta andar sem bengala quando não se consegue esconder as rugas e o resto do corpo? Já fui criança, já fui menina, já fui moça, fui senhora casada, agora sou velha. E daí? Fazer o que? Não tenho medo da morte, só tenho saudade da vida. Apesar de andar de bengala, meio me arrastando, eu gosto da vida”, proclama. “Sempre trabalhei na igreja e nunca levei nenhuma vantagem, a não ser o muito que Deus me dá. Às vezes eu penso: meu Deus o que tanto eu fiz para ter essa vida tão maravilhosa? Sim, a minha vida é maravilhosa. Sou pobre, tenho minha casinha, tenho minhas amigas, nunca estou sozinha. Sempre tem gente aqui em casa, tomando café, comendo o bolinho que eu faço. As pessoas adoram. Por sinal, quando terminar esta entrevista nós vamos tomar café com bolo”, antecipa para alegria do 169
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entrevistador e do professor Gigliotti que nos acompanha.
Reclamos Ao final, dona Lourdes se queixa do lastimável estado das calçadas ao redor de sua casa e no seu caminho para a igreja. Reclama também que a cidade não tem mais árvores. “Um dia destes encontrei com um vereador e falei: precisa plantar mais árvores. Será que ele vai me ouvir?”. Provavelmente não, Dona Lourdes. Os políticos são sempre meio surdos. Mas Deus já ouviu. Intrigado e comovido o repórter faz a última pergunta: “Durante as exéquias a sra. fala com Deus?”. Enigmática Dona Lourdes responde: “Eu rezo...”. O repórter sai da entrevista com a nítida sensação de que falou com alguém que fala com Ele. E se sentiu abençoado.
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Um visionรกrio briguento e comprometido com a sua cidade
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ó um maluco, mas muito maluco mesmo poderia acreditar que um dia iria ganhar um bom dinheiro vendendo cama para galinhas. Fazer cama para galinhas? Endoidou, diria o leitor mais ousado. Mas não, não há nada de errado nisso. Galinha “também é gente”, diria um cidadão que chegou até a ser ministro da República num dos benditos governos brasileiros. Gente ou não, as galinhas
precisam de um ninho para dormir e para botar. Se esse ninho não for higienizado dentro das melhores técnicas profiláticas pode arrasar toda a criação, provocar doenças, dizimar o plantel. E foi assim, cuidando de “camas, ou ninhos de galinhas” que José Roberto Roncoletta, conseguiu “se dar bem”, no dizer do povo. Economista formado com qualificações no segmento de transportes e telecomunicações, José Roberto é papo pra mais de metro. Impossível não ficar ouvindo suas histórias, seus conceitos, sua filosofia de vida e sua maneira ácida de falar das coisas da política municipal, estadual, nacional e até mundial. Conhecimento não lhe falta e não foi à toa que até recentemente, quando ele ainda vivia febrilmente o turbulento ambiente político da cidade, era chamado de “a língua ferina” de Atibaia. “Ferino, eu? Que é isso? Só falo o que penso e o que sinto. Minha formação não admite mentiras, traições, desvios de conduta e coisas assim. Eu falava mesmo. Falei até cansar e decidir que deveria me dedicar ao meu trabalho, que daria muito mais certo”, desabafa.
Preparando o futuro Quem é o José Roberto Roncoletta? “É um cara de 67 anos, já com um pouquinho de experiência, que apanhou muito na vida. Um cara que tem uma família fantástica, filhos maravilhosos, netos que vêm na mesma linha de formação e educação, uma esposa que agüentou até o que não merecia. Um cara que sempre procurou fazer o que achava certo. Garanto, não foi nada fácil. Sempre busquei ser um ser humano útil”, se auto-define. Neto de 173
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italianos pelo lado paterno e uma mistura de portugueses e descendentes de índio pelo lado materno, José Roberto é brasileiro puro e adora o seu chão, apesar de seu inconformismo. Nascido em Jundiaí, veio ainda criança para Atibaia. Estudou no José Alvim e na Escola de Comércio do professor João Pereira Dias, que se transformaria na FAAT. Ganhou uma bolsa de estudos e se tocou para cursar Economia no Rio de Janeiro. Formado retornou para Atibaia. “No começo trabalhei com o Rubens Rossi, um grande empreendedor que estava montando a companhia telefônica de Atibaia. Depois trabalhei com o Cido Franco e o João Valério da Silva, que eram donos da Viação Joanópolis, da Viação Mairiporã e do Rápido Luxo. Eles terminaram a sociedade, o Cido ficou com a Viação Atibaia e o João foi para Campinas tocar o Rápido Luxo. Eu fui com ele e tinha uma parte no empreendimento. Montei três ou quatro lojas de peças, fiquei por lá uns oito anos até voltar para Atibaia”. José Roberto já era casado com Denise, “uma menina muito bonita. E ela vai adorar quando souber que eu disse que ela era uma menina bonita...”, sorri, todo galanteador.
Muito trabalho Já experiente no mundo prático dos negócios, José Roberto voltou para Atibaia e juntou-se aos seus quatro irmãos na formação de várias empresas. A principal delas era um frigorífico de aves, a Frigave. Tinham também um supermercado, o Polenton e depois adquiriram uma revenda Ford. “As coisas iam muito bem até entramos no segmento da exportação de frangos. Sem estrutura, sem bases nos mercados consumidores, acabamos perdendo muito dinheiro e reduzindo nossos negócios. Cada irmão foi cuidar de alguma coisa individualmente”, relata. José Roberto montou uma fábrica de vassouras, “era o único segmento possível para o capital tão pequeno que tinha restado”, conta. Madeira por madeira, a idéia desaguou na Mater, a empresa que produz maravalha. “O que é maravalha?”, perguntará o curioso leitor. 174
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Maravalhas são aparas, ou lascas de madeira, conforme ensinam os dicionários. José Roberto começou a produzir maravalhas para fazer ninhos de galinhas. Ele explica que as galinhas poedeiras permanecem durante um ano e meio condicionadas num mesmo ambiente. “Os perigos de contaminação são enormes. Eu havia estudado o assunto durante o tempo que ficamos no frigorífico. Acertei. Hoje a Mater tem 22 anos e vai muito bem obrigado”, esclarece. A maravalha substitui com largas vantagens a serragem, o cepilho e as cascas que até então eram utilizadas pelos criadores de aves e que ofereciam enormes riscos de doenças.
Tinha uma gripe no caminho Como não há mal que nunca termine, nem bem que nunca se acabe o surgimento da tal gripe aviária, ou influenza aviária, que devastou criações de aves no Vietnã, fez com que os criadores começassem a dar muito mais valor para a chamada segurança biológica dos animais. “Foi aí que entramos com a qualidade do nosso material. Mostramos que tínhamos um produto superior e clientes exigentes como a Perdigão, para quem fornecemos o nosso produto há mais de 20 anos e a Sadia, que também está conosco há uns 15 anos. Aí é que o nosso produto fez a diferença, porque essas duas empresas sempre tiveram um controle de qualidade ímpar, e nem é preciso dizer isso. O Brasil é o maior produtor de frangos do mundo. A nossa indústria do frango é líder porque é coisa de primeiro mundo, tudo super controlado profilaticamente. O frango brasileiro caiu no gosto e é vendido no mundo inteiro. Frango é a proteína mais barata e o frango brasileiro é o mais requisitado”, explica. Hoje a Mater vende essa maravilha chamada maravalha para todo o país e até para alguns países sulamericanos. “Não vou dizer que fui salvo pela gripe, mas fui incrementado por ela. Hoje os cuidados com a profilaxia no setor são absolutos. Os bons frigoríficos recomendam o uso da maravalha mater”, orgulha-se. 175
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A necessária política O sempre político José Roberto insiste em dizer que a política é necessária em tudo. “O povo precisa aprender que a política está até no feijão que se come. Através dela se pode melhorar algumas coisas que a gente pensa que devem ser melhoradas. Quando mais jovem eu tentei. Eu era mais ácido, mais ferino. Quando vim para Atibaia em 76, depois da morte de Atílio Russomano, a Associação Comercial estava amorfa. Atílio Russomano foi o grande empresário de Atibaia. Ele tinha uma visão avançada e implantou a Associação na cidade em 1948. Ficou no comando até sua morte. Eu vinha de Campinas e estava acostumado com o agito e a movimentação intensa das entidades de classe de lá que eram realmente muito atuantes. Procurei reunir o empresariado para enfrentar de forma conjunta os problemas da cidade. Atibaia sempre foi atípica, sem identidade. Ela não é industrial, não é agrícola, não é turística, nada. Sempre entendi que era necessário definir um caminho para que ela progredisse. Cresceu desordenadamente, ou simplesmente inchou. Quando se cresce sem estrutura, se incha. Tirando a FAAT e algumas boas escolas de base, nós não temos mais nada em matéria de ensino. Deveríamos ter escolas profissionalizantes. Da mesma forma que, além da natureza pródiga não temos nada em matéria de turismo. Eu pensava que através de uma entidade representativa de classe mais ativa a gente pudesse chegar lá. Fui presidente da Associação entre os anos 78/80. Conseguimos fazer alguma coisa, inclusive estabelecemos a lei que se chama de pólo industrial. Sempre houve o tabu de que a indústria acabaria com o turismo mas eu dizia: nada acaba com aquilo que não existe. O comércio da cidade fechava ao meio dia de sábado. Só tinha uma farmácia de plantão nos fins de semana para vender comprimido contra dor de cabeça”.
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Uma sujeira nacional José Roberto voltou a ser presidente da associação no período de 1988 a 1990. “Compramos a sede para a Associação e nessa época trouxemos o PL, Partido Libertador para cá. Nem sei para que. A política de Atibaia é muito suja, muito porca, cheia de traições. E a Associação Comercial está morta de novo. A política é suja no Brasil inteiro, mas aqui é pior ainda. Nunca fui e nunca serei candidato a nada. Naquela época conseguimos colaborar com a eleição do prefeito Takao Ono, mas cansei. A única coisa que sei é que a traição política continua comendo solta”, dispara. Seu filho Alessandro Roberto já foi presidente do Rotary e sua filha, Carla Rachel, advogada de muito prestígio, adora política “Está no gens, né?”, brinca. Mesmo descrente, longe do seu antigo escritório que ficava num prédio bem defronte à Câmara Municipal e era o verdadeiro caldeirão político da cidade, não deixa de jogar suas farpas: “Deixar passar um projeto como esse Curma é o fim da picada. Parou a cidade. E o pior é que as pessoas não têm a mínima idéia de como fazer para acabar com esse terrível engano. Seria tão simples... Bastaria revogar tudo. Falta competência. É por isso que a gente não serve para essas coisas; a gente fala e mostra o que deve ser feito e ninguém tem capacidade nem para ouvir. A gente sabe que Atibaia está cheia de gente boa, capaz; só que os bons não são chamados para fazer. Todos os dias 800 atibaienses saem daqui para trabalhar e engrandecer a Capital e cidades vizinhas com seu trabalho extraordinário. Atibaia perde”. José Roberto procura não esmorecer. Por enquanto conforma-se em produzir boas camas, bons ninhos para galinhas e frangos brasileiros fazerem sucesso pelo mundo afora. Tem coisa melhor?
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Na hora do perigo procure o Durval, ele tem remĂŠdio para tudo(*)
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E
“
ra um problema simples, mas incomodava muito. Os cabelos da minha filha começaram a cair. Tufos e mais tufos de cabelos. Desesperada, procurei o sr. Durval da farmácia. Com toda aquela calma ele preparou uma pomadinha, pusemos na cabeça da minha filha e o problema acabou. Parecia um milagre...”. O depoimento é verdadeiro e não seria o único. Foram centenas de casos, uns mais graves, outros
menos, em um tempo em que o povo da cidade procurava e encontrava lenitivo para suas dores na “Farmácia do Durval”. Os mais antigos contariam tantas histórias que daria um livro. “Desde que me conheço por gente, a farmácia sempre foi a minha vida”, revela Durval Mantovaninni, que vive farmácia desde os onze anos de idade. “Comecei em Ribeirão Bonito, cidade do Blota Júnior, que foi meu colega no curso primário”, recorda-se. Nascido em Bebedouro, Durval cresceu em Ribeirão Bonito. “Com onze anos eu vendia jornais e revistas nas ruas. Um dia fui convidado para trabalhar na farmácia da cidade. Varria, limpava, lavava vidros, fazia de tudo. Curioso comecei a me interessar por sais, fórmulas de remédios e tudo aquilo. Eu tenho um não sei o quê com farmácia. Farmácia sempre foi a minha vida”.
De mudança Não demorou muito Durval foi chamado para trabalhar em São Carlos. “Naquele tempo quase todos os medicamentos eram preparados em farmácias. A manipulação de medicamentos é coisa muito séria e trabalha-se com miligramas, se errar a fórmula o doente está morto. Eu estava no meu ambiente. Lembro que os profissionais da época diziam: “Esse garoto é ponta firme, vai longe”. Nessa época surgiu a lei exigindo que os chamados “práticos em farmácia” passassem por um curso oficial para manipular medicamentos. “Aos 19 anos fui fazer o curso na Escola Álvares Penteado, em São Paulo. Não foi nada fácil. Eu só tinha o curso primário e eles exigiam até conhecimentos de uma língua estrangeira”. Durval gostava do que fazia e foi aprovado. 179
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Pedro, onde? Indicado por amigos trabalhou até chegar a Pedro de Toledo, então distrito de PariqueraAçú. Tocava uma pequena farmácia cujo dono tinha outras farmácias pela região. Era quase um povoado, lugar perdido no mapa, 160 quilômetros de distância do primeiro ponto mais desenvolvido, e só havia um médico em toda aquela extensão. “O dono ficava em Peruíbe e eu era praticamente obrigado a cuidar de toda aquela gente, às vezes tateando, às vezes consultando os livros, mas sempre rezando, afinal meu conhecimento não era tão grande assim. Deus ajudou. Quando tinha casos mais sérios levava para alguns médicos de quem fiquei amigo, em Santos e em São Vicente”. E foi numa dessas viagens que Durval acabou conhecendo alguém que seria muito importante na sua vida. “Eu costumava almoçar na Pensão Isabel, em São Vicente e dei de cara com uma moça muito bonita. Mas bonita mesmo. Ela era professora em uma cidade lá nos cafundós da zona Noroeste do Estado. Trocamos sorrisos, cartinhas de amor e terminou em casamento”. Durval casou-se com Yolanda Moura Campos Mantovaninni. É pai de Durval, Márcia, Sérgio, Carlos, Jarbas, Norma e Marco Antônio, tem 10 netos e 4 bisnetos.
Tudo por água abaixo Um dia o proprietário da farmácia lhe disse: “Durval, isto aqui só me dá prejuízo. Fique com ela e vá me pagando aos poucos”. Ele topou. “Meu amigo, caiu uma chuvarada tão grande em 1951, provocou uma enchente incrível que acabou engolindo a cidade. Minha farmácia foi literalmente por água abaixo, como se diz. Na hora eu fiquei muito triste, só que aquela enchente foi a minha salvação. Jurei que só moraria em cidades construídas em cima do morro”, conta, sorrindo. “Remediar era a única coisa que eu sabia era fazer. E aí apareceu um pernambucano arretado, o Antônio Murtinho, propondo que eu comprasse a farmácia dele em Piracaia. Por 180
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qualquer dinheiro. Não comprei, mas mudei para Piracaia. Como era amigo de um diretor do Laboratório Raul Leite, muito importante na época, fui até lá e disse que queria trabalhar. E o Raulzinho, filho do dono, decidiu me nomear como inspetor de vendas do laboratório.
Um berne fez a diferença Durval viajou pelo Estado de São Paulo inteiro, mais o Mato Grosso e o Paraná. Cansado de ficar longe da família veio para Atibaia e comprou a farmácia do Zé de Oliveira, que ficava onde hoje está o Banespa. “Aproveitei a minha vivência e tudo o que aprendi com as dificuldades que encontrei na profissão e resolvi aplicar o que sabia. Quando o caso era fácil eu resolvia, quando a coisa era mais complicada eu mandava para os médicos. Sempre fui feliz nos meus diagnósticos. Um dia o Mingote, um cidadão que morava em Caetetuba foi à farmácia levando um sobrinho. A glândula lacrimal do menino era um ânus reverso. Uma coisa horrível debaixo de um tampão que cobria metade do rosto. Um médico havia dito que aquilo era câncer e que o menino deveria ser tratado em São Paulo. Deus escreve certo por linhas tortas. Esse médico que iria atender o menino era tão famoso que foi convocado para fazer uma importante palestra na Bahia. Antes de ir, o médico recomendou ao Mingote: “Leve o menino em uma farmácia da sua confiança e diga que é só para trocar o tampão. Não pode colocar nem colírio, nem pomada, nada. É tirar o tampão e colocar outro. Felizmente eu sou caboclo do mato que conhece muita coisa que as pessoas da cidade nem desconfiam. Quando fui trocar o tampão, vi que saia uma agüinha do buraco da glândula lacrimal. Resolvi fazer um teste. Peguei um pedaço de algodão e embebi com éter, processo usado para constatar a presença de bernes no corpo. Derramei um pouco de éter no buraco e percebi que borbulhou. Concluí: tem berne aí. Eu conhecia bem isso. Alertei o tio do menino: “Mingote, isto aqui não é câncer, o menino tem é berne”. Só que eu não podia fazer nada, afinal, o menino estava sob os cuidados do tal médico que tinha ido para a Bahia. 181
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Fiz o curativo e liberei o menino”.
A fama chegou Durval faz suspense. O repórter se angustia e pergunta: “E aí?” Durval toma fôlego e conta: “Aí, o “bandido” do tio do menino correu e foi contar para o médico que eu havia dito que aquilo não era câncer, era berne. O médico respondeu: “Esse farmacêutico é uma besta; quem tem berne é ele”. O Mingote voltou na farmácia e disse: “Durvalzinho, tira esse berne pelo amor de Deus”. Respondi: tá louco! O menino está sob os cuidados de um médico. A lei é dura, eu não posso mexer no menino. O Mingote foi embora louco da vida. O rosto do menino inchava cada vez mais. Três dias depois o Mingote entrou na farmácia espumando, esbravejando, gritando: “Eu não vou mais levar o menino para São Paulo e é você quem vai tirar esse berne do menino, nem que a gente vá ao juiz, ao delegado, ao padre, ao raio que os parta; assino qualquer documento, mas tire esse berne”. Era tanto desespero que me comovi e assumi o risco. Segui os procedimentos que tinha aprendido durante toda a vida, rezei e, pimba, um berne enorme veio na ponta da pinça. Quando o Mingote viu aquilo, desmaiou e seus cento e dez quilos foram ao chão. Foi um problema para reavivá-lo. Voltei e fui cuidar do garoto. Peguei o berne, coloquei num vidro, fiz curativos durante oito dias. No nono dia o rosto do menino estava normal. Mingote fez questão de levar o berne para o médico. A partir daí eu ganhei uma certa fama”, orgulha-se.
Um tirador de bernes Importante contar que dias depois do episódio, um carro preto e lustroso parou diante da farmácia de Durval. Desceu um cidadão que dirigiu-se à primeira pessoa que viu na farmácia e perguntou: “Menino, esta é a farmácia do Durval Mantovaninni? Vá chamá-lo por favor”. O “menino” respondeu: “Eu sou o Durval Mantovaninni. E o sr. quem é?” Chocado, o cidadão 182
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disse: “Eu sou o médico que cuidava daquele menino do berne...”. Durval só fez questão de dizer: “Doutor, o seu saber é enorme nos grandes problemas da medicina. Eu sou apenas um tirador de bernes...”. Ficaram amigos. A notícia correu a cidade e a região. A partir daí, Durval não teve mais sossego e continuou fazendo o que gostava: ajudar. “Os médicos de Atibaia sempre foram fabulosos e muito compreensivos comigo. Eles viam que eu sempre tinha muito cuidado e não fazia besteiras. Uma criança doente é a coisa mais violenta que existe. Criança tem todo o direito de ser cuidada; por mim uma criança nunca ficaria doente”.
Bendita enchente Quem conhece confirma: nunca saiu uma criança da farmácia do Durval sem o remédio que precisava. “Quem podia pagava; quem não podia recebia. Se eu não tivesse soluções, encaminhava para os médicos. Minha vida sempre foi assim. Daí é que veio essa riqueza de amigos que tenho até hoje”. Durval continuou com seus “milagres” e também ficou conhecido como o “Tambaú de Atibaia”, apelido que lhe foi dado pelo amigo Massoni graças aos “milagres” que fez e que a cidade inteira conta. Bem que Durval gostaria de continuar na sua lida. “Com 90 anos já não dá mais, filho. Em farmácia não se pode errar. A responsabilidade é muito grande. Já completei meu ciclo, me sinto feliz por ter realizado e ajudado em tudo o que pude”. E o milagreiro Durval sorri como uma criança agradecendo a Deus pela enchente que um dia levou sua farmácia de Pedro de Toledo por água a baixo. “Se não fosse por ela eu não teria vindo para esta terra maravilhosa chamada Atibaia”. Sorte nossa.
(*) Para tristeza da cidade, Durval Mantovanini faleceu poucos meses depois de ter concedido esta entrevista.
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Ela ĂŠ pentacampeĂŁ do samba na avenida. Por isso, quando a Rejane passar palmas para ela
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ulher sempre deu samba, nem precisa ser poeta para cantar isso. E quando a mulher resolve fazer o samba rolar solto nos carnavais da avenida o samba fica maior. Se antes elas eram destaques de fantasia e de gingado, agora se destacam pela criatividade, organização e administração das escolas de samba. As escolas que venceram os carnavais
do Rio e de São Paulo neste ano são dirigidas mulheres. Grande novidade... A G.R.C.E.S. Independência, escola pentacampeã dos carnavais de Atibaia, dirigida por uma mulher chamada Rejane, é campeã há 5 anos. Rejane Pereira de Souza, a mãe do Walquir e do Murilo; avó do Leonardo e do Luigi. Há cinco anos seguidos ela recebe os troféus de sua escola. E quem é essa Rejane? “É uma pessoa alegre, sempre de bem com o mundo, sempre vencendo os buracos que a vida traz. Sou muito feliz e isso é o que importa. Briguenta e encrenqueira foi assim que tapei os buracos surgidos na estrada da minha vida”. Já se viu que Rejane não é de comer enrolado.
Das mulheres de hoje Fortaleza, ela começa falando da situação da mulher no mundo de hoje. “São muito mais confiantes. Lembro da minha mãe, coitada, sempre oprimida. Era como eu, briguenta, lutadora. Só que se fechou e nunca foi feliz. Queria ser e nunca pode. Era muito dada, muito alegre, queria estudar, participar, mas não lutou, ficou vivendo o seu mundinho, aquela vidinha. Era maravilhosa, ensinou, deixou exemplos, me alertou. Passou toda a força que tinha embutida. Devo tudo a ela. A mulher de hoje é mais presente. Somos o maior contingente eleitoral de Atibaia. As mulheres já são maioria nos bancos das faculdades e se destacam na política em todo o mundo. A primeira ministra da Alemanha é mulher; a presidente da Argentina é mulher; a presidente do Chile é mulher. Falta o Brasil e falta Atibaia ser comandados por 185
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mulheres. Não, não sou candidata. Nem pensar. A política que eu sonho, a política que imagino não existe. Eu quero a política correta, a política ética, a política comprometida com os interesses do povo, sem falcatruas, sem desvios, sem aproveitamentos pessoais. A gente sonha com líderes assim, quando chegam lá, decepcionam. Eu não quero fazer parte disso”. Rejane não têm papas na língua.
Da falta de luta Para a atibaiense da gema, nascida na rua Benedito de Almeida Bueno, o povo brasileiro é muito acomodado. “Acho que as escolas carecem da matéria chamada Cidadania, que ensina direitos e deveres; quem, onde, como e porquê. Antes as escolas tinham aulas de Educação Moral e Cívica que passavam muitos ensinamentos. Tiraram. Faz falta isso”. Rejane fez o antigo Curso Normal, o Magistério. Formada professora, fez especialização em pré-escola e chegou a ser aprovada no vestibular para Pedagogia. “Não gostei e não segui o curso. Adoro estudar. Às vezes penso em voltar, talvez tente fazer o curso de Direito na nossa FAAT para trabalhar pelas mulheres”. O primeiro emprego da lutadora Rejane foi como pesquisadora. “As Casas Pernambucanas estavam lançando o seu crediário na cidade e eu fui para a rua fazer fichas. Enquanto as colegas faziam 12 fichas, eu fazia 20; 75% delas eram aprovadas. Fui chamada para trabalhar como vendedora interna. Fiquei três anos nas Pernambucanas e fui para a Casa Salles, a convite do sr. Nerino. Doze anos depois montei uma lojinha, que modéstia à parte, ficou importante e famosa. As coisas correram bem, as coisas correram mal, as coisas ocorreram e chegaram até hoje. E hoje sou uma mulher aposentada. Tenho uma pequena loja e continuo atendendo às minhas clientes, amigas de sempre. Graças a Deus, são muitas”.
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Rezando para Deus, cantando para o diabo O samba entrou na sua vida quando era criança. “Minha mãe não gostava do carnaval e mandava a gente para a igreja. Nós íamos fazer pic-nic com as freiras, aquela coisa de “retiro de carnaval”. Só que quando a gente voltava do pic-nic, íamos para a Matriz, que fica bem ao lado do Grêmio. Ao invés de ir pra casa eu ia direto para a matinée do Grêmio e ficava dançando até acabar o bailinho. Na minha cabeça, como já tinha rezado para Deus, não tinha problema nenhum cantar para o diabo”, e Rejane sorri, sem conter sua alegria. O carnaval estava no seu sangue. “Menino, o carnaval de Atibaia era muito gostoso. Dá uma saudade danada do corso que saía pela cidade. Uma porção de carros desfilando, todo mundo cantando, brincando, jogando confetes e serpentinas nas ruas do centro”. Já maiorzinha, aproximou-se da Botafogo, escola de samba tradicional, que ficava perto de sua casa e começou a sair com a escola. Quando começaram os blocos na cidade, se enturmou com o pessoal da Independência, um bloco que nascia, montado pelo famoso Quito, grande amante do carnaval. “Eu saia no bloco Independência e na Escola de Samba Botafogo. Ia para a avenida nas quatro noites de carnaval”.
Atibaia na avenida O carnaval de rua cresceu bastante na década de 80. “Surgiu o bloco do Vem-Vem, formado pelo pessoal da elite. Era tudo muito bonito, com plumas e paetês. Trouxeram até a Eliana de Lima para cantar. Os desfiles eram na rua Thomé Franco. O Vem-Vem, cheio de luxo; os blocos aqui de cima iam mais na garra e na vontade. Teve um carnaval que choveu tudo o que podia quando nós saímos. As fantasias grudadas no corpo, um sofrimento. Aí, na vez da Vem-Vem desfilar, estava a maior lua. Que bronca!”. Um dia Rejane teve que optar e ficou 187
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só na Independência, já que o bloco tinha se transformado em escola de samba. Passou a dedicar boa parte do seu tempo ao samba. Assumia tanto que acabou na diretoria da escola. Chegou até à presidência, escolhida entre 15 candidatos. Assumiu em 2005 e de lá para cá sua Independência foi campeã mais cinco vezes. “Somos deca-campeões. O primeiro título veio quando o Cristiano era presidente. Depois ganhou com o Cafú e mais três títulos com o Márcio Romantini”. Pelo regulamento, as escolas têm que colocar 600 componentes na avenida. “Só que é muito difícil conseguir isso. Com as quatro escolas no grupo especial da cidade, seriam 2.400 sambistas na avenida, quase impossível isso. No ano passado nós conseguimos levar 600 pessoas, mas foi um sufoco”.
Não é fácil, companheiro Se, como dizem alguns, quem vê cara não vê coração, quem vê uma escola de samba se apresentando no asfalto da avenida não sabe o que tem por trás de tudo aquilo. Não sabe o quanto dói conseguir dinheiro para tanto luxo, tanta fantasia, tanta bateria, tanta ilusão. “No ano passado nós gastamos mais de quarenta mil reais”. E de onde vem todo esse dinheiro? “Bem, a prefeitura entra com 30 mil reais para cada escola, o resto a gente tem que ir buscar...”. O pior é que os 30 mil demoram a chegar. Neste ano, por exemplo, a verba só foi liberada um mês antes do carnaval. “E as nossas despesas começam no primeiro dia depois do último carnaval”. No reinado de Momo, quando termina uma festa começa a outra... “A gente já sai da avenida pensando no próximo carnaval. Os sonhos recomeçam na criação do enredo, não tem parada, é uma febre atrás da outra”. Tirando o pouco tempo que tem para trabalhar e ganhar a vida, Rejane vive carnaval o ano inteiro. “Delicioso sufoco. Carnaval é um grande espetáculo, um teatro de rua, verdadeira ópera. Tem a história, tem a música, tem o cenário, tem a coreografia, tem os carros alegóricos, tem as fantasias, a bateria, o samba... Deixe eu 188
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parar, se não você enlouquece...”.
Uma casa para as escolas Na verdade as escolas de samba se transformaram em uma fábrica, cujo produto final é a alegria para quem está na avenida. “O sambista verdadeiro é um artista. Imagine o custo de tudo isso. Tem a concepção dos carros, das fantasias, a criação das peças, o desenvolvimento dessas peças. A gente precisa de artistas, de artesãos, de mão de obra especializada, de costureiras e até de mecânicos. Um ano inteiro para se fazer tudo isso é pouco”. É certo que existe um processo de reaproveitamento de peças ou de artefatos. Exemplo: o carro alegórico de um ano é adaptado para o ano seguinte. As estruturas das fantasias podem ser reestilizadas e assim por diante. “Mas, aí é que entra um problema grave: nem a Independência, nem as outras escolas possuem locais disponíveis, não só para ensaiar, como também para guardar esse material todo. Não se pode jogar sonhos no lixo. Tem que reciclar sempre, se não for assim, nem todo o dinheiro do mundo paga”. Ela conta que a prefeitura até já cedeu um local para a escola. “Só que os vizinhos não gostaram. E eles têm razão? Barulho de carnaval só é bom na avenida. Eu não gostaria. Só que precisamos disso. Ainda vamos descobrir uma maneira de se resolver”.
É assim que eu quero Cercada de problemas por todos os lados, a sambista ou “louquista-Rejane”, ainda tem que ganhar dinheiro para equilibrar as finanças da escola. Como? “A gente arrecada fazendo feijoadas, montando barracas nas festas da cidade, vendendo o nosso exclusivo “choconhaque”, já experimentou?” Não, o repórter nunca experimentou o choconhaque”. Nem nunca havia pensado o quanto dói fazer carnaval de rua. O quanto essa gente tem de herói. A escola 189
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Independência deveria se chamar: “Rejane e seu bando de loucos”, como é o Corinthians, seu time de coração. “E não somos loucos mesmo?” Diante de tudo isso, atenda o pedido contido na canção tão famosa: “Por isso, quando eu passar, bata palmas pra mim”. Sem falar no último recado de Rejane: “Quero ser cremada quando morrer. E joguem minhas cinzas na avenida”.
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Emp贸rio Cafona, um lugar de muita classe
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uem procurar no dicionário vai descobrir que cafona é pessoa ou coisa que tem aparência ou pretensão de elegância e finura. Que cafona é ridículo e de mau gosto. Além de tudo, é uma coisa brega. Como o dicionário não explica que é brega, me sinto obrigado a dizer que o velho “pai dos burros” está muito enganado. Na verdade, aqui, em Atibaia, Cafona é um dos melhores lugares
para se encontrar e comprar maravilhosos petiscos, imperdíveis pedaços de bacalhau, queijos excelentes, lingüiças de primeira, divina carne seca, imperdíveis nacos de bacon, salgadinhos de provocar água na boca, docinhos, azeites, tira-gostos e tudo aquilo que os bons gourmets chamam de “o melhor da vida”. Por enquanto chega. Quem está na hora do almoço e não quer engordar além da conta, não pode ficar falando impunemente das iguarias do Empório Cafona que fica em pleno Mercadão. Simplificando revelo o que todo mundo na cidade já está cansado de saber: Cafona, apesar do nome, é um dos boxes mais gostosos do Mercado Municipal da cidade. O sempre alegre e sorridente Marco Antônio Soldeira Cesar, o Marquinhos, dono do Armazem Cafona, ele mesmo confundido como o próprio cafona, explica que não sabe onde estava com a cabeça quando deu esse nome para a sua loja. “Faz tanto tempo... Foi por causa de uma novela da Globo na década de 70. Se não me engano o personagem principal tinha um supermercado que se chamava Cafona. Aproveitei o nome que estava na onda e batizei o box. O nome pegou tanto que, de lá para cá, eu mesmo virei cafona, sou o Marquinhos Cafona...”, revela entre risos.
Um homem de mercado Mesmo antes de ser Cafona, Marquinhos vendia frangos no Mercadão. Ele trabalhava com Manoel Cavalheiro que criava galinhas em suas granjas e tinha dois boxes especializados em aves. “Em um deles a gente vendia frangos vivos, no outro eram aves já abatidas e limpas. É bom explicar que naquela época era tudo diferente. A gente tanto vendia frango vivo no Mercado 193
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como abatia e limpava as aves para vender, inteiras ou em pedaços, tudo à vista do freguês. Também entregávamos frangos nos hotéis e restaurantes da cidade. Um dia o Manoel Cavalheiro sugeriu que eu abrisse o meu próprio negócio e aí nasceu o box Cafona”, explica. Marquinhos conta que o prédio do Mercadão, do jeito que a gente conhece, já tem mais de 50 anos desde a última reforma que sofreu. “Eu era bem garoto ainda, mas consigo me lembrar um pouquinho. O prédio antigo era mais aberto, as pessoas chegavam a cavalo ou em suas charretes. Tinha até bebedouro para os animais”. Era outra Atibaia, garante Marquinhos. Segundo suas lembranças, só as ruas Thomé Franco e José Alvim tinham calçamento, o resto era terra pura. “No entanto, todas as ruas tinham árvores, daqui até lá em embaixo, hoje só a avenida São João é arborizada. Eu morei 26 anos pertinho daqui, na rua João Pires, onde é a Casa Giraldi. Meu pai Antônio, que todos conheciam como “Toninho”, era proprietário de todo aquele pedaço”, lembra ele.
Olha o trem Todo orgulhoso, Marquinhos não esquece e faz questão de contar para todo mundo que um dia saiu de Atibaia e foi para Santos, para a praia. E foi de trem, imaginem só! “Peguei o trem aqui e fui até Campo Limpo onde fiz baldeação para Jundiaí. De Jundiaí fui para São Paulo e, de São Paulo fui para Santos. Eu jogava vôlei e participava dos Jogos Abertos do Interior. Não ganhei nada, mas me diverti um bocado. Naquela época era a maior distinção a gente viajar de trem, participar dos jogos”, lembra, revelando que sair de Atibaia naquele tempo era o maior sufoco, a Fernão Dias ainda não tinha asfalto. Num dos poucos momentos de tristeza Marquinhos se queixa do desaparecimento de prédios marcantes da cidade. “Acabaram com os casarões tradicionais, acabaram com o Hotel Municipal, derrubaram as tantas histórias que se tinha para contar. Ninguém pensou no futuro, ninguém criou leis de preservação dessas relíquias históricas. Igual ao Brasil, que já não tem muita história, Atibaia também ficou sem memória...”, desabafa. 194
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Ainda mergulhado em lembranças Cafona revela que seu pai, Antônio Adalberto da Silva Cesar era caminhoneiro e transportava tecidos da CTB para a Capital. “Era um caminhão movido a gasogênio (*), veja só. Andava se arrastando”, revela.
Da fábrica que marcou a cidade A fábrica, ah! a tão abandonada fábrica que marcou a vida de Atibaia permanece indelével na lembrança de Marquinhos. “Minha mãe trabalhou lá, minhas tias trabalharam lá. Tinha duas fábricas, uma aqui em cima outra lá em baixo. Seria um exagero dizer isso, mas todo mundo trabalhou na fábrica da CTB. Meu tio, José Luiz Passador era gerente e meu avô e meu pai trabalhavam com o tal caminhão que eu falei, transportando os produtos da fábrica. Até que ela fechou. Dói muito a gente ver a fábrica no estado em que está. Aquilo era a história da cidade, dava emprego para todo mundo”, recorda-se Marquinhos. E por falar em recordações, são poucas as pessoas das antigas que ainda trabalham no Mercadão. “Tem o Adalberto, tem o sr. Kaim, o sr. Renato, o sr. Maurício, do bar e eu. Só. O movimento no Mercadão era muito grande e os valores dos boxes também eram bem maiores, claro”, conta. Pai de dois filhos, Simone, já casada, hoje morando em Londres e o Felipe ainda solteiro, Marquinhos conta que os produtos que mais vende em seu armazém são o bacalhau, azeitonas e queijos. “Meus clientes são tão selecionados e fiéis que já deixaram de ser clientes são amigos. Tem gente que compra aqui desde que abri o Cafona”, diz Marquinhos que busca prestigiar os acontecimentos sociais da cidade. “Sou festeiro. Adoro carnaval e costumava sair todos os anos nas escolas ou nos blocos. Fui até da diretoria do Botafogo. Minha mãe também é muito festeira, ela ia comigo. Samba que é uma beleza. Pode ser que a gente saia de novo, este ano”, orgulha-se.
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No samba e no trabalho A simpática sambista, Dona Catharina, mãe de Marquinhos, é palmeirense doente trabalhou muito no Cafona ajudando o filho. O próprio pai de Marquinhos também trabalhou no Cafona quando deixou as estradas. Fora toda a trabalheira no Mercado, dona Catarina fazia bolos para festas, casamentos. Agora só cuida dos netos. “Se bem que, quando eu chamo, ela ainda vem dar uma força”, conta Marquinhos. Saudoso de um passado recente, Marquinhos revela que o que falta hoje em Atibaia é o sossego de antigamente. “A gente largava porta escancarada, largava o carro aberto sem se preocupar. Não existia nem esse negócio de seguro. Todo mundo se conhecia, havia mais confiança e solidariedade. Hoje tem que pagar seguro para tudo. E tudo tem que ser filmado. Tem câmara em tudo quanto é canto do Mercado”, revela. Pelo sim, pelo não, Marquinhos procura não esquentar a cabeça com nada, “Minha cabeça é tão gelada que, como dizem meus amigos, refresca até pingüim. Na verdade eu acho que a vida já é difícil com os problemas naturais, por isso, a grande vingança é viver feliz”, ensina. De vez em quando ele viaja, some, descansa, deixa tudo nas mãos de Silvana, sua auxiliar de muita confiança que o acompanha há anos. Entre uma história e outra Marquinhos, fala dos amigos, de todos os tios, que adora e oferece um pedaço de queijo, uma azeitona, atrações do Cafona. É impossível resistir. Frios, doces, salgados deliciosos, bacalhau e muita história para contar. É por isso que o Armazém Cafona faz tanto sucesso quanto fez a novela da televisão.
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Professor de quase dez matérias, pianista, regente de corais e bandas, filósofo, e não é que o professor Olmiro já foi Frei Franciscano?
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stamos diante de um sábio. Socráticamente sábio porque faz questão de confessar abertamente: “sei que não sei e sempre procuro aprender”. Ele já foi Frei Franciscano e é professor de Filosofia, Filosofia do Direito, Ética, Português e Linguagem Jurídica na FAAT, Faculdade de Atibaia, onde trabalha a estruturação do pensamento jurídico dos textos jurídicos pensados academicamente e
com interesse na área forense. Fora os cursos do seminário é formado em Direito, em Filosofia e fez Mestrado na PUC de São Paulo. Mas também é musico, maestro, regente, curioso, instigante e, por quê não dizer, brilhante. Trabalhou 13 anos na USF, Universidade São Francisco, desempenhando várias funções, até chegar ao posto de chefe de gabinete do reitor. Sua história é longa. Se deixar ocupa todo o espaço deste jornal. Estamos falando de Olmiro Ferreira da Silva, um gaúcho, nascido em Soledade, 56 anos de idade, casado com a atibaiense Maura de Lima Silva e Silva. Eles são “quase” pais adotivos de três crianças, com 2, 3, e 7 anos. O detalhe do “quase” será revelado mais tarde, os leitores não perdem por esperar.
A filosofia do Direito Dizer que Olmiro já fez de tudo na vida em matéria de educação é dizer pouco. Durante muitos anos morando em Atibaia ele exercia suas funções na USF, em Bragança até que a Reitoria da instituição foi deslocada para Campinas. O casal se viu obrigado a mudar-se para Jaguariúna, cidade próxima da antiga “capital das andorinhas”. Quando se desligou da USF, voltou para Atibaia e Olmiro e sua mulher, que também é advogada, se instalaram em um escritório de advocacia que atendia em todas as áreas do Direito, menos o Direito Penal. “Com o tempo nós nos concentramos em atender planos de Saúde e previdência hospitalar, só na área preventiva e judicial. Nós atendíamos as empresas que trabalham com planos de saúde e direito hospitalar e continuamos até hoje nesse segmento. Há dez anos mantemos clientes 199
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aqui, na Capital, Campinas, Pirassununga e em várias cidades ao longo da Via Anhanguera”, conta, alertando que muito proximamente o escritório poderá atender ao público em geral com foco nesse tipo de problema. Olmiro ingressou na FAAT no momento em que a Faculdade preparava a sua primeira turma do curso de Direito. “Eu tive o prazer de dar aulas no segundo semestre da primeira turma da instituição. Turma que colou grau no ano passado. Comecei a lecionar Filosofia e Filosofia do Direito”, orgulha-se.
Você sabia disso? Filosofia do Direito? Calma, como bom professor Olmiro ensina o que é a Filosofia do Direito. “A matéria Filosofia do Direito tem como objetivo oferecer uma visão geral dos filósofos mais importantes da humanidade, em especial aqueles que ofereceram alguma contribuição para o Direito. E a Filosofia do Direito discute as questões filosóficas que estão na base do Direito que ajudam nas repostas do Direito na sua prática acadêmica e forense”, diz. Em seu entendimento e em sua percepção, a FAAT já é uma Faculdade regional, na medida em que atende não só aos alunos da cidade como de toda a região, incluindo Campinas e até o Sul de Minas Gerais. “À medida que os anos passam, os próprios alunos se incumbem de divulgar o nome e o trabalho da escola e a sua qualidade”, enaltece. Olmiro fica mais orgulhoso ainda quando menciona o desempenho dos primeiros alunos a serem formados pela instituição. “Ainda que seja discutível a avaliação do desempenho profissional só pelo exame da OAB, já conseguimos um índice muito bom, uma vez que 36% dos alunos que prestaram o exame foram aprovados. Fique claro que nem todos prestaram o exame. Portanto, olhando-se só por esse aspecto, o desempenho está muito bom. Pode-se dizer que estamos apenas 5% abaixo dos melhores cursos do país. Em se tratando da nossa primeira turma, esse índice é espetacular. A instituição e nós professores estamos eufóricos”, conta. 200
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Dos analfabetos funcionais E por falar em qualidade de ensino, o professor Olmiro se queixa da péssima qualidade do ensino fundamental no país. “Tirando algumas escolas de excelência, boa parte dos alunos vêm para as faculdades quase como analfabetos funcionais. Eles sabem ler as palavras (a maioria delas, nem todas...), mas têm dificuldades em encontrar o sentido dessas palavras”, explica. Ele afirma que as boas faculdades se vêem na obrigação de resgatar esse conhecimento básico. “Os alunos têm que entender o que estão lendo e os fundamentos do que foi proposto pela escrita, se não, não adianta nada e não vão aprender”, confirma. “Esse é o maior problema que os professores do ensino superior enfrentam hoje em dia”, alerta. “É uma dificuldade gritante, que incomoda a todos”. Olmiro já trabalha como professor desde adolescente. “Fui professor de Música, Religião, Português, Inglês. Nas cidades do interior a gente é obrigado a fazer de tudo”, conta. Apertando o entrevistado, o repórter consegue obter revelações quase ocultas de Olmiro. Estamos diante de um Frei. Sim, um Frei Franciscano. Olmiro saiu cedo de casa e foi para um seminário, em Santa Catarina. Lá finalizou o curso do antigo “ginásio” e o não menos antigo chamado “curso Clássico”. “Já selecionado, fui para o noviciado na Ordem Franciscana, segui a Filosofia e a Teologia e fui ordenado”, conta. Talvez nem todos os seus alunos saibam disso. “Eu não gosto de ficar falando essas particularidades de minha vida em classe, justamente para não perder o tempo da aula”, conta, tímido.
Dos “Canarinhos de Petrópolis” E aqui entra outra revelação quase inédita: Olmiro foi professor de música e regente de coros, bandas e orquestras. “Minha primeira atuação profissional foi com música erudita. Até hoje toco um resto de repertório ao piano”, conta. “Quando terminei o antigo Conservatório 201
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Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, dominava um repertório semiprofissional. Depois ingressei na Faculdade de Música, no largo do Passeio, ainda no Rio, e fiz curso de teclado e órgão antigo. Foi quando deixei a Ordem Franciscana. Mas já era professor e regente. Eu regia os “Canarinhos de Petrópolis”, um coral respeitado em todo o país, além de ter se destacado mundialmente. Fui vice-diretor do coral e passei um longo tempo por lá, regendo e ensinando música. Foi um tempo muito feliz da minha vida”, orgulha-se. Para que se tenha idéia, o “Canarinhos de Petrópolis” encantou toda uma geração de ouvintes e telespectadores, pois apresentava-se em grandes concertos por todo o país e chegaram a ser apresentados, várias vezes como grande atração no programa “Fantástico” da Rede Globo.
Aprendendo para ensinar Por motivos absolutamente pessoais, Olmiro deixou a Ordem Franciscana em 1987. “O Frade faz três votos; obediência, pobreza e castidade. Apesar de não ser uma pessoa rebelde, e eu me julgo até cordato demais, senti que não tinha condições de me submeter a algumas determinações superiores que contrariavam frontalmente os meus sentimentos. Sempre por determinações superiores, eu era obrigado a me submeter a várias transferências, seja de função ou de locais de trabalho, que me pareciam inadequadas. Para não me indispor, depois de ter dedicado toda a minha vida a esse ideal tão nobre dos franciscanos, optei por sair”, conta. “Como sempre fui apaixonado e obcecado pelas questões educacionais, resolvi continuar a minha vida como educador fora do âmbito religioso”, diz Olmiro. E foi assim que, convidado por um amigo e ex-colega frade, com quem trabalhou durante muito tempo na Ordem, acabou ingressando na Universidade São Francisco, em Bragança Paulista. Aproveitou a oportunidade para se reprofissionalizar, fazendo o curso de Direito.
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Ele só sabe que não sabe Será que Olmiro se considera um filósofo? “Não, tecnicamente não. Eu sou professor de Filosofia, para iniciantes de Filosofia. Mas não tenho o traquejo. Até gostaria, se tivesse mais tempo para me dedicar”, disfarça. E o repórter instiga: “O que é a Filosofia?” Olmiro responde: “Pensando a Filosofia ao jeito de Sócrates, filósofo é aquele que pensa criticamente a vida, a si mesmo e a realidade; tem consciência das causas e efeitos dessa realidade e do sentido da vida, os seus porquês. Então, pensando aos moldes de Sócrates eu posso dizer que sou sim, talvez um filósofo menor, também por saber que sei que não sei. Ter consciência de que o que a gente sabe é muito pouco e o que a gente não sabe é muito, muito superior, já dá uma dimensão de crítica para poder afirmar, com muito cuidado, o que você tem que afirmar. E saber dizer o porquê daquilo que se afirma. Essas qualidades essenciais que, parece, estão presentes em todas as minhas atitudes, e no jeito de pensar as coisas, me levam a dizer que até posso ser considerado filósofo. O próprio Sócrates e os grandes filósofos já entendiam que a Filosofia é a coisa mais natural do ser humano. É o pensamento que leva a se interessar pela razão de cada coisa. Quem pensa: por que eu existo? quem pensa o sentido das coisas, quem pensa as causas, as últimas causas e não qualquer causa, está filosofando”, ensina. “Eu vivo sempre atrás disso”, explica.
Para adotar um filho, adotou três filhos Filosofias à parte, e antes que o espaço termine, aqui começa a história dos filhos “quase” adotados por Olmiro e Maura. Casados há doze anos, não conseguiram gerar filhos naturais e concluíram que deveriam adotar uma criança. Inscreveram-se na fila de adoções e aguardaram. Quando surgiu uma oportunidade, souberam que a criança que poderiam adotar, tinha mais dois irmãozinhos. E eram muito ligados. Condoídos com a circunstância, não 203
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hesitaram nem um minuto. Apaixonados pelas crianças, disseram: “Vão os três”. E levaram os irmãos. O problema do “quase”, é que, até o momento, a situação jurídica das três crianças ainda não está devidamente resolvida. Envolve interesses da mãe biológica, dos pais biológicos das crianças, questões que ainda carecem de solução. Maura e Olmiro não têm dúvidas de que tudo vai se resolver da melhor maneira e as três crianças vão vivendo no melhor dos mundos. Essa expressão: “filhos quase adotados”, certamente vai se converter em “filhos legitimamente adotados”. E a família, que já se viu obrigada a construir quartos e acomodações ideais, para três crianças, continuará indo muito bem, obrigado. Com um grande futuro pela frente. Afinal, poucos tem o privilégio de crescer e aprender, no dia-a-dia, as lições de um advogado, professor de quase dez disciplinas, músico, regente, filósofo e grande mestre como é Olmiro Ferreira da Silva.
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A saga de um Benedito que saiu de Minas Gerais e veio ser feliz em Atibaia
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menino Benedito conheceu cedo o gosto salgado do suor que escorre no rosto dos lutadores. Filho de colonos descendentes de portugueses, família simples, logo entrou na lida da roça numa fazenda de café em Silvianópolis, nas Minas Gerais. O cultivo do café lhes dava sobrevivência. Foi lá que nasceu, cresceu, viveu, casou com Maria de Lurdes, companhei-
ra de toda sua vida e mãe de seus 14 filhos, 7 homens e sete mulheres. Visionário e preocupado com o futuro, Benedito Xavier de Toledo mudou-se para Ouro Fino, cidade que ficou famosa na canção “Menino da Porteira”. Foi quando enxergou uma boa oportunidade para começar vida nova. Percebeu seu potencial para os negócios rurais e tornou-se um exímio negociante. Benedito arrendou 20 alqueires de terra e começou suas atividades agrícolas. Criou gado, de corte e leiteiro, criou porcos, produziu queijo, manteiga, quase tudo o que precisava para o sustento da família. E ia tão bem que acabou provocando o ciúme do dono das terras que já não escondia seu incômodo diante de tamanha habilidade do ex-colono. Esperto, Benedito percebeu e tratou de ir atrás de um novo lugar para viver, novas terras para arrendar antes que o pior acontecesse.
Atibaia estava no caminho Procura dali, procura daqui, ficou sabendo de um lugar onde poderia começar uma nova empreitada. Ficava em outra cidade, outro estado, no interior de São Paulo. Foi ver e deu com uma fazenda já formada, mas que precisava ser reerguida. A pessoa que lhe passara a dica não só era um grande amigo, como também estava entregando as terras por não ter condições de mantê-la. Com tanta referência positiva Benedito não hesitou e tratou de fechar negócio. Feliz, correu para dar a notícia à família: “Vamos pra uma cidade chamada Atibaia. Arrendei uma fazenda que com 60 alqueires de várzea. Sei que esse pedaço não é bom, pois 207
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lugar de várzea tem vegetação que alaga durante o período das chuvas. Mas também tem 60 alqueires de pasto. Um compadre meu tá largando e eu vou pegar. Dá para criar de tudo, dá para plantar o que quiser”, comunicou todo eufórico, à esposa Maria. Quase sem acreditar, ela olhou assustada para os filhos. A mudança estava certa e Benedito, a esposa e os filhos iriam de caminhão junto com a mudança, apenas um dos filhos, José, o mais velho, precisou ficar. Afinal, ele seria muito importante no processo. Como não seria possível transportar o gado em caminhões ficou decidido que o gado viajaria em comitiva, conduzido por experientes peões, enfrentando a estrada até Atibaia. O primogênito, que tinha toda a confiança do pai, ficou com a missão de conduzir a criação. José Xavier contou toda esta história para o repórter.
Caxinduva ou Guaxinduva? Zezinho, como era chamado, tinha 19 anos na época. Ficou responsável por 70 cabeças de gado e veio em companhia de dois peões contratados. Apesar de todos os filhos terem crescido sobre o lombo dos cavalos Benedito, excelente comprador que sabia escolher os melhores cavalos, também sabia escolher os melhores ajudantes. A viagem durou oito dias e ninguém desgrudou da criação durante todo o trajeto. Ao chegar em Atibaia Zézinho pediu informações sobre como chegar no bairro “Caxinduva”. Hoje com 80 anos, Zézinho lembra, sorrindo, que as pessoas disseram que o lugar que ele procurava estava bem próximo. Mas não se chamava “Caxinduva” e sim “Guaxinduva”. “Vai ser fácil de encontrar”, informaram. “Bastava prestar atenção no “mangueirão de gado”. O tal “mangueirão” realmente ficava muito perto de onde estavam. José riu, afinal, em Minas, “mangueirão” é lugar onde se cria porcos e não gado. No jeito mineiro de se falar, “mangueirão” é curral. Agradeceu a informação e foi tocando em frente. A comitiva chegou sem nenhum arranhão, confirmando a certeza do 208
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pai. Não passou muito tempo e a fazenda já estava a todo vapor. Em poucos meses produzia quase tudo: carvão, leite, gado de corte, vacas leiteiras, verdura, arroz, batata entre outras verduras.
A primeira fazenda A estrela de Benedito Xavier brilhou quando ficou sabendo de um negócio com terras próximas e na mesma cidade. A única diferença é que desta vez ele não teria que arrendar o lugar para ampliar seus negócios; desta vez ele compraria. E teria, finalmente, a “sua” primeira fazenda. Como os negócios iam bem, foi possível juntar um bom dinheiro para a entrada e o negócio foi fechado por 110 mil contos. Vivia-se o ano de 1950. “Foi tudo no fiado. Tudo feito no fio do bigode. Depois que quitou toda a dívida meu pai pegou a escritura”, lembra José. Os vendedores foram Valter Castanho e sua esposa Benedita Pires, descendente de uma família tradicional de Atibaia, que dá nome a escolas, estradas e ruas da cidade. “Na época o lugar se chamava “Bairro dos Pires”. Era um lugar muito bonito e promissor apesar de ter sido uma antiga fazenda de café, desativada naqueles tempos de crise, no chamado “crack” do café. Os vendedores queriam viver na cidade, pois estavam cansados da vida dura no campo. O preço era bom e inicialmente meu pai comprou 30 alqueires que foram pagos mensalmente, tudo quitado sem nenhum atraso”, conta. Ele lembra que graças à fama de bom pagador e de honrar com todos os compromissos que seu pai havia conquistado, novos negócios foram surgindo e, em poucos anos “Seo” Benedito já era dono de terras no “Bairro dos Pires”, na Usina, Campininha, e até no bairro da Ponte, que fica próximo ao centro da cidade. “A Igreja de São Benedito, que fica no bairro da Ponte foi construída em homenagem ao meu pai”, conta José. “Ele era um homem caridoso. Nunca levantou a mão para nós, nem jamais destratou um empregado. Era adorado por todos e muito respeitado. Com ele era tudo na confiança, 209
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nunca precisou assinar nada para honrar seus compromissos”, orgulha-se José.
A escolinha do bairro “Como se diz em Minas: ele “enxergava longe”. Se dependesse dele seríamos donos de tudo por aqui. Nunca escondeu que seu maior sonho era, antes de morrer deixar todos os filhos bem de vida”, orgulha-se José. Homem humilde, apesar de grande fazendeiro, Benedito fazia questão de ser solidário. “Meu pai era severo na organização do serviço, mas nem por isso inspirava qualquer sentimento de medo em seus funcionários”, lembra. Em 1962 o país vivia grande expectativa de crescimento, mas lamentavelmente detinha um enorme índice de analfabetismo. Para tentar contornar a situação, o governo do estado estipulou metas para construir escolas especialmente na periferia das cidades mais carentes. O alvo, em Atibaia eram os bairros rurais, com um grande número de crianças distantes das escolas do centro. A construção de escolas era responsabilidade do governo; na contrapartida, os municípios deveriam oferecer os terrenos, que eram negociados em desapropriações amigáveis ou até mesmo através de doações por parte de fazendeiros e donos de sítios. Procurado pela prefeitura de Atibaia o velho Xavier não pensou duas vezes e doou um pedaço de sua fazenda para a construção da escola. Afinal o local já era bem habitado, boa parte por seus empregados. A escolinha do Bairro dos Pires, atual bairro da Pedreira, foi inaugurada em 1970. Com duas salas e espaço para cerca de 40 alunos. No decorrer de todos esses anos a escola atendeu mais de 1 000 crianças até ser desativada em 2006. Seus alunos foram transferidos para uma escola maior, no vizinho bairro da Usina, a escola Educador Paulo Freire. Sem crianças, sem professores, o local da antiga escolinha ficou sem função e passou a ser alvo de vândalos. Era preciso transformá-lo em algo útil para a comunidade. O empenho da então presidente e fundadora da Associação Comunitária da Pedreira, Elsa Takada, fez com que o prédio passasse a ser um 210
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centro comunitário que o bairro tanto ansiava sem que a prefeitura atendesse à reivindicação. Louvando quem bem merece, o centro comunitário passou a chamar Benedito Xavier de Toledo, o homem que foi o princípio de tudo por ali, homenagem mais do que justa.
O adeus Benedito Xavier de Toledo era um visionário e gostava de viver sobre o lombo de um cavalo sempre buscando novos negócios. Vaidoso e preocupado com a aparência, ia ao barbeiro frequentemente. Cortava o cabelo, raspava a barba e aparava o bigode, uma de suas marcas registradas. Às vezes cuidava até das unhas. Numa véspera de um feriado no ano de 1971, um ano depois da inauguração da “sua” escolinha, no “seu” bairro, morreu vítima de um infarto fulminante e encerrou sua jornada. Foi embora cedo, aos 65 anos. Dormia e não sofreu. O velho Xavier foi um vitorioso. Queria deixar os filhos “bem de vida” e foi muito além: deixou, para muitas crianças do bairro da Pedreira , um lugar onde elas pudessem idealizar o mesmo sonho que ele sonhou: buscar uma vida melhor.
Jean Takada, autor desta reportagem tem 33 anos. Estudou a 8ª série na escola rural Isolina Patrocínio de Lima, na Usina. Teve seu primeiro contato com o jornalismo no jornal Imprensa Livre, periódico que revolucionou a imprensa atibaiense nos anos 90. Hoje é designer editorial da revista Exame, principal revista de economia do país e cursa jornalismo nas Faculdades Alcântara Machado, em São Paulo. Com muito orgulho o titular da coluna abriu este espaço para que ele contasse a história de vida de Benedito Xavier de Toledo uma linda história de Atibaia, história de um homem que influiu também na sua própria história de vida.
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O menino que pinta a natureza com a boca e com o coração
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ai ver que foi isso: ele estava tão ansioso para chegar, tão ansioso para viver, tão ansioso por fazer e criar, vontade de realizar, mudar o mundo, que resolveu contrariar a natureza e nascer mais cedo. Foi assim que Rodrigo Brandão Monteiro, 29 anos, acabou antecipando sua chegada ao mundo em três meses; ao invés de 9, demorou apenas 6 meses para
nascer. Acabou pagando caro por sua audácia. Fora do ventre materno o bebê prematuro começou a viver perigosamente, com o auxilio de aparelhos. Resistiu ao máximo, só que não se pode contrariar a natureza, assim, impunemente. Sem a devida oxigenação, sem as condições ideais e naturais, Rodrigo acabou sendo acometido por uma paralisia cerebral. Logicamente um profissional de Medicina ofereceria explicações mais detalhadas que estas, o resultado, no entanto, seria o mesmo. E como acontece nesses casos, o corpo de Rodrigo não se desenvolveu dentro da normalidade; ficou atrofiado, sem movimento nas pernas e no braço direito. Mas, e daí? qual era o problema? Rodrigo já sabia que o corpo da gente só serve mesmo para dar sustentação à cabeça, ao cérebro. E o cérebro de Rodrigo é qualquer coisa de excepcional. Mais uma vez, contrariando a mãe natureza, Rodrigo passou a usar, em toda a sua plenitude, as melhores coisas que um ser humano pode ter: um bom coração e um ótimo cérebro. Deu certo.
Correndo contra o tempo Rodrigo é filho do arquiteto Antônio Carlos Almeida Monteiro e da artista plástica Etiana Brandão Monteiro. Já se viu que teve boa origem. Não fosse a sua ansiedade por nascer e viver, muito provavelmente tudo correria da melhor maneira possível. Mesmo quando se deu conta de suas dificuldades naturais Rodrigo permaneceu altivo, disposto a encarar a 213
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sua realidade e desafiar o impossível. O impossível, segundo os dicionários, é tudo aquilo que não tem possibilidade, o irrealizável, o impraticável. Mas não para ele, que sempre teve em seus pais o apoio, o arrimo, a compreensão, a dedicação. A família morava em São Paulo e foi lá que Rodrigo freqüentou as primeiras dificuldades para estudar. Ia para a escola em cadeira de rodas e enfrentava olhares e desconfianças de colegas e até de professores. Além do cérebro e do coração, Rodrigo contava com o seu braço esquerdo que lhe possibilitava escrever e manusear livros e cadernos. Cativou a todos com sua garra e determinação, criou um circulo de amizades e mostrou que iria longe. Chegou e concluiu o curso médio e certamente chegaria bem mais adiante não fosse a fatalidade de perder também os movimentos do único braço que lhe ajudava. Ainda assim, já morando em Atibaia, Rodrigo tentou ir além. Prestou o vestibular e candidatou-se a uma vaga no Curso de Jornalismo da nossa FAAT, Faculdade de Atibaia. Foi aprovado, chegou a freqüentar algumas aulas, mas foi vencido pela dor e pelo incomodo terrível, desistiu. O Jornalismo continua sendo um sonho até hoje.
Nasce o artista A esta altura do texto o leitor já deverá estar sufocado com tantas agruras que acometeram esse garoto que desafiou quase todas as lógicas da vida. E deve estar penalizado com as condições físicas de Rodrigo. Não fique, pois não é o caso. O garoto Rodrigo é imenso na sua fragilidade e um otimista incorrigível. Claro que a sua vida é dolorosa, carente e dependente de tudo. Sua mãe, Etiana, é tão forte quanto ele. Ou mais, se possível e preciso for. Ela não hesita em deixar claro que “...ele é a minha vida e eu vivo para ele...”. Maravilhosa pessoa a dona Etiana, mãe de Rodrigo. Alma de artista, vai além do conformismo, sublima a dor, suporta os contratempos e, como diria o poeta, faz mel da sua amargura. Claro que não dá conta, sozinha, das dificuldades. O trato e as atenções que Rodrigo precisa, necessitam do apoio 214
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de enfermeiras e atendentes de tal forma que o garoto nunca fica sozinho. Diz a sabedoria popular que Deus nunca dá carga maior que aquela que a gente possa suportar. Dona Etiana é forte além da conta. E além de tudo essa artista plástica foi o espelho no qual Rodrigo se mirou para se tornar um artista. Ela bordava camisetas enquanto acalentava e guardava o filho. Quietinho, Rodrigo observava. Até que um dia, incentivado pela mãe, começou a dar palpites. “Pinta assim, pinta assado; pinta uma flor, faz um pássaro...”, ele dizia e ela fazia.
Pintando com a boca De palpite em palpite, Rodrigo passou à ação, mostrando desejos de pintar. Como é possível pintar, quando não se seja com as mãos, ou até, vá lá, que seja, com os pés? “Eu vou pintar com a boca, mãe. Você me ajuda?” Claro que dona Etiana ajudou, claro que Rodrigo passou a ser uma atração digna de nota e de todos os elogios a partir do momento em que iniciou sua carreira de pintor que usa a boca para pintar. Ganhou fama o garoto. Já foi filmado e virou atração em programas da TV Vanguarda, já participou algumas vezes do programa Teletom do SBT, já foi personagem de várias reportagens de importantes jornais e revistas. Rodrigo, o garoto que pinta com a boca já é uma personalidade até em nível nacional. Conhecido e reconhecido pela sua Atibaia, Rodrigo comove as pessoas, não só pela sua personalidade, mas pela sua arte. E ele gosta disso. Chamado de geniozinho pelo repórter, Rodrigo sorri e procura disfarçar o seu orgulho.
Aproveite esse sucesso Por trás dessa figura humana, desse artista, desse geniozinho, está também um grande estudioso, sabem de quê? De marketing. Isso mesmo, de marketing. Além de pintar, Rodrigo usa a boca para viajar, navegar e negociar pela internet. Negociar sim, porque ele usa a internet 215
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como mídia e elemento de apoio para vender os vasos que pinta com a boca. Por incrível que pareça, Rodrigo digita muito bem usando o queixo. O mesmo queixo que usa para mover o mouse. Garoto fabuloso! Que garra, que fibra. Muito bem estruturado intelectualmente, Rodrigo criou a sua própria marca registrada: “Pintando com a boca”. E tem até um site próprio: www.pintandoshop.com.br “Eu sempre quis fazer alguma coisa para minimizar os meus custos, ou o que eu custo para a minha família. Considerando as minhas limitações físicas o jeito foi criar essa forma de executar o meu trabalho pintando com a boca. Achei interessante essa marca e registrei. Tenho feito sucesso no mercado. Já recebi pedidos de uma empresa que comprou 1.500 vasos para presentear seus clientes”, conta. Além de pintar vasos, o criativo Rodrigo desenvolveu uma linha de produtos que envolve o kit Primavera, o kit Horta, o Porta Treco e o Vamos Pintar, produtos educativos direcionados às crianças. “Através desses kits as crianças entram no mundo da arte, no mundo do plantio de flores, hortaliças e legumes”, explica, lembrando que tem feito muito sucesso. Claro está que qualquer pessoa, qualquer cliente do mundo gostaria de receber uma obra desse incrível menino que pinta com a boca. A arte de Rodrigo também está à venda na Flora Mirela, que fica na avenida São João e no Casarão que fica na praça da Matriz de Atibaia. E ele vende até pelo telefone, 4413-4343. Se você quer participar desse encantamento e deixar Rodrigo ainda mais feliz da vida com o sucesso, compre um vaso dele. Ou um kit. Custa pouco, entre 11,80 e 18,50. Com certeza você vai ser dono de um trabalho único no mundo, um vaso pintado com a boca e com o coração. Comovido, o repórter agradece.
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“Quim”, o filho do “Nho Quim” e suas histórias da cidade que mudou tanto
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ão é de hoje que o trânsito de Atibaia incomoda o “Quim”. Quando ele era criança, há uns 80 anos atrás, morava em plena Benedito de Almeida Bueno (que hoje é a rua mais movimentada de Atibaia) e ficava muito chateado quando tinha que parar o seu “jogo de bola” para cavalos e charretes passarem. Nem eram tantos cavalos, nem eram tantas charretes, só que
incomodavam uma barbaridade. “Um dia quando eu estava quase fazendo um gol, gritaram: “Para, para, para o jogo porque vem vindo uma charrete. Eu chutei assim mesmo, só que o gol não valeu. O jogo recomeçou depois que a charrete passou. E nós perdemos...”, lamenta-se Joaquim Ordonhez Pinto, 87 anos de idade, a serem completados no mês que vem. “Quim” é filho do “Nho Quim”, Joaquim da Silveira Pinto, que até os 90 anos de idade (ele morreu com 93), era o mais famoso “marcador de quadrilhas” da cidade. “Quim” é um dos donos do Posto Record, um dos mais antigos postos de gasolina de Atibaia. “Meu pai era muito folgazão. Gostava de baile e todo ano era convidado para marcar as tradicionais quadrilhas das festas juninas no São João Tênis Clube. E participava das festas do Divino, das Festas de São Gonçalo, um festeiro. Eu? Eu só sei apreciar...”.
O ofício da mecânica Figura animada, o Quim. Quem diria que o trânsito de Atibaia, que ele tanto detestava nos seus tempos de garoto por ter anulado um de seus gols mais bonitos, se tornaria o seu ganha pão. Afinal, quanto mais carros na cidade, mais gasolina e mais álcool para ele vender. Quim nasceu aqui mesmo, em Atibaia, nos lados do Ribeirão dos Porcos. Nho Quim, seu pai, tinha uma “fazendinha” de 62 alqueires. Plantava café e de tudo. “Mas não arregale os olhos não, porque naquele tempo, era fazendinha sim. Tirando o café, as coisas não valiam nada. Eu me 219
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lembro que para matar um capado, porco de 60 quilos, meu pai tinha que sair perguntando pros amigos quem é que iria querer um pedaço. A única coisa é que a carne era muito mais gostosa...”. A família morava mesmo na cidade. E foi na cidade, garotinho ainda, que Quim começou a aprender o ofício de mexer com mecânica. Quando tinha 14 anos conseguiu seu primeiro emprego. Advinhem onde? Claro que na velha e boa CTB, a Companhia de tecidos que, ao seu tempo, empregou meia Atibaia.
Pagando para aprender Quim ficou seis anos aprimorando o seu ofício de mecânico. “Ganhava quase nada. Tinha que trabalhar 280 quase 300 horas por mês, mais de 10 horas por dia. Ganhava 80 ou 100 mil réis por mês. Ainda tenho hollerites em casa. Dava só para tomar cerveja com os amigos no fim de semana. Naquele tempo a gente pagava para aprender”, conta. Ficou bom mesmo quando ele saiu daqui e foi trabalhar na CTI, Companhia Taubaté Industrial, no Vale do Paraíba, “a maior indústria de alvejados da América do Sul”, orgulha-se. “Fiquei seis anos e foi lá que fiz o meu pé de meia. Na época, em 1942, por aí, eu ganhava mais que gerente do Banco do Brasil”, diz, garboso. “Apertado” pelo repórter, revela que seu salário era quase um conto e quinhentos por mês. “Às vezes chegava quase a dois contos”, diz. Sabe-se lá o quanto seria esse tanto em moeda de hoje. “Um montão de dinheiro”, Quim sorri, orgulhoso. E mostra a foto da primeira oficina para conserto de automóveis que montou em Atibaia, ao lado dos irmãos João e José. Tudo com o pé de meia que fez. “A oficina ficava ali, descendo a avenida São João, antes da Jerônimo. Prédio caindo aos pedaços, era uma farra. Quando chovia, a gente saía correndo com medo do teto cair...”, conta às gargalhadas. Quim já estava com trinta anos e tinha se casado com Neyde Giovanetti Pinto, casamento que já dura 58 anos e que lhe deu os filhos José Luiz G. Pinto, engenheiro; Joaquim Roberto G. Pinto, já falecido e Miriam, 220
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professora. Noves fora seis netos e um bisneto.
Vida dura “Que coisa, né? Quando era empregado, eu entrava na hora que queria e saia na hora que queria. Na oficina eu entrava às quatro, cinco da manhã e saía a hora que Deus quisesse...”, resmunga. Cuidavam de tudo, dos “fordinhos 1928”, chevrolets 38, caminhões Ford 1945, como prova a foto que também mostra uma porção de amigos. Quim faz questão de falar de cada um deles. Seus olhos brilham e não escondem a saudade... “Nossa turma tinha 25 amigos”. Faz as contas e revela: “hoje somos quatro: eu, o Francisco Ferro, o João Fazzio e o Orlando Soares...”. “Quim” se emociona. “Tempo bom...”.
Progresso Dois anos depois, em 1950, a oficina mudou de endereço e foi para a praça Guilherme Gonçalves, ao lado da Igreja do Rosário. “Hoje tem um posto Esso lá, sabe qual é? Pois esse foi o primeiro posto de gasolina da cidade. A gente ficou dois anos. O movimento cresceu e o proprietário quis aumentar o aluguel. Viemos para cá e fomos construindo aos poucos”. Enquanto conta, mostra fotos e fala de cada amigo que aparece “nos retratos”. Quim fotografou cada momento importante da sua vida. Do mato, dos carros “Aqui era tudo mato. Uma ou outra casa e a fábrica de refrigerantes “Rosita”, que pertencia ao pessoal da Casa Rosa, os mais antigos hão de se lembrar. Gente boa, cem por cento”, conta. Um automóvel Chevrolet 38 custava entre 6 e 8 contos de réis, lembra Quim. “E tinha muitos carros em Atibaia?”, o repórter pergunta. “Tinha. Em 1930, 32, os postos abasteciam 3 carros 221
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pela manhã e 3 à tarde, podia até contar”, brinca. “Atibaia tinha dois ou três carros de praça. Eu lembro do José Ordonhez, do Paco... Uma corrida do centro até Caetetuba custava dois mil réis. Era caro. Eles viviam de levar e trazer gente da estação de trem para o hotel. Tinha muita gente viajando de trem. De 1954 em diante, a velha oficina deu lugar ao Posto Record que passou a ter dois donos, Quim e seu irmão José, já que o outro irmão, João, decidiu se afastar da sociedade. E o movimento já era grande. “A gente abastecia muito carro, e vendia para a parte agrícola da cidade. Vendia muito querosene para o pessoal dos sítios, para geradores de energia, para tocar geladeiras, aquecer as granjas. Chegamos a vender mais de 400 mil litros de combustível por mês”, conta.
E o “gasogênio”? E foi então que o repórter perguntou pelo tal de “gasogênio”. Quim conheceu, sim, claro. E explicou: “Durante a guerra faltava gasolina. Os donos de carros adaptavam uma espécie de fogareiro, uma caixa que se enchia de carvão e tocava fogo. A queima do carvão produzia o gás carbônico. Esse gás saia por uma tubulação e ia para o motor e servia como combustível. Tudo isso ficava no porta-malas dos carros. Até os Cadillacs usavam. Se funcionava? Quebrava o galho...”. Quim morre de rir contando que uma vez foi de Atibaia a São Paulo num carro movido a gasogênio. “Era um perigo aquilo incendiar o carro todo. Nesse dia, quando estávamos chegando na Estação Roosevelt, que naquele tempo se chamava “Estação do Norte” acabou o carvão e nós ficamos parados no meio da rua por falta de carvão...”. Dá para ouvir até agora as gargalhadas do Quim contando mais essa história...(*)
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O bom negócio e o fumo Com a morte do irmão José, em 196l, Antônio, filho de José entrou na sociedade e está até hoje. É um bom negócio ter um posto de gasolina? Com a criatividade de sempre Quim responde contando a história do mineiro que foi comprar um rolo de fumo. “Tempos depois ele voltou na loja e o comerciante perguntou: “E aí, é bom o fumo?”. Ele respondeu: “Bem, até a metade estava bom. Da metade para a frente eu tô fumando para não perder...”. Pois eu diria que, até a metade, o posto foi bom. Agora a gente vai fumando para não perder...”. Como sempre, Quim ri da própria resposta. E fala também da questão da qualidade do combustível de hoje. “Tem muito trambique por aí. Aqui eu testo tudo; não entra gasolina ou álcool sem teste. Um dia um freguês veio reclamar e eu disse: “Vamos chamar a polícia e fazer boletim de ocorrência. Pegamos amostra para examinar. Se o sr. estiver certo eu pago o prejuízo; se estiver errado eu lhe meto um processo por danos morais”. O cara não quis fazer o teste e hoje é um dos melhores clientes”, conta. Todo dia Quim chega cedinho no posto e só sai quando fecha. E sempre tem coisa nova para contar. Devidamente abastecido com tanta história do Quim, seus amigos, sua Atibaia, o repórter constata que aprendeu muito sobre a velha Atibaia. E assim, parem o trânsito: o Quim e seus amigos querem jogar bola no meio da rua Benedito de Almeida Bueno. Eu vou junto...
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Hoje ĂŠ dia de fazer compras na Casa Rosa
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onvém ficar esperto e chegar bem cedo. Daqui a pouco não vai ter nem um lugarzinho que seja para se estacionar a charrete ou a carroça e nem para se amarrar um cavalo. Especialmente quando é dia de sábado, a Praça Claudino Alves, no Largo da Matriz, vira um inferno. Tudo quanto é gente que more aqui mesmo, em Atibaia, ou nos sítios ou arredores da cidade corre para fazer
compras na Casa Rosa, que fica na praça. Até porque, a Casa Rosa “tem de tudo”, como diz a propaganda feita pelo pessoal da loja e pelo povo todo. Lá na Casa Rosa você vai conhecer o Plácido Rosa, justamente o personagem da nossa história de hoje. E que história! Plácido, que viu esta cidade crescer, já está com 92 anos, e certamente é mais lúcido que muito governante desses que apitam por aí. Ele é filho dos italianos Santo Rosa e Maria Brogin, imigrantes que deixaram a Itália quando eram crianças: “Meu pai veio quase que sozinho, com uns tios, e tinha 13 anos quando chegou ao Brasil”, conta ele. Maria, sua mãe, veio com a família, e tinha 16 anos de idade quando chegou por aqui. Vieram para trabalhar na fazenda do João Pires, da família dos Pires de Camargo que dão nome a tantas ruas e estradas da cidade. Santo e Maria se conheceram na fazenda. Trabalhando feito mouros, como era o destino daqueles que aqui chegavam em busca de uma vida melhor, juntaram um dinheirinho e vieram para a cidade. “Meu pai comprou um fundo de comércio de um armazenzinho que existia no largo da Matriz e aí nasceu a Casa Rosa”.
Uma grande família Se foi lá no largo da Matriz que nasceu a Casa Rosa, foi na Casa Rosa que nasceram Plácido e seus 8 irmãos. “Nasci lá e trabalhei até 1965”, conta ele. E a Casa Rosa que a cidade inteira passou a conhecer, tinha de tudo, mas de tudo mesmo o que se pudesse imaginar ou querer comprar naqueles tempos. Talvez não fosse tão grande quanto um supermercado, mas 225
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também, naquela época, não se tinha esse tanto de variedade de mercadorias que se tem hoje. De qualquer forma, os estoques da Casa Rosa iam do arroz com feijão, às ferragens, secos e molhados, até aos últimos lançamentos da moda feminina, tecidos e armarinhos e tudo o que poderia fazer a alegria daquele povo não tão consumista quando o de hoje. Pasmem, a Casa Rosa vendia instrumentos musicais, armas e munições, e também os santinhos e rosários para aplacar tanta ira. Admitamos que não é qualquer supermercado que, hoje em dia, ofereça tanta diversidade... Crianças ainda, tanto Plácido quanto seus irmãos trabalhavam na loja ajudando pai e mãe e ainda eram obrigados a freqüentar a escola. “Eu mesmo estudei no José Alvim. O curso primário ia até o quarto ano. Entrei lá com 8 anos e sai com 13”, revela, provocando a pergunta do repórter: “então o sr. repetiu um ano?” “Não”, respondeu Plácido. “É que meu pai quis que eu ficasse um ano a mais, para aprender mais na escola”, esclareceu... Se fosse hoje, Plácido não conseguiria a proeza; as escolas aprovam sem examinar e, mesmo que queiram, os alunos não repetem de ano...
Vida dura Era comum, naquele tempo, os pais encaminharem seus filhos para estudarem na Capital. “Mas isso era coisa para gente rica”, pondera Plácido. “Meu pai não tinha tanto dinheiro assim. E éramos muitos filhos...”, lembra. Isso, apesar da “Casa Rosa, a casa que tem de tudo”, ser a mais afamada da cidade e dos arredores. “Agora o pessoal ganha mais do que naquele tempo. A cidade era pequena, comércio fraco”. Plácido ainda se lembra bem da sua Atibaia, bem pequenina, com 4, 5 mil habitantes. “Só tinha esta parte aqui de cima. O bairro do Alvinópolis nem existia ainda”. O acesso para Atibaia era feito através do velho trem da Bragantina. A Fernão Dias não tinha asfalto. Quem saía daqui por estrada de rodagem, não sabia se iria chegar. Especialmente quando chovia. O trem, para quem não lembra, vinha de 226
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Vargem, passava por Bragança, parava no bairro do Tanque e seguia até Caetetuba, depois ia para Campo Limpo. Com o tempo foi implantado o ramal que saía de Caetetuba e seguia até Piracaia, passando por Atibaia. “Eu não viajei muito. O máximo que fiz foi viajar até São Paulo. Saía daqui às 7 horas da manhã e chegava em São Paulo às 10 horas, três horas de viagem. Até que não era muito”. De Atibaia até Bragança a demora era de meia-hora, pouco mais. “Sim, eu tenho muita saudade daquele tempo. A cidade era pequena, todo mundo conhecia todo mundo, a gente podia dormir com portões abertos, portas e janelas abertas, muito sossego. Hoje a gente tem que viver trancado...”, lastima-se. A economia local e dos arredores vivia baseada no café.
O major de sempre Diversões da época? Passear na praça e vez por outra ir ao cinema. “Eu nem gostava muito. Em todo o caso, de vez em quando eu ia no cine República, que era da família Cicarelli. Aí, o República foi vendido para o Major Alvim e a família Cicarelli construiu o cine Trianon”, conta Plácido. “E o major, o sr. conhecia o Major Alvim?”, pergunta o repórter. “Conheci, conheci sim”, responde Plácido. “E como era esse major?”, insiste o repórter. “Era o tipo do caboclão, homem simples”. Pressionado, Plácido concorda que o Major era um tipo “durão”, “mandão”. “Ele era chefe político, né? Ele comandava o PRP (um partido político da época) e o PRP mandava na política local. A maioria dos vereadores da Câmara era do PRP. E o Partido Democrático, comandando pelo dr. Álvaro Correa Lima, era minoria na Câmara. Assim, o major mandava em tudo. Eu ouvia muitas histórias sobre o major. Tinha também o capitão Adolfo Alves, que era da política do major, esse também mandava e desmandava...”. No entanto, verdade seja dita e que fique bem claro: tanto o major quanto o capitão e tantos coronéis desta e de quase todas as outras regiões deste Brasil, nunca foram majores, nem 227
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capitães e nem coronéis nem coisa nenhuma; apenas eram aquinhoados com esses títulos de uma tal Guarda Nacional, ou que nome tenha... Baseados nesses títulos, eles mandavam; mandavam e desmandavam. Mandavam prender e mandavam soltar.
Atibaia parou? Plácido não atribui ao major o fato de Atibaia ter parado no tempo e no espaço. “Acho que a culpa não foi só dele não. Atibaia não tinha mesmo como crescer. O problema era mais econômico. Atibaia está muito perto da Capital. Bragança, por exemplo, cresceu e se desenvolveu graças à sua proximidade com o rico sul de Minas”. Plácido lembra que a sua Casa Rosa, por exemplo, atendia não só a cidade como a região, Perdões, que era uma vilazinha e até Nazaré Paulista, que ficava mais longe e até Jarinu. Isso para não dizer que, lá nos primórdios, até Bragança era ligada a Atibaia. “É que além de vendermos de tudo, a gente procurava caprichar no atendimento”, ensina Plácido. O papo segue animado na sala de visitas da residência de Plácido Rosa. Por sinal, uma sala que bem poderia ser apresentada como segmento de um museu. Afinal, tem peças valiosas e notáveis com mais de cem anos. Uma Santa Ceia concebida na Áustria, e um carrilhão maravilhoso, obras que estão em poder de Plácido há mais de 40 anos. “Elas pertenciam ao acervo do Bartolomeu Peranovich e eu cuido com carinho”, conta. Pai de quatro filhos, Neusa, Maria Aparecida, Carlos Alberto e Cláudio José, os dois engenheiros, só tem dois netos, pois só sua filha Neusa casou-se. Não se pode deixar de lado o fato de que a família de Plácido foi perseguida durante a Segunda Grande Guerra. O fato de serem italianos foi o suficiente para que fossem quase execrados. O tempo lava tudo. E aí, bem nesse momento em que começa a falar da família, Plácido não consegue disfarçar a emoção ao se lembrar de Aparecida, sua mulher, a mulher com quem viveu 61 anos e que faleceu há um ano. Ele pára, e, contemplativo, olha o infinito, olha os móveis, ouve o som 228
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do carrilhão, seus olhos brilham, talvez escondendo uma lágrima e um mundo da tristeza desabou sobre aquela sala. Sem dúvida nenhuma Plácido tem razão, Atibaia era muito mais alegre quando a sua Aparecida ainda vivia ao seu lado.
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Uma conversa com Jesus, o homem que era tocador de burros e virou empresรกrio de sucesso
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m verdade em verdade eu vos digo as coisas nunca foram fáceis para Jesus, meus caríssimos leitores. Não fosse ele uma pessoa determinada, corajosa, batalhadora, disposta a enfrentar os percalços e as tentações do mundo e da vida Jesus nunca chegaria aonde chegou. Nem nunca teria tantos fiéis servidores, ou funcionários, amigos, parceiros e companheiros, gente de quem sempre esteve
junto e que ele preserva tanto. O Jesus que vos falo, é José Carlos de Jesus, hoje com 54 anos, dono de um dos maiores conglomerados na área de construção do país, o Grupo Jesus De Mari. O Grupo atende o Brasil inteiro fornecendo, entre outros produtos, anéis de poço, anéis de fossa, caixas, pisos de concreto, tubos de concreto e mourões, em suas várias especificações. Exporta até países para africanos. Pois esse Jesus não nasceu numa manjedoura, mas esteve perto disso. Seus pais, Abílio Cardoso de Jesus, o “Abílio Carvoeiro”, e Claudiana Pinheiro de Jesus, moravam numa casa quase de pau a pique no chamado sítio do japonês, perto da Vila Gibi, no meio mundo entre Atibaia e Mairiporã. Continuam lá, até hoje, cinqüenta e tantos anos depois. Claro que a casa foi bem melhorada, afinal, o menino Jesus, que nunca foi de ficar parado, fez questão de reformar e modernizar tudo. E a infância desse menino não foi nada fácil. Aos dez anos já ajudava o pai em tudo, tocando tropa de burro transportando lenha das matas de eucaliptos até os caminhões. Produziam carvão para vender. Depois trabalhou com olaria, com caldo de cana, foi servente de pedreiro, aprendeu o ofício e se transformou em profissional e empreiteiro de obras. Aos 14 anos fazia questão de “dar dinheiro em casa” para ajudar. “Sou um homem feliz, pois toda essa luta foi pela família, pelos filhos, pelos meus pais e pela sociedade”, diz.
A emoção de ver o mar A vida não é fácil nem para João, Antônio, José e muito menos para nenhum Jesus. Tocando 231
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em frente, aprendeu a gostar de música e dedilhar violão. As mãos calejadas que enfrentavam enxadas e enxadões ainda tinham o jeito certo de pulsar o instrumento e cantar as cantigas sertanejas que os companheiros aplaudiam. Juntando cada trocado comprou um terreno bem perto da casa dos pais. E aos poucos, com a ajuda dos amigos foi levantando uma casinha. “Foi lá que eu morei quando casei com a Geni”, conta. Geni Aparecida De Mari surgiu em sua vida num casamento de uma prima. “Foi a minha sorte. Essa mulher tem me acompanhado e me apoiado em tudo”, desabafa. O casal teve dois filhos, José Carlos de Jesus Júnior, hoje com 30 anos e João Carlos de Jesus, 22 anos. João Carlos cursa Medicina na Unicamp e Júnior é o lado comercial da família na empresa de artefatos de cimento. Só que para chegar onde chegou, Jesus carregou muita pedra, assentou muito tijolo e azulejo. Bom pedreiro, bom tocador de obras, passou a ser muito requisitado. E, quando viu, aos vinte e poucos anos foi quase intimado por um cliente para empreitar uma obra em Ubatuba. “O doutor Mendes foi quem me estimulou a sair daqui e ir para lá”. Para quem nunca tinha saído do bairro do Portão, Ubatuba era o fim do mundo. “Quando eu me vi descendo aquela serra cheguei a tremer de medo. Êta estradinha difícil, sô. Como nunca tinha visto o mar, nem imaginava como era de repente me vi diante daquela fartura de água e assustei. Pior é que chovia que Deus mandava. Fiquei apavorado. Ficar sozinho, longe dos pais e dos amigos virou desespero. Pensei em voltar, mas era tarde. Fui acostumando e fiquei onze meses por lá. Um dia fiz questão de alugar uma perua e levar meus pais para conhecerem o mar. Foi um deslumbramento”.
O pedreiro que virou empreiteiro Bem nessa época Jesus se transformou em empreiteiro de obras. “Tinha um pessoal amigo, uns engenheiros que insistiram para que eu partisse para a empreita. Diziam que só assim eu poderia ganhar mais dinheiro. Foi legal e aí eu não parei mais. Ao lado de um cunhado, 232
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comecei a construir uma ou outra casinha para vender e começamos a levantar a vida. Com o tempo nós resolvemos entrar de corpo e alma na pequena fábrica de blocos”, recorda-se. Ainda uma vez não foi nada fácil. “Mas a gente foi ganhando experiência, aperfeiçoando os métodos de fabricação, criando novos produtos e, vez por outra, ainda construíamos uma ou outra casinha. No começo a fábrica era em Caetetuba, ficou pequena e há uns sete anos viemos para o bairro do Portão. A empresa cresceu bastante, graças a Deus”, agradece Jesus. A estrutura da fábrica ocupa hoje um espaço aproximado de 40 mil metros. Vende seus produtos para todo o Brasil e já exportou para Angola. Sua tecnologia é de ponta, razão do sucesso do empreendimento. Seus clientes são basicamente as grandes construtoras. Longe de se queixar do bom momento que vive hoje, Jesus garante que as coisas já estiveram melhores num passado recente. “Por incrível que pareça nunca se ganhou tanto dinheiro quanto na época do Sarney. Eu sei que a inflação era um perigo, mas era mais fácil para se trabalhar, a concorrência era bem menor”, proclama. “Não tenho dúvidas de que a vida do povo melhorou muito. Hoje em dia com o avanço da tecnologia tudo ficou mais fácil, todo mundo tem telefone, todo mundo tem televisão, afinal, tem financiamento para tudo, comprar carro, comprar casa. Eu me lembro que quando tinha 21 anos comprei um Fusquinha e não consegui pagar. Quando me casei minha casa não tinha nem vidro e nem forro. Dona Geni, minha mulher teve que agüentar a parada...”, sorri.
Tocando obras, tocando violão Uma vez violeiro, sempre violeiro. Jesus, que um dia já fez parte de uma dupla caipira de alguma fama no pedaço (o nome era José Tel & Dorair), ainda gosta de animar os amigos tocando as modas que o povo canta. “Não sou convencido não, mas a nossa dupla era das boas. Tocamos em muitos shows, só não gravamos nem LP e nem CD porque naquele tempo era 233
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mais difícil. Não deu para profissionalizar, a gente tinha que trabalhar. Quem quer ser artista tem que ser só artista. E não é sempre que dá certo”, justifica, prontificando-se a mostrar um pôster impresso, mostrando a dupla. Mas, por falar em saudade, Jesus não se esquece dos momentos vividos junto com seus companheiros de obra. “Eu já morei em barraco de obra. Ninguém sabe o que é a vida e o sofrimento dessa gente que mora em barracos de obras. São uns abnegados. Gente que é gente mesmo, são leais e solidários, nunca tapeiam ninguém”. Talvez por isso Jesus nunca tenha abandonado o costume de reunir seus velhos amigos em imperdíveis festas de fim de ano. Ninguém sai sem um presente, uma cesta básica, uma lembrança, uma ajuda. “Aprendi muito com essa irmandade e nunca viro as costas para nenhum desses amigos que conservo até hoje. Representam um patrimônio da minha vida”, emociona-se.
Os tubos saem aos tubos Jesus, o filho do seu “Abilio Carvoeiro”, além de quatro irmãs tem um irmão que é padre, o padre Jeremias da Paróquia do Cristo Rei. “O pessoal gosta muito dele e eu também”. Sem ser político, costuma receber a visita de políticos importantes em sua empresa. “O Júnior, meu filho, está mais entrosado nessas coisas de política. Eu só cultivo as boas amizades que tenho”. Quase 100 pessoas trabalham hoje no Grupo Jesus De Mari (o De Mari vem do lado da mulher, Dona Geni, cujo pai possuía uma olaria e uma fábrica de blocos). Fora esse pessoal da fábrica propriamente dita, tem um mundo de gente que trabalha em empresas tercerizadas que fornecem serviços e produtos para a Jesus De Mari. “Nós crescemos bastante e ainda temos muito caminho para percorrer”, orgulha-se. Enquanto isso caminhões e mais caminhões saem carregados da fábrica, levando tubos aos tubos, e quase tudo quanto é artefato de cimento para tantas regiões do país. Se quisesse, hoje, bem que Jesus poderia 234
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sair cantando por aí ao lado do Dorair, revivendo a dupla que já fez algum sucesso. “Não, não dá mais não; o nosso tempo já passou. Eu prefiro continuar trabalhando; se bem que, hoje em dia, eu sou só critico. Dona Geni é quem cuida do bom andamento da empresa. Passo o dia inteiro percorrendo a fábrica, olhando cada detalhe, pensando em novos caminhos, novos produtos, melhorando o que for preciso. Quero ver os tubos continuarem saindo aos tubos, quero cuidar dos meus pais que vão celebrar 60 anos de casados em setembro, quero ver meus filhos felizes e realizados, quero estar com os meus amigos, cantando, só de vez em quando, agradecendo ao meu Xará lá do céu por tudo o que Deus me deu”, conclui o Jesus, que também é chamado de José Carlos.
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