A BALADA DO VELHO MARINHEIRO
edições do
saguão 2017
TÍTULO ORIGINAL : THE RIME OF THE ANCIENT MARINER CAPA, CONTRACAPA E ILUSTRAÇÕES a partir de cinco das gravuras de Gustave Doré para a edição de 1876 do poema (Doré Gallery, Londres) tradução: ALBERTO PIMENTA paginação e capa: Rui Miguel Ribeiro sugestão musical (pausa de semínima): Miguel ferreira revisão: Mariana Pinto dos Santos e Rui Miguel Ribeiro
1ª edição, setembro de 2017
isbn 978–989–99944–0–9
S. T. COL ER ID G E
A BALADA DO
VELHO MARINHEIRO
·
tradução de alberto pimenta · edição bilingue
THE RIME OF THE
ANCIENT MARINER IN SEVEN PARTS
A BALADA DO
VELHO MARINHEIRO EM SETE PARTES
Facile credo, plures esse Naturas invisibiles quam visibiles in rerum universitate. Sed horum omnium familiam quis nobis enarrabit? et gradus et cognationes et discrimina et singulorum munera? Quid agunt? quae lo habitant? Harum rerum notitiam semper ambivit ingenium humanum, nunquam attigit. Juvat, interea, non diffiteor, quandoque in animo, tanquam in tabulâ, majoris et melioris mundi imaginem contemplari: ne mens assuefacta hodiernae vitae minutiis se contrahat nimis, et tota subsidat in pusillas cogitationes. Sed veritati interea invigilandum est, modusque servandus, ut certa ab incertis, diem a nocte, distinguamus.
T. Burnet: ArchĂŚol. Phil., p. 68.
THE RIME OF THE
ANCIENT MARINER IN SEVEN PARTS
An ancient Mariner meeteth three Gallants bidden to a weddingfeast, and detaineth one.
I
t is an ancient Mariner, And he stoppeth one of three. “By thy long grey beard and glittering eye, Now wherefore stopp’st thou me? The Bridegroom’s doors are opened wide, And I am next of kin; The guests are met, the feast is set: May’st hear the merry din.” He holds him with his skinny hand, “There was a ship,” quoth he. “Hold off! unhand me, grey-beard loon!” Eftsoons his hand dropt he.
The Wedding-Guest is spellbound by the eye of the old seafaring man, and constrained to hear his tale.
He holds him with his glittering eye — The Wedding-Guest stood still, And listens like a three years’ child: The Mariner hath his will.
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A BALADA DO
VELHO MARINHEIRO EM SETE PARTES
É
um velho Marinheiro E aborda um desses três. “Por tuas barbas grisalhas e pelo fulgor dos teus olhos, Diz por que é que me deténs!
Q
Q
Um velho Marinheiro cruza-se com três distintos cavalheiros que se dirigem para uma boda, e detém um deles.
A casa do noivo está aberta de par em par Estão já os convidados o banquete preparado, Ouvem-se as vozes festivas, E eu sou parente chegado.”
Q
Q
Prende-o na mão descarnada e assim começa a falar: “De certa vez um navio…” “Basta, barbudo, és tonto, Larga-me, tira essa mão!” A mão solta-se de pronto.
Q
Q
Com a luz dos olhos o prende; imóvel o Convidado Escuta como um menino de três anos de idade: Assim faz o Marinheiro O que tinha na vontade.
Q
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O Convidado fica submetido ao encantamento do olhar do velho mareante, e não pode deixar de escutar a sua história.
The Wedding-Guest sat on a stone: He cannot chuse but hear; And thus spake on that ancient man, The bright-eyed Mariner. “The ship was cheered, the harbour cleared, Merrily did we drop Below the kirk, below the hill, Below the light-house top. The Mariner tells how the ship sailed southward with a good wind and fair weather, till it reached the line.
The Sun came up upon the left, Out of the sea came he! And he shone bright, and on the right Went down into the sea. Higher and higher every day, Till over the mast at noon—” The Wedding-Guest here beat his breast, For he heard the loud bassoon.
The Wedding-Guest heareth the bridal music; but the Mariner continueth his tale.
The bride hath paced into the hall, Red as a rose is she; Nodding their heads before her goes The merry minstrelsy. The Wedding-Guest here beat his breast, Yet he cannot chuse but hear; And thus spake on that ancient man, The bright-eyed Mariner.
The ship driven by a storm toward the south pole.
“And now the Storm-blast came, and he Was tyrannous and strong:
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Q
Inclinou-se o Convidado numa pedra se assentou, Só lhe resta escutar; E aquele velho Marinheiro Assim voltou a falar:
Q
“O navio aclamado despedimo-nos do porto, Singrámos para alto mar, Até que igreja, colina por fim o alto do farol Deixámos de os enxergar.
Q
Nascia-nos o sol da esquerda, Vinha de dentro do mar; O dia todo luzia depois descia à direita, Para de novo ao mar voltar.
Q
O Marinheiro relata como o navio se fez a Sul com vento de feição e bonança, até atingir a Linha.
Ia mais alto cada dia, Até ficar um meio-dia sobre o mastro a direito”, E aqui o Convidado ouvindo o oboé, Leva o punho até ao peito:
Q
Q
Entrou a noiva na sala, Corada como uma rosa, E alegre, à frente dela, Abre passo a charamela meneando pressurosa.
Q
Chega aos ouvidos do Convidado a música nupcial; mas o Marinheiro continua relatando a sua história.
Bem leva o punho ao peito, Só lhe resta escutar; E assim prossegue o Velho Do fulgurante olhar: O navio arrastado numa tempestade em direcção ao Pólo Sul.
“E eis que a Tempestade sobre nós se alevantou,
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Death, and Life-inDeath have diced for the ship's crew, and she (the latter) winneth the ancient Mariner.
The naked hulk alongside came, And the twain were casting dice; “The game is done! I’ve won! I’ve won!” Quoth she, and whistles thrice.
No twilight within the courts of the Sun.
The Sun’s rim dips; the stars rush out: At one stride comes the Dark; With far-heard whisper, o’er the sea, Off shot the spectre-bark.
At the rising of the Moon,
We listened and looked sideways up! Fear at my heart, as at a cup, My life-blood seemed to sip! The stars were dim, and thick the night, The steerman’s face by his lamp gleamed white; From the sails the dew did drip— Till clombe above the eastern bar The horned Moon, with one bright star Within the nether tip.
one after another,
One after one, by the star-dogged Moon Too quick for groan or sigh, Each turn’d his face with a ghastly pang, And cursed me with his eye.
his shipmates drop down dead;
Four times fifty living men, (And I heard nor sigh nor groan) With heavy thump, a lifeless lump, They dropped down one by one.
but Life-In-Death begins her work on the ancient Mariner.
The souls did from their bodies fly,— They fled to bliss or woe!
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Q
O casco nu do navio pelo nosso deslizou Com o par a deitar sortes. Diz ela: “O jogo acabou! Eu ganhei, ganhei, ganhei!” E três vezes assobiou.
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Q
Mergulha o aro do Sol. Surgem estrelas do nada. De repente escureceu. Logo o navio fantasma espalhando um silvo infindo, Sobre o mar desapareceu.
Q
Q
Ficámos todos à escuta de esguelha olhando para o alto; Como duma taça, o medo sorvia-me do coração O sangue da minha vida. As estrelas estavam baças a noite de escuridão. O rosto do timoneiro alvejava sob a luz. Pelas velas escorria o orvalho lentamente. Até que então a Oriente Despontou a Lua velha abrigando numa ponta Uma estrela reluzente.
Q
A Morte e a Morte-em-Vida jogaram aos dados a sorte da tripulação, e a última ganha o velho Marinheiro. Nos paços do Sol não há crepúsculo.
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Q
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Q
Ao nascer da Lua,
Sob a Lua e sua estrela cada homem, um por um, Sem tempo para um lamento um por um com um esgar, Torceu o rosto para mim Com maldições no olhar.
um por um,
Quatro vezes cinquenta homens (Nem sequer se lamentaram) Com baque surdo, pesado como um fardo sem vida, Um por um todos tombaram.
os companheiros caem mortos;
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Q
Q
Do corpo se libertou cada um desses espíritos Maldito ou abençoado.
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no entanto, a Morte-em-Vida começa a actuar no velho Marinheiro.
And every soul, it passed me by, Like the whizz of my Cross-bow!
PART The Wedding-Guest feareth that a Spirit is talking to him;
But the ancient Mariner assureth him of his bodily life, and proceedeth to relate his horrible penance.
THE
FOURTH.
“I
fear thee, ancient Mariner! I fear thy skinny hand! And thou art long, and lank, and brown, As is the ribbed sea-sand. I fear thee and thy glittering eye, And thy skinny hand, so brown.”— Fear not, fear not, thou Wedding-Guest! This body dropt not down. Alone, alone, all, all alone, Alone on a wide wide sea! And never a saint took pity on My soul in agony.
He despiseth the creatures of the calm,
The many men, so beautiful! And they all dead did lie: And a thousand thousand slimy things Lived on; and so did I.
And envieth that they should live, and so many lie dead.
I looked upon the rotting sea, And drew my eyes away; I looked upon the rotting deck, And there the dead men lay.
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Cada um por mim passou Sibilando como a seta e o Arco que a tinha lançado.
Q
Parte IV
“T
enho-te medo, Marujo! Tenho medo, tenho medo da tua mão a descarnar! E tu és alto e macilento E sulcado como a areia em que o mar foi quebrar.
Q
O Convidado teme ser um espírito que lhe está a falar.
Q
Q Q
Tenho-te medo, Marujo e aos teus olhos faiscantes, Tenho medo à tua mão que mirrou e escureceu!” Não, Convidado, não temas, Que este corpo não morreu. Ninguém, mais ninguém, eu só, Só num vasto mar sem fim. E jamais houve um santo Que se apiedasse de mim.
Mas o velho Marinheiro assegura-o da sua existência corpórea, e continua a narrar o horror da sua pena.
Os vivos louvados sejam E todos mortos jaziam. Entanto juntos comigo Mil seres de lama viviam.
Sente desprezo pelas criaturas da calema.
Olho a podridão do mar, Logo os olhos se desviam; Olho o podre do convés, Aí os mortos jaziam.
E deplora que tenham vida, e que tantos homens estejam mortos.
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It reach’d the ship, it split the bay; The ship went down like lead. The ancient Mariner is saved in the Pilot's boat.
Stunned by that loud and dreadful sound, Which sky and ocean smote, Like one that hath been seven days drowned My body lay afloat; But swift as dreams, myself I found Within the Pilot’s boat. Upon the whirl, where sank the ship, The boat spun round and round; And all was still, save that the hill Was telling of the sound. I moved my lips—the Pilot shrieked And fell down in a fit; The holy Hermit raised his eyes, And prayed where he did sit. I took the oars: the Pilot’s boy, Who now doth crazy go, Laughed loud and long, and all the while His eyes went to and fro. “Ha! ha!” quoth he, “full plain I see, The Devil knows how to row.” And now, all in my own countree, I stood on the firm land! The Hermit stepped forth from the boat, And scarcely he could stand.
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Correu todo o navio depois fendeu a baía: Como se fosse de chumbo o navio se afundou.
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Aturdido com o ruído, O ruído pavoroso que abalou céu e mar, Como se houvesse passado sete dias afogado, O meu corpo flutuou. Mas no barco do Piloto rápido como num sonho, Eu me encontrei abrigado.
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Q
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Sobre o vasto remoinho onde o navio afundou À roda o barco girava. E havia um grande silêncio a não ser pela colina Onde o rodilhão ecoava.
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Comecei a abrir os lábios o Piloto deu um grito Para a seguir desmaiar. Ergueu os olhos o Ermitão E começou a rezar.
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Tomei eu conta dos remos: o ajudante do Piloto, Que dá sinais de estar louco, Começou a rir, a rir e entretanto a olhar Para um lado e para o outro. Dizia ele: “Ah! Ah! Ah! Agora estou eu a ver Que o demo sabe remar!”
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Q
Pude enfim em terra firme, Pude em meu país descer. Saltou do barco o Ermitão, Mas mal se podia ter.
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O velho Marinheiro é recolhido no barco do Piloto.
Pode um poema, para além do chamado efeito estético, que não se sabe muito bem o que seja (para especialistas é simplesmente a qualidade que o torna diferente do discurso pragmático, facto quase sempre enigmático também para eles, e quanto ao que isso provoca é questão do leitor), pode, perguntava eu, criar algum alívio no leitor que se encontra em profundo estado de tristeza, ou então refrear a sua alegria efusiva levando-o a reflexões pesadas, dado que isso não se considere em si o tal efeito estético? The Rime of the Ancient Mariner de S. T. Coleridge (1ª versão de 1798, 2ª versão de 1817, aqui seguida esta, como é usual) é dos poemas mais miudamente esquadrinhados de toda a história da poesia; tanto, só mesmo os de Homero, talvez porque são os pais de tudo. Eu, pelos meus vinte anos (já lá vão sessenta depois disso), fiz o mesmo: seguindo os grandes mestres desse esquadrinhar (J.L. Lowes, Humphrey House, J. B. Beer et caterva) não ficou monte de gelo dos mares do Sul nem pesada calmaria dos trópicos por apurar em sua tradição narrativa desde as primeiras Viagens, e por integrar, seguindo Coleridge, no pensamento neo-platónico em que homens e espíritos podem trocar entre si muito palpavelmente experiências de existência. Um veleiro faz-se ao mar (com que destino?): o poema é aqui, como sempre, a criação de enigmas sobre o fundo do comportamento humano, enigmas que o leitor resolverá convencionalmente (e o autor deixa-lhe essa saída), ou então segundo a sua necessidade de entender e justificar o fatal encadeamento dos actos que fazem da humanidade o que ela é. Apanhado numa tempestade, o veleiro é arrastado até aos mares do Sul e aí fica todo rodeado de gelo; do meio da eterna névoa surge um albatroz, ave com uma variante que pode assomar em
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A Balada do Velho Marinheiro de S. T. Coleridge foi traduzida por Alberto Pimenta em 1960: era parte da sua tese de licenciatura, e ficou desde aí no saguão. Sai agora dele para outro, que lhe escolheu fato num cé lebre estilista francês; A. P. cor respondeu, lavando a roupa interior (passados estes a nos todos, certas peças era capaz de ser aconselhável, se não obri gaçã o) . Edições do Saguão, 01
d ep รณs i to lega l 4 30799 / 17 s et emb ro , 2017
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