O MOVIMENTO DAS COISAS, TALVEZ...

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O MOVIMENTO DAS COISAS, TALVEZ...

2018


título original: le mouvement des choses, peut-être... autor: José-Manuel Xavier tradução e Posfácio: Regina Guimarães Nota incial: José Pedro Cavalheiro (Zepe) capa: grafismo sobre imagem original de José-Manuel Xavier paginação e composição gráfica: Rui Miguel Ribeiro impressão: Europress, lisboa tiragem: 500 exemplares

SR. PASSAGEIRO – 1ª EDIÇÃO, F EV E R E I R O D E 2018

isbn: 978-989-99710-3-5


O MOVIMENTO DAS COISAS, TALVEZ...

José-Manuel Xavier


O Sr. José Xavier é um tipo particular. É daquelas pessoas que nunca saberemos se apareceu cedo, tarde de mais ou só apenas. Traz o Pessoa às cavalitas e pedras para os vendilhões de imagens. Desenha sem nunca se ver desenhar. Mas mais suspeito ainda é usar fato. Consta que em tempos animava formas abstractas. E mal lhe falavam de ensino ou de indústria cinematográfica, desatava às bengaladas. Foi aliás por isso que começou a fazer livros, escritos, declarações incendiárias que levavam amigos a fugir em cuecas. Nunca foi grave. Acabou por se perceber que isso de animar nada tem que ver com fazer filmes. Silêncio e depois fartou-se. Há uns dias, em vez de nos falar de filmes animados, poética, desertos e haikus, o Sr. Xavier decidiu falar do movimento das coisas: uma escola de janelas escancaradas onde o vento só entra e sai. É um livro para fazer olhar os passos — um a seguir ao outro —, de brisas, murmúrios e coisas pequenas. É no meio deste acaso que a vida respira. Se não viajarem, pelo menos lanchem. Zepe

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À la mémoire de mon maître Armando Servais Tiago qui m’a éveillé à la beauté.


O MOVIMENTO DAS COISAS, TALVEZ...

Erro lentamente. É esse o privilégio dos que, como eu, avançam ao ritmo da eternidade. A frase poderá parecer pomposa aos olhos dos que se vergam ao tempo dos relógios, mas nem por sombras. Cada passo que dou dilata as distâncias. Logo, o que já estava longe afasta-se mais ainda, rumo ao infinito. Caminho agora como dantes sonhava caminhar: transformando-me. No meu encalço, há movimentos do pensamento que traçam um longo rasto ondulante ao sabor do vento, sobre o qual se agitam ainda, aqui e ali, algumas sombras inquietas do passado. Que importa? — hão-de acabar por desaparecer. Ao correr do tempo, as coisas familiares que se oferecem ao meu olhar foram-se tornando progressivamente mais feias. Prédios, veículos, equipamentos, ruas, passeios, grades, muros, cabos, fios compõem um amontoado de imagens ditadas por lógicas mercantis que me impelem para múltiplas ruminações. A sua sucessão heteróclita também cria, na minha cabeça, planos e perspectivas detestáveis, desprovidos do encanto libertador da Natureza e da sua aparente desordem. 9


Outros que não eu testemunharam a beleza dos caminhos e sendas que gosto de percorrer e cuja contemplação me é tão custosa. Quantas vezes não maldisse eu os meus sentidos por eles não abraçarem a multiplicidade de coisas que lá se encontram? E quantas lhes agradeci por me permitirem abstrair-me da banalidade interminável dos arrabaldes e redondezas que tenho de palmilhar para conseguir, finalmente, chegar ao fora de mim? Como é difícil evadirmo-nos das prisões do pensamento! Dos movimentos que o atravessam, os mais insidiosos são, sem a menor dúvida, os que tentam ininterruptamente impedir o olhar de ver o mundo sem a ajuda da memória. Durante as minhas vadiagens, pergunto-me constantemente se esse alto feito chegará a ser possível. Então, nos interstícios das minhas observações, narro por vezes, em sonhos, histórias e factos que não existem… Um lugar onde se acumula um impressionante amontoado de documentos em desordem. Aí, às apalpadelas, um cego procura pedaços de papel que depois arruma numa grande arca, a muito custo, devido ao peso da tampa e ao facto de que ela encerra uma tempestade. À medida que o cego cumpre o que parece ser a sua missão, os olhos dele iluminam-se até se tornarem feixes de lume que incendeiam o lugar, fazendo assim desaparecer a imagem da minha imaginação. As bermas do caminho branco, cobertas de abundantes folhas caídas das árvores, atraem-me. Focalizo a minha atenção numa parte desse tapete confeccionado pelo 10


Outono o qual se estende irregularmente ao longo de todo um caminho que leva não sei onde. Ao aproximar-me para o observar de mais perto interrogo-me. Quando olho para as folhas, será que elas me «olham» também? Se sim, que aspecto tenho eu aos «olhos» delas? Questão espinhosa, tanto mais que algumas dessas folhas mudaram bruscamente de posição. Será que se trata de um efeito causado pelo afago da brisa ou será que elas procuram propor-me uma combinação mais agradável? Eu tenderia mais para a segunda hipótese, pois a Natureza parece, por vezes, vestir para mim a suas roupagens mais atraentes. Paro de questionar-me para observar de novo o tapete de folhagem que o meu cérebro teima em ler como uma imagem formatada. Contém centenas de folhas em desalinho. O Outono pintou-as de tal sorte que compõem para meu bel-prazer, uma tela feita de matizes de castanhos e de sépias. Alguns dirão que as folhas têm também uma forma, mas a palavra forma desagrada-me soberanamente. Pessoalmente digo que cada uma delas possui um movimento. Além disso, viajaram. Pelo que cada uma das folhas que olho e me «olha» é portadora de uma narrativa, de uma história, de uma vida movimentada. Maquinalmente, viro a cabeça para as árvores circunvizinhas, mas não as vejo. Vejo apenas uma fina e escura renda de ramificações entrelaçadas que inscrevem delicados arabescos no poente… A noite caiu e o céu ficou negro como tinta. O horizonte que o homem sentado olha é de uma nitidez implacável. Donde surgiu essa figura de títere atarracado, branca, imóvel? 11


Porque contempla ela o vazio? Afrouxo a imaginação na esperança de a ver mexer. Em vão. A postura curvada do homem, a sua cabeça ovóide pousada na mão direita, incitam-me a achar que ele está, talvez, a pensar. Assim, mesmo as figuras imaginárias pensam… O caminho debruado de folhagem faz uma curva alguns metros adiante. Essa curva, numa paisagem ainda por descobrir, faz-me pensar que nunca consegui fazer algo de tão notável: prometer o desconhecido através de um movimento curvo. A Natureza reconforta-me porque não vislumbro nela nenhum ângulo recto. Tranquiliza-me contornar um traçado com o olhar deslocando-me em direcção a uma nova paisagem aberta para múltiplos outros movimentos ondulantes. Todavia a conjugação desses dois movimentos suscita perguntas na minha consciência: será que mereço aquilo que a Natureza se prepara para me oferecer? Será que estou apto a receber tal dádiva? De súbito, ouço o canto de um pássaro. As minhas interrogações impediram-me até aí de lhe prestar atenção. A indigência sensorial, fruto das minhas constantes cogitações, não me deixa captar a simultaneidade das coisas que vejo e que ouço. Em que pensa a vaca que me olha ruminando? Os movimentos das suas mandíbulas parecem-me em todo o caso bem mais interessantes a ter em conta do que os da minha imaginação, sempre descosidos, saltitantes, ziguezagueando constantemente entre o sublime e o irrisório… 12


Retomo a minha posição inicial e concluo que as formigas, como muitos seres vivos, se deslocam por boas razões que ignoro. O seu bailado febril, que parte em todos os sentidos, é contudo de uma natureza bem diferente da dança das plantas e flores que o vento, ao de leve, anima no terraço. Movidas por rajadas fortuitas da brisa, dão a impressão de traçar movimentos curvos de oscilação nas três coordenadas do espaço, enquanto as formigas parecem mexer-se como pontos animados de uma vida autónoma no tabuleiro bidimensional de um jogo desconhecido. Ao observá-las, não posso deixar de estabelecer conexões entre elas do mesmo tipo daquelas que estabeleço entre as estrelas quando as olho no firmamento. Então, a coreografia voluntária ou involuntária (vá-se lá saber…) das minhas formigas, composta de uma pluralidade de movimentos rectilíneos, curvos, ziguezagueantes, hesitantes, afirmados ou acrobáticos, oferece-me, para gáudio meu, todo um leque de constelações tão fugazes quanto inesperadas. Gosto particularmente dos momentos em que param bruscamente e se reúnem em concílio, em que me parece que dizem coisas importantes, prelúdio antecedendo uma imprevista dispersão das suas delgadas silhuetas. Há instantes, quando me apercebi da sua presença em redor do açucareiro, julguei que era ele que as atraía. Mudei de ideias depois de ter polvilhado a mesa com um pouco de açúcar, coisa que, à escala delas, equivale a «perigo, queda de pedras». Após um movimento de surpresa, as formigas ignoraram o açúcar e retomaram a sarabanda de deslocações múltiplas. Não me parece pois improvável

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que as formigas se desloquem pelo prazer da busca sem fim. De outro modo, como explicar os seus vaivéns intempestivos, notáveis do ponto de vista dinâmico, sejam quais forem os caprichos da trajectória executada? Será que estou a observar na minha mesa o desenrolar de um momento de divertimento protagonizado por um grupo de seres liliputianos cuja vida é um perpétuo movimento? Tenho vontade de responder que sim, quando focalizo a minha atenção sobre uma delas. A cinquenta centímetros de distância, percepciono-a como uma porção de traço de minúsculo tamanho que se desloca numa superfície plana. A velocidade à qual circula permite-me, sem dificuldade, identificar mentalmente o traçado das suas deambulações. É de natureza nervosa, pontuado por hesitações, paragens e arranques extravagantes. O tempo que leva a percorrer um trajecto é muito variável. No mesmo momento em que parece apressada, abranda de súbito, gira uns quantos graus, volta a arrancar, trava, retoma velozmente o seu caminho mas para logo voltar a afrouxar e, um pouco mais adiante, parar, talvez para pensar, supondo que uma formiga pensa, coisa de que estou tão certo quanto do facto que, sabendo-se observada, ela traça arabescos sofisticados só para me divertir e me impressionar. É evidente que o meu pensamento racional está em total desacordo com as minhas conclusões no que diz respeito aos motivos do movimento das formigas. É normal (conquanto a normalidade exista), o meu pensamento nem sempre capta a subjectividade das coisas, dos seres, e ainda menos o humor e a ironia dos insectos.

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E se eu pusesse fim à minha imobilidade, e se parasse de reflectir, e se prosseguisse o meu caminho? O caminho está encharcado com a água das chuvas dos últimos dias. Profundos sulcos provocados pelo tractor da quinta que deixo para trás transformam-se por vezes em grandes espelhos azuis onde vêm admirar-se as nuvens douradas de fim do dia. Avanço tentando evitá-los para não cair num deles e desaparecer assim para sempre no azul infinito de um céu invertido. Os movimentos que faço com o meu corpo proporcionam-me a agradável sensação de brincar com tudo o que me rodeia. A rusticidade deste troço de caminho maravilha-me. Aqui tudo caminha de maneira bruta, torcida, desordenada, assimétrica. Os buracos entre as sebes, que revelam e logo escondem campos inesperados, lembram-me quanto a variação dos espaços entre as coisas é necessária para devolver ao movimento a sua dinâmica. E depois há a disposição das árvores que se curvam sobre o caminho para me ver passar e os arbustos que se afastam para me mostrar novas coisas. De súbito, ao fundo dum rasgão que fissura um monte de silvas entrelaçadas, avisto, à distância de uns cinquenta metros, no meio do campo, uma corça. Ela olha-me fixamente. Então, como que realçando o acontecimento e a fuga iminente do animal, toda a paisagem se cala, se imobiliza,

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As mudanças de luz modificam permanentemente a ideia que tenho das coisas. Por vezes chegam a criar no meu espírito a ilusão de que um objecto inanimado pode parecer vivo. Ora um objecto que se anima deixa de ser um objecto para se tornar algo de indefinível. Então o que vem a ser uma coisa que, ainda por cima, é indefinível? Pego num dicionário e leio: Designação indeterminada de tudo o que é inanimado. Exemplo: As belas coisas à face da terra. No entanto, dado que todas «as belas coisas à face da terra» são animadas, essa definição é, no mínimo, anacrónica. Consulto um outro que diz : Termo geral que designa tudo quanto existe e é concebível como um objecto único (concreto; abstracto; real; mental). Ainda insatisfeito, consulto um dicionário em linha: Uma coisa é o que existe mas que é indeterminado, objecto ou ideia, ou que não é preciso especificar. O significado da palavra coisa deduz-se pela maneira como é empregue na frase, onde substitui o que não é possível (ou desejável) nomear.

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totalidade dos sentimentos do instante e tudo quanto ele continha. Na Natureza, as mudanças de cor, as alterações e as modificações dos tons devidas à deslocação do ar e à luminosidade do astro que nos ilumina, nunca deixam, a meu ver, de ser para todo o sempre um mistério irredutível às formas da linguagem. A meus olhos, a cor das coisas está incessantemente a mexer. Esses movimentos estão ligados aos meus e à luz que nos envolve. Movimentos e luz permitem-nos distinguir e nomear a natureza de cada coisa, a sua doçura, o seu brilho, a sua vivacidade. As propriedades da cor das coisas são inimitáveis. O esplendor do ouro do meu anel ficaria reduzido a pacotilha mesmo pelo pincel do mais simulador dos pintores. E depois, um dia… Após muitas errâncias e depois de ter visto poucas coisas verdadeiras porém muitas , constatei que aquilo que saía da minha imaginação era, as mais vezes, desprovido das cores do arco-íris. Aceitei pois que essas coisas indeterminadas fossem sobretudo a preto e branco como as teclas de um piano às quais estou muito ligado. Desde então apraz-me poder criar coisas singulares que não se parecem com nada, excepto com elas mesmas, mas que carregam em si a recordação da cor das sensações, das emoções e dos sentimentos que vivi a par e passo. Representam, a meus olhos, os rebentos que colho no

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mundo de fora e que vou cultivar e fazer florescer, mais tarde e de outro modo, no mundo de dentro. Ao correr das minhas serenas vadiagens no coração do movimento das coisas, das suas cores, dos seus cheiros e perfumes, o meu objectivo não é captar a respectiva imagem à maneira dos pintores que tentam representar o que vêem. Primeiro tento fruir da beleza que a Natureza me oferece. A seguir, pelo caminho, procuro apreender a essência das dinâmicas que modelam as coisas, que moldam a sua morfologia e que dão essa variedade de aspecto sempre a mudar que tanto me encanta. Essas dinâmicas requerem, para poderem ser partilhadas, meios de representação depurados e uma linguagem apropriada que perseverantemente vou conquistando. Passando… Avançando… Errando, lentamente…

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depรณsito legal: 438203/18

lisboa 2018


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