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Capítulo Segundo
Já tinha passado ano e meio desde os primeiros rumores do fatídico vale. O rei, que não havia meio de sossegar com o pensamento do grilo misterioso, dobrou a promessa e mandou publicar em todos os jornais que faria conde quem lhe apresentasse o famoso animal! Apesar da promessa ser realmente aliciante, tentadora, pouco interesse despertou. Depois de tantas aventuras e provas sem resultado, quem se atrevia a procurar ainda o malfadado bicho? Só algum avarento que estivesse disposto a tudo, até a vender a alma, por amor de cinco réis!
E foi mesmo o Pica-Pau, um célebre avarento que vivia nos arredores de Palmude, quem se aventurou ainda. De nariz dobrado, como um arco, sobre um bigode de penugem de ratazana, magro como um cão a quem a fome deixou só dois olhos e o faro, dava pela presença de um tostão a cinco léguas! Raramente o viam à luz do dia. Fechado a sete trancas no casebre, quando saía, quer de verão quer de inverno, era embrulhado num sobretudo ruço de mangas estreitas onde apenas cabiam
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os dois tocos de pau que lhe moviam nervosamente duas mãos inquietas de cinco tenazes compridas, com unhas retorcidas cheias de verdete.
Todos o conheciam por aqueles lugares! Corria fama que passava o dia na toca como um pica-pau (foi daí que lhe veio o nome) a cantar e a recontar as moedas que tinha enterradas em buracos nas paredes. Só ao cair da noite é que lhe viam a cabeça com dois tufos de pelo grisalho, a tossir ao postigo como quem se levanta de manhã a ventilar a traqueia! Depois ficava a noite toda de olhos fosforescentes, espetados numa fenda da parede a perscrutar os ruídos e as sombras! Todo o mundo conhecia o avarento de Palmude! Já ninguém lhe pedia esmola. Se lha pediam, olhava cinco vezes para os olhos do mendigo, media-o todo, metia as mãos às cavernas do sobretudo e, com um sorriso arrogante, dava um tostão. Mas para ele, dar era a mesma coisa que receber: e pedia dois de troco!
Ora o Pica-Pau que andava a par de todos os altos e baixos do câmbio internacional e de todas as especulações da bolsa e capitais de empresa, leu a notícia da promessa real. A perspetiva de um dia vir a ser conde... brilhou-lhe com tanta intensidade que o cegou. Ficou cego! Meditou por uma semana na empresa. Todos os dias a quem passava pelo carreiro sobre o qual dava o postigo do casebre, perguntava novas do grilo. Ninguém o apanhara ainda. Ficava para ele. Seria ele o primeiro a pôr-lhe os olhos, o primeiro a agarrá-lo, o primeiro a mirá-lo e a remirá-lo nas mãos, o primeiro a beijá-lo centenas e centenas de vezes como à joia mais preciosa de um tesouro! Assim o esperava e assim procurou fazê-lo. Uma noite não sei como se aventurou a tanto. Depois de ficar de vigia na fenda a perscrutar as pulsações do coração dos montes e caminhos... todos os ruídos e todas as vozes, todos os pios e todas as sombras, quando viu que nada se mexia, que nada respirava, que só o silêncio dormia nos cobertores da noite, abriu uma janela de grades duplicadas que ficava rente ao solo, esgueirou-se
como uma enguia através do buraco, fechou-a com uma chave de três voltas, embrulhou-se bem no sobretudo ruço... e foi-se.
Ninguém o vira... ninguém o via... ninguém o havia de ver. E lá foi com umas alpercatas de lã pelo carreiro menos frequentado que levava ao Vale do Castanheiro.
Como já quase ninguém se importava do grilo, os terrores que as fadas despertavam foram-se perdendo... diluindo. Quando pisou a terra sagrada do misterioso Vale, afiou os olhos na escuridão, e enxergou, não sem um certo terror instintivo, a sombra ereta do castanheiro encantado. Lá estava ele de sentinela, negro como a sombra de um demónio, a quem bastava abrir os dentes para mirrar de espanto o homem mais corajoso deste mundo! Fitou os ouvidos como uma lebre perseguida, e, lá ao fundo, a dominar a majestade da noite, a voz fatídica do grilo: gri gri... vem até aqui... vem até aqui...
O Pica-Pau estremeceu! Era a primeira vez que o grilo modulava uma nova rima: vem até aqui... vem até aqui... Espanto e coragem, receio e animação, não sabia qual era o mais forte! Decidiu-se! Pressentiu ingenuamente naquele gri gri, um convite que jamais o grilo dirigira a ouvidos humanos! Vem até aqui... vem até aqui... Seria um convite benévolo ou um desafio descarado? Nunca fizera mal a ninguém! E a consciência palpitou-lhe felicidade! Vamos para a frente! E foi.
A noite era escura. Uma noite de novembro, fria e calada... Fria e calada como os cemitérios! Não havia um rasto de lua no firmamento. Um rasto de luz no universo!... Lá no fundo, como sentinela do silêncio, a voz do grilo: gri gri... vem até aqui... vem até aqui.
Aventurou-se e foi mesmo. Afinal o grilo, se existia, devia ser seu amigo. Se não existia, a voz e o castanheiro não deviam passar de uma fantasia popular. Para quê ter medo?... Para o Pica-Pau só contavam os ladrões que lhe farejavam o cofre e os bolsos! Levou a mão à algibeira, tirou uma garrafinha e engoliu um decilitro de cachaça bagaceira.
Aqueceu e decidiu-se! Procurou convencer-se de que o grilo era um bicho real, um grilo como os outros... Cantava de outro modo, sabia mais cantigas de cor, e era tudo! Como havia génios entre os homens porque não admitir génios entre os grilos?... E, pé ante pé, esqueceu-se das fadas e do castanheiro, e foi-se mas é ao grilo. E o grilo lá estava a cantar na solidão do vale: gri gri... vem por aqui aqui...
Estranhou a mudança da cantiga, mas como pensava que o grilo era um génio, acomodou-se facilmente à nova variante. Só o impressionava a bondade do grilo que até lhe indicava o caminho: vem por aqui... vem por aqui...
Está bem! Lá por isso vou.
Estava-lhe à direita, talvez a uns 12 passos. Puxou do isqueiro, agachou-se bem, colou o ouvido na direção da voz, e, com pés de veludo, sem pestanejar, foi avançando, avançando devagarinho, devagarinho, com medo de o assustar! E o grilo sempre a cantar: estou aqui... estou aqui... Cantava-lhe mesmo debaixo dos pés! Leve como uma sombra, o Pica-Pau dobrou-se por completo sobre a erva. E o grilo mesmo debaixo do nariz: gri gri... estou aqui... estou aqui... Desta vez não me escapas, disse o Pica-Pau a tremer de comoção.
Fitou os olhos na relva... esquadrinhou durante meia hora três palmos do campo... Nada! Estava escuro... Por mais que arregalasse os olhos, nada! Não via nada. E o grilo a cantar-lhe debaixo do nariz: gri gri... estou mesmo aqui... estou mesmo aqui... Só faltava dizer que o apanhasse! O Pica-Pau danou-se! E se acendesse o isqueiro? Mas o grilo poderia fugir. Amarrou-se mais. Com toda a cautela chegou mesmo a roçar o bigode pelas ervas... E ficou lá, sem respirar... debruçado como uma raposa a farejar a toca de algum láparo. E o grilo a cantar-lhe debaixo do bigode: gri gri... estou mesmo aqui... estou mesmo aqui... “Ladrão!”, dizia o Pica-Pau, com a fantasia quente da bagaceira, “que me estás a dar mais trabalho que o que mereces!”
E o grilo sempre a cantar, a cantar-lhe a mesma cantilena: estou mesmo aqui... estou mesmo aqui...
O grilo a cantar e o Pica-Pau a esperar... Tanto esperou embalado na cantilena monótona do grilo, que, sem o querer, deixou-se adormecer devagarinho... Estava mesmo a fechar os olhos quando lhe passou pelo bigode não sei o quê. – É ele!
Meio atabalhoado pela comoção, agarrou com uma mão um tufo de ervas para o não deixar escapar, e com a outra riscou no isqueiro. Esquadrinhou daqui... esmerilhou dalém... esbugalhou os olhos quanto pôde... Nada!
E o grilo a cantar-lhe debaixo do nariz, à frente dos olhos: gri gri... eu não fugi... eu não fugi... Pica-Pau começou a ter medo. Demónio de grilo! Não é como os outros! Julgando que se tinha metido pelas mangas do sobretudo, começou a inspecioná-las com avidez, encafuando nariz e isqueiro nas mangas do capote.
E o grilo sempre a cantar: gri gri... não é aí... não é aí...
E o Pica-Pau cada vez se admirava mais. Deram uma risada ao longe. Nem deu por ela. Dianho de grilo! Apurou os ouvidos.
E o grilo a cantar: já ando aqui... já ando aqui...
A voz parecia-lhe vir do bolso do capote. E lá se meteram nariz e isqueiro: um a farejar, e o outro a sondar, a rebuscar o fundo daqueles bornais.
Ao longe, outra gargalhada mais forte. O Pica-Pau assustou-se. Arrebitou as orelhas, ficou a farejar o norte por uns leves momentos... e continuou a tarefa. Fora impressão.
E o grilo a cantar: gri gri... subi para aqui... subi para aqui...
A voz vinha agora do alto. Cantava-lhe mesmo por cima da cabeça. O Pica-Pau alegrou-se: Agora não me engano; anda no chapéu, disse consigo, num sorriso feliz de esperança. Tirou com toda a cautela
o chapéu, arregalou os olhos ansiosamente, aproximou o isqueiro e... uma solene risada ao longe e o grilo a cantar a uns cinco metros de distância: caí para aqui... caí para aqui...
Desta vez o Pica-Pau ouviu a gargalhada distintamente. Ouviu-a e desconfiou. Quem andaria por ali àquelas horas? Era gente ou eram bruxas?...Fadas ou demónios?... Almas do Purgatório ou do Inferno?... E ficou de olhos e ouvidos alerta, perdidos no silêncio que só o grilo cortava: gri gri... anda p’ra aqui... anda p’ra aqui...
E ficou assim, sem arredar passo, hirto como um fantasma, com a mente confusa... Não se mexeu por um quarto de hora. E não foi capaz de desentranhar ruído algum do silêncio da noite. O Pica-Pau acalmou. Acalmou mas ficou sempre de ouvido desconfiado. Suava por todos os poros. O bicho dava-lhe mais trabalho que o que valia! E a noite ia avançando, e ele tinha medo que o primeiro vislumbre da madrugada o apanhasse naqueles sítios.
E o grilo a cantar-lhe com mais insistência que nunca: anda p’ra aqui... anda p’ra aqui….
A tentação era forte demais. Decidiu-se outra vez e... foi. Foi porque ele, afinal, acreditava no grilo. Tinha-lhe andado no sobretudo; subira-lhe para o chapéu... e, agora, talvez longe da toca, ser-lhe-ia difícil esconder-se. De isqueiro na mão, agachou-se quanto pôde, e começou a vasculhar, de gatas, erva por erva. Mas o grilo tinha o demónio no corpo. Quando Pica-Pau o sentiu a um palmo de nariz, sorriu! Mal tinha amarfanhado as ervas com o chapéu a ver se o caçava debaixo, já o grilo lhe cantava atrás das costas: estou aqui... estou aqui...
Enganei-me. E virou-se para trás, de repente. Assestou os ouvidos e o grilo a cantar-lhe da outra banda: gri gri... vira p’ra aqui... vira p’ra aqui...
Eram dois ou um?... O Pica-Pau danou-se. Ia a virar-se e já o grilo de novo do outro lado: gri gri... olha p’ra aqui... olha p’ra aqui...
Fulo como um cão danado, virou instintivamente a cara na direção da voz. E já ela a cantar-lhe do outro lado: gri gri... não é p’ra ali... mas é p’ra aqui... O Pica-Pau perdeu a paciência. – Fica para aí! O demónio te leve!
E ergueu-se, que já lhe doíam os lombos, não sem antes ter espirrado 11 vezes, que era a conta dele! Reprimiu-se quanto pôde, mas o fumo do isqueiro tinha-lhe envenenado os brônquios, e precisava de espirrar! E espirrou a conta certa embora tentasse abafar o ruído dentro do chapéu amolgado. Quando acabou, teve medo. Tê-lo-iam ouvido? Porque não se tinha deitado na erva e abafado os espirros no chão? Era já tarde. Se alguém o ouvira, ouvira-o! Acabou-se. Não havia remédio. O que interessava é que não vissem quem era. E seria difícil vê-lo. A noite era negra e o isqueiro para mais apagara-se com a primeira rajada de vento que lhe saíra impetuosamente das narículas! Por precaução, afundou os olhos em todas as direções, escutou bem e... nada! A noite era a mesma: silenciosa e funda... Até o grilo se calara. Achou o caso estranho porque não era costume. Metera-lhe medo ou esmagara-o com algum espirro?...
Estava nestas considerações quando sentiu alguma coisa passar-lhe pelo tornozelo direito. Sobressaltado, riscou atabalhoadamente o isqueiro, e... surpresa medonha! A três dedos da alpercata viu o grilo que se escondia na erva.
É ele! E disse-o até em voz alta pelo entusiasmo que o inundou!
Afinal é um grilo! E deitou-se avidamente sobre o pedaço de chão onde o vira, abraçando com o braço esquerdo a maior porção que podia, e com o direito remexendo aflito a erva.
E o grilo a cantar-lhe mesmo debaixo do bigode: olha p’ra aqui... p’ra aqui...
E quanto mais ele olhava menos o via. Olhava para a direita, cantava-lhe à esquerda; olhava para a esquerda, cantava-lhe à direita! Mas ele estava lá! Vira-o! Era um grilo, afinal!
E manteve-se lá uns bons dez minutos a virar a cara para a direita e para a esquerda. Já lhe doía o pescoço. Estava numa posição desastrada! Mas aguentava. Tinha-o ali. Vira-o!
E o grilo a cantar-lhe como dentro dos ouvidos: olha p’ra aqui... olha p’ra aqui...
Demónio de grilo! Não havia jeito de lhe pôr os olhos. Procurava à direita, procurava à esquerda, nas folhas e nos caules... e... nada! Diabo te leve! E ia-se a levantar. Oh felicidade! Naquele momento, mesmo debaixo dos olhos, quase a roçar-lhe pelas pestanas, viu a figura do grilo. Não lhe deitou a boca porque teve medo de o engolir. Mas deitou-lhe a mão. E tão precipitadamente o fez que lançou o isqueiro para o chapéu e daí a pouco era uma labareda de S. João! Que se interessava ele? Tinha o grilo nas mãos! O resto não contava. Às cegas, na escuridão, arrancou ervas e terra que a forquilha ávida dos dedos tinha abrangido! Não se enganara! Oh felicidade! O grilo cantava-lhe no punho cerrado! Gri gri gri... estou preso aqui... estou preso aqui...
O Pica-Pau não morreu de contentamento por um triz. Tão alegre ficou que lhe ia dando um desmaio! Embrulhou a erva e o grilo num lenço grande, agarrou-o bem agarrado e largou a fugir pelo campo fora. Dava quanto as pernas lho permitiam. Uns restos de superstição e de medo empurravam-no ainda mais! Levava um grilo, mas na voz desse grilo ia alguma coisa de estranho... alguma coisa de misterioso... E fugia... fugia pela noite fora. Estava morto por chegar a casa para ver o famoso grilo que toda a gente procurava. Só ele tivera a sorte de o achar!
Ia a sorrir para a saca das libras, vestido de conde, rodeado de criados, quando, ao meter para o atalho que levava ao casebre, um barulho medonho na boiça das carrasqueiras o estacou meio morto! Ficou sem fala, sem respiração! Passou-lhe pelas orelhas uma pedra a zunir! Aterrado, deitou a correr como um perdido! Uma segunda saraivada
ressoou pelos ramos verdes dos carrascos, às costas dele. Bufava e suava! O capote protegia-o. O que tinha medo era da careca! Se lhe acertavam uma, da maneira como ia a ferver, abriam-na ao meio! Ia nestes pensamentos de terror quando uma pancada oca como na barriga dum bombo lhe desfez nas costas meia arroba de terra! O Pica-Pau roncou como um porco ferido e caiu, de bruços, num charco! Por felicidade que tinha pouca água. Rápido como um gato escaldado, levantou-se como pôde, sujo de lodo, e continuou a carreira. Nem para trás olhava! Só pensava no grilo.
E o grilo lá ia: gri gri... cá vou aqui... cá vou aqui...
Quando se viu em casa, atirou-se desfalecido, a suar em bica, para cima da cama. À luz duma vela de sebo desdobrou trémulo, sofregamente, o guardanapo em que trazia o grilo. Desilusão! Entre as ervas do Vale do Castanheiro estava um enorme escaravelho! Caiu para trás e ficou a dormir...
Ao outro dia já toda a gente dos arredores falava e ria da aventura do avarento de Palmude!...
“Se fosse um rouxinol as fadas fadavamno para ser o rouxinol mais melodioso de todos os rouxinóis; assim como foi um grilo fadaramno para ser o grilo mais bonito de todos os grilos. E nasceram lhe duas asas de oiro, tão lindas e refulgentes que venceriam em beleza a pérola mais linda da mais rica de todas as princesas deste mundo. E cantava deliciosamente! Pelas noites quentes de Julho, quando as papoilas e os malmequeres dormiam nos braços das espigas, era um encanto ouvir as serenatas que o grilo das asas de oiro cantava!...”
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