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Capítulo Primeiro
Nasceu numa noite de luar em que a Lua era grande e enchia o silêncio dos campos com os mistérios da sua Luz. Teve a sorte de nascer à beira dum castanheiro muito velho que já vira passar gerações e gerações no caminho velhinho e santo que ligava as aldeias em redor num abraço de bondade. Era esse castanheiro uma árvore respeitada com veneração supersticiosa por todos os habitantes daqueles sítios. Diziam por ali que as raízes do castanheiro iam dar a uma mina muito funda. Nunca ninguém a vira; mas em noites de lua cheia, precisamente ao ressoar da última badalada da meia-noite, saíam do tronco da gigantesca árvore uns sons estranhos, como de fontes a gemerem num mundo de distância. Diziam aquilo, mas nunca ninguém o experimentara, quer porque ninguém se dava ao incómodo de lá ir escutar os segredos do castanheiro à última badalada da meia-noite de lua cheia, quer porque ninguém se aventurava a afrontar as maldições que as fadas reservavam para todos os que tentassem fazê-lo. Era realmente uma árvore sagrada, a mais respeitada de todas as árvores dos montes e dos vales.
Ora o nosso grilo teve a sorte de nascer ao pé do castanheiro sagrado e exatamente ao soar da última badalada da meia-noite de uma noite fantástica de lua cheia.
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Como o lugar era habitado por esses seres misteriosos a que a imaginação do povo se habituou a chamar fadas, tudo o que por ali nascia no fatídico momento da última badalada da meia-noite de uma noite de lua cheia, nascia protegido ou malfadado por algum desses espíritos misteriosos que ninguém vira mas de que todos tinham medo de sentir as influências.
Ratazanas do monte que por ali andavam sem rabo, sapos sem olhos, coelhos sem dentes, pássaros sem bicos, raposas sem orelhas, toda a sorte de calamidades e defeitos que até sobre as plantas tinha caído, era a consequência dos terríveis anátemas e sortilégios que as fadas do castanheiro ditavam a quem nascesse ao soar da última badalada da meia-noite de uma noite de lua cheia. Era para onde lhes dava. Se nessa noite de lua cheia o vento soprava do Sul e trazia cheiro de alecrim selvático, as sortes eram felizes. Mas se o vento soprava do Norte e trazia cheiro de murta as sortes eram de desgraça. Pobre de quem nascia nessas desventurosas noites. Seria um infeliz por toda a vida.
Ora o nosso grilo viu a luz numa dessas noites em que o vento trazia cheiro de alecrim. E as fadas fadaram-no bera.
Se fosse um rouxinol, as fadas fadavam-no para ser o rouxinol mais melodioso de todos os rouxinóis; assim, como foi um grilo, fadaram-no para ser o grilo mais bonito de todos os grilos. E nasceram-lhe duas asas de oiro, tão lindas e refulgentes que venceriam em beleza a pérola mais linda da mais rica de todas as princesas deste mundo. E cantava deliciosamente! Pelas noites quentes de Julho, quando as papoilas e os malmequeres dormiam nos braços das espigas, era um encanto ouvir as serenatas que o grilo das asas de oiro cantava!... Quando, entre o estridor dos ralos e o grito dos sapos e mitibós, rompia, como
de um mundo estranho, a voz do nosso grilo, tudo se calava. E o timbre sonoro do seu gri gri ecoava pela noite deserta com um não sei quê, de tão especial que até a bica da fonte emudecia para o escutar... Era a voz dum grilo, e ao mesmo tempo a voz de um ser estranho que jamais ecoara por aqueles sítios. E até os rouxinóis que cantavam nos choupos escuros dos arredores calavam as suas elegias, e a noite repetia no silêncio do Vale do Castanheiro: gri gri... gri gri... nasci aqui... nasci aqui...
E o que é mais de estranhar, é que, até em noites de inverno, quer o vento assobiasse em gemidos, quer a neve caísse em nortadas de gelo, quem por ali passasse poderia ouvir, como em noites de verão, a mesma voz timbrada do nosso grilo: gri gri... gri gri... eu não morri... eu não morri... E de facto, embora a vida dos grilos seja curta, a voz do grilo das asas de oiro já havia anos que, todas as noites, de verão ou de inverno, primavera ou outono, atraía a admiração de todos os que passavam, a horas mortas, por aquele vale. Nasciam os rebentos da primavera, tombavam as folhas amarelas do outono… e o grilo das asas de oiro sempre com a mesma voz de mocidade: gri gri... eu não morri... eu não morri... Vinham os calores de estio, caíam as nevadas de inverno, e sempre a mesma voz no Vale do Castanheiro: gri gri... eu não morri... eu não morri...
Já tinha corrido a voz que no Vale do Castanheiro havia um grilo encantado. E não era sem um certo medo supersticioso que os viandantes passavam, noite velha, por esses sítios. E a fantasia de muitos não ficava por aqui. Pensavam em cavernas misteriosas onde as fadas teciam à lareira com novelos de luar... E o grilo cantava enquanto elas teciam...
Ora a notícia chegou aos ouvidos do Rei. E na corte ficaram todos com desejo de ouvir e de ver o tal grilo encantado. E o rei mandou voz por toda aquela região que, quem lhe apresentasse vivo o
grilo encantado, dar-lhe-ia, de prenda, uma saca de libras em oiro. Podeis imaginar a ganância de toda aquela gente! Todos se deitaram à procura do grilo encantado. Uma saca de libras em oiro! Para quem apanhar um grilo! Quem não se aventuraria? Naqueles dias não se falava de outra coisa. Nos palácios dos ricos e nos casebres dos pobres, na rua e na taberna, por toda a parte falavam da promessa do rei. Mas ninguém se aventurava a ir de noite ao Vale do Castanheiro! Receavam que as fadas se vingassem de tamanha ousadia! E para mais, ninguém sabia ao certo se existia o tal grilo. Que havia uma voz que de noite cantava de grilo, isso todos sabiam. Mas agora que tal grilo existisse, isso ninguém o dava por certo! Muitas vezes os pastores da região, que andavam a guardar o gado por aqueles campos, fizeram pesquisas e mais pesquisas... Rebuscaram todos os buracos, perscrutaram todas as tocas, farejaram em todos os cantos, bateram todas as ervas (e tudo à luz do dia, porque tinham medo de noite) e nada! Não houve meios de lhe darem com o rasto! Nem sombra de grilo! E o certo é que de noite lá estava ele. E todos o podiam ouvir.
Os dias iam passando... Não se falava de outra coisa. E à força de falarem do grilo já se inventam mil e uma histórias... Diziam uns que tinham visto ao pino do meio dia uma coisa a brilhar, a modo que duas asas, ao pé do castanheiro, mas, quando se iam aproximar ouviram uma gargalhada misteriosa e o brilho sumiu-se na caverna do tronco...
Outros, que ambicionavam passar por valentões, afirmavam aos mais receosos que tinham feito buscas durante a noite no Vale do Castanheiro. Chegaram mesmo a tocar com os pés onde ele cantava... Mas, num repente, sentiram um formigueiro pelas pernas acima e... deitaram a fugir empurrados por um vento misterioso.
Havia versões de todos os sabores e feitios! Quem dizia que o tinha agarrado e, quando o trazia para casa, numa curva do caminho lhe apareceram as bruxas que lho roubaram...
Quem afirmava que levara duas bofetadas valentes ao bater da meia noite no carreiro do Calvário que rodeava o Vale do Castanheiro... e sem saber quem lhas dera!...
Cada noite que passavam era uma aventura que diziam. E o caso já dava para rir. Mas a mais engraçada era a dum moleiro que, passando com o burro carregado de farinha, noite adentro, pelo Vale do Castanheiro, ouvira o grilo a cantar: gri gri... estou aqui... estou aqui... Emocionado até aos ossos, prendeu o burro a uma oliveira e foi-se atrás da voz: gri gri... estou aqui... estou aqui... – Desta vez não escapas, – dizia ele, desnorteado pelo brilho da saca das libras que o rei prometera. E avançou em direção ao Castanheiro. Cego pela esperança de agarrar o grilo nem se lembrou das fadas... gri gri... estou aqui... estou aqui... Dessa vez a voz saiu-lhe dos pés. Bêbado de alegria, agachou-se para o apanhar. Nunca o tivesse feito! Apanhou tamanho murro nos queixos que ficou com a cara empanada por um mês! Mas o pior é que, ao chegar à beira do burro, nem burro nem nada viu. Tinha-lho roubado uma quadrilha de gatunos que andavam assolapados por aqueles sítios a ver se conseguiam agarrar também o grilo. Nessa noite agarraram mas foi 6 arrobas de farinha. O burro apareceu-lhe um dia na loja, às tantas da madrugada, magro como um cão. Nunca mais lhe apeteceu fazer caçadas noturnas. Disseram-me mais tarde que andou meio ano sem passar pelo Vale do Castanheiro... e depois, quando perdeu a sensação daquela terrível noite, não era ainda sem se benzer sete vezes que passava em frente do castanheiro sagrado...
Como ia dizendo, as façanhas e lendas daquele vale soturno iam-se multiplicando dia a dia. Todos queriam a saca das libras! Mas
ninguém conseguia pôr os olhos em cima do grilo. E todavia o grilo cantava todas as noites: gri gri gri... já quanto me ri... já quanto me ri...
Quem não se ria era o Galhetas, o sacristão mais velho daqueles lugares. Ao princípio ainda começou a encontrar graça aos acontecimentos, mas, depois que uma bruxa lhe foi pedir em segredo uma garrafa de água benta para esconjurar uns espíritos que apareciam em forma de porco à entrada de uma mina, o Galhetas começou de andar sério e meditabundo. Quem o visse passar, corcunda, arrimado à bengala de lodo, com dois olhos de toutinegra, logo diria, pelos jeitos que levava, que alguma coisa andava a ruminar lá no fundo da sua noite silenciosa... E andava mesmo.
Uma noite agarrou na opa e na caldeirinha com um raminho de alecrim bento, e foi-se, quando toda a aldeia dormia a sono solto, até ao Vale do Castanheiro. O Caniçadas, que naquela noite fazia de guarda a um talhão de melancias, foi quem deu pela sombra do Galhetas... Lá ia ele, trup-ca-trup, trup-ca-trup, com a opa enrolada no braço esquerdo. Apertado pela curiosidade, ficou à espreita. E lá o viu deslizar como um fantasma que a própria noite enchia de terror a qualquer ruído, para o campo do grilo...
Lá no fundo, o castanheiro encantado levantava-se na solidão da noite como a torre medonha dum castelo a dominar a amplidão soturna do vale... Metia medo a quem quer que fosse. E o Galhetas tinha-o. Mas o brilho do oiro cegava-o. Aquela saca de libras!... A lua redonda e grande embalava a noite num lençol branco de luar... Tudo dormia... Só lá no fundo, como trombeta da noite silenciosa, o grilo cantava: gri gri... quem vem aí... quem vem aí...
O Galhetas, que já tinha sido coveiro nos tempos de rapaz, estava habituado a conversar com as sombras dos cemitérios, mas naquela noite... cortava-as. Embora a noite fosse de verão, corriam-lhe da cara bagas de suor frio... E se não fosse a bengala de lodo teria caído, dobrado pelo meio. Parou umas trinta vezes antes de chegar ao lugar
donde lhe vinha a voz timbrada do fatídico grilo. A cada passo que dava rezava o ato de contrição...
O castanheiro lá estava, erguido e medonho... E ele sentia-se um átomo de pó diante desse gigante de ramagem negra! A cada passo que dava, as ervas gritavam-lhe: não avances! Mas ele lá ia... A saca das libras!... E a voz do grilo que ecoava no deserto da noite: gri gri... estou aqui... estou aqui...
Tinha-o perto... Sentiu-o a dois passos... Arrepiou-se todo... Poisou a tremer a caldeirinha, desdobrou com toda a cautela a opa com medo de o assustar, enfiou-a nos ombros, de olhos arregalados para o castanheiro silencioso... Benzeu-se três vezes, atabalhoadamente, a tremer como um epilético, molhou o ramo de alecrim na água benta, e, com uma cruz espasmódica, borrifou o luar da noite com a fórmula solene do exorcismo: eu... vos... esconjuro (e tremeu dos pés à cabeça)... espíritos do mal!...
O Caniçadas, que o via de um monte de urgueiras, ria como um perdido... Mal o Galhetas acabou a maldição de sua boa-fé, o grilo deitou-se a cantar com mais ardor: gri gri... morres aqui... morres aqui...
O Galhetas tremeu como um vulcão em atividade! Viu a noite vermelha! E o grilo a cantar: morres aqui... morres aqui...
Fantasia ou realidade?... Compreendeu que tinha feito uma ação de importância transcendental, fora do comum, um ato a que a solenidade da noite e do lugar emprestava qualquer coisa de medonho e de sobre-humano.
E o grilo a cantar cada vez com mais força, numa voz cada vez mais timbrada, cada vez mais sonora, cada vez mais insistente, cada vez mais terrível, cada vez mais longe de todas as vozes que os seus ouvidos ouviram! Estarrecido, de olhos esbugalhados, recuou três passos, ficou um momento como um esqueleto paralisado, virou devagar as costas… e deitou a fugir… a fugir... a fugir... a fugir com toda a
velocidade que as pernas lhe davam!... O Caniçadas ria como um doido! Veio-lhe a tentação de gritar “alto” quando o viu passar a uns 10 metros do caminho. Mas não o fez. Limitou-se a atirar-lhe com um torrão que, por erro de cálculo lhe assentou mesmo na marreca! Nunca o tivesse feito! O Galhetas perdeu-se. Sob o impulso daquele murro misterioso, deu quanto pôde, desnorteado e cego. O Caniçadas, ao ver a sombra do Galhetas de opa desfraldada, aos pulos como uma raposa manca, pelo campo fora, rebentou numa gargalhada espontânea e forte! Foi o pior que pôde fazer! O Galhetas que, apesar de tudo, ainda levava os ouvidos abertos, sentiu nessa gargalhada misteriosa que a noite dava, um tiro certeiro! Vacilou... fez três ziguezagues... e zumba! estatelou-se na ribanceira e caiu aos reboleirões para o caminho!... O Caniçadas abriu a boca para não arrebentar. Alongou o pescoço de cegonha, esquadrinhou a ribanceira e viu o Galhetas de papo para o ar à borda do caminho. Julgou-o morto. Sentiu um calafrio de pressentimento sinistro. “Morreu!”, pensou com ele. E deitou a fugir antes que a madrugada o denunciasse como assassino.
Ao outro dia não se falava de outra coisa! Os almocreves que faziam o caminho daquelas paragens levaram a nova para as vizinhanças. Ninguém falava senão no Galhetas de Palmude. Andou um mês para se restabelecer do susto! As trindades da noite, nunca mais se aventurou a tocá-las sozinho. Ia sempre acompanhado do filho. E era o único ofício que desempenhava, que o resto não o quis o prior. Bastava vê-lo de opa e caldeirinha nas cerimónias para quebrarem a seriedade do ambiente. Lembravam-se todos da manhã em que o trouxeram em braços para a aldeia e foram dar com a caldeirinha no campo do grilo...