José da Silva Lima
SABORES
À MESA DA PALAVRA ANO B
PREFÁCIO É impressionante o relevo que o Papa Francisco, na Exortação Apostólica Evangelii Gaudium, atribui à homilia: dedica-lhe 25 números (135-159, de um total de 288) que se estendem por 21 páginas (107-127, de um total de 224, na edição da Tipografia Vaticana); faz parte do capítulo central (o terceiro de 5), onde expõe o cerne da Exortação (“O Anúncio do Evangelho”); e aí é tema dos dois pontos centrais (II-III, de 4), cujos títulos são, respetivamente, “A homilia” e “A preparação da pregação”. Com tanto espaço e tanta centralidade, quase se fica com a impressão de ser o tema mais importante de toda a Exortação. Não é, penso eu. Mesmo tendo presente o contexto litúrgico mais frequente em que é feita a homilia (a Eucaristia dominical), seria demasiado redutor tirar essa conclusão. Mas há obviamente uma razão para o realce que o Papa lhe dá, e ele explica-a: “A homilia é o ponto de comparação para avaliar a proximidade e a capacidade de encontro de um Pastor com o seu povo. De facto, sabemos que os fiéis lhe dão muita importância; e, muitas vezes, tanto eles como os próprios ministros ordenados sofrem: uns a ouvir e outros a pregar. É triste que assim seja. A homilia pode ser, realmente, uma experiência intensa e feliz do Espírito, um consolador encontro com a Palavra, uma fonte constante de renovação e crescimento” (n. 135). Este encontro tem de ser precedido pelo do próprio ministro: por aquilo a que o Papa chama “a personalização da Palavra” (nn. 149-151), através de uma “leitura espiritual” (nn. 152-153). Não basta ao pregador “conhecer o aspeto linguístico ou exegético, sem dúvida necessário; precisa de se abeirar da Palavra com o coração dócil e orante, a fim de 3
que ela penetre a fundo nos seus pensamentos e sentimentos e gere nele uma nova mentalidade” (n. 149, citando João Paulo II, Pastores dabo vobis, n. 26). “Se não se detém com sincera abertura a escutar esta Palavra, se não deixa que a mesma toque a sua vida, que o interpele, exorte, mobilize, se não dedica tempo para rezar com esta Palavra, então, na realidade será um falso profeta, um embusteiro ou um charlatão vazio” (n. 151). E o que precisamos é de “testemunhas” (n. 150). É nesta perspetiva de encontro pessoal com a Palavra de Deus que situo o presente livro do Padre José da Silva Lima: encontro feito por ele, como autor. Não são homilias, proferidas ou a proferir. São sim, como o próprio escreve, “reflexões”, feitas à “Mesa da Palavra”, em que foi seu “desejo saborear os textos” bíblicos e a Palavra de Deus se tornou sua “companhia de meditações interiores”. Um “presente” que ele, a partir de agora, põe à disposição de todos – crentes e não crentes – e não apenas dos ministros da Palavra. Mas, se entre os leitores estiverem ministros da Palavra (e queira Deus que estejam), nada os impede de acolherem a oferta, não como homilias a repetir, mas como subsídio para a sua preparação, na linha da “personalização da Palavra” de que fala o Papa – uma personalização feita semana a semana, saboreando o que o autor foi saboreando, três anos atrás e a um ritmo igualmente semanal. Mas o livro é oportuno também por outra razão: estamos na celebrar, na Diocese de Viana do Castelo, o jubileu dos 500 anos do nascimento do Beato Bartolomeu dos Mártires, para quem a pregação era a primeira de todas as funções episcopais: “Que outra coisa vem a ser o bispo, senão como que o sol da sua diocese, homem todo a arder em zelo, votado inteiramente à conquista das almas para Cristo, a pregar sempre com 4
o seu exemplo e muitas vezes com a sua palavra?” (Estímulo de Pastores, II, cap. VII). Uma missão extensiva aos membros do presbitério, mas para a qual poucos estavam preparados então. Por isso escreveu para eles o Catecismo ou Doutrina Cristã e Práticas Espirituais: para, domingo a domingo, nele se apoiarem ou mesmo o irem lendo aos fiéis no contexto da celebração da Eucaristia. Não é essa a situação actual dos nossos padres. Graças a Deus. Mas as razões apontadas pelo Papa mantêm-se. Daí que, no âmbito das celebrações jubilares em curso, tenhamos decidido dedicar as jornadas diocesanas de formação permanente do clero ao tema da pregação. Que o presente livro do Padre José Lima, membro do Presbitério de Viana do Castelo, surja neste mesmo ano – e sem que lho tenhamos encomendado – é uma graça que não posso deixar de atribuir ao Beato Bartolomeu dos Mártires. Agradeço-a aos dois, ou melhor, a Deus que, deste modo e por meio dos seus mensageiros, continua a presentear-nos com as delícias inesgotáveis da sua Palavra. Resta-me antecipar o voto expresso pelo autor no final da introdução: “Boa leitura.” † Anacleto Oliveira (Bispo de Viana do Castelo)
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ABERTURA Voluntariamente pastoral é o projeto que vos apresento. Do âmbito da área teológica que dá pelo nome de Teologia Prática, como se designa entre os que mais a ela se dedicam, sobretudo na sequência do último concílio do Vaticano. Gostaria de percorrer os três ciclos da Liturgia (se possível) com o intuito de partilhar algumas reflexões, de sabor marcadamente prático-pastoral. Deus me ajudará, como acredito. Atento que estou à fecundidade da Mesa da Palavra que cada domingo se coloca aberta ao paladar dos fiéis, é meu desejo saborear os textos numa perspetiva sobretudo pastoral, que leva a discernir no presente as iguarias que se oferecem a todos. Iniciamos no Ano B da liturgia, no ano segundo de um período de três. Fazemo-lo como quem está à mesa, deliciando-se com as “delícias” que constituem os Seus conselhos (Sl 118, 24) ou deleitando-se nos mandamentos (Sl 118, 47), lei que é dada por gratuidade e para o bem. “Como são doces ao meu paladar as tuas palavras Mais doces do que o mel para a minha boca. Odeio a hipocrisia Mas tenho afeição à tua lei. Abro com avidez a minha boca, Porque tenho fome dos teus mandamentos. Eu suspiro, Senhor, pela tua ajuda; A tua lei faz as minhas delícias” (Sl 118,103. 113. 131. 174).
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Como alguém que prepara a mesa para a sua refeição, colocando talheres e pratos e cozinhando os seus petiscos, assim tive muitas vezes de ler um bom comentário bíblico para me deliciar com os manjares do Senhor. A Palavra de Deus tornou-se a minha companhia de meditações interiores. Como se não bastasse, tive uma experiência de encontro na preparação dos alimentos e era como se o Senhor repetisse sem cessar o que dissera ao profeta Ezequiel: “Abre a boca e come o que te vou dizer” (Ez 2, 8b). “Comi-o e ele foi, na minha boca, doce como o mel” (Ez 3, 3b). Habituei-me a comer sem cessar a palavra de Deus. Como quem come um manjar delicioso, apontei os prazeres que me dava sempre que a minha boca se enchia do seu paladar. Agora, partilho como quem oferece um presente. Não interessam discussões desajeitadas e por vezes para perder tempo, mas os sabores da palavra “mais doces que o mel, o puro mel dos favos” (Sl 18, 11). Cada domingo, o cristão (e mesmo quem não o seja) pode deleitar-se com os “pratos” que a Palavra de Deus lhe oferece. Dessa Palavra, como manjar, nascem as breves reflexões que se apresentam. A Palavra de Deus é para saborear sem pressas, deleitando-se com os sabores sempre renovados que experimentamos à sua mesa. Um manancial inesgotável que hoje está disponível para cada um. Todos usufruem deste “prato” inesgotável que nutre nos crentes o paladar divino e que oferece aos homens de boa vontade o desejo imenso de experimentar o seu sabor. É de pobres e ricos, é de sãos e de doentes, é de cultos e de gente menos culta, é de grandes e pequenos e congrega numa mesa os que possuem um coração simples. No paladar que nasce na nossa boca refletem-se as diferenças que nos unem e a unidade que nos pluraliza. Trata-se de uma mesa universal que 7
vem do fundo do tempo e é também nisto que ela se apresenta como muito rica nos momentos que nos são dados. Assim apresento este livro para que cada um saboreie o que eu também saboreei. Aqui e ali faço uma digressão maior, mas apenas para ajudar o paladar a saborear o que está escondido em alimento tão suculento. Com Marcos no primeiro evangelho “Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1, 1). Neste ano, é-nos servido como prato principal o texto escrito de Marcos. É uma boa notícia que vai ser dada em alimento. É evangelho que vai ser posto na mesa universal. A investigação aprofundada, hoje, considera-o como o mais antigo dos textos escritos como evangelho do Senhor. Oferece-nos genuinamente a mais antiga tradição apostólica, supondo já um a comunidade unida em torno de Jesus. O prato forte é bem condimentado e apresenta de forma simples o que Cristo disse e fez, sem longos discursos nem amplas cenas, mas tipicamente breve nas peripécias que descreve e muito parco nas palavras, ciente de que saborear bem é sobretudo uma questão de escolher e de se concentrar naquilo que se come. Não provocará distrações, mas apresentará o viajante da Galileia, o taumaturgo da Decápole, o resoluto em Jerusalém para aí se constituir em oferta abundante de vida para quem o consegue olhar como o centurião que acredita nele (Mc 15, 39). É curto, sem desenvolvimentos que suporiam mais anos de reflexão. Vai ao essencial e leva quem o medita à genuína forma de ser d’Aquele que anuncia “o reino de Deus”. Oferece um prato apetitoso, sempre muito pitoresco, não leva à rotina do comer, mas atrai quem está preparado para 8
a refeição. Algumas vezes, deixa ficar no seu itinerário uma pitada de hebraísmo para dar sabor ao seu manjar, o mesmo fazendo com alguns latinismos que tornam a comida menos rotineira e mais apetitosa; na viagem conta o que acontecia com o a sua figura de proa – Jesus – e cria um apetite constante para uma leitura com prazer. Não se perde com aspetos acidentais, nem fala da Lei, mas de Moisés, para não causar estranheza e não tornar nefasta a refeição. Vela pela sua qualidade, dizendo apenas o que é fundamental. Não se ocupa com longos reflexões que virão mais tarde, mas apanha o que de típico saía dos encontros ao longo do caminho. Assim, cada um sente abrir-se nele um recanto de felicidade e de gosto. Para tal, aqui e ali, dá ao seu prato, nos detalhes que o configuram, alguns diminutivos de bom paladar, pois despertam a atenção de quem poderia ser levado na corrente. Passa-se de episódio em episódio sem travões. Ao mesmo tempo, dá a entender que é mesmo um prato para comer quem quer e para ser deixado por quem não quer. É um texto muito primário pelo que leva o leitor ou comensal a aderir ou a afastar-se: na textura do prato que oferece parece estar em jogo a decisão de comensal. Nem para isso precisa de deitar condimentos, pois a narração presta-se a uma escolha fundamental de quem come ou lê. O Jesus de Marcos é muito acessível, embora seja confessado como verdadeiro filho e portanto o inacessível. Concede a primazia a Pedro, dá-lhe a palavra que convém, mas cada qual caminha na sua interessante descoberta. Confessar o filho supõe muito caminho percorrido. Mas o prato que se serve sempre não se aprecia sem cada um dos comensais. O paladar é um dom das papilas gustativas de cada um que ninguém pode emprestar a quem quer. Saborear é uma empresa pessoal e nisso 9
cada um investe: o manjar será pessoal; é para cada qual que está preparado. Quem vai saboreando, leva consigo, dentro de si, o olhar discreto de Quem para ele preparou o alimento: De olhar penetrante, Jesus guarda um precioso segredo. Uma sugestão O livro que tem entre mãos não é um livro para ler de um só fôlego; nem foi concebido desta maneira. È mais um livro para saborear como quem vai caminhando. Desta forma posso propor-lhe que o leia todas as semanas, consoante o tempo de que disponha. Como o comentário, ou o “sabor”, foi elaborado semanalmente, assim a leitura será mais fecunda se for doseada e bem meditada. A dimensão espiritual das Escrituras está posta em destaque, fazendo jogar a dimensão entre os textos e o tempo atual, bem como entre os testamentos, procurando uma leitura simples e espiritual que ajude o homem de hoje. A leitura semanal levará cada um a fazer passos sucessivos e a abrir-se ao fundamental deste relato para si no ambiente no qual está inserido. Uma leitura pausada apoiará uma caminhada pedagógica que se deseja benéfica. O autor é católico pelo que não esconde as suas opções sem procurar fazer prosélitos, mas oferecendo um guia de marcha, sem impor a sua fé, não se abstendo de escrever o que pensa e o faz neste precioso momento como crente. O seu texto é uma proposta. Ao leitor sugere-se que faça o seu caminho, sem pressa, saboreando o que lê, dando espaço à liberdade que o constitui. Boa leitura.
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ADVENTO
I Domingo do Advento Textos litúrgicos11: Is 63, 16b-17; 19b; 64, 2b-7 | Sl 79 (80) | 1 Cor 1, 3-9 | Mc 13, 33-37 Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: “Acautelai-vos e vigiai, porque não sabeis quando chegará o momento. Será como um homem que partiu de viagem: ao deixar a sua casa, deu plenos poderes aos seus servos, atribuindo a cada um a sua tarefa, e mandou ao porteiro que vigiasse. Vigiai, portanto, visto que não sabeis quando virá o dono da casa: se à tarde, se à meia- noite, se ao cantar do galo, se de manhãzinha; não se dê o caso que, vindo inesperadamente, vos encontre a dormir. O que vos digo a vós, digo-o a todos: Vigiai!”. Iniciando Vamos começar em ano litúrgico novo. Queremos iniciar um tempo novo, dado por Deus e sempre favorável, isto é, propício para caminhar com Ele e mais para Ele. Não é preciso muito da nossa parte, apenas estar disponível e atento a tudo o que pode dar possibilidades de viver mais na vizinhança de quem nos ama. Por isso, aproximar-se; viver na expectativa do encontro e vigiar sempre: não sabemos nem o dia nem a hora em que Ele vem para definitivamente estar connosco, mas estar vigilante para que a hora não me encontre desprevenido. Estarei alerta, fazendo só o que me é pedido a cada momento. Não viverei inundado num mar de coisas que me preocupam, mas passarei o tempo na expectativa de quem vai chegar sem tardar muito. Executarei dia a dia a estrita vontade do Pai, o que me faz rezar sem cessar para a conhecer; é o que me interessa de 1
As referências litúrgicas e os textos citados são do Missal Popular Dominical, Gráfica de Coimbra, 2002.
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momento: não atropelar cada dia com afazeres fúteis e inadvertidos, mas procurar o Reino de Deus que me vem visitar, para conseguir que eu viva na serena escuta da sua vontade. Rezarei para criar sintonia e para não confundir as minhas desculpas com a vontade de Deus que faz de mim em cada momento uma criatura nova. Neste sentido, habituar-me-ei a passar as horas naquilo que é essencial, sem as ocupar com o que é de desprezar. Nem terei muito que inventar, mas viverei o meu dia-a-dia de acordo com a oração que abrirá o meu dia: o Pai Nosso, que rezarei de mansinho. Então o meu trabalho, onde quer que esteja, será abençoado; esta oração me acompanhará: para contemplação e louvor de Deus que me criou e na esperança de lhe ser fiel na vinda do Seu Reino; tudo o resto há de vir como lhe digo. Escolherei uma meia hora no meu dia para aprofundar com S. Francisco de sales a vida devota2 que quero escolher e serei feliz por viver hoje como muitos fizeram na minha história. Não traçarei este objetivo como imposto, mas abraço-o como dádiva para mais viver intensamente o que mais me importa. O tempo do Advento é também tempo de prova. Recordo os dias do deserto, vividos no deserto por quem me deu origem e procurarei ser mais, onde o sol é mais ardente e onde a sede é mais lancinante: provarei assim que quero ir mais além na vida e amadurecer no amor fraterno. Não carpirei o mal dos outros, nem me atirarei ao trunfo de alguma caridadezinha, mas aliviarei o meu mais próximo e atenderei aos gritos dos mais familiares. Viverei na qualidade com os que estão mesmo à soleira da minha porta ou comigo partilham o mesmo teto.
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Cf Francisco de Sales, Filotéia, Petrópolis, Vozes, 9ª edição, 1986.
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O tempo do deserto fará de mim um personagem alegre e austero na tradução muito concreta da caridade ao pé da porta. Não serei indiferente para os do meu sangue, mas farei com eles uma estafeta nova de caridade prática que me trava os limites do meu aspeto sonhador. Avançarei na esperança de me encontrar em Deus que nos chama a todos para o banquete, que acredito celebrar na comunidade, na Eucaristia. O período do Advento não vem de negro nem é triste, mas veste de roxo e é marcado com sangue do Cordeiro que vem para tirar os pecados do mundo, para o embelezar connosco que acreditamos que “completou-se o tempo e o Reino de Deus está próximo” (Mc 1,15). Onde há caridade e amor, aí habita Deus.
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II DOMINGO DO ADVENTO Textos litúrgicos: Is 40, 1-5, 9-11 | Sl 84 (85); 2 Pe 3, 8-14 | Mc 1, 1-8 Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. Está escrito no profeta Isaías: “ Vou enviar à tua frente o meu mensageiro, que preparará o teu caminho. Uma voz clama no deserto: “Preparai o caminho do Senhor, endireitai as suas veredas””. Apareceu João Batista no deserto, a proclamar um batismo de penitência para remissão dos pecados. Acorria a ele toda a gente da região da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados. João vestia de pelos de camelo, com um cinto de cabedal em volta dos rins, e alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre. E, na sua pregação, dizia: “ Vai chegar depois de mim quem é mais forte do que eu, diante do qual eu não sou digno de me inclinar para desatar as correias das sandálias. Eu batizo-vos na água, mas Ele batizar-vos-á na Espírito Santo”. Advento Surpreendi-me a pensar advento, tempo de preparação para o Natal, tempo de paz, de comunidade, de deserto e de vigilância: I :: De preparação Como quem espera alguém que vem pensando em ti, que me deseja o bem e a felicidade; como quem espera alguém que há muito só deixou fotografias e que prometeu voltar quando pudesse, quando fosse o tempo adequado para uma festa à mesma mesa. E vem bem manso na certeza que dele necessito; vem para me dar alegria e muita paz de alma, nesta aurora já há muito esperada. Ao pensar que vem, sinto-me inundado da sua 15
luz: preparo os caminhos e os beirais onde cantarão os anjos comigo, felizes pela festa do universo que planearam só para ti como único. Todos serão assim num hino lindo que por todo o lado se canta nesta ocasião. II :: De paz Como quem vem para deitar o mundo depois de o lavar, na hora do crepúsculo. Precisa de ti, porque só de ti depende a alcofa para descansar. Vem vestido de ternura, vem sapiente, de olhos arreguilados, vem ao doce luar; vem quente, vem trazer um outro sol de que precisas quando chegar o tempo para levantares. Traz a calma e a serenidade duma criança que acredita em tudo, vem como infante mudo deixar que fales para se calar; a paz que vem com ele é muito mansa, não vai apagar a luz que ainda dorme; vem sobretudo mudar as leis que em ti ainda imperam, para te fazer um tanto mais ameno, mais sincero; vem modificar os sentimentos e aprontar-te com vestes mais humildes, mais austeras. Vem habitar teu coração e proceder à cirurgia que sempre esperaste. Viverás um tempo de tréguas. A humildade vingará na tua cortesia e o amor será a tua meiga face. III :: De comunidade Já que farás com todos um pacto de caridade: s audar-te-ão na rua que será mimada por todos e encontrarás o que todos te facilitarão; o menino brincará com o leão, sem ter medo nem depor sua simplicidade; verás a toca do animal feroz e poderás cantar com toda a criação odes suaves que todos saberão. Criarás bom ambiente nas ruas onde vives e saberás contribuir para o bem de todos com o teu trabalho simples, mas muito considerado; haverá tréguas infindas nos dissabores 16
e nas questões que atrapalham o teu dia-a-dia. Deixarás de ser mesquinho no bairro onde habitas, mas serás o construtor da tua cidade. Não usarás a língua para caluniar nem difamarás quem contigo está; passarás a ser franco com os teus vizinhos e assim nascerá a tranquilidade dentro de ti. Andarás leve e fresco, como os outros, pelas ruas da tua cidade. IV :: De deserto Pois verás os caminhos doutra forma; não considerarás nada só teu e não te incomodarás com as coisas que atrapalham; às nuvens atribuirás o longo peso que impedia de ver o teu novo céu; verás que na leveza o céu é mais azulado e o horizonte é muito mais distante; o futuro é muito mais para a frente e não te esmagarás na poeira dos carregados. Parecerás ter asas no andar e outra voz quando será a tua vez para falar, pois ficarás calado enquanto os outros quiserem a sua; serás mais meigo e terno no teu lar e darás a mão a quem pouco tem. Na longa estrada diante de ti, só precisas de estar atento ao vento; Deus vem nele para ti. V :: De vigilância Será o teu andar para apreciares a sua ligeireza e poder seguir por onde ele te levar. Estou convencido que ouvirás um dia aquela voz do meio do vento brando: Vigiai (Mc 13, 37). Terás então um companheiro que te levará longe, onde há muito precisas de chegar.
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III DOMINGO DO ADVENTO Textos litúrgicos: Is 61, 1-2a. 10-11 | Lc 1, 46-54 | 1 Tes 5, 16-24 | Jo 1, 6-8. 19-28 Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João. Veio como testemunha, para dar testemunho da luz, a fim de que todos acreditassem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar testemunho da luz. Foi este o testemunho de João, quando os judeus lhe enviaram, de Jerusalém, sacerdotes e levitas, para lhe perguntarem: “Quem és tu?”. Ele confessou a verdade e não negou; ele confessou: “ Eu não sou o Messias”. Eles perguntaram-lhe: “Então, quem és tu? És Elias?”. “Não sou “, respondeu ele. “És o Profeta” . Ele respondeu: “Não”. Disseram-lhe então: “Quem és tu? Para podermos dar uma resposta àqueles que nos enviaram, que dizes de ti mesmo?”. Ele declarou: “Eu sou a voz do que clama no deserto: “Endireitai o caminho do Senhor”, como disse o profeta Isaías”. Entre os enviados havia fariseus que lhe perguntaram: “Então, porque batizas, se não és o Messias, nem Elias, nem o Profeta?” João respondeu-lhes: “Eu batizo em água, no meio de vós está alguém que não conheceis: Aquele que vem depois de mim, a quem eu não sou digno de desatar a correia das sandálias”. Tudo isto se passou em Betânia, além Jordão, onde João estava a batizar. As figuras do Advento Na tradição aparecem as figuras próprias de um presépio: o Natal do menino Jesus. O evangelho de Marcos é parco, diferente e primordial. Relata o essencial: Jesus, já adulto e longe da ternura de bebé, chama alguns (1, 16-20), tendo a seu favor e como introdução a voz de seu primo. Virá, será mais forte do que ele (1, 7); tudo começa em família alargada, já que as tradições da infância são ainda escassas. Mateus e Lucas, já 18
as desenvolverão, 20 anos depois. Em Marcos, a saga começa na humildade. I :: João O batista, é a voz da austeridade; prega a mudança num quadro de falta de liberdade; não é o único no seu tempo, mas eloquente numa modéstia robusta: usa correia de couro a apertar a cintura e alimenta-se de gafanhotos e mel silvestre (1, 8); veste-se como a gente do deserto e prega o arrependimento; quem quer dar sinais de mudança é batizado por ele no rio; mostra no que come e no que veste uma grande sintonia com a forma de vida a que convida. Prepara assim um caminho como tinha sido predito e tenciona aplanar as veredas desse novo caminho com quem quer; prega de forma audaz a penitência; exige arrependimento e sinceridade, como é sua vocação de pregoeiro do imediato, da urgência; abre novas sendas no deserto bem conhecido. II :: Isaías Reclamado pelos movimentos batistas, era lido então nas sinagogas; davam voz aos textos mais apropriados. Isaías não era um profeta de passagem, mas sabia apregoar o que era difícil na longa história do povo bíblico e acalentar a esperança num pequeno resto fiel em regresso do exílio; foi um mensageiro do tempo idílico de paz. Profeta nobre da segunda metade do século VIII a.c., foi-lhe atribuído todo o livro que junta a profecia de três personagens, todas elas de alcance na história de Israel. Prega contra a infidelidade em tempo de declínio e fala sem rodeios em tempo de queda; faz levantar a chama em tempo de infortúnio e não apaga a torcida fumegante de um pequeno punhado de homens; é idealizador veemente em 19
levantar ânimos abatidos e propõe a esperança a quem não vive senão de uvas amargas. Sabe levantar ânimos em tempo de epidemias; sabe que dos abatidos não reza o combate e canta a alegria de quem caminha com cestos de espigas. É o profeta da fidelidade a Javé, dando fortes razões para erguer ânimo e acalentar a paz. Em tempos de crise, faz brotar a esperança emudecida. III :: Jesus Da história o mais fulcral, hoje afastado da romagem de muitos que se confundem com o comércio luzidio e com sacas de prendas na mão, não é uma figura; é a voz esquecida que acalenta toda a esperança duradoira; é o Santo por excelência, retirado da cena por comerciantes ávidos de vender a moda que não está do seu lado; nem é figura, mas a realidade que veio e de que não se fala. Para Marcos, passou pelo deserto quarenta dias (1, 12), foi tentado por Satanás e viveu entre feras e o serviço dos anjos (1, 13) que nunca o abandonaram: é aqui que está o seu lema fundamental, fazendo deste tempo favorável para amadurecer na vida; passar muito tempo no deserto, sentir na pele as sensações hostis, entrar na luta das feras e ser ladeado por anjos, para ser honrado na prossecução de um novo caminho de pregação fazendo comunidade que nasce de famílias de irmãos: Simão e André, seu irmão (1, 16), Tiago e João, seu irmão (1, 19). Não se ausenta Quem vem, mas está presente em todos os preparativos: o banquete que todos preparam pressupõe-No presente e atuante. IV :: O crente Está envolvido. As expulsões dos espíritos que aprisionam os homens começaram há muito tempo na sinagoga junto do 20
lago (1, 23 -26); o tempo é de sacudidelas prementes para que cada um se torne adulto; tudo se inicia no fazer benigno de quem expulsa com autoridade (1, 27); a primeira impressão é de espanto, mas é necessário ir mais longe, decidir-se: a luta é interna em quem está a favor ou contra; o caminho está a começar no interior, como na sinagoga onde o taumaturgo é o santo de Deus para quem começa o reino novo (1,24); a fama é grande neste momento do percurso, por toda a região (1, 28); a boa notícia faz o caminho; o presépio é sóbrio, sereno e despido.
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