FALSOLATRIA JEAN WYLLYS
A coleção Pop Filosofia se destina a apresentar novos conceitos no campo da filosofia e das ciências humanas com o objetivo de expandir o sentido da reflexão em nossa época. Mais que uma tradição histórica cujas fontes foram estabelecidas por instituições e sujeitos a serviço de um sistema de saber/poder, a filosofia pode ser uma experiência de pensamento ao alcance de todos e, para isso, deve ser criada e recriada coletivamente.
A imagem da filosofia como um conjunto de informações eruditas envolvendo conceitos, ideias ou métodos transmitidos por professores especializados faz parte de sua recepção e molda o olhar geral sobre ela. Contudo, é fácil perder de vista que a experiência do pensamento faz parte do processo de construção da subjetividade, para o qual o diálogo é fundamental. Pois é impossível fazer filosofia sozinho. E, mais do que ensinar a pensar, a filosofia ensina que, para pensar, é preciso aprender a dialogar. Se, como dizia o poeta, amar se aprende amando, dialogar se aprende dialogando! Ora, filosofar se faz filosofando!
A cultura atual promete a felicidade por meio da distração. Em meio a tal cenário, a filosofia pode ser uma forma de proteger a atenção, a capacidade de raciocinar e a própria sensibilidade, atingida pelas tecnologias políticas e digitais, que, por sua vez, funcionam como máquinas de produzir tipos sociais adequados ao sistema do poder e da opressão. Desse modo, a coleção Pop Filosofia valoriza a filosofia como um processo consciente da dimensão ética dos processos de subjetivação, isto é, da invenção de cada um e das relações sociais entre sujeitos e instituições, corpos e jogos de linguagem. Na base de toda
política está uma ética na qual reside uma teoria sobre o ser que somos.
Neste volume da coleção, Jean Wyllys lança mão do neologismo “falsolatria”, que funde significantes e significados das palavras “falso” e “idolatria”, como chave para pensar o momento que vivemos hoje no Brasil e no mundo. Sob o signo da “idolatria” ao falso, ou da “adoração de falsidade”, o autor passa em revista nossa relação com as redes sociais e procura as ramificações das fake news que destroem reputações, e até vidas, num depoimento-ensaio sobre uma época na qual tudo reluz e nada (ou quase nada) é ouro.
Jean Wyllys é escritor, jornalista, mestre em letras e linguística pela Universidade Federal da Bahia e doutorando em direito e ciência política pela Universidade de Barcelona. Foi três vezes eleito como deputado federal. É autor, entre outros, de Tempo bom tempo ruim: identidades, políticas, afeto (2014).
FALSOLATRIA JEAN WYLLYS
SOBRE MENTIRAS, FAKE NEWS
E OUTRAS FORMAS DE DESINFORMAÇÃO
“(…) a implacável, insone e tensa concentração em si mesmo que é a marca do Inferno. (…) Deve-se representar o Inferno como um estado em que todo mundo está perpetuamente preocupado com sua própria dignidade e seu próprio enaltecimento, em que todos se sentem ofendidos e em que todos vivem as paixões mortalmente sérias que são a inveja, a presunção e o ressentimento.”
C.S. LEWIS, Cartas do diabo a seu aprendiz
“A função da Grande Mentira: já não se desfigura a realidade mas, sim, se inventa algo sem nenhuma relação com a realidade.”
HANNAH ARENDT, Diário filosófico: 1950-1973
“O fato de ser uma minoria, mesmo uma minoria de um, não significava que você fosse louco. Havia verdade e havia inverdade, e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro o contradissesse, não estaria louco.”
GEORGE ORWELL,
1984
Falsolatria. Neologismo que funde significantes e significados das palavras “falso” e “idolatria”.
“Falsolatria” serve para dar nome a um comportamento antigo e familiar à humanidade: a “idolatria ao falso” ou a “adoração de falsidades”, ou seja, o fato de indivíduos e/ou coletivos se submeterem, reverenciarem e/ou cultuarem algo ou alguém que é falso ou construído à base da mentira, da fraude e/ou da falsidade.
Há falsolatria quando uma maioria de votantes elege um tirano incompetente por causa de sua propaganda política; há falsolatria nos fascismos e em suas inerentes contradições; há falsolatria no culto do martírio e de algumas formas de heroísmo; há falsolatria no terrorismo, na violência dos perdedores, mesmo quando esses estão sustentados pelo aparelho de Estado; há falsolatria nas monarquias, teocracias,
plutocracias e autocracias, além da rima em seus nomes (há inclusive falsas democracias!); há falsolatria no lawfare e nos julgamentos sumários; há falsolatria quando se fabrica provas contra um acusado e quando lhe é negado o direito à ampla defesa; há falsolatria quando há venda de sentenças; há falsolatria na corrupção de modo geral; há falsolatria quando uma empresa convence, por meio de publicidade em meios de comunicação, consumidores a comprarem produtos com componentes prejudicais à sua saúde, como, por exemplo, a soja transgênica, os legumes com agrotóxicos cancerígenos e os embutidos com excesso de sódio e conservantes, que desencadeiam problemas cardíacos; há falsolatria quando audiências ruidosas se põem aos pés de participantes de reality shows sem qualquer atributo além do de estarem expostos na televisão (e, sim, há participantes desses programas com talento e que oferecem algo mais que a mera exposição!); há falsolatria quando rebanhos de crentes dizem “amém!” às mentiras e manipulações de seus líderes religiosos, ao ponto de perpetrarem violências físicas e psicológicas contra os outros e/ou permitirem o abuso sexual contra eles mesmos; há falsolatria na autoajuda e nas soluções mágicas apresentadas por coachs ou influencers para problemas de ordem socioeconômica e/ou psiquiátrica; há falsolatria na especulação financeira das bolsas de valores e no montante de dinheiro que ela movimenta globalmente; há falsolatria na “ciência” que nega a crise climática decorrente do aquecimento global; há falsolatria nas campanhas antivacina mundo afora; há falso -
latria no racismo, no sexismo e na homolesbotransfobia, que desumanizam indivíduos e coletivos há milênios; há falsolatria na ascensão e no enriquecimento de influenciadores digitais, que só existem em seus circuitos fechados de “milhões de seguidores da internet”, outro tipo de especulação sobre o qual se assenta o atual mercado publicitário; há falsolatria no consumo e compartilhamento consciente ou não de fake news e teorias conspiratórias nas mídias sociais digitais, sobretudo em grupos fechados de serviços de mensagens como WhatsApp e Telegram; há falsolatria no arremedo que pobres fazem de si mesmos no Youtube e no TikTok em busca da viralização – há mais enfermidade que falsolatria quando o desejo de muitos, sobretudo entre os nascidos no novo milênio, é ser um vírus! – e de dinheiro; há falsolatria nas tecnologias de manipulação audiovisual; há falsolatria por trás dos algoritmos a partir dos quais operam as plataformas de comunicação digital, as chamadas big techs; há falsolatria na crença de que estamos rumo ao apocalipse; enfim, há falsolatria por todos os lados.
Falsolatria é, portanto, o ambiente ou o comportamento engendrados pela desinformação (mentiras organizadas, propaganda, farsas e teorias conspiratórias).
Desde que foi popularizada, a partir de 2016, junto com a palavra “pós-verdade”, considerada a palavra daquele ano pelo dicionário da Universidade de Oxford, a expressão fake news
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W983f
Wyllys, Jean Falsolatria / Jean Wyllys Editora Nós; Edições Sesc São Paulo, 2024. 56 pp. Coleção Pop Filosofia; organizada por Marcia Tiburi.
ISBN 978-65-85832-51-9 [Editora Nós]
ISBN 978-85-9493-318-8 [Edições Sesc São Paulo]
1. Filosofia. 2. Política. 3. Fake news. 4. Redes sociais. I Tiburi, Marcia. II. Título. III. Série.
2024-2715
CDD 100 CDU 1
Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior, CRB-8/9949
Índice para catálogo sistemático:
1. Filosofia 100
2. Filosofia 1
FONTES Tiempos, LargePoint
PAPEL Pólen Bold 90 g/m²
GRÁFICA Margraf
Há falsolatria quando uma maioria de votantes elege um tirano incompetente por causa de sua propaganda política; há falsolatria nos fascismos e suas inerentes contradições; há falsolatria no culto do martírio e de algumas formas de heroísmo; há falsolatria no terrorismo, na violência dos perdedores, mesmo quando esses estão sustentados no aparelho de Estado; há falsolatria nas monarquias, teocracias, plutocracias e autocracias, além da rima em seus nomes (há inclusive falsas democracias!).