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Destravando o Holofote da Memória Social
Elias Thomé Saliba
Comemorações são sempre bem-vindas, sobretudo em épocas tão obscuras nas quais diminuem ainda mais as oportunidades de dinamizar a cultura neste país. Para o historiador, contudo, o problema dos impulsos comemorativos é que eles secundariamente ativam na memória social uma espécie de holofote giratório, que ilumina alguns eventos, personagens, narrativas e temas do passado, obscurecendo outros ou deixando-os na mais completa escuridão do esquecimento. É certo que o evento modernista de 1922 foi de grande impacto na história cultural brasileira. Mas qualquer balanço do seu legado apresenta dificuldades: a intrínseca diversidade dos projetos estéticos ali anunciados, passando ao largo das culturas já existentes, em suas várias linguagens, estilhaçou-se na história cultural posterior, passando por reciclagens, apropriações e descartes que resultaram num autêntico palimpsesto, quase irreconhecível cem anos depois.
Entretanto, pelo jogo de efeitos deliberados ou por contingências imponderáveis da própria história brasileira, 1922 acabou transformando-se também em marco decisivo na elaboração furtiva de estratégias de esquecimento de tempos, trajetórias, temas e personagens – iluminando e celebrando uns e obscurecendo e silenciando outros, incluindo – vale lembrar – os projetos diferenciados dos próprios lideres do movimento cultural paulista – estes últimos, um tanto esquecidos, apropriados ou renegados no âmbito da con- cepção orgânica de cultura que se instalou ulteriormente no país. Afinal, já a partir da década de 1930, se iniciou entre críticos de formação variada, não raro hauridos dentre os próprios arautos modernistas, uma meta-narrativa do modernismo brasileiro que começaria a engendrar os termos de sua própria canonização. E aquele holofote giratório começou a travar, iluminando alguns lugares canônicos e deixando outros na escuridão.
“O Lado Oposto e os Outros Lados” é um artigo do jovem Sérgio Buarque de Holanda, de 1926, que serve de título para este livro – mas também de mote inspirador para muitos dos ensaios contidos neste volume1. Mais do que um balanço existencial e intelectual do então jovem crítico modernista e um divisor de águas nos desdobramentos do modernismo - as reflexões contidas naquele artigo constituíram um marco decisivo e sutilmente antecipador dos próprios dilemas de compreensão da história do país. “Ainda muito jovem, foi o maior ledor que conheci; não lia, devorava livros. Nos recintos mais barulhentos, tinha a invejável faculdade de fazer abstração do rumor e ler imperturbavelmente – recorda-se Onestaldo de Penafort2, descrevendo aquele jovem de apenas 24 anos. “De monóculo em punho, com senso de humor e temperamento irreverente, dotado de certa impertinência intelectual, senão por vezes briguento”3, Sérgio Buarque já antevia, não sem alguma frustração, o quanto alguns militantes modernistas, ao pretenderem inventar de chofre a nacionalidade, acabavam por desprezar a história. Percebia ainda que, por trás da forma, do vocabulário e do repertório de imagens dos gestos inovadores dos seus confrades modernistas, subsistia latente uma mesma tônica idealista, nativista, nacionalista e militante. Daí porque encarar os movimentos de formação da história brasileira do ponto de vista da sua singularidade era - senão é até hoje – um desafio angustiante.
Segundo a historiadora Maria Odila da Silva Dias, tais desafios já aproximariam precocemente o crítico literário do futuro historiador, sobretudo ao compor um estilo de escrita que se nutria de sucessivas “negações de ne- gações”, pois em vez de chegar à síntese, os antagonismos resultavam apenas em impasses. Negações que se referiam exatamente à perda de forças criadoras do processo histórico, à descrença nas energias emancipadoras da história brasileira, que redundavam em nada, resultando em retrocessos pífios, regressões frustrantes – quando não burlescas - e outras tantas apostas perdidas4. “A história do Brasil dá a ideia de uma casa edificada na areia. É só uma pessoa se encostar na parede, por mais reforçada que pareça, e lá vem abaixo toda a grampiola”5. Escrita apenas cinco anos antes do seminal artigo de Sérgio Buarque, esta confissão em carta de Capistrano de Abreu, reiterava o fracasso do historiador em vislumbrar o sentido geral da história brasileira. Todavia, longe do amargor atrabiliário de Capistrano, Sérgio Buarque atacava a idealização de alguns dos seus confrades modernistas pois concebiam, ainda que de forma latente, “uma elite de homens inteligentes e sábios, embora sem grande contato com a terra e o povo” [...] sempre almejando “impor uma hierarquia ou uma ordem que estrangulassem de vez nosso maldito estouvamento de povo moço e sem juízo”. Augúrio tristemente antecipatório do fato que as elites brasileiras nunca ultrapassaram os limites extremos do reformismo liberalizante, gerando quadros políticos bastante pródigos naquela esperteza que todos conhecemos – esperteza tão bem definida por um humorista, em “simular uma história justamente para não ter que fazê-la”6.
1. Publicado pela primeira vez na Revista do Brasil em 15 out.1926, foi republicado por Francisco de Assis Barbosa (org.), Raízes de Sérgio Buarque de Holanda . Rio de Janeiro, Rocco,1988, pp. 85-88.
2. O. de. Pennafort, Um Rei da Valsa. Rio de Janeiro, Livraria São José, 1958, pp. 81-82.
3. Maria Odila da S. Dias, Negação das Negações em Pedro M. Monteiro e João K. Eugênio, Sérgio Buarque de Holanda: Perspectivas . Rio de Janeiro/Campinas, Eduerj/Editora da Unicamp, 2008, p.319.
Para além do olhar comemorativo, portanto, já é tempo de parar de interpretar todos os inúmeros (e pouco conhecidos) personagens e significados do modernismo cultural brasileiro, partindo apenas dos temas levantados em 1922. Nem é mais possível reler o passado cultural do país apenas com as lentes do movimento, transformando-o numa espécie de vesúvio cultural cuja erupção iluminaria toda a história cultural brasileira. É certo que iluminado pela clareza do holofote, o “lado oposto” parecia unanimemente reconhecido por todos, fossem os parnasianos, simbolistas ou toda aquela série de tradicionalistas – depois desprezados com a equívoco rótulo de “pré-modernistas”. Já aqueles “outros lados” iniciavam a sua longa senda da escuridão e do esquecimento – embora também acabassem percorrendo caminhos insuspeitos: o alijamento de muitas das linguagens culturais populares, mais diversificadas e plurais, acabou ainda por deixá-las mais suscetíveis de serem apropriadas pela indústria cultural nascente – o que, afinal, à parte raras exceções, acabou ocorrendo.
4. Cf. Maria Odila da S. Dias, Negação das Negações, pp. 317-347. Ver ainda Elias Thomé Saliba, Cultura: As Apostas na República em Lilia M. Schwarcz (org.), História do Brasil Nação: 1808-2010. Vol. 3: A Abertura para o Mundo . Rio de Janeiro, Objetiva/Fundación Mapfre, 2014, pp. 239-294.
5. Citado em Elias Thomé Saliba, “Prefácio”, em Fernando Amed, As Cartas de Capistrano de Abreu: Sociabilidade e Vida Literária na Belle Époque Carioca. São Paulo, Alameda Editorial, 2006.
6. A frase é de Luis Fernando Veríssimo em “O Brasil Está Algumas Revoluções Atrasado”, entrevista em O Globo, Rio de Janeiro, 12 nov. 2018.
Talvez seja oportuno, sob pretexto comemorativo, sair dos limites brasileiros e pensar o modernismo de forma mais ampla, ampliando o olhar para outros países e outros continentes ou, ainda, vendo-o como movimento deflagrador de temas e inovações que já estavam colocados no horizonte cultural brasileiro. Acompanhando a tantos outros intérpretes 7, este é o objetivo do capítulo que abre esta coletânea. Os outros blocos procuram cobrir as lacunas que surgem daqueles irreconhecíveis “outros lados” do palimpsesto modernista, envolvendo lugares, trajetórias, registros, imagens e discursos relacionados à memória de humoristas, artistas do traço, afrodescendentes, anarquistas, cientistas, escravos, imigrantes, mulheres, crianças e tantos outros grupos. Sem a pretensão de cobrir tais lacunas, este livro reuniu especialistas em cada um dos blocos que procuram explorar livremente aqueles “outros lados”, mapeando temas como leitores e literatura popular, práticas de escrita e leitura, fauna, natureza, monumentos, infância, derivas regionais e ruínas.
Utilizando-se da correspondência e das revistas da época, produzidas no tempo bem mais curto dos acontecimentos e deixando de lado as recordações em retrospectiva, as quais, enredando-se em urdiduras finalísticas, não reproduzem o realmente vivido -, Tânia de Luca reconstitui as circunstâncias detalhadas da publicação de “O Lado Oposto e os Outros Lados” e sua repercussão, tanto na trajetória de Sérgio Buarque quanto no próprio ambiente intelectual dos modernistas. Neste mesmo bloco temático sobressai a sempre impertinente pergunta: quem eram os leitores das obras modernistas? Este é
7. Entre muitos, lembramos ao menos três importantes intérpretes; Nicolau Sevcenko, Orfeu Extático na Metrópole; São Paulo: Sociedade e Cultura nos Frementes Anos Vinte. São Paulo, Companhia. das Letras, 1992; Sérgio Miceli, Nacional Estrangeiro; História Social e Cultural do Modernismo Artístico em São Paulo. São Paulo, Companhia. das Letras, 2003, e Jorge Schwartz, Vanguardas Latino-Americanas; Polêmicas, Manifestos e Textos Críticos. São Paulo, Edusp, 2008, um outro lado esquecido naquelas décadas e o personagem principal deste universo foi, sem dúvida, Monteiro Lobato. É certo que a trajetória deste último foi bastante analisada por estudiosos em inumeráveis e importantes trabalhos. Ocorre que, de maneira semelhante à sua bastante conhecida atuação na literatura infantil, Lobato também conclamou a todos para afastarem preconceitos, desprezar experimentos narrativos e incrementar o gênero policial – que, afinal, já era bastante consumido no Brasil. Um incentivo concreto para a arte de contar boas histórias. É o que mostra Leandro Antonio de Almeida no provocador capítulo “Monteiro Lobato e a Nacionalização da Ficção Policial”. Já Nelson Schapochnik, rastreando os inquéritos literários, realiza uma bem documentada topografia das publicações e das práticas de leituras em universos variados, completamente ausentes das canonizações modernistas. Difícil saber quem eram os leitores das produções modernistas, mas, a julgar pelo testemunho do próprio Lobato, prevalecia aquele quase lugar-comum da cultura brasileira, não destituído de certa hipocrisia: lustrosos volumes de Platão, Taine ou Spencer a embelezar as estantes dos palacetes, enquanto no recato das alcovas e cabeceiras das camas, lá estavam Alexandre Dumas ou Nick-Carter. Contar uma boa história foi um desafio que muitos modernistas, com raras exceções, não chegaram a enfrentar.
A erupção do vesúvio modernista em 1922 também contribuiu para difundir uma espécie de amnésia histórica em relação à pujante produção gráfica da Belle Époque, disseminada em publicações irreverentes e efêmeras. Reaparecem neste livro, alguns daqueles artistas gráficos os quais, embora um tanto ignorados pelos arautos modernistas, foram até mais modernos nos seus traços, como Voltolino, Di Cavalcanti e, sobretudo, o incrível J. Carlos. É o que se explora nos capítulos da parte v, “O Lado Oposto e os Outros Traços”, escritos respectivamente por Ana Luiza Martins e Rosane Pavam. Inspirando-se em Benjamin Péret, mas também na esquecida poética de Ribeiro Couto, Rosane recupera os traços líricos dos desenhos de J. Carlos, um “penumbrista solar”, na feliz designação da autora. No outro capítulo que também compõe esta parte do livro, Andréa de Araújo Nogueira resgata artistas dos traços como Rian, Pagu e Hilde Weber – cujas trajetórias foram esmaecidas não apenas pelos holofotes modernistas, mas também pela entranhada e crônica misoginia da cultura brasileira. Ao exercitar sua vocação em aclimatar o torto surrealis- mo de Péret e seus confrades a um país de sol e de cores fortes, onde tudo era aparente e ostensivo, o lirismo do penumbrista solar parece mesmo ter dado o tom para a atmosfera na qual emergiram aqueles tantos personagens e calungas efêmeros esboçados por chargistas e caricaturistas. Mobilizaram um lirismo completamente depreendido de fórmulas e indiferente às expectativas, revelando forte empatia para com as criaturas privadas de fantasias, comoções exaltadas ou delírios de grandeza.
Já entre os cientistas da época, contrariando as metáforas modernistas, não se tratava apenas de prosaicamente comprovar que a anta sequer poderia representar a brasilidade, já que não era uma espécie genuinamente brasileira; mas como eles próprios, ao construir pontes entre a história natural e a biologia, estiveram bem próximos dos horizontes modernistas, pois, afinal, também queriam mostrar o verdadeiro Brasil aos brasileiros. Foi o caso do aracnólogo do Museu Nacional, Cândido Firmino de Mello Leitão que, por décadas, trabalhou para construir e divulgar amplamente o conhecimento sobre a fauna do Brasil. Este é o tema da inédita sondagem de Regina Horta
Duarte no capítulo “Nacionalismo, Modernidade, Antas e Outros Bichos no Museu Nacional”. Traduzidos em metáforas leves, filtrados das rebarbas, os animais foram solenemente ignorados na sua corporeidade e existência biológica e, afinal, como atores principais de uma história natural de milhões de anos. Mas eles estavam lá, à vista de todos. A São Paulo dos anos modernistas era uma cidade povoada por animais – e a presença física, simbólica ou metafórica dos bichos servia como termômetro para mostrar também o “outro lado” de uma cidade de muitos modernistas, mas de pouquíssima modernidade. É o que se mostra na trepidante narrativa de Nelson Aprobato Filho, que completa a parte iii: “O Lado Oposto e os Outros Bichos”.
No contra fluxo da história cultural brasileira e passando ao largo até mesmo do otimismo teleológico dos modernistas, lá estão outras duas outras trajetórias liminares e prescientes: o sempre revisitado Lima Barreto – aqui, na releitura de Camila Rodrigues do romance Clara dos Anjos – que vislumbra dolorosamente uma alternativa de futuro à qual o Brasil continuava (e continua) virando as costas; e a escritora Carolina de Jesus - tão bem relembrada por Elena Pajaro Peres - em sua árdua faina de escrita e de leitura: um rito de iniciação com as palavras o qual, muito além do ambiente modernista - ocor- ria num universo da parcimônia, da intensidade e da escassez. Outros lados, a exigir ainda olhares atentos de outros intérpretes.
Ecoando as manifestações mundiais antirracistas e de contestação, que chegaram mesmo à derrubada de estátuas no ano de 2020, a parte vi trata daqueles artefatos que fixam e promovem atos comemorativos: os monumentos. Inspirando-se nas derivas poéticas de Alfred Jarry, Picasso, Apollinaire e outros modernistas parisienses - que insistiam em visitar recantos e arrabaldes da cidade, completamente desconhecidos e destituídos da aura do urbanismo moderno –, Paula Janovitch realiza um original passeio etnográfico por monumentos que mobilizam “outros lados” da memória coletiva paulistana. O passeio afetivo da autora lembra muito as deambulações do situacionista Guy Debord, que em 1955, descreveu a deriva como “encontro fugitivo de várias atmosferas à medida que se vagueia casualmente pela cidade”. Outros lados também revisitados pelo historiador Roney Cytrynowicz, ao explorar detalhadamente as oblíquas narrativas de trajetórias das estátuas num lugar de memória paradigmático da cultura brasileira: a Praça da República. Na sua pequena história de cada busto, herma ou estátua e de seus equívocos destinos e sucessivas apropriações, trata-se de um lugar que parece fazer parte daqueles “outros lados”, já que ali, o modernismo está praticamente ausente: os monumentos e bustos republicanos não chegam aos pés dos grandes eixos monumentais paulistas. Noutros termos, paradoxalmente o modernismo vai aparecer não na praça republicana por excelência, mas em monumentos do nativismo paulista – como o Monumento às Bandeiras, de Brecheret – nos quais se verá escancarado aquele latente e sutil atavismo bandeirante.
Posta de lado a figura de Monteiro Lobato, a literatura infantil atraiu pouquíssima atenção dos modernistas de primeira hora. Seja em Monteiro Lobato ou, em anos posteriores, com Graciliano Ramos, vislumbra-se um amplo universo de linguagem sem ferrugem e sem artifícios, que transparece tanto através da filtragem da oralidade, quanto nas imagens criadas especialmente para os álbuns ilustrados. Uma literatura direta, hábil na arte de contar boas histórias – e que, felizmente, guardou respeitosa distância dos sofisticados experimentos narrativos das vanguardas modernistas. Parece que as crianças, como um público sensível às narrativas vivas e descomplicadas tinham muito a ensinar àqueles que escreviam para o público adulto. É o que mostram as duas inéditas abordagens de Patrícia Raffaini e Gabriela Pellegrino Soares, em capítulos que compõem parte vii deste volume.
Outras derivas, trajetórias e perspectivas que perturbam a cadeia temporal da história do modernismo brasileiro e se colocam à margem das cronologias retrospectivas que fazem tudo datar de 1922, são singularmente reveladas nos dois capítulos da parte viii. À contrapelo da canônica critica modernista, que desprezou a linha evolutiva da criação teatral brasileira, Wagner Martins Madeira recupera a trajetória de três figuras de artistas desenraizados, que palmilharam suas carreiras em circos, teatros mambembes, efêmeras encenações de rua nas periferias das cidades – e, depois, até mesmo nas telas de cinema e de televisão: Grande Otelo, Vianinha e Gianfrancesco Guarnieri. Já Thaís Leão Vieira, contrasta o quadro de tantos deslocamentos temporais com o necessário contraponto espacial, examinando os impasses da estética modernista numa situação de fronteira. Os itinerários pouco conhecidos da revista Pindorama e da obra de Zulmira Canavarros permitem antever o paradoxo de uma das respostas modernistas às gritantes desigualdades regionais, desmistificando o tom messiânico contido, por exemplo, em registros como a “Marcha para o Oeste”, de Cassiano Ricardo, que não escapou ser utilizada como corolário útil e leniente à ideologia do Estado Novo.
No último bloco temático do livro, Luciana Murari, acompanhando os relatos da surpreendente Bandeira Anhanguera em pleno ano de 1937, desencrava outra trajetória pouco conhecida, a de Hermano Ribeiro da Silva. O estilo preciso da historiadora ao registrar as aventuras de Hermano, às vezes nos dá a impressão de uma formidável paramnésia, ao apreciarmos a figura de um bandeirante vivo – talvez por isto solenemente ignorado – em pleno século xx modernista! Figura incrível, sobretudo por se tratar de um personagem vivo, real – daí causar certo incômodo um tanto constrangedor para a cultura do atavismo bandeirantista: Hermano Ribeiro, com sua contemplação da natureza real e selvagem, sua visão solidária com a experiência sertaneja das ruínas e, afinal, sua morte em plena selva, na atmosfera de um Brasil real – bem mais real do que as tantas cartografias geossimbólicas dos modernistas. Afinal, por aí se vê que a maioria dos modernistas paulistas, com raras exceções, acabou incorporando o tema dos primeiros colonizadores como metáfora tanto do papel histórico pioneiro de São Paulo na cultura brasileira, quanto como afirmação de sua própria identidade moderna.
Intérprete sagaz dos processos espaço-temporais gestados sob o signo predatório do capitalismo mercantil, especialmente do colapso sistêmico atravessado pelo mundo nas primeiras décadas do século xx , Francisco Foot Hardman, que já nos deu contribuições pioneiras para o deslinde de todos os lados do modernismo – os opostos e os outros – recorda-nos de modernistas antigos, anarquistas incômodos, representações fantasmagóricas de pontos extremos do território brasileiro e de alguns outros registros literários, injustamente marginalizados por certa bitola canônica da crítica literária. Com sua ironia e erudição desconcertantes, nos dá o final mais do que pertinente ao tema dos vários lados do modernismo e da modernidade, advertindo-nos para as armadilhas das cronologias e ampliando nosso olhar para os processos descontínuos e fragmentários da história brasileira.
Finalizando esta breve apresentação, nos sentimos altamente gratificados por reunir contribuições inéditas de pesquisadoras e pesquisadores altamente qualificados num livro por nós longamente concebido e que esperamos, seja uma contribuição para uma melhor compreensão da história cultural brasileira. Registrando, enfim, que não se alimenta nenhuma pretensão de estabelecer novos marcos – mesmo porque estes sempre nasceram de uma ilusão de continuidade da história brasileira: uma história plena de tantas apostas e tantas expectativas perdidas. Mas, certamente, cumprirá sua tarefa se conseguir dar mais uma volta naquele holofote giratório da memória social.