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prefácio
outro conhecimento para outra política
Néstor García Canclini
Nada mais impróprio, ao abordar este livro, do que encará-lo como uma coletânea de textos que começam em 1996, isto é, vindos do século passado. Podemos nos dispor a ver como pensava, duas décadas atrás, um fundador dos estudos da comunicação, e desde as primeiras páginas ele nos contará que naquela época se falava dos jovens como “agentes da insegurança”: “bandos, gangues, parches, associados ao lúmpen, ao sicariato, à guerrilha”. Os “rituais de violência e morte dos jovens” junto “a rituais de solidariedade e de expressividade estética”: é isso que se estuda sobre as novas gerações nos anos mais recentes. Então me ocorre que o gênero dos perfis com que se anuncia um conferencista deveria ser reformulado quebrando a lógica de sempre: em quais universidades estudou e em qual leciona, os títulos dos seus livros e seus prêmios. Certo, sobre Martín-Barbero podemos mencionar essas coisas, mas seria melhor começarmos pelo nome do país e da cidade onde se deram. Duas décadas atrás, a Colômbia era o futuro da América Latina. No México, batalhávamos para passar do sistema de partido único ao pluripartidarismo, acreditando que viver num país democrático dependia disso; na Argentina e nos demais países do Cone Sul, buscavam-se maneiras de sair por completo das ditaduras e lidar com as privatizações e o desmantelamento do Estado, para chegar ao novo século com agendas políticas adequadas às mudanças tecnológicas e à industrialização da cultura. Quando nos parecia próxima a violência que assolava Bogotá e Medellín, e com tanta frequência nos alarmava, tendíamos a enxergar mais a diferença de não ter nos nossos países as Farc e os paramilitares que a registrar os sinais daquilo que já estava devastando o futuro das novas gerações. Quando as evidências aumentavam, alguns políticos e jornalistas alertavam para o risco de “colombização” do México. Poucos anos se passaram para que começássemos a temer uma “mexicanização” da Argentina e de várias outras sociedades. Assim como Alonso Salazar foi pioneiro ao explorar de perto as gangues urbanas, Jesús percebeu que a Colômbia dava aos jovens o protagonismo
trágico e empreendedor que hoje é um lugar-comum nos estudos sobre eles. Cada sociedade teve ou não teve suas guerrilhas, sua transição deficiente dos autoritarismos para isto em que estamos, mas a Colômbia antecipou a dura degradação que hoje, em todo o Ocidente, põe em dúvida que essa forma de governo que ainda chamamos de democracia seja o que nos distingue de outras regiões do mundo. Em toda parte, estamos aprendendo que o que acontece é mais complexo e denso que aquilo que se atribuía às drogas, às máfias ou à desordem pós-moderna. Se Martín-Barbero se deu conta, em conferências de 2000 ou 2004, daquilo que se insinuava nos novos usos das tecnologias digitais, na desestruturação do urbano e na desorientação das escolas diante dessas mutações, foi porque viajou por muitos países onde os sinais coincidiam, mas também por causa da comoção colombiana, que incitou vários de nós, mexicanos (notadamente Rossana Reguillo), a convencê-lo de fazer uma pausa em Guadalajara, e porque ele e Elvira, depois dessa experiência, sentiram que seu lugar era Bogotá e, como hoje ficou claro para todos, foram saindo cada vez mais das suas ilhas. A identificação dos jovens com o moderno, em função da qual já não são eles que imitam os adultos, e sim os adultos que sonham em se parecer com os jovens, é trabalhada nestes textos, deslindando suas variações. O jovem é visto como emblema de modernidade “no seu sentido forte, o da inovação”; também “no seu sentido fraco, pós ou tardo-moderno, da atualidade e do atual, que é o que corresponde à percepção de uma realidade aligeirada”. Não se trata apenas de operações de mercado, esse grande decifrador do sentido das mudanças. Para compreender o fenômeno, é preciso examinar, mostra Martín-Barbero, como se enlaçam a destruição da memória das nossas cidades, a acelerada obsolescência de objetos cotidianos, a hegemonia do corpo, a empatia com os jogos de interação nos dispositivos tecnológicos, a plasticidade camaleônica das gerações recentes nos novos contextos. Porque o protagonismo do jovem se entrelaça com essas transformações, a sociedade (mais exatamente: o capitalismo eletrônico ou informático neoliberal) devolve às gerações que irrompem uma obstinada precariedade, os riscos constantes da extinção. “Escrevendo na Colômbia, não posso ignorar o que esse lugar de enunciação implica, por ter sido o país em que pela primeira vez se usou a palavra ‘descartáveis’ para denominar os jovens sicários”. Outras vinculações que Jesús foi pioneiro em indagar estão nestas páginas: a combinação do anonimato urbano com os fluxos comunicacionais, as tarefas das escolas em face das cidadanias mestiças, os jovens como explo-
radores do que virá num planeta que vive pela primeira vez o sentimento de ausência de futuro. E, claro, “se a televisão atrai é porque a rua expulsa, é dos medos que vive a mídia”. Como se forma esse pensamento dos paradoxos? A ele se soma o procedimento de assumir tensões incômodas, bebendo de autores de vários países e várias disciplinas. Manuel Castells junto a Jacques Rancière, Beatriz Sarlo próxima de María Teresa Uribe, Margaret Mead seguida de Carlos Monsiváis ou Michel Foucault. A vizinhança entre eles é pensada sem ocultar as divergências. Enciclopedismo do filósofo que se nutre de todos os saberes? Ao contrário, outro modo de refletir indisciplinadamente, mas com o rigor e a perspicácia aprendidos na filosofia e na semiótica. Os riscos aumentam quando não se trata apenas de pôr para conversar departamentos universitários que têm grande prazer em se desconhecerem, mas de também reconhecer saberes habitualmente desvalorizados: os das músicas e crenças populares, os proporcionados pelo jogo com as imagens e não só pela cultura letrada. Os jovens não leem mais? Não é assim, diz Martín-Barbero. O que acontece é que aqueles de nós que fizemos ciência como se se tratasse de “traduzir/substituir o mundo qualitativo das percepções sensíveis pela quantificação e pela abstração lógico-numérica” chegamos ao ponto em que é preciso reincorporar ao saber o valor informativo do sensível e do visível. Os jovens expandiram a capacidade de ler dos livros para a publicidade, os quadrinhos, o videoclipe e o hipertexto. Destaco alguns fragmentos das contribuições deste autor para celebrar que, afinal, estejam reunidas em um livro. Permite compendiar suas iluminações sobre a condição jovem e, ao mesmo tempo, as muitas passagens com que abriu para o pensamento interdisciplinar. Será ainda necessário lembrar que essa reformulação nos modos de conhecer e comunicar o que fazemos nas ilhas universitárias é indispensável, uma das condições primeiras, para fazer política e construir uma sociedade em que os jovens — e tantos outros — não continuem a ser tratados como algo descartável, para que entendamos o que pode ser a democracia em vez dessa confusão de violências?