16 minute read
crítica
from Select 32 ok
by Editora 3
Naturalizar o Homem, Humanizar a Natureza ou Energia Vegetal, instalação criada por Victor Grippo em 1977 e remontada nesta edição da Bienal
SOBRE A ECOLOGIA DA ARTE
Advertisement
CRISTIANA TEJO
Há uma certa despretensão na proposta desta 32a Bienal, que se coloca como enfrentamento a um mundo da arte inflacionado de discursos, especulação financeira,
carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais Há uma espécie de consenso de que o mundo está em crise. Sensação essa que já ganhava corpo há pelo menos três décadas com o realinhamento de forças políticas e econômicas, mas que foi agravada pela quebra do sistema financeiro internacional em 2008. Entretanto, o que parece subjazer essa noção é uma ruptura profunda no saber sobre as coisas desencadeadas por movimentos sociais e teorias críticas que desnaturalizaram estruturas sociais e dinâmicas de perpetuação de hegemonias e assimetrias, como as chamadas perspectivas pós-coloniais e descoloniais. Os sucessivos questionamentos gerados por esse processo de aguda reflexividade atingiram todos os campos do conhecimento e têm evidenciado relações de poder. No mundo da arte, o impacto pode ser notado nas tentativas de expansão de narrativas refletidas em exposições e coleções internacionais menos eurocêntricas. O discurso pós-colonial e descolonial tem alicerçado projetos mundo afora de diferentes formas e gradações, a exemplo das 11a, 13a e 14a Documentas de Kassel e as 27a , 29a e a 31a bienais de São Paulo, para citar apenas duas das mostras de maior prestígio internacional. Evidencia-se nessas exposições a intenção de uma busca de novos vocabulários artísticos que apontem para modos de viver e pensar mais pertinentes com a complexidade e a perplexidade do mundo atual. E aí chega a 32a Bienal de São Paulo – Incerteza Viva, curada por um time liderado por Jochen Volz, para dar continuidade a essa tentativa de pensar a arte em fricção com o mundo em transformação. Se na bienal anterior as intenções de horizontalidade da equipe e de escuta do meio local como metodologia de trabalho
ficaram mais marcadamente no discurso, nesta edição elas ocorrem na prática. A harmonia e o respeito com que os curadores se tratam e se relacionam com os artistas reverberam por toda a exposição, desde a cadência gerada pelo respiro entre as obras e a organicidade nas vizinhanças até o número mais reduzido de participantes que coloca a bienal numa escala mais humana, o que pode ser entendido como estima ao público. Baseando-se no pensamento do sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, que elaborou o conceito de ecologia dos saberes e epistemologias do Sul e na metáfora do jardim como uma forma de endereçar desafios globais que passam por direitos e pela própria sobrevivência do planeta Terra, Volz e seu time acabam lançando luz à importância de discutirmos a própria exaustão de uma forma de funcionamento do campo da arte e a delicada relação entre teoria e prática. A ecologia nos fala sobre interdependências e a ecologia da arte também, pois não existe arte sem uma rede de relações e de interdependências. Diferentemente da edição anterior, que procurava captar a urgência e a temperatura dos conflitos em trabalhos que muitas vezes exaltavam o ativismo e pouco apreço à dimensão estética, essa versão se coloca como um contraponto (apesar de dialogar intensamente) em que discussões e posicionamentos semelhantes configuram-se de maneira distinta, mais voltados para um tom intimista e sofisticados esteticamente. As obras parecem filtrar questões do mundo contemporâneo sem retirar a sua densidade. O ruído e a intensidade foram substituídos pelo silêncio e pela decantação da experiência. Para pensar em novas relações possíveis com o mundo, a 32a Bienal aposta no frescor de artistas jovens e de muitos que ainda não alcançaram visibilidade de mercado, a exemplo de Sonia Andrade, Samico, Bené Fonteles, Vivian Caccuri, Jorge Menna Barreto, Barbara Wagner, Benjamin de Burca, Laís Myrrha e Cristiano Lenhardt, para citar alguns dos brasileiros. Há uma certa despretensão na proposta desta bienal que se coloca como um desafio a um mundo da arte cada vez mais inflacionado de discursos, especulação financeira, carreiras meteóricas e pirotecnias curatoriais. Rever parâmetros de produção e de consumo também é importante para o mundo da arte e as propostas mais instigantes na atualidade assentam-se em imaginações alternativas e gestos mínimos. Trasladar isso para o espaço de prestígio da bienal pode ser um ato transformador. Precisamos falar mais sobre como todos nós atuamos na ecologia das artes para podermos alterar ambientes e reinaugurar mundos.
Duas obras comissionadas para a mostra: à esq. Dois Pesos, Duas Medidas (2016), de Lais Myrrha; acima, detalhe de Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016), de Bené Fonteles
32a Bienal de São
Paulo - Incerteza Viva, curadoria Jochen Volz, até 11/12, Pavilhão da Bienal, Avenida Pedro Álvares Cabral, s/nº, Parque Ibirapuera, São Paulo www.32bienal.org.br
PARIS AMBIVALÊNCIA ANIMAL
MÁRION STRECKER
Na Fondation Cartier, arte e ciência se misturam em exposição que mostra presença dos animais em nossa civilização e imaginação
Artistas que trabalham na fronteira da ciência e a colaboração entre cientistas e artistas dão a tônica da mostra, com curadoria de Hervé Chandès. A obra inspiradora do projeto é a de Bernie Krause, músico e bio-acústico norte-americano que se dedica a gravar a natureza selvagem há 40 anos, além de colaborar com músicos e cineastas. Ele ajudou a formar as bases de uma nova disciplina científica: a ecologia das paisagens sonoras. Gravou paisagens sonoras em locais diversos do planeta, entre elas a Amazônia, e sete delas podem ser ouvidas no sub-solo do edifício da fundação, desenhado por Jean Nouvel. Bernie Krause é autor do conceito de biofonia, o conjunto de todos os sons produzidos por todos os seres vivos que formam um determinado eco-sistema. Na organização dos sons do espaço selvagem, quase que orquestral, cada espécie encontraria seu “nicho acústico”, de modo a se mostrar ou se esconder, a depender da situação. É isso o que ouvimos na instalação, feita em parceria com o coletivo multimídia United Visual Artists, de Londres. Projetado entre as paisagens sonoras, um filme de Raymond Depardon e Claudine Nougaret traz depoimentos de Bernie e clipes de habitats naturais que se deterioraram dramaticamente nas últimas décadas. Também no sub-solo da fundação, há outra ambientação sonora que impressiona, com música original do compositor japonês Ryuichi Sakamoto e imagens de plânctons do cientista francês Christian Sardet, reunidas em instalação do artista visual japonês Shiro Takatani. Adriana Varejão levantou um muro de azulejos com pássaros pintados por Beatriz Sauer. Da biblioteca Macaulay, do Laboratório de Ornitologia de Cornell, vieram documentários de curta metragem com performances incríveis de aves, algumas muito engraçadas. Agnès Vardas montou no jardim um poético túmulo multimídia para homenagear seu gato morto. Hiroshi Sugimoto, Cai Guo-Qiang, Manabu Miyazaki, Pierro Bodo, JP Mika, Moke, Cyprien Tokoudagba também integram a exposição.
Passarinhos (2016), muro de azulejos com pássaros pintados a mão por Beatriz Sauer, de autoria de Adriana Varejão
A Grande Orquestra dos
Animais, curadoria Hervé Chandès, até 8/1/2017, Fondation Cartier pour l’art contemporain www.fondation.cartier.com
PIRACICABA EU SOU, TU ÉS
FELIPE STOFFA
Bienal de arte naïf reafirma o caráter social e potente de uma arte
que não deve ser rotulada Em sua 13ª edição, a Bienal Naïfs do Brasil - Todo Mundo É, Exceto Quem Não É afirma o papel social e inclusivo de uma exposição periódica voltada à arte popular. A mostra deixa evidente que o termo naïf pede revisão, já que o que se apresenta nas salas do Sesc Piracicaba são cerca de 120 obras de artistas que falam de tudo menos de ingenuidade. O título funciona como um guia para a visita. A partir de um diálogo com o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que em 2006 afirmou que “todo mundo é índio, exceto quem não é”, coube à bienal indagar o porquê de limitar a produção de artistas cujas biografias e o título de naïf “o fossem somente até deixar de sê-lo”, conforme o texto curatorial de Clarissa Diniz. Deixando de lado essa classificação prematura, artistas populares, modernos contemporâneos foram colocados lado a lado, a fim de abrir novas tramas e diálogos, em obras que questionam a vida social, memória, história e a própria cultura. Tudo isso com força política e tom propositivo, semelhante ao que se encontra na 32ª Bienal de São Paulo. Para ativar esse diálogo, a mostra está organizada em cinco eixos temáticos: espaço, gráfico, pictórico, matérico e político. Ao transitar em cada eixo, encontramos esculturas de Tiago Carneiro da Cunha, como Monstros de Lama com Vela Vermelha (2009), a pintura com animação A Briga do Porta-Bandeira Vermelho (2016), de Thiago Martins de Melo, e até uma pintura do modernista Flávio de Carvalho, Sem Título (1972), e trabalhos da série Morandi (1964), de Montez Magno. Esses trabalhos são ladeados por produções de artistas alheios ao sistema de arte contemporânea, como Maria Aparecida Queiroz Machado, Geraldo Tartaruga, Nilda Neves, Gustavo Ansia, além de bordados, como Mulher Chorando (2015) e Cobra e Jacaré (2015), de Marnele Crespo. Como não se surpreender também com o alto teor social de pinturas como Manifestação na Paulista (2016), de Jefferson Limas, e Führer e o Califado do Terror (2015), de Cleber Ramos. Abastecidos pelas intrigantes e belas produções, podemos voltar ao título da mostra e afirmar que todo mundo é, ou que deveria ser.
REVIEWS
Fürher e o Califado do Terror (2015), pintura de Cleber Ramos, na 13a Bienal Naïfs do Brasil
13a Bienal Naïfs do
Brasil, - Todo Mundo é Exceto Quem Não É, curadoria Clarissa Diniz, até 27/11, Sesc Piracicaba, Rua Ipiranga, 155 www.sescsp.org.br
BERLIM
EM TORNO DE BEUYS E O CAPITAL
Exposição trans-histórica amplia narrativa de obra de Joseph Beuys, ao relacioná-la com 130 trabalhos
de outros autores e tempos O museu Hamburger Bahnhof, em Berlim, apresenta uma grande exposição em torno de A Sala do Capital 1970-1977, o ambiente criado por Joseph Beuys (1921-1986) para a Bienal de Veneza de 1980. Essa instalação foi adquirida no ano passado pelo colecionador alemão Erich Marx e agora está sob empréstimo definitivo ao Hamburger Bahnhof, que já possuía uma importante coleção de Beuys. A Sala do Capital é composta de 27 objetos, entre eles um piano de cauda, aparelhos elétricos, gravadores, microfone e muitos elementos de performances de Beuys, além de muitas obras que ele já havia exposto na Documenta de Kassel. Na sua visão, qualquer um é um artista e o capital humano seria o único capital verdadeiro na sociedade pós-industrial. Arte = Capital é uma expressão recorrente na obra de Beuys. Nessa exposição trans-histórica, curada por Eugen Blume e Catherine Nichols, foram incluídas 130 obras de autores variados. Entre as mais antigas está uma estátua de Thoth, deus da escrita e da sabedoria, que teria sido o inventor dos hieróglifos. O álbum romântico Fallen Angels (2016), de Bob Dylan, com versões de músicas gravadas por Frank Sinatra; um exemplar em alemão de A Paz Perpétua (1795), do filósofo prussiano Immanuel Kant; uma conversa entre o monge budista tailandês Bhikku Maha Mani e o filósofo alemão Martin Heidegger gravada por uma tevê alemã em 1964; uma máscara do teatro Nô do século 17; livros do escritor e político francês André Malraux; uma pintura do romântico Caspar David Friedrich; uma entrevista com a filósofa política Hannah Arendt; uma gravura de Goya; uma cabeça da divindade Yakshi, do século 1º; o filme Uma Vida de Cachorro, de Charles Chaplin; uma edição do livro Sobre o Comércio e a Usura, de Martinho Lutero, figura central da Reforma Protestante no século 15; um vídeo corporativo de 2013 chamado Working at Goldman Sachs; uma gravação de Rihanna da música Bitch Better Have My Money (2015); e as pinturas Big Electric Chair, Advertisement e Mao, uma das muitas versões que o artista pop Andy Warhol produziu sobre o retrato do líder comunista chinês Mao Tsé-tung, estão ali. Um toque brasileiro na discussão é dado por uma foto de Carmen Miranda interpretando The Lady in the Tutti Frutti Hat (1943) e o vídeo Passagens I (1974), de Anna Bella Geiger. Paul Klee, Marcel Broodthaers, Gerhard Richter, Cy Twombly, Bruce Nauman, Anselm Kiefer, On Kawara, Nam June Paik, Jeff Koons, Harun Farocki e Rachel Whiteread também estão representados. Exemplares em inglês e alemão da obra enigmática Worstward Ho, do dramaturgo e escritor irlandês Samuel Beckett, aparecem ali. Da obra faz parte o seguinte trecho, muito citado: “Não importa. Tente de novo. Falhe de novo. Falhe melhor”. Vá com tempo. MS
A Sala do Capital 19701977, instalação de Beuys em exibição no Hamburger Bahnhof
Capital – Dívida, Território, Utopia,
curadoria Eugen Blume e Catherine Nichols, até 6/11, Hamburger Bahnhof, Invalidenstrasse 50-51 www.smb.museum
RIO DE JANEIRO UMA OBRA, VÁRIAS VERDADES
PAULA ALZUGARAY
Relação entre a performance contemporânea e o poder de encenação mística na obra de Bispo do Rosário vem à tona em curadoria de Daniela Labra
Da obra de Artur Bispo do Rosário pode-se extrair tudo, menos a alienação. Em décadas de internação na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, Rio, Bispo colecionou objetos trocados, desfiou uniformes para obter linha para bordar e construiu cerca de 800 peças que, em meticulosa metodologia, nomearam e organizaram o lugar que as coisas ocupam no mundo. Suas vivências como pugilista, marinheiro e cidadão do mundo estão entramadas em cada centímetro de linha bordada e de corda esticada. É por isso que o projeto que o Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea vem desenvolvendo, de colocar sua obra em fricção com a produção artística contemporânea, não poderia ser mais pertinente e respeitosa para com sua obra. As exposições periódicas contam com curadores convidados, “para mostrar que a obra de Bispo tem várias verdades”, segundo palavras da diretora Raquel Fernandes. Tem duração de seis a dez meses, estimulando assim a visitação cíclica de públicos que se deslocam do centro e zona sul do Rio de Janeiro, e favorecendo o desenvolvimento de um programa educativo continuado com diversas escolas da região de Jacarepaguá, a fim de plantar entre os moradores a consciência de pertencimento e a posse da riqueza simbólica daquele patrimônio que se guarda ali. Esse projeto institucional atencioso, baseado na “arte de cuidar” e na confluência entre arte e saúde, tem a colaboração do curador artístico Ricardo Resende e da curadora pedagógica Bianca Bernardo. Com curadoria de Daniela Labra, a exposição periódica Das Virgens em Cardumes e da Cor das Auras investiga as relações entre a performance contemporânea e o poder de encenação mística na obra de Bispo do Rosário. Apresenta uma seleção de 60 obras da coleção do museu – entre elas o precioso Manto da Apresentação, oito estandartes e faixas de misses –, 19 obras contemporâneas e dez performances. Na abertura, Eleonora Fabião promoveu um cortejo de obras de Bispo – em uma “devolução” simbólica para a Colônia Juliano Moreira, deslocando-as do museu ao centro histórico da Colônia – antigo Engenho de Fubá e Cana-de-Açúcar. Sincretismo Sincronizado, instalação sonora do carioca Siri na entrada da exposição, é uma espécie de portal que transporta o visitante para a dimensão específica do rito. Chama a atenção também o projeto do cearense Solon Ribeiro com os alunos do Ateliê Gaia, oficina de artes da Colônia, que hoje funciona como uma cooperativa de artistas internos e ex-internos. Solon levou fotogramas da história do cinema para os artistas intervirem. Também da ordem do ritual, Mauricio Ianês realizou uma ação sem deixar outros rastros que papéis no chão das celas-ateliê do Pavilhão 10, onde Bispo viveu sozinho por sete anos; e Yara Pina deixou em vídeo e manchas nas paredes os registros da performance em que proferiu golpes contra a própria sombra – “o outro que não reconheço como eu”, segundo define Bianca Bernardo.
Na instalação Sincretismo Sincronizado, o músico e artista visual Siri se apropria de 60 incensários. Em vez de fumaça, os objetos emitem sons de diversos discursos religiosos
Das Virges em Cardumes e da Cor das Auras,
curadoria Daniela Labra, Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, até 31/1/2017, Estrada Rodrigues Caldas, 3.400, www.museubispodorosario .com
SÃO PAULO ENIGMÁTICO TERRITÓRIO DO COMUM
BIANCA DIAS
Obra de Thiago Honório restaura a sacralidade dos objetos, reinventa o espaço do museu e o lugar do tra-
balho Na vertigem do mistério dos objetos e do enigma que deles emana, Thiago Honório constrói a obra Trabalho, exposta no Masp. De escadas, picaretas, enxadas, marretas, serrotes, pincéis e espátulas utilizados no restauro de uma antiga estação de fornecimento de energia, o artista desvela um saber que acontece pelas mãos. Da negociação inicialmente clandestina com pedreiros e mestres de obras instala-se a dimensão da troca e de uma política absolutamente singular, sustentada na ética do vestígio, do rastro e daquilo que não se pode apagar ou cobrir. No diálogo com a arquitetura brutalista, franca e despida de Lina Bo Bardi, as ferramentas parecem brotar do material cru e do concreto aparente e, ao embaralhar instrumentos que chegam de maneiras distintas (via negociação ou por doação), o artista reinventa não só o espaço do museu, como também o lugar do trabalho, tensionando o laboral, entendido como tarefa árdua ou de força, e que, na obra, adquire sentido na potência da sutileza, em um agrupamento que segue uma lógica quase musical, na medida em que a disposição das ferramentas surge como resposta singular ao inacessível contido no gesto de doação, ao vazio que constrói um espaço de ressonância entre os objetos, vazio que faz vicejar dádivas, à maneira invocada por Georges Bataille. No ensaio “A noção de dispêndio”, Bataille evidencia a tentativa de abarcar, em um mesmo espaço reflexivo, domínios do conhecimento tão diferentes quanto antropologia, religião, sociologia, arquitetura, arte, filosofia e economia. Aí também se inscreve a força da voz soterrada que Thiago Honório evoca ao refundar uma dimensão do trabalho como sistema de performance social e produção que extrapola a importância econômica e moral.. Subvertendo o uso das ferramentas, Thiago Honório nos leva ao espanto de um mundo onde o objeto não se confina a seu significado, valorizando e reconfigurando, através dos múltiplos sentidos que emergem dos instrumentos, a dimensão viva e inquieta de um trabalho aberto ao imprevisto, ao inesperado, transfigurando e transgredindo qualquer aprisionamento funcional. Num diálogo agudo com o espaço arquitetônico que abriga a procissão de ferramentas, o que se revela é a espessura dos instrumentos que, com suas qualidades artísticas, plásticas e visuais, são índice de trabalho e dramatização de uma falta que é, também, presentificação de algo que rompe uma cadeia homogênea e desierarquiza saberes, incorporando a dádiva como aquilo que é de todos e, ao mesmo tempo, de ninguém, que está no ordinário e fora dele. Do ato propositado da negociação passa-se à doação e ao terreno do incerto, do inacessível, através de elementos intrusivos que chegam de mãos desconhecidas. A essas ferramentas se juntam aquelas negociadas, embaralhando a lógica de acúmulo e produtividade, desfuncionalizando objetos e fazendo cintilar o território do comum – tão enigmático quanto difícil, tão raro e sempre em esquiva.
Trabalho (2013-2016), instalação composta de ferramentas que o artista Thiago Honório barganhou com pedreiros e mestres de obra
Trabalho, Thiago Honó-
rio, curadoria Fernando Oliva até 29/1/17, Masp, Av. Paulista, 1.578 www.masp.art.br