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história
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by Editora 3
ENSAIO
FASCISTAS SECRETOS
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JÖRG HEISER
Na virada do século 19 para o 20, nasceu na Áustria uma sociedade secreta que se transformou em uma grotesca fantasia de massa. Seu nome, aparentemente inofensivo, era Ariosofia. Ela formou as raízes ocultas da ideologia nazista. Os vestígios da conexão entre o elitismo sectário e o fascismo populista de direita podem ser encontrados ainda hoje


PRIMAVERA DE 1908, ÁUSTRIA, A 50 QUILÔMETROS DE
LINZ, SEGUINDO O CURSO DO RIO DANÚBIO. Algumas centenas de convidados chegam em um navio a vapor vindo de Viena e são recebidos por salvas de canhão do castelo medieval embandeirado sobre a colina, o Burg Werfenstein. Os viajantes se refrescam nos pubs locais, antes de participar de um concerto comemorativo no pátio do castelo: canto coral e fogueira até tarde da noite. O evento é relatado nos jornais nacionais. Tudo parece bastante inofensivo. Mas o dono do castelo, um certo Jörg Lanz von Liebenfels, dirige uma sociedade sectária chamada Ordo Novi Templi (ONT), a Ordem dos Novos Templários, que se refere aos Cavaleiros Templários medievais. Seu programa, formulado em dezembro de 1907 e publicado na revista Ostara, promove uma visão de mundo “ariana” claramente racista, com pesquisa de ancestralidade genealógica e heráldica e concursos de beleza que seguem critérios raciais. No Natal de 1907, uma bandeira com a suástica foi içada sobre o castelo. A história de vida de muitos antecessores ideológicos do futuro movimento nazista flui ao longo do Danúbio e Acima, cartão-postal do Burg Werfenstein, local de encontro de ocultistas sectários que no início do século 20 promoviam seus afluentes: de Viena a visão de mundo “ariana”. Na página ao lado, em sentido horário, Jörg Lanz von Liebenfels, dono do castelo e cabeça da Werfenstein e Linz, seguindo Ordem dos Novos Templários; Karl Maria Weisthor, coronel da SS, que operava com ritos ocultistas e revestiu o Holocausto por Salzburgo e até Munique de uma aura de missão superior; e Guido von List, escritor que falseou título de nobreza de linhagem ancestral germânica – a “capital do movimento”, como Adolf Hitler a chamou mais tarde. Eram ocultistas sectários que depositaram as sementes da colheita de Hitler: Guido von List e o mencionado Lanz von Liebenfels. Outro sectário de mentalidade semelhante tornou-se mais tarde membro do círculo íntimo de Hitler: o SS-Oberführer (coronel das SS) Karl Maria Weisthor. Ele foi assessor de Heinrich Himmler em assuntos ocultistas e supersticiosos, uma espécie de Rasputin do Reichsführer. Seguindo a liderança de Weisthor, a organização de elite do Terceiro Reich operava com símbolos e ritos ocultistas, revestindo o assassinato em massa e o Holocausto industrial de uma aura de missão superior. A empreitada começa na Viena do fin de siècle. Com sua vitória na guerra alemã de 1866, a Prússia realizou a chamada “Pequena Solução Alemã”: uma Alemanha sob a liderança da Prússia, mas excluindo a Áustria. Assim, a fundação da dupla monarquia da Áustria-Hungria foi indiretamente forçada. O estabelecimento desse novo império real e imperial resultou automaticamente na dominação demográfica das partes não germânicas da sociedade no interior de suas fronteiras, com a formação de novos círculos pangermânicos que ressentiam a ideia de um Estado multiétnico, e para os quais o fracasso da “Grande Solução Alemã” – a unificação da Prússia com a Alemanha e a Áustria – era uma constante fonte de insultos e injúrias. Até o fim do século 19, esses grupos se solidificaram cada vez mais em movimentos völkisch – nacionalistas, racistas e segregacionistas –, que defendiam uma visão de mundo estritamente antissemita, germânico-machista e antidemocrática. Mais ou menos na mesma época formou-se – de Londres a Nova York – um movimento ocultista e esotérico, a teosofia, sob a liderança da russo-germânica Helena Blavatsky. Práticas espíritas como as sessões mediúnicas faziam parte disso, mas, para Blavatsky, o mais importante era a mistura de motivos religiosos orientais, incluindo hinduístas e budistas, com a gnose judaico-cristã dos séculos primeiro e terceiro (da Cabala ao Hermetismo). O aspecto importante era a ideia de um acesso privilegia-

do a revelações que só poderiam ser alcançadas por meio de certas técnicas de meditação, antigos ritos de iniciação e conhecimento secreto, qual seja, magia (para uma perspectiva mais detalhada da influência e das visões de Blavatsky do que seria possível no âmbito deste artigo, ver o ótimo livro de Gary Lachman, Madame Blavatsky: The Mother of Modern Spirituality, 2012). De maneira crucial, Blavatsky desenvolveu a noção das cinco “raças-raízes”, discernindo a história humana em sete etapas de desenvolvimento, sendo a quinta a “ariana”, na qual vivemos atualmente. A anterior, segundo ela, terminou milhões de anos atrás, com a queda da Atlântida. sistema ideológico, substituindo os componentes “hindus” de Blavatsky por outros germânicos. List era filho do comerciante de couros vienense Karl Anton List, e Guido só adotou o falso “von” de nobreza após a morte do pai. Esse estranho desejo de nobreza, decorrente de uma linhagem de ancestralidade germânica, tornou-se típica para muitos líderes e discípulos dos grupos ariosóficos. Em sua obra-padrão de excelente pesquisa As Raízes Ocultas do Nazismo (2004), o historiador britânico Nicholas Goodrick-Clarke, especialista em grupos ocultistas, menciona incontáveis nomes obscuros que soam típicos de sua época por serem grotescamente excêntricos e parodisticamente poéticos, como Ottokar Stauf von der March, Wilhelm von Pickl-Scharfenstein (barão Von Witkenberg), Harald Arjuna Grävell von Jostenoode, ou Frodi Ingolfson Wehrmann. Eles soam quase como uma lista de personagens de Game of Thrones. Especialmente o último: Frodi é o nome de um antigo rei mítico, que aparece tanto nas Eddas da Islândia quanto no épico Beowulf, transformado em “Frodo” por J.R.R. Tolkien para seu O Senhor dos Anéis. E, obviamente, isso levanta suspeitas de que um bom número desses senhores acima citados simplesmente inventou sua suposta linhagem ariana e cavalheiresca. A invocação de uma genealogia germânica de sangue azul serve como uma forma fantasmagórica de autoconsolo para aqueles em solo austríaco que se sentiram excluídos da “Pequena Solução Alemã”. Em comparação, o nome de Guido von List é modesto, mas ele é ainda mais ousado na fabricação de sua própria ascendência. Analisado pelo arquivo de registro da nobreza de Viena, ele “prova” seu título com um anel de sinete que ostenta o brasão de um cavaleiro do século 12, Burckhardt von List. Parte da fama posterior de List veio de ele ter anunciado que era vidente e podia enxergar muito atrás no passado germânico. Em 1917, durante a Primeira Guerra Mundial, ele previu uma vitória gloriosa, o que o obrigou a reinterpretar a derrota de 1918 como uma catástrofe necessária no caminho para a iminente salvação dos ario-germânicos. Os escritos de List foram instantaneamente convertidos em clássicos no meio völkisch, especialmente sua novela Carnuntum (1888), em que ele conta a história de um ataque fictício de tribos germânicas à cidade romana de Carnuntum (a 40 quilômetros a leste da atual Viena).
Fac-símile do periódico Ostara, editado por Liebenfels, que aludia aos Cavaleiros Templários e disseminava ideias sobre uma raça mestra ariana destinada a assumir o poder totalitário. Acredita-se hoje que Hitler tenha sido um leitor habitual
DE BLAVATSKY A SENHOR DOS ANÉIS
Foi contra esse pano de fundo que se desenvolveu uma grotesca fantasia em massa, embora sob os auspícios de um conhecimento secreto supostamente exclusivo. Seu nome, de som distinto e inofensivo, era Ariosofia. Seu primeiro proponente foi Guido von List, um homem que publicou compulsivamente textos völkisch. A ideia teosófica das raças-raízes e de uma era ariana foi algo que Von List adotou alegremente e transformou em seu próprio

Hitler não estava absolutamente interessado nos tradicionais círculos elitistas pequenos e sigilosos, mas pretendia formar uma cultura de massa extática, livre de todos os escrúpulos civilizados

Madame Helena Blavatsky, lider de um movimento esotérico formado no fim do século 19, e autora de ideias teosóficas que foram apropriadas e deturpadas por Guido von List na composição de sua doutrina antissemita
Mas o ponto crucial é que ele implementa seus motivos pagãos germânicos na construção de uma raça mestra ariana destinada a reinar. A doutrina esotérica propagada publicamente do wotanismo – baseada no principal deus germânico, Wotan, também conhecido como Odin – destinava-se a dar às classes sociais inferiores uma mitologia de orgulho popular. Apesar da doutrina interna esotérica Armanenschaft, a casta sacerdotal dos iniciados chamada “Alta Ordem de Arman”. Usando motivos estabelecidos pelos maçons, assim como pelos rosa-cruzes, List criou esse nome para invocar uma linhagem de reis-sacerdotes míticos que remontam às antigas raízes teutônicas. Mais tarde ele adornou sua criação com todo tipo de descoberta esotérica, de sigilos criptográficos (pictogramas mágicos) baseados no abade Johannes Thritemius de Sponheim (1462-1516) a suas próprias leituras das runas germânicas. A partir dos anos 1910, Guido von List imaginou o futuro reinado dos arianos: ele pedia simplesmente a submissão de todos os não arianos à raça mestra ariana. Os subjugados e escravizados fariam então todo o trabalho menor e mais duro, enquanto os cargos mais graduados nas empresas, no serviço público e na vida espiritual e intelectual seriam reservados aos ariogermânicos. A vocação para esses empregos se basearia, em primeiro e único lugar, no critério da pureza racial. Só homens ario-germânicos teriam liberdade e cidadania completas, enquanto todas as famílias teriam de manter um livro de ancestralidade racial. É um modelo societário que antecipava em duas décadas as Leis da Raça de Nuremberg e a abordagem geral dos nazistas. O elitismo místico de List precede a visão de Himmler de um Estado-Ordem SS.
IGREJA CATÓLICA X IDEOLOGIA GERMÂNICA
A construção de List também inclui de maneira típica uma teoria da conspiração. Seu objetivo é explicar como, se a raça mestra ariana era tão superior, ainda não se havia estabelecido o Estado da raça mestra. List afirmava que a culpada era a Igreja Católica, tão forte na Áustria na época que repudiou e demonizou o sacerdotalismo germânico durante séculos. O que também explicaria a necessidade de práticas secretas para transmitir o conhecimento proibido. É o típico argumento tautológico adotado pelos professores de ocultismo e teóricos da conspiração: a necessidade de sigilo é explicada pela igualmente secreta conspiração dos adversários. A visão de List do renascimento das “Cortes Vêmicas” do fim da Idade Média na Westfália – tribunais secretos protovigilantes que emitiam e executavam sentenças de morte etc. – tornou-se a fantasia preferida de muitos, antecipando o futuro império pangermânico. A característica estratégica dupla dos movimentos sectários vem ao primeiro plano aqui: a iniciação interna oculto-religiosa deve ser equilibrada externamente por uma ação político-militar, embora encoberta. O alinhamento anticlerical de List pode em princípio parecer em total contradição com a abordagem do monge cisterciense Jörg Lanz von Liebenfels, que depois de List tornou-se a principal fonte dos zelotes místico-germânicos. Assim como List, Liebenfels havia criado uma genealogia mística de nobreza para si mesmo: o filho do diretor escolar Johann Lanz, de Viena-Penzing, afirmava ser de fato o barão Johann Lancz de Liebenfels, com uma linhagem que remontava ao reinado dos Hohenstaufen, do sul da Alemanha, sobre a Sicília medieval. Enquanto List se dedicava à religiosidade germânica neopagã, Liebenfels atuava com a obscura gnose do início da cristandade e alusões aos Cavaleiros Templários, embora
com exatamente o mesmo resultado: a evocação de uma raça mestra ariana destinada a assumir o poder totalitário. A principal obra de Liebenfels tem o título incomparavelmente louco de Theo-zoology, or the Lore of the Sodom Apelings and the Electron of the Gods (1905). “Teozoologia” designava uma bizarra interpretação de motivos bíblicos com o conhecimento científico da época sobre radiologia e semelhantes. Segundo Liebenfels, os anjos celestiais, por exemplo, eram simplesmente seres superiores de tempos dedicada a uma presença total industrial-militar que duraria mil anos – ou melhor, pelo período de vida do próprio Hitler (ele nunca designou um sucessor para o caso de sua morte), como se o Reich fosse sua obra artística que naturalmente cessaria com sua morte. Tendo em vista esses objetivos, os antecessores místicos só interessavam a Hitler como um meio para atingir um fim, e, portanto, ele considerava sua apreciação explícita prejudicial (pelo menos a sua própria vaidade). Já em Mein Kampf (1925-1926) Hitler zomba dos evangélicos esotéricos alemães com suas longas barbas e, durante a cúpula do partido do Reich, em 1938, ele anunciou que “a insinuação dos exploradores místicos do além de tendência mística não será tolerada”. Entretanto, as semelhanças entre as manias racistas de Hitler, List e Liebenfels, ligadas a visões de um Grande Reich Alemão, são próximas demais para ser explicadas meramente por uma semelhança entre suas respectivas afinidades e meios. Afinal, Hitler fez da SS de Himmler, com suas bases místicas, a elite e o principal instrumento de poder. Entre 1918 e 1929, na acelerada sucessão de derrota, hiperinflação, sucesso ilusório e estouro catastrófico experimentada pela Alemanha e a Áustria, criou-se uma sensação de irrealidade apocalíptica. Ela tornou-se o canteiro para os novos mantenedores da tradição germânica. Outro precursor do movimento nazista de Hitler em Munique foi a Sociedade Thule, liderada pelo barão Heinrich von Sebottendorf (ou apenas Adam Glauer – outro pseudonobre. Entre seus convidados estiveram os líderes nazistas tardios Rudolf Hess e Alfred Rosenberg. Sebottendorf foi instrumental na fundação do jornal Münchner Beobachter, depois rebatizado de Völkischer Beobachter, o órgão central da propaganda nazista. Outro grupo, a Sociedade Edda, fundada em 1925 na zona rural da Baviera, dedicou nada menos que três edições da revista Hagal às supostas capacidades sobrenaturais de um certo Karl Maria Wiligut – ninguém menos que o acima citado Weisthor, que se tornou o Rasputin de Himmler.
As ideias de Blavatsky a respeito de cinco raças-raízes e de uma era ariana foram algo que List adotou alegremente e transformou em seu próprio sistema ideológico, substituindo os componentes hinduístas e budistas por outros germânicos antigos que haviam perdido suas capacidades sobrenaturais depois de terem se misturado de forma sodomítica com raças inferiores – capacidades sobrenaturais que os arianos recuperariam depois de uma suficiente higiene racial. Assim, Liebenfels (que teve de deixar os cistercienses, ironicamente, por causa de pecados da carne) fundou a sociedade secreta masculina dos ONT. Foi sob a insígnia desse grupo que ocorreu o acima mencionado festival mís- ANTISSEMITISMO E ANTIFEMINISMO tico em Burg Werfenstein. Hoje acredita-se de modo geral Wiligut, ou Weisthor, continuou sendo a única exceção, o que Adolf Hitler foi um dos leitores habituais do periódico único ex-sectário promovido às fileiras dos nazistas domide Liebenfels, Ostara. No entanto, muito cedo ele tomou nantes depois de 1933. Nascido em Viena, o antigo oficial cuidado para não fazer qualquer referência explícita a es- do Exército austríaco aposentou-se, em 1919, em Salzburgo, ses antecessores místico-ocultistas. Hitler não estava ab- e passava o tempo criando sua própria lenda como descensolutamente interessado nos tradicionais círculos elitistas dente de um germânico pré-histórico, da realeza e semidivipequenos e sigilosos, mas pretendia formar uma cultura de no. Na verdade, ele afirmava ser capaz de olhar diretamente massa extática, livre de todos os escrúpulos civilizados e para o passado de milhares de anos. Seu reconhecimento dos
tempos remontava a 228 mil a.C., quando três sóis brilhavam sobre uma terra governada por gigantes e anões. Wiligut desenvolveu traços cada vez mais paranoicos e acreditava haver uma conspiração entre a Igreja Católica, os judeus e os maçons. A perda precoce de um filho e herdeiro muito desejado, juntamente com uma crise financeira causada pelo mau investimento de um ex-sócio, levou-o a um colapso em 1924, diagnosticado como esquizofrênico com manifestações megalomaníacas e paranoicas. A contragosto, Wiligut foi internado em um asilo em Salzburgo, onde passou três anos. Aparentemente, esse passado foi um dos motivos que o levaram a usar o pseudônimo Weisthor. Esse foi o homem que se mudou para Munique em 1932 e foi introduzido nas SS no fim de 1933. O que nos conta essa pré-história da ideologia nazista ocultista? Em primeiro lugar, expõe como o insulto e a injúria narcisistas a pessoas que antes se consideravam naturalmente superiores (por que “nós” não fomos integrados ao novo Reich alemão? Por que somos subitamente uma minoria na Áustria?), em uma cultura soldadesca geralmente machista (das guerras alemãs de 1866 à Primeira Guerra Mundial), levaram a uma mania de raiva e vingança ligadas a fantasias de superioridade por meio de parentesco e raça. E essa mania foi reveladoramente ini- Ruína de Carnuntum, cidade romana localizada a 40 km a leste da atual Viena, que dá nome à novela ciada por notórios mentirosos e imescrita por Guido van List em 1888 e que se tornou um clássico instantâneo da literatura völkisch postores. É esse espírito intoxicado de seres “insultados” e “injuriados” que se perpetua sempre que uma cultura machista de guerra se funde com uma ideologia de recuperar algum tipo de superioridade supostamente perdida em tempos antigos, devido a uma conspiração. É uma mistura característica para as personalidades politicamente psicopatas de hoje, em todo o espectro político e muitas vezes em lados antagônicos dele. Pense na cultura das armas pelos suprematistas brancos nos Estados Unidos e em Donald Trump, que se consideram ferozes opositores do islamismo fundamentalista – mas não poderiam ser mais alheios aos princípios democráticos da Constituição americana, exceto o direito de portar rifles. O Estado Islâmico no Iraque e na Síria foi cofundado por ex-membros do serviço secreto de Saddam Hussein, homens tão convencidos de sua superioridade quanto são mentirosos, ao fazer seus seguidores acreditarem estar lutando por uma causa religiosa “real”, com a ajuda do simbolismo oculto (as bandeiras, as teorias da conspiração ocultista etc.). Seus atos terríveis, muitas vezes representados em seus vídeos promocionais como jogos de tiro para computador, se disseminaram como um vírus contagioso entre os garotos imigrantes de segunda e terceira geração na Europa Ocidental, que desenvolveram personalidades injuriadas, intoxicadas, machistas, que têm tantas semelhanças com os que são supostamente seus inimigos políticos – psicopatas de direita como Anders Breivik, o mass murderer norueguês que cinco anos atrás matou 77 pessoas em Oslo, que se descrevia alternadamente como um cavaleiro templário cristão e como um “odinista” (seguidor do deus viking Odin). O rapaz de 18 anos que cometeu uma matança em um shopping center de Munique, em julho de 2016, e matou nove pessoas antes de se suicidar era filho de imigrantes iranianos, nascido na Alemanha, que trocou seu nome de Ali para David e se orgulhava do fato de ter nascido no mesmo dia que Adolf Hitler. O que todos parecem ter em comum, quer se declarem fascistas antimuçulmanos ou islamitas fundamentalistas, ou uma mistura absurda dos dois, é um feroz antissemitismo, antifeminismo e ódio do empoderamento queer, da diversidade étnica e religiosa em respeito mútuo e dos esforços da esquerda para melhorar a educação. Como disse Nietzsche de maneira muito apropriada: “Quem despreza a si mesmo ainda se respeita como alguém que despreza”. TRADUÇÃO LUIZ ROBERTO MENDES GONÇALVES

A instalação Trapézio ou Uma Confissão, de Wesley Duke Lee, foi criada para a Bienal de Veneza de 1966 e é uma das raridades da coleção de Roger Wright em exibição na Pinacoteca de São Paulo

JOIAS REVELADAS
LUCIANA PAREJA NORBIATO
Exposições trazem a público os acervos monumentais de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira
“MINHA DICA PARA QUEM QUER COLECIONAR É NÃO FAZER ISSO POR PURA ESPECULAÇÃO. PORQUE, SE VOCÊ COMPRA UMA OBRA DE ARTE APENAS PELO VALOR QUE ELA PODE ALCANÇAR, PODE SE DECEPCIO-
NAR SE ELA NÃO CUMPRIR ESSE DESTINO. Aí vai sentir desgosto cada vez que passar por ela na sua casa. Mas, se você compra uma obra por razões afetivas, não importa o preço de mercado, ela lhe dará uma alegria sem tamanho sempre que você olhá-la.” Foi essa a dica que José Olympio da Veiga Pereira deu a colecionadores neófitos em bate-papo no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em agosto deste ano. Por aí imagina-se a relação que um colecionador particular cria com suas peças. Cada trabalho é comprado por uma razão, em um determinado contexto, e passa a fazer parte da vida de seu proprietário. São tesouros restritos ao círculo permitido pelo colecionador, mesmo quando emprestados para mostras. Mas duas exposições hoje em cartaz em São Paulo trazem à tona os segredos de duas das mais importantes coleções particulares do Brasil: de Roger Wright e do casal Andrea e José Olympio Pereira, respectivamente, na Pinacoteca do Estado de São Paulo e no Instituto Tomie Ohtake. Os acervos têm características bastante diferentes, mas não seus donos. Roger Wright, nascido na Inglaterra e criado pelos tios no Rio Grande do Sul, foi um dos sócios fundadores do Banco Garantia, pioneiro na venda de ações brasileiras no exterior. A mesma instituição onde José Olympio Pereira começou a carreira, até chegar ao cargo atual de presidente-executivo do banco de investimentos Credit Suisse.

Um pot-pourri das joias de Andrea e José Olympio Pereira: à esq., In-Out Antropofagia (série Fotopoemação, 1973/2008); no alto, à dir., Silver Pencil (2010), de Iran do Espírito Santo, e, abaixo, Ícone (2011), de Felipe Cohen; na página ao lado, Masks (2012), de Daniel Steegman Mangrané


Tanto Pereira quanto Wright começaram a comprar arte no início dos anos 1990, mas o futuro de suas coleções será radicalmente diferente. Enquanto o primeiro não tem planos para a posteridade (“talvez ajudar algumas instituições de arte”), uma tragédia abreviou a continuidade do acervo do inglês: em 2009, dias antes de Wright completar 57 anos, o avião bimotor que o transportava para Trancoso (BA) com sua mulher, os dois filhos e os netos, caiu na mata fechada e explodiu, matando toda a tripulação. O espólio ficou sob responsabilidade da mãe de Wright, Ellen Mouravieff-Apostol, e do meio-irmão Christopher. “Ele não tinha um plano concreto (de colocar as obras em uma instituição pública), como não tinha, inclusive, nenhum plano de desaparecer, como desapareceu. Mas era muito generoso, adorava o Brasil, adorava a arte brasileira e, certamente, um dia essa seria a ideia. Tenho certeza de que estou fazendo o que ele teria feito”, diz à seLecT Christopher Mouravieff-Apostol, responsável pelo contrato de comodato de 178 das 300 peças da coleção de seu irmão com a Pinacoteca do Estado de São Paulo. O público agradece. A coleção de Wright constitui um conjunto significativo da vanguarda dos anos 1960. É um recorte de 80 trabalhos desse período que a Pinacoteca exibe até 2019, em parte do andar térreo. “Esta exposição integra a mostra de longa duração que se chama Arte no Brasil: Uma História na Pinacoteca de São Paulo. Ela começa com uma seção da era colonial até a década de 1920; vamos abrir uma seção de 1920 a 1950, e a mostra do Roger Wright complementa, chegando até meados dos anos 1980”, explica à seLecT José Augusto Ribeiro, curador da mostra Vanguarda Brasileira dos Anos 1960 – Coleção Roger Wright. Trazendo a produção dos artistas que então resistiam à ditadura mili-

tar (1964-1985) por meio de novas formas estéticas – apropriações do pop e das tecnologias incipientes, tridimensionalidade, incorporação do espectador na obra –, a mostra tem preciosidades quase inéditas do grande público. Entre elas, Trapézio ou Uma Confissão (1966), enorme instalação de Wesley Duke Lee tida como a primeira obra ambiental do Brasil. Há também trabalhos emblemáticos de Rubens Gerchmann, Carlos Vergara e Tomoshige Kusuno, entre outros. Mas o segredo que os trabalhos revelam coletivamente é o retrato de uma geração que usou a arte para lidar com seu tempo. “O caráter sistemático das aquisições do Roger foi decisivo para a constituição de um conjunto que, como núcleo, é importante. Esse é um dos principais conjuntos desse período”, diz Ribeiro. A capacidade de síntese e abrangência é a característica de outra exposição de coleção particular focada em recorte específico, na Galeria Estação, em SP. Um Certo Olhar – Coleção Celma Albuquerque apresenta um recorte do acervo da galerista mineira especializada em arte popular e falecida em dezembro de 2015.
AULA MAGNA
A exposição Os Muitos e o Um: Arte Contemporânea Brasileira na Coleção Andrea e José Olympio Pereira evidencia a qualidade individual de cada obra para estimular uma experiência estética única em cada espectador. “Sou professor de arte (em Yale) e trabalhei no MoMA, então tenho um enorme respeito pelas pessoas que partem de um pensamento estruturado. Mas acho que a primeira experiência com a arte deveria ser aquela que não passa pelo saber, mas pelo olhar”, diz à seLecT Robert Storr, curador norte-americano, duas vezes diretor da Bienal de Veneza, convidado pessoalmente por José Olympio para realizar o recorte, com a ajuda de Paulo Miyada, curador do ITO. “Eu e Pereira temos uma relação de longa data. Foi um desafio trabalhar com uma coleção tão grande em um espaço lindo, mas não usual”, completa Storr. Surpreende na exposição a abrangência de trabalhos de qualidade máxima, de fases sempre consideradas icônicas – mais expressivas e valiosas – de cada artista. Entre eles, Waltercio Caldas, Tunga, Anna Maria Maiolino, Carmela Gross, José Damasceno e Alfredo Volpi, este com uma dezena de peças ocupando majestosamente a sala redonda do instituto. O conjunto de 300 peças de mais de cem artistas brasileiros impressionou especialistas. Na abertura da mostra, estimava-se que o valor dos trabalhos expostos seria de algo em torno de R$ 500 milhões. Não à toa, o casal ocupa a 68ª posição no ranking dos cem maiores colecionadores de arte do mundo, divulgado em junho último pelo site ArtNet. Nem a dona da coleção, Andrea Pereira, vê com frequência todas as suas mais de 2 mil obras, majoritariamente contemporâneas, dos anos 1950 até hoje. “Há uma parede do Henrique Oliveira com um de seus relevos, que antes estava guardada e havíamos acabado de instalar em casa. Não se passaram duas semanas e o curador pediu a obra para a exposição”, conta à seLecT. “Quando vi, tomei um susto. Pensei: ‘Nossa, tudo isso é meu’?” Trazida à luz, a coleção confirma ao curador internacional que “em nenhum lugar das Américas há maior efervescência artística do que no Brasil”, segundo declarou. Para o público, é uma aula magna de arte contemporânea. “Enquanto a obra de arte é segredo, ela não acontece como um bem cultural social. Quando ela é vista, passa a ser parte da cultura de um povo”, diz Miyada.
ENTREVISTA
100 ERNESTO NETO
Pesquisas recentes do artista carioca recaem sobre os mistérios da Ayahuasca. Esculturas penetráveis são ativadas em rituais xamânicos
PAULA ALZUGARAY
“PAXPA/ EXISTE UMA FLORESTA ENCANTADA DENTRO DE NÓS.” “VOZES DA FLO-
RESTA.” “ARU KUXIPA/ SAGRADO SEGREDO.” Com títulos enigmáticos e convidativos, as esculturas que Ernesto Neto vem realizando nos últimos três anos apresentam importantes características em comum. Penetráveis, envolvem o visitante em uma suave confluência de cheiros, cores quentes e formas orgânicas pendentes. Permeando as extremidades desses espaços predominantemente ovais, almofadas macias e felpudas convidam a sentar e ficar. No centro, elementos variáveis. Às vezes, uma arvore tecida em fios, às vezes uma escada, sempre um altar, com cocares, pratos de oferendas, instrumentos musicais. Em 2014, Neto apresentou a escultura penetrável Sweet Edge em individual no Guggenheim Bilbao, Espanha. No mesmo ano, integrou a exposição Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, com Em Busca do Sagrado Giboia Nixi Pae (2014). Nas duas instituições, as tendas criadas reverenciavam os ambientes ritualísticos dos índios amazônicos Huni Kuin, com quem o artista tem realizado projetos conjuntos. Em ambos os casos, as esculturas foram palcos de sessões de Ayahuasca, o chá de plantas alucinógenas usado por diversas tribos indígenas e religiões como o Santo Daime como transporte para a dimensão espiritual. Em conversa com seLecT, Ernesto Neto fala como as vozes da floresta reverberam no espaço da arte.
Ernesto Neto no interior de tenda ritualística montada na exposição Boa, no Museum of Contemporary Art Kiasma, na Finlândia, este ano
Você acredita na espiritualidade da obra de arte?

Acho que a arte é o único lugar de subjetividade que sobrou nessa sociedade da objetividade que é a sociedade ocidental, que dominou o mundo com seu pensamento racional, econômico, científico. Como esse pensamento é da ordem da objetividade, o lugar que sobrou para a subjetividade é o lugar da arte. A arte sempre esteve conectada com a espiritualidade, em toda a historia da humanidade. Ela é a conexão com o espiritual.
Suas esculturas em forma de tendas ritualísticas são meios de canalizar essa espiritualidade?
Eu já venho trabalhando com isso há muito tempo. Essa dimensão espiritual para mim sempre foi clara. Sempre acreditei que estava trabalhando para o infinito, nunca trabalhei para o crítico de arte, para o público, para fulano ou beltrano. Meu trabalho sempre foi para algo maior, por isso que não existem segredos. Tudo está visível na dimensão espiritual e não tem como
esconder coisas em uma escultura. Sempre trabalhei para essa dimensão espiritual, que pode se chamar de Deus, de Grande Espírito, aí depende do contexto social e cultural de cada um. Acontece que há três anos eu me encontrei com o povo Huni Kuin, que trouxe para mim uma dimensão espiritual do sagrado, da natureza, que eu compreendi. Encontrei pessoas que convivem com isso cotidianamente, decodificam isso e têm uma compreensão absolutamente profunda, em nível de conversar com as plantas e gerar uma ciência, um conhecimento. E gerando cura. Todo mundo sabe que a natureza cura. Se você está estressado na cidade, sente que está precisando ir para o campo ou praia para recarregar. Só que eles estão em uma convivência diária com a natureza há 10 mil anos, num lugar onde a gente se perdeu. Nesse processo de racionalização do pensamento, a gente se separou da natureza. A gente, inclusive, criou a palavra natureza. Sempre que falamos “natureza”, nós colocamos a natureza fora da gente. Os Huni Kuin e, provavelmente, vários outros povos indígenas não têm nem a palavra natureza. Eles são a natureza. Quando eles falam profundamente, é a folha falando, é o vento falando, é o rio falando, é a pedra falando, é o bicho falando. Então, entrei numa dimensão espiritual extremamente mais forte. Um dia, junto deles, eu disse ao Fabian, que é o filho do cacique lá do Rio Jordão, que eu queria fazer a dança da tartaruga em uma abertura de exposição. Esse é um caminho sinuoso que tenho feito no meu trabalho há 30 anos. E ele disse: “Vamos fazer juntos”. Aí a gente começou a fazer essa colaboração. Há muito tempo estou no lugar espiritual da arte, com as Naves, os Colchões, os Campos, os Espaços, lugares que tenho criado para as pessoas estarem, respirarem. Há vários anos falo que quero que as pessoas pensem pelos poros. E encontrei uma galera que está muito avançada nisso.
Ao entrar nas suas esculturas, o público pode se relacionar com o espaço de maneira pessoal, mas também participar de ações, de rituais conduzidos?
Realizamos dois trabalhos no Instituto Tomie Ohtake e um trabalho nessa exposição colaborativa em Bilbao, dentro do Guggenheim. Fizemos um trabalho espiritual onde a gente tomou o Huni, que é a maneira que os Huni Kuin chamam a Ayahuasca, conduzidos por eles, pelos cantos sagrados deles, cantos ancestrais. Isso é uma coisa que não dá para fazer publicamente, não é um show, um espetáculo. É um trabalho espiritual para convidados. Então, vejo o museu como um lugar-templo. O que acontece é que a arte, para os indígenas, nunca se separou da sociedade. Os desenhos que têm nessa bolsa, nessa pulseira, o desenho que tem no arco, na flecha, toda essa indumentária artística, estão lá para trazer força e proteção. Estão lá para conduzir essa espiritualidade. Não estão lá para ser uma coisa a ser contemplada. Não que ela não possa ser, mas está para ser utilizada, vivenciada. Como um Parangolé do Hélio Oiticica. Meu trabalho é para você entrar, sentar e meditar, ou simplesmente olhar.
Qual a diferença de participar de um ritual no meio da floresta e dentro do museu?
A diferença é que na floresta você está com toda a força dos seres divinos, sagrados, como as plantas, os bichos. Quando a gente bebe Ayahuasca, que é uma mistura de um cipó com uma folha – o cipó trazendo a força masculina e a folha trazendo a força feminina –, você está bebendo a força da terra. É uma coisa muito profunda e muito séria. E é uma coisa transformadora que, inclusive, a meu ver, pode transformar essa sociedade para o bem. Essa sepa-

Na página ao lado, Neto e colaboradores da tribo Huni Kuin, na instalação Vozes da Floresta (2016), no Kunsten Museum of Modern Art, na Dinamarca; à dir., Aru Kuxipa/ Sagrado Segredo (2015), na ThyssenBornemisza Art Contemporary Collection, em Viena

ração da natureza está fazendo a gente pegar tudo e não entregar nada. A gente está se autodestruindo tanto social quanto ecologicamente. A sociedade indígena tem um equilíbrio maravilhoso, e é uma sociedade brincalhona, eles acreditam na alegria como fonte da cura. Então, dentro do museu, o meu trabalho é trazer esse pensamento. Trazer a natureza para a arte e para o debate da arte. O que eu tento fazer enquanto artista é criar um ambiente propício, aconchegante, que traga força e proteção para que a gente realize aquele trabalho.
Que elementos são fundamentais para se criar esse ambiente?
Primeiro, o fogo. Seja uma vela, uma fogueira. Dizem que tudo isso começou quando o ser humano conseguiu controlar o fogo. E aí ele pôde sentar em roda. Ao meditar, ao olhar as labaredas, começou a desenvolver toda a capacidade humana. Toda capacidade intelectual humana é fruto da espiritualidade. Não é outra coisa que nasceu. A dimensão do ritual começa ali. A abertura de uma exposição é um ritual. A ritualidade existe em todos os movimentos da sociedade.
Você abre seus rituais para o público interessado?
Claro. Existem rituais com Ayahuasca, sejam indígenas ou não, acontecendo em São Paulo, no Rio de Janeiro e no mundo todo. Participa quem quiser. Agora, quando você toma uma coisa como essa, você vai entrar num processo extremamente forte. Então, isso é uma responsabilidade. Nosso grupo que faz trabalho indígena no Rio de Janeiro, quando as pessoas vão lá, tem de fazer uma entrevista, tem de conversar. Entende? Porque não é uma coisa qualquer.
Que grupo é esse?
É um grupo que foi formado por um jovem Huni Kuin que foi para o Rio de Janeiro. Assim como em São Paulo outras pessoas fazem trabalhos com Huni. Essa dimensão xamânica está se espalhando por toda a sociedade, não só a brasileira, mas também a europeia, a americana, a asiática.
O ritual não é uma situação que se restringe a grupos de iniciados, que compartilham um código, que lhes confere uma condição secreta?
Não, acho que isso é um grande equívoco, uma visão preconceituosa sobre a questão em si. O grande segredo é que a saúde está na alegria e na dimensão espiritual. E essa dimensão material, da ilusão, que a gente está vivendo, acreditar que o ouro traz a cura, é um engano. O amor é o grande segredo, o amor incondicional. Essa coisa de fazer um ritual fechado, que ninguém pode ver, isso não tem nada a ver. A não ser que existam pessoas fascistas, autoritárias, que queiram massacrar outras crenças, outras verdades, aí você tem de se esconder para se proteger.
Isso tem poder de modificar o mundo da arte?
A arte é o nosso suor, o nosso cheiro, o que o corpo exala. Se você transforma o pessoal, esse exalar também é transformado. O segredo mora dentro da gente. O segredo, mais uma vez, é o amor. É encontrar a serenidade dentro de si mesmo. Esses rituais todos te ajudam a encontrar a serenidade. Ioga, meditação, umbanda, candomblé, todas as religiões que são sérias. Quando elas se tornam controle social, perdem a sua legitimidade espiritual.
NO MEIO DO JARDIM, UMA VELA
SE O RADAR DA CURADORIA DA 32ª BIENAL DE SÃO PAULO - INCERTEZA VIVA ESTÁ ORIENTADO NO SENTIDO DE INTERROGAR TERRITÓRIOS CONHECIDOS E CAPTAR OUTROS SISTEMAS DE CONHECIMENTO, ABRINDO-SE PARA CÓDIGOS SIMBÓLICOS DE NATUREZAS DIVERSAS, ENCONTRAMOS NO PAVILHÃO DOIS CASOS EXEMPLARES DE TRABALHOS QUE PENETRAM NA ESFERA RITUALÍSTICA DA CONVIVÊNCIA HUMANA.
TabomBass (2016), de Vivian Caccuri, é um sistema de som feito com alto-falantes empilhados, como ocorre nas festas de rua. Diante deles, três velas acesas reagem ao ar deslocado pelo ritmo de sons graves. “Esse aqui é um altar que eu construí para o grave dos ritmos do Atlântico. É um altar que na verdade é um sound system, feito com subwoofers, as caixas que reproduzem as frequências graves da música. Então, quando você está aqui, sente um som muito pulsante, um som que ressoa dentro de você”, diz Caccuri à seLecT. A instalação sonora é uma celebração do encontro entre a música brasileira e a música de Gana, para onde a artista realizou viagem de pesquisa. Assinada com outros dez produtores musicais da cidade de Acra, capital de Gana (Keyzuz, Yaw P, Wanlov, Steloo, Panji Anoff, Mutombo da Poet, Ghalileo, Sankofa, Mensahighlife), o TabomBass toca uma vez por hora no Pavilhão da Bienal, fazendo o edifício vibrar com as linhas de baixo de músicas desses artistas ga-

Vivian Caccuri e Bené Fonteles criam altares e propõem rituais para a celebração de encontro com outras formas de conhecimento
nenses. As velas celebram a viagem permanente que a música da África-Oeste faz cortando o Atlântico e chegando às Américas. “Dei o nome de TabomBass porque ‘Tabom’ é um povo que foi para Gana no começo do século 19. Eram ex-escravos brasileiros que foram exilados e mandados ‘de volta’ para a África. E lá, em Gana, eles ficaram. Então eu considero que isso já é um caminho que estava aberto entre Brasil e Gana e esta obra é para criar um neocaminho e um diálogo entre esses dois países nesse eixo do Sul que pouco acontece.” O trabalho do paraense Bené Fonteles chama-se Ágora: OcaTaperaTerreiro (2016). Ele define essa obra-instalação-lugar como um fórum para se fazer um exercício de antropofagia. A oca, ela mesma ancestral, arquitetonicamente, “come o modernismo” da arquitetura de Oscar Niemeyer. As colunas do Pavilhão da Bienal foram pintadas pelo líder indígena brasileiro Ailton Krenak. Em parceria com Krenak, Bené elaborou também um programa de encontros intitulado Conversas para Adiar o Fim do Mundo. Convidou artistas e artivistas como os músicos Egberto Gismonti, Chico César, Marlui Miranda e Tetê Espíndola, os artistas Ernesto Neto e Claudia Andujar, e o xamã Davi Yanomami. O calendário de encontros e vivências se estenderá até dezembro. O objetivo é “celebrar e ajudar a curar a alma da nação brasileira, que está muito dolorida com tudo que está acontecendo”, diz Bené, que vive em Brasília. PA e MS
