Viva o Povo Brasileiro - A ficção de uma nação plural

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Impresso no Brasil, dezembro de 2014 Copyright © 2014 by Rita Olivieri-Godet Os direitos desta edição pertencem a É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal 45321 – CEP 04010-970 – São Paulo – SP Telefax (5511) 5572-5363 e@erealizacoes.com.br/www.erealizacoes.com.br

Editor Edson Manoel de Oliveira Filho Coordenador da Biblioteca Textos Fundamentais João Cezar de Castro Rocha Gerente editorial Sonnini Ruiz Produção editorial Liliana Cruz Preparação Vera Maria de Carvalho Revisão Cecília Madarás Capa e projeto gráfico Mauricio Nisi Gonçalves Diagramação André Cavalcante Gimenez Pré-impressão e impressão Gráfica Vida & Consciência

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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SUMÁRIO

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| 1. Uma vida de “navegação infinita pela palavra” | 2. A palavra desdobrada: uma visão do conjunto da obra ubaldiana

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| 3. Escrever os Brasis: Viva o Povo Brasileiro no contexto da obra ubaldiana e da literatura brasileira

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| 4. Viva o Povo Brasileiro: a ficção de uma nação plural

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| 5. O arcabouço estrutural em contraponto de Viva o Povo Brasileiro: passagens ilustrativas

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| 6. Sobre Viva o Povo Brasileiro e a obra de João Ubaldo Ribeiro: um breve passeio pela fortuna crítica

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| Bibliografia

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Para Seu Bené e Dona Janice, nativos da minha Ilha Para Marco, meu filho, um nativo da Ilha nascido em Paris Para João Ubaldo Ribeiro, pelos “causos” contados no Gordini verde de Perseu Abramo, que alimentaram a imaginação de uma menina

É bom, é indispensável que se imagine, assim se dá forma ao mundo. E se dá forma ao mundo todo o tempo, na fala mansa e no delírio amável de meus patrícios, na minha ilha querida do coração. [...] Mas, para conhecê-la, não basta chegar, não basta visitá-la, tem-se que cortejá-la com afinco e engenho. Privilegiado, eu nasci lá e, tão logo regresso, ela me abraça e me acolhe maternalmente em seu regaço, volto a meu lugar, volto à minha língua, volto à minha infância, volto, graças a Deus, ao que nunca deixei que se perdesse. João Ubaldo Ribeiro, “Uma Senhora de Muitos Pretendentes”, Cadernos de Literatura Brasileira

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1 Uma vida de “navegação infinita pela palavra”1

Nascido na Ilha de Itaparica, situada na região do Recôncavo Baiano, em 23 de janeiro de 1941, para cumprir a missão de navegar pela palavra, trabalhando-a com esmero, poesia e humor ao longo do processo de criação de uma obra ficcional extraordinariamente singular, no cenário da literatura brasileira, João Ubaldo ­Ribeiro sempre manifestou seu afeto profundo por esse lugar, em entrevistas, depoimentos e na sua própria ficção, na qual a Ilha surge transfigurada “com engenho e arte”. Itaparica – “cerca feita de pedra” ou “cintura de pedra” –, topônimo indígena, cujo sentido

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Principais fontes utilizadas na elaboração desta apresentação da biografia do autor, além das citadas ao longo do texto: Rita Olivieri-Godet, Construções Identitárias na Obra de João Ubaldo Ribeiro, São Paulo/Rio de Janeiro/Feira de Santana, Hucitec/Academia Brasileira de Letras/UEFS, 2009; Rita Olivieri-Godet, “Ecriture et Construction Identitaire: João Ubaldo Ribeiro”, Revue Europe, “Littérature du Brésil”, Paris, nov./dez. 2005; Zilá Bernd, “Cronologia da Vida e da Obra”, in: Zilá Bernd (org.), João Ubaldo Ribeiro, Obra Seleta, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 2005; Cadernos de Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, n. 7 (João Ubaldo Ribeiro), mar. 1999; e-mails trocados com o autor. 1

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alude à presença de rochedos que cercam a ilha, protegem-na das correntes e formam piscinas naturais. Sabe-se que uma parte significativa da obra do autor é baseada na representação literária desse espaço geográfico, tema social das narrativas que o integram a partir de uma perspectiva dialética entre suas dimensões real e simbólica. A ficção ubaldiana nutre-se da experiência vivida conectada ao contexto histórico e alimentada pela memória individual, familiar e coletiva. Vivência, memória, inventividade transfiguram o espaço da Ilha de Itaparica. Sua recriação nos textos ubaldianos, embora mantenha semelhanças com o referente espacial, não se restringe a uma representação realista, podendo inclusive assumir, deliberadamente, o caráter imaginário de sua construção, a exemplo do romance O Feitiço da Ilha do Pavão. Além da Ilha de Itaparica, a imersão do autor em outros espaços, como as cidades de Aracaju e de Salvador, delineou o perfil de obras enraizadas na cultura nordestina e que evocam os graves problemas dessa região. Os romances Sargento Getúlio e Vila Real ilustram essa vertente da produção ubaldiana. Destaca-se, aqui, a importância da relação que o autor estabelece com esses espaços, preocupado que está “em exprimir as suas próprias experiências vitais, diante da realidade contemplada em Sergipe e na Bahia”, extraindo deles a substância de sua obra, “universal pelos seus símbolos, mas baiana e nordestina pela

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temática”, como afirma o escritor e amigo João Carlos Teixeira Gomes.2 Mas qual é mesmo o itinerário de vida que levará João Ubaldo Ribeiro à “navegação infinita pela palavra”? João Ubaldo Osório Pimentel Ribeiro nasceu em Itaparica, na casa de seu avô materno, na Rua do Canal, número 1, endereço que continuou a ser frequentado pelo autor e sua família, durante as férias de janeiro, até 2014.3 Filho primogênito de Maria Felipa Osório Pimentel e Manoel Ribeiro, Ubaldo tinha apenas dois meses quando foi levado para Sergipe, onde, segundo declaração do autor, seu pai iniciou a carreira como pretor (juiz de primeira instância) de Japaratuba. A família viveu em várias cidades pequenas do interior antes de se estabelecer em Aracaju, onde João Ubaldo residiu até os onze anos. Como muitos outros grandes escritores, João Ubaldo Ribeiro é, antes de tudo, um grande leitor, um homem de formação erudita e de vasta cultura que se interessa pelos mais diversos

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Refiro-me ao excelente ensaio de João Carlos Teixeira Gomes, “João Ubaldo e a Saga do Talento Triunfante”. In: Zilá Bernd (org.), op. cit., p. 81. 3 A diretora da Biblioteca Juracy Magalhães Jr., amiga do autor, organizava anualmente uma festa em homenagem ao aniversário de João Ubaldo, com a participação de jovens estudantes, artistas e grupos culturais de Itaparica. A data reunia em torno do autor a população de Itaparica, familiares e amigos, turistas de passagem, em presença da imprensa. Já se tornara uma referência no calendário dos eventos da sua Ilha natal. 2

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assuntos. Esse interesse diversificado pela leitura manifestou-se desde a infância, em Sergipe, quando despertou para o mundo dos livros. Criado em meio a livros, ainda menino, ele os devorava na biblioteca do pai. Sentia um prazer especial na leitura da obra de Monteiro Lobato. O autor costumava evocar suas primeiras lembranças de “uma casa imensa coberta de livros” e afirmava que “já conhecia as letras de tanto conviver com os livros de meu pai”, quando foi alfabetizado pela professora D. Gildete, aos seis anos de idade, porque o pai não suportava mais a ideia de ter um filho “analfabeto”.4 Sobre esse período de sua infância em Sergipe, João Ubaldo Ribeiro, em textos como o excelente “Memória de Livros”5 e em vários depoimentos, destaca o papel fundamental que seu pai e sua avó paterna, D. Amália, exerceram na sua formação literária eclética. As exigências e imposições paternas lhe abriram as portas para uma formação clássica rigorosa, enquanto a cumplicidade da avó, durante as férias escolares, possibilitou ao menino João o acesso a todo tipo de leitura que as bancas de revistas expunham na época, até Ver João Ubaldo Ribeiro, “Como Eu Escrevo”, depoimento do autor no ciclo de conferências “Vozes Contemporâneas: A Ficção”, Academia Brasileira de Letras, 29 abr. 2014. Disponível em: http://ytchannelembed. com/video.php?id=NEn3aPq-8og#.U4bquxA2Lvk. Acesso em: 07/11/2014. 5 Idem, “Memória de Livros”. In: Um Brasileiro em Berlim. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1995, p. 137-53. 4

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mesmo as revistas policiais proibidas para menores, além de tê-lo presenteado com coleções de histórias e livros de Walter Scott, Edgar Wallace, Alexandre Dumas, Edgar Rice Burroughs, Swift, entre muitos outros. Desse modo, o futuro escritor inicia o seu percurso de fascínio pela palavra. Com o aprendizado da leitura, escreve o autor, “de repente o mundo mudou e aquelas paredes cobertas de livros começaram a se tornar vivas, frequentadas por um número estonteante de maravilhas, escritas de todos os jeitos e capazes de me transportar a todos os cantos do mundo e a todos os tipos de vida possíveis”.6 Em 1951 ingressa no Colégio Estadual Atheneu Sergipense, em Aracaju, mas o pai não abandona seu papel de formador rigoroso, exigindo leituras, resumos e traduções de trechos de obras, incentivando-o a estudar línguas estrangeiras. Devido a pressões políticas sobre Manoel Ribeiro, que ocupava na época o cargo de chefe da Polícia Militar de Sergipe, a família muda-se para Salvador. Esse período sergipano da infância pode ser considerado como o de gestação do futuro escritor, experiência determinante no seu percurso, sempre reconstruída através da memória: “Quando tenho saudades da infância, as saudades são daquele universo que nunca volta, dos meus olhos de criança vendo tanto que se entonteciam, dos cheiros dos livros velhos, da navegação infinita

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Ibidem, p. 144.

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pela palavra, de meu pai, de meus avós, do velho casarão mágico de Aracaju”.7 A família transfere-se para Salvador em 1951 e João Ubaldo Ribeiro é matriculado no Colégio Sofia Costa Pinto. Data dessa época, segundo o autor, o empenho em estudar o inglês como forma de desafiar a professora que havia corrigido sua pronúncia. A convivência com os filhos de engenheiros americanos, seus vizinhos, irá permitir-lhe aperfeiçoar seus conhecimentos da língua inglesa. O domínio do inglês, que ele aprimorará durante a vida adulta, irá possibilitar-lhe, mais tarde, realizar a proeza de ser o único escritor brasileiro a verter para este idioma, dois dos seus romances, Sargento Getúlio e Viva o Povo Brasileiro. No ano de 1955, ingressa no curso clássico do Colégio da Bahia, colégio público de excelente reputação, na cidade de Salvador, mais conhecido como “Colégio Central”, onde, no ano seguinte, conhece Glauber Rocha (1939-1981), futuro cineasta do Cinema Novo, líder da “Geração Mapa” e que, a partir do meado dos anos 1950, revolucionou o pacato meio intelectual baiano. Esse encontro foi fundamental na vida e na obra de João Ubaldo Ribeiro. Glauber se tornou seu grande amigo, parceiro, cúmplice, propulsor de sua carreira de escritor e “seu interlocutor predileto”.8 O testemunho do intelectual e escritor baiano, 7 8

Ibidem, p. 153. João Carlos Teixeira Gomes, op. cit., p. 89.

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João Carlos Teixeira Gomes, que também integrou a “Geração Mapa”, no texto aqui já referido, é extremamente precioso para a compreensão dos laços afetivos, intelectuais e ideológicos que uniam João e Glauber. Em 1957, João Ubaldo Ribeiro começou a trabalhar como jornalista, primeiramente no Jornal da Bahia, em seguida na Tribuna da Bahia. Em 1958, entrou na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, onde, com Glauber Rocha, editou revistas e jornais culturais e participou do movimento estudantil. Essa época de grande efervescência política e cultural viu surgir a “Geração Mapa” reunida em torno da revista homônima (Mapa, três números entre 1957-1958), editada por Glauber Rocha, que abalou o meio conservador da Bahia. Esse período marcou profundamente a formação intelectual desses jovens universitários. Três deles – Glauber Rocha, João Ubaldo Ribeiro e Caetano Veloso – vão realizar obras notáveis no âmbito do cinema, da literatura e da música. Apesar da diversidade de códigos artísticos, pode-se encontrar na produção, extremamente rica e diversificada, desses artistas, um fundo comum no qual o questionamento da identidade brasileira alia engajamento político e linguagem artística criativa e revolucionária. A primeira publicação de João Ubaldo Ribeiro data de 1959 com o conto “Lugar e Circunstância”, que integra a antologia Panorama do Conto Bahiano (sic), organizada por Nelson de

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Araújo e Vasconcelos Maia e editada pela Livraria Progresso Editora e Imprensa Oficial da Bahia. Em 1961, João Ubaldo participa da coletânea de contos intitulada Reunião com os textos “Josefina”, “Decalião” e “O Campeão”. Glauber Rocha obteve o apoio da Universidade Federal da Bahia para a edição da obra reunindo textos de jovens que iriam ocupar lugar de destaque no cenário cultural. Organizada por David Salles, a coletânea integra textos do próprio organizador, do escritor e jornalista Noênio Spínola e da escritora baiana Sônia Coutinho (1939-2013). Advogado de formação, João Ubaldo Ribeiro nunca exerceu a profissão “por ter terror a cartórios, escrivães, procuradores, juízes e assemelhados”.9 Na Faculdade de Direito conheceu sua primeira mulher, Maria Beatriz Moreira Caldas, com quem se casou em 1960 e a quem dedicou seu primeiro romance, Setembro Não Tem Sentido. O livro, escrito no início dos anos 1960, aos 21 anos, antes do Golpe de Estado militar de 1964, só seria publicado em 1968, pela José Álvaro Editora,10 graças ao empenho de João Ubaldo Ribeiro, “Autobiografia”. JL Jornal de Letras, Artes e Ideias, Portugal, ano XXV/n. 914, 12 a 25 out. 2005, p. 40. 10 Reproduzo o depoimento de Flávio Moreira da Costa ao jornal O Globo, de 19 de julho de 2014, sobre a publicação do primeiro livro de João Ubaldo: “João Ubaldo Ribeiro, em entrevistas, falou muitas vezes sobre a primeira vez que foi publicado em livro. Eu nunca contei minha versão sobre isso, mas talvez agora seja o momento. Nos anos 60, Glauber Rocha marcou encontro comigo no Centro. Ele me falou de um amigo dele 9

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Glauber Rocha que é também o autor do prefácio. A obra não teve, no entanto, a recepção esperada pelo autor, abalando, momentaneamente, sua crença no projeto de futuro escritor, apesar do incentivo de Glauber, que o apontava como um dos novos talentos. Ubaldo lembra a inexistência, na época, da figura do escritor profissional: todos os que escreviam exerciam uma outra profissão que lhes garantia a sobrevivência.11 Muitos, como ele, optaram pela profissão de jornalista. Em algumas colunas (“Theóphilo”, Jornal da Bahia, 1962; as crônicas publicadas em “É Fogo !”, sob o pseudônimo de Policarpo em 1963), Ubaldo exercitou sua verve satírica e humorística que seus atuais leitores tanto apreciam. Concluído o curso de bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia, em 1962, João Ubaldo segue para os Estados Unidos, em 1964, com uma bolsa da Embaixada Norte-Americana

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que estava na Califórnia, estudando, e que tinha escrito um romance e não sabia a quem encaminhá-lo. E me entregou os originais de Setembro Não Tem Sentido (originariamente, Semana da Pátria, título perigoso na época de ditadura). Levei o livro pra casa, li, gostei, escrevi um parecer e apresentei ao José Álvaro, editor, o mesmo da minha estreia em livro, Cinema Moderno, Cinema Novo (de 1966, com textos de Glauber, Gustavo Dahl e outros). E assim João Ubaldo Ribeiro começou sua belíssima carreira literária. Quando ligava para ele, eu dizia: ‘Como vai a melhor gargalhada do Brasil?’. Ele sabia que era eu – e ria. Toda vez que me encontrava, ele me dizia: ‘Você é o culpado de tudo!’. Esta bela ‘culpa’ eu carrego com certo orgulho. E já sinto falta de suas gargalhadas nesta realidade cada dia mais sem graça...”. 11 João Ubaldo Ribeiro, “Como Eu Escrevo”, op. cit.

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para realizar o mestrado em Administração Pública e Ciência Política na Universidade da Califórnia do Sul, saindo do Brasil em fevereiro, no período conturbado que antecede a violência da ditadura militar. De volta a Salvador, em 1965, deu aulas de Ciências Políticas na Universidade Federal da Bahia, tendo sido colega e vizinho de Perseu Abramo (1929-1996), sociólogo, professor e jornalista, que frequentemente lhe dava carona para a UFBA. Perseu, que participou da criação da Universidade de Brasília, tinha se mudado para Salvador depois da invasão da UnB pelas tropas do exército, em 1964. Habitavam ambos um dos primeiros prédios construídos no bairro da Pituba. No trajeto entre a casa e a UFBA, no velho Gordini verde de Perseu, Ubaldo não parava de contar casos com sua voz grave e sua risada inconfundíveis. Seus amigos sempre destacam esse dom natural de João Ubaldo para contar casos e imitar personalidades importantes, “um verdadeiro ator, capaz de prender por horas seguidas quem dele se aproxima para ouvir suas histórias”,12 “um grande causeur, admirável papo carregado do mais fino senso de humor”.13 Após seis anos exercendo a profissão de professor, João Ubaldo abandonou a carreira acadêmica e retomou suas atividades de jornalista. João Carlos Teixeira Gomes, op. cit., p. 76. Nas palavras do poeta Ruy Espinheira Filho, “Do Café das Meninas ao Chá do Sodalício”, A Tarde Cultural, 30 out. 1993, p. 4.

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No ano de 1969, casa-se com a historiadora Mônica Maria Roters, com quem tem duas filhas, Emília e Manuela. Separaram-se em 1978. Com a publicação, em 1971, pela Editora Civilização Brasileira, de Sargento Getúlio, a carreira deste romancista, contista, cronista, que também fez incursões na área da literatura infantil, vai se afirmar, tendo recebido o Prêmio Golfinho de Ouro do Estado do Rio de Janeiro, em 1971, e no ano seguinte, em 1972, o prestigioso Prêmio Jabuti na categoria “Revelação de Autor”. João Ubaldo alcança com esse romance o reconhecimento da crítica, do público e de escritores consagrados como Erico Verissimo, que não poupa elogios ao livro ao declarar: “É algo de novo. Não tem nada a ver com nenhum outro livro”.14 Se João Ubaldo expressou sua frustração com a repercussão limitada do seu primeiro romance, o sucesso do segundo e os elogios unânimes da crítica fizeram com que o jovem autor de trinta anos passasse a se sentir, segundo suas próprias palavras, “comprometido com o escritor que inventaram”.15 Ficou também irritado com “uma espécie de idolatria que se construiu em torno dele”.16 Deixando de lado a modéstia que

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Erico Verissimo apud João Carlos Teixeira Gomes, op. cit., p. 78, nota 1. 15 João Ubaldo Ribeiro, “Como Eu Escrevo”, op. cit. 16 Idem, “Um Sincero Herdeiro do Padre Vieira”. Revista Língua Portuguesa, ano 1, n. 9, jul. 2006, p. 12. Entrevista a Josué Machado. 14

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o caracterizava, o fato é que esse “escritor que inventaram” vai, aos poucos, conduzi-lo a se dedicar exclusivamente à literatura. Antes, porém, a década de 1970 será marcada por um sentimento de angústia que decorre do desejo de doar-se totalmente à atividade da escrita literária e a impossibilidade de fazê-lo por questões simplesmente econômicas que o obrigam, entre outras atividades, a assumir o cargo de editor-chefe da Tribuna da Bahia (1975) e a criar uma agência de publicidade. As hesitações e frustrações do autor são claramente manifestadas em uma das cartas endereçadas ao amigo Glauber Rocha, escrita em tom de desabafo.17 Apesar das múltiplas atividades, João Ubaldo Ribeiro continua escrevendo sua obra literária. Em 1974, publica pela Artenova (Rio de Janeiro) Vencecavalo e o Outro Povo, uma coletânea de cinco narrativas irreverentes e desmistificadoras. O autor considera que o título, imposto pela editora, não quer dizer nada. A editora substituiu o título inicial A Guerra dos Paranaguás, que retomava o de Carta de João Ubaldo Ribeiro a Glauber Rocha, datada de 31 de outubro de 1979, reproduzida na íntegra no ensaio de João Carlos Teixeira Gomes, op. cit., p. 85: “Meu querido amigo Rocha, Escrevo porque sinto falta dos amigos e me sinto um pouco desamparado. Decidi abandonar a condição de editor-chefe da Tribuna, embora ainda deva ficar fazendo uns negócios para eles. Não tenho a menor ideia do que vai acontecer, pois viver de escrever, mesmo no jornalismo, é phoda (sic) e, inclusive, ninguém me paga. A Folha paga, mas é pouco. Enfim não sei”.

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uma das novelas, o qual também foi mudado para “Tombatudo Santos Bezerra”. Em 1978, a tradução de Sargento Getúlio para o inglês, de autoria do próprio autor, é publicada nos Estados Unidos, obtendo uma ótima recepção crítica. Em 1979, João Ubaldo Ribeiro publica Vila Real, cuja linguagem esmerada penetra no segredo que consiste “em fazer que pareça oral o que está escrito”,18 como já o tinha feito antes em Sargento Getúlio, mas, dessa feita, num registro mais poético, para encenar a luta pela posse da terra de toda uma comunidade espoliada de camponeses nordestinos. Retorna aos Estados Unidos, em 1979, como professor convidado do International Writting Program da Universidade de Iowa. Na década de 1980, João Ubaldo Ribeiro consegue dedicar-se prioritariamente ao seu projeto literário. O casamento em 1980 com a psicanalista Berenice Batella, com quem terá dois filhos, Bento e Francisca, é um dado importante na vida pessoal e profissional do autor, que contará com seu apoio para a consolidação de sua obra. Em 1981, uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian levou-o a Lisboa onde edita, com o jornalista Tarso de Castro, a revista Careta. Neste ano, em Lisboa, perde o grande amigo Glauber Rocha. De volta ao Brasil, publica o ensaio Política: Quem Manda, Por Que

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João Ubaldo Ribeiro, “Um Sincero Herdeiro do Padre Vieira”, op. cit., p. 12.

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Manda, Como Manda e a coletânea de contos Livro de Histórias, que será reeditada, em 1991, com a inclusão de dois contos, sob o título Já Podeis da Pátria Filhos. Começa a escrever crônicas semanais para o jornal O Globo. Embora tenha iniciado a escrita de Viva o Povo Brasileiro no Rio, é na Ilha de Itaparica – onde o autor se refugia em 1983 com a família, para se dedicar a sua obra literária, voltando a morar na casa da Rua do Canal onde nasceu – que ele redigirá sua obra-prima. Numa das salas da biblioteca Juracy Magalhães Jr., colocada à sua disposição pela amiga e diretora Dalva Tavares Lima, escreveu a tradução do romance para o inglês, significativamente intitulada An Invincible Memory. Permaneceu na Ilha durante sete anos, tendo também escrito, nesse período, O Sorriso do Lagarto, além de sua segunda incursão na literatura infanto-juvenil, após Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel, intitulada A Vingança de Charles Tiburone. Trabalhando diariamente das cinco às onze horas da manhã, contrariamente à imagem do escritor de bermudas sem compromisso que a mídia propagou, convivendo com amigos como Luiz Cuiúba e José de Honorina, conversando com pescadores no Largo da Quitanda ou no Mercado do Peixe, João Ubaldo identifica-se com a cultura popular dos nativos da Ilha, absorvendo-a e transfigurando-a em sua obra: “Eu sou muito feliz em ser um dos contadores de histórias do Recôncavo, fui criado entre mentirosos estupendos e renomados

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em todas aquelas partes, sempre quis ser um deles, vou conseguindo”.19 Trabalho árduo e sistemático, imersão na experiência vivida, sensibilidade e imaginação criativa, excepcional domínio dos diversos registros linguísticos da língua portuguesa e sólida formação humanista constituem os principais ingredientes de João Ubaldo Ribeiro para elaborar sua monumental obra literária. Em 1984, Viva o Povo Brasileiro é agraciado com o prêmio Jabuti na categoria “Romance” e com o prêmio Golfinho de Ouro do Estado do Rio de Janeiro. Permaneceu outra vez na Europa, em 1990, desta feita na Alemanha, durante um ano e meio, a convite da Deutsch Akademischer Austauschdienst, escrevendo crônicas mensais sobre sua experiên­ cia nesse país, “visões interiores de alguém de fora”,20 para o jornal Frankfurter Rundschau. As crônicas reunidas sob o título de Um Brasileiro em Berlim são publicadas no Brasil em 1995, posteriormente à publicação na Alemanha (Ein Brasilianer in Berlin, 1994). Em 1995 recebeu o prêmio Die Blaue Brillenschlange, que recompensa o melhor livro infanto-juvenil sobre minorias não europeias pela edição alemã de Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel. Continua a manter laços com a Alemanha, como comprovam as várias reedições de seus livros, a participação em várias Feiras do

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Ibidem, p. 9. Comentário do redator do jornal sobre as crônicas, reproduzido por Ray-Güde Mertin, in: João Ubaldo Ribeiro, Um Brasileiro em Berlim, op. cit., p. 159.

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Livro de Frankfurt, sendo também detentor da cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tübingen (1996). Ao voltar da Alemanha com a família, em 1991, o escritor estabeleceu residência no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon, iniciando o seu período de “cidadão leblonense”21 e a convivência com inúmeros intelectuais e artistas que também habitam e frequentam o bairro. Em 8 de junho de 1994, João Ubaldo Ribeiro tomou posse na Academia Brasileira de Letras, ocupando a cadeira 34, tendo sido saudado pelo acadêmico Eduardo Portella. O final da década de 1990 é marcado pela publicação, em 1999, do romance A Casa dos Budas Ditosos, escrito sob encomenda para a coleção “Plenos Pecados” da Editora Objetiva, tendo o autor escolhido escrever sobre o pecado da luxúria. O romance, espécie de paródia da vertente erótica e libertina da literatura, obteve um grande sucesso de público, e em Portugal, a proibição, por uma rede de hipermercados de Lisboa, da venda do livro em seus estabelecimentos, contribuiu ainda mais para sua repercussão. Nos primeiros anos do atual milênio, o escritor, maduro e consagrado pelo reconhecimento de sua obra no Brasil e no exterior, como demonstram as traduções de seus livros em vários Wilson Coutinho,“Cidadão Leblonense”, in: João ­Ubaldo Ribeiro: Um Estilo da Sedução. Rio de Janeiro, Relume Dumará/Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro/RioArte, 1998. (Coleção “Perfis do Rio”)

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países, continua a publicar romances, contos e a escrever crônicas semanais como colunista do Estado de S. Paulo. Em 2008, recebeu o Prêmio Camões, a mais importante e prestigiosa premiação para os autores de língua portuguesa. Nessa primeira década do século XXI lançou, em 2000, o primeiro e-book no Brasil com o romance Miséria e Grandeza do Amor de Benedita, além de dois outros romances que se destacam e testemunham, mais uma vez, a grande versatilidade estilística e temática do autor: Diário do Farol (2002), narrativa de extrema violência que revisita o período da ditadura militar no Brasil adotando o ponto de vista exclusivo de um torturador, narrador e protagonista do romance; e O Albatroz Azul (2009), no qual o autor reflete serenamente sobre a passagem do tempo, através da invocação da memória da personagem principal, recorrendo a um registro poético que contrasta radicalmente com o tom cínico e o realismo cruel do romance que o precedeu. Escritor, jornalista, cronista, roteirista, João Ubaldo Ribeiro teve algumas de suas obras adaptadas para o teatro, o cinema e a televisão: A Casa dos Budas Ditosos, adaptação de Domingos de Oliveira para o teatro; Sargento Getúlio, que dá origem ao filme homônimo (1983) dirigido por Hermanno Penna; O Sorriso do Lagarto, adaptação de Walther Negrão e Geraldo Carneiro para uma minissérie na Rede Globo (1991), dirigida por Roberto Talma; em 1993, o autor adaptou

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