A Terra Ensacada

Page 1

TRÊS CONTOS, TRÊS CRIANÇAS, TRÊS VIDAS E UM DESTINO: TRABALHAR PARA AJUDAR NO SUSTENTO DE SUAS FAMÍLIAS.

Três crianças que não aceitam perder a infância para a dureza da vida.

Alvinho é o garoto que vende coentro na feira e gosta de brincar com pipas.

Aurora é a menina que planta e colhe no canavial e gosta de cantar.

Antoniel cuida da terra, mas se fecha para as belezas do mundo, até ser convidado a sair da cidade e labutar em uma construção.

LUCIANO PONTES

E OUTRAS HISTÓRIAS

Houve um tempo em que as feiras do interior e, por vezes, também as das capitais eram repletas de vida, como evoca Luciano Pontes no conto que abre este livro, “O cemitério das pipas”. Além das frutas da estação, eram comercializados cestos, balaios, selas, arreios, sacos de farinha, de feijão ou de milho, queijo, manteiga de garrafa, mel de engenho, cordas de várias espessuras, panelas de barro, moringas e alguidares, ao tempo em que se celebrava a arte do encontro. Cheiros os mais diversos, do pequi colhido recentemente ao requeijão servido com tijolo (doce em barras), impregnavam ambientes hoje vivos apenas em muitas lembranças. É nesse cenário que a voz do menino Alvinho, com seu balaio de coentro, ecoará em pregões, dizendo que a saudade tem cheiro sim, e ele é verde. Ou azul, se a lembrança alçar voo ao desenrolar lento do carretel da memória. Também houve um tempo em que as crianças entoavam loas aprendidas com as avós. Tempo em que o dia era dia e a noite era noite. Aurora, a protagonista da segunda história, como o seu nome indica, traz em si o arquétipo da deusa do amanhecer, como sugere Luciano em sua prosa poética: “Quando o céu estrelado da noite se deitava, Aurora surgia pelos caminhos de avelós como um clarão”. A menina que canta e acorda o dia incomoda aos mais velhos, a exemplo de tia Jurema, que lhe alerta sobre a Velha Cachimbeira, espécie de assombro noturno, personificação da noite: personagem ambivalente a ser evitado ou símbolo da velha sábia detentora de saberes possíveis somente aos que alcançam a sua idade veneranda? ...

Conheça essas histórias que tocam em assuntos urgentes e difíceis da dura realidade de muitas infâncias.

LUCIANO PONTES

E OUTRAS HISTÓRIAS

o cemitério das pipas 07 o rosto claro da aurora 23 a terra ensacada 41

O CEMITÉRIO DAS PIPAS

Cedinho o Sol despontava, Alvinho acordava, coava o café que tomava e olhava para os coentros verdes que cresciam no quintal de sua casa. Restava pouco espaço para plantação no fundo do quintal, mas, para ele, o que importava era o aroma que os coentros exalavam. O cheiro verde dos coentros levava-o ao mundo que poderia ser... bolhas de sabão povoadas de desejos que, estouradas, salpicavam pingos de alegria.

Empolgado, Alvinho descia correndo com o balaio debaixo do braço pela ladeira onde sua casa ficava, e o cheiro verde dos coentros espalhava-se pela rua inteira.

Ao passar em frente à casa de seu Damião, encontrava a meninada que enfrentava, como ele, aquela mesma jornada.

Para achar Alvinho na feira, era só seguir o rastro do perfume verde dos coentros pela ladeira: lá estava ele, com o balaio debaixo do braço, soltando seus palavreados, anunciando seu precinho barato.

8

Olhe aqui, olhe acolá, coentro verde bom, bonito e barato em outro lugar não vão encontrar.

Podem chegar, fregueses, podem chegar.

mexer, bulir e escolher, coentro verde bom, bonito e barato aqui nessa feira ninguém vai ver. 9
Podem

Todos achavam graça no jeito que Alvinho fazia para chamar a freguesia. No que dizia, em um instante, acabava tudo que trazia. Dona Graça, que vendia bolo, pastel, melaço e cocada na sua barraca, soltava altas gaitadas com as estripulias que ele aprontava com as palavras: ¬ Ô menino pra inventar coisa, sei não!

Mesmo trabalhando na feira, ele não largava a escola, gostava de aprender, e tudo que conhecia ajudava para que as palavras se despregassem da sua boca e saltassem encarrilhadas e cheias de rimas como um trem de carga:

Verdureiro! Oi eu!

Verdureiro! Oi eu!

Panela no fogo, barriga vazia, macaco torrado que veio da Bahia. Oi eu!

Verdureiro! Oi eu!

10

Parte da meninada que trabalhava para seu Damião é que não gostava dos pregões que ele inventava, pois, quase sempre, vendia tudo que plantava. Às vezes, era difícil entender toda aquela implicância. Na feira, cada um tinha que se virar como podia. Mas poucos viam graça nisso e, por isso, Alvinho não era muito amigo da meninada.

Enfim, quando o fim da manhã chegava, Alvinho voltava para casa e seguia para a escola. E quando voltava, pensam que ficava parado? Ouvidos à mãe não dava, entrava em casa, nem tomava banho e saía chispando, descendo e subindo a ladeira com sua pipa arruaceira.

Dona Severa, sua vizinha, tagarelava:

¬ Eita, menino virado! Um dia tu ainda te arrebentas todinho ladeira abaixo!

Ele nem ligava. E o céu da tarde todo se enfeitava com a piparada. Pipas, muitas pipas: verdes, amarelas, listradas, quadriculadas, pareciam pássaros presos e sem asas, que voavam puxadas por um cordão que as ligava ao chão.

No fim daquela algazarra no ar, quando a brincadeira terminava, a pirralhada adorava partir o cordão que ligava a pipa ao chão. Era o maior prazer sentar e vê-las voarem desengonçadas até sumirem da vista.

Para Alvinho, aquilo não tinha nenhuma graça, não gostava. Ficava emburrado quando olhava para o céu e via, entre os pássaros de papel, a sua pipa voar desengonçada pela ladeira. Ele, que já não tinha amigos da mesma idade na feira, não queria que isso se repetisse ali, na brincadeira, e, como toda pirralhada insistia, ele também partia o cordão.

11

Certa tarde, quando olhava a revoada da piparada, pairou sobre a sua cabeça uma nuvem de incerteza. E recebeu um recado, trazido pelo vento que soprava:

Já pensaste?

Já pensou?!

Olha só em sua volta, onde será que ela pousou?

Foi parar no alto da colina?

Numa torre de castelo?

Ou foi afogar-se no mar, empurrada pelo vento?!

Será que alguém sabe?

Será que ninguém viu?

Queres descobrir? Então vem!

É só comigo seguir.

Sem medo, foram-se os dois. Passaram uma, duas, três casas. Seguiram em frente pela ruela da casa da Manuela, dobraram na esquina da dona Guilhermina e, depois do bar de seu Valdemar, encontraram o lugar aonde as pipas, quando soltas no ar, vão parar.

12

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.