Diário de um Amnésico

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Nathalie S omer S formou-se em engenharia e foi professora. Após essas experiências, tornou-se autora de muitos romances. Sempre rodeada de apaixonados pelo rúgbi, nada lhe seria mais natural do que se imaginar em uma família cuja vida girasse em torno desse esporte.

Hoje ela vive em Lyon, França, na companhia da filha, do marido, torcedor entusiasta da equipe da Irlanda, e de três gatos, que preferem dar saltos a disputar a posse de bola!

Romain sofreu um misterioso acidente e esqueceu tudo sobre sua vida.

Ele não reconhece o próprio rosto e seus pais são para ele apenas estranhos.

Sem lembranças, sem amigos em que possa confiar para jogar luz sobre seu passado, Romain tem apenas seu diário para registrar e refletir sobre os acontecimentos de sua nova vida.

Determinado a retomar o controle de sua história, mergulha em si mesmo e aos poucos descobre que tem muitos motivos para querer esquecer o passado. Será que é mesmo uma boa ideia recuperar a memória?

DIÁRIO DE UM AMNÉSICO

Nathalie Somers

Após um misterioso acidente no colégio, o jovem Romain, de 15 anos, acorda em um hospital como um estranho em sua própria vida. Completamente sem memória.

Incapaz de reconhecer seus pais ou seu próprio reflexo no espelho, Romain decide reunir em um diário cada nova experiência a fim de resgatar sua vida. Mas, à medida que avança em sua descoberta existencial, percebe que as dificuldades são maiores do que imaginava a princípio. Seus pais fazem o possível para ajudá-lo a se recuperar, porém o humor oscilante do pai e a melancolia da mãe não colaboram para o efeito esperado. Na escola, a coisa também não vai nada bem... Romain percebe que não tem amigos; a garota mais bonita do colégio claramente o evita, o cara mais popular o hostiliza e os demais simplesmente não o enxergam. Talvez o passado de Romain não seja assim tão interessante. E ele está certo de que seus pais escondem algum segredo sombrio.

Apesar dessas constantes indagações, o jovem decide que precisa retomar o controle de sua vida. E tudo o que ele tem para dar início a esse desafio é o presente, impalpável e incompreensível.

No entanto, mesmo com todas as adversidades em seu caminho, Romain não desiste de tentar descobrir quem realmente é... e isso surpreenderá a todos.

Autora com mais de 200.000 exemplares vendidos na Europa
ISBN 978-65-5539-264-7 ISBN 978-65-5539-264-7
Nathalie Somers

Nathalie Somers

Tradução de Luciano Vieira

O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós mesmos fazemos do que fizeram de nós.
Jean-Paul Sartre

Sábado, 22 de maio

Meu nome é Romain. Romain Walinzky. Tenho 15 anos. Logo vou fazer 16, pois parece que meu aniversário é daqui a um mês. Eu digo “parece” porque todas essas informações me foram dadas por... eles.

E confirmadas por minha carteira de identidade. Isso, supondo-se que a carteira seja mesmo a minha, pois não me reconheço no sujeito com pinta de malandro que está na foto. Nada de sorriso, cara fechada. À primeira vista, nem um pouco simpático. Bom, mas todo mundo fica com essa cara medonha nesse tipo de foto, né? Aliás, é por isso que a gente faz de tudo pra não mostrar nunca. No colégio, se alguém consegue pôr a mão em sua carteira de identidade, você está ferrado. Porque aí, não dá outra, ela roda a classe inteira na maior velocidade, e logo vem um montão de comentários, todos fatais. O maior mico. Disso eu me lembro. Me lembro muito bem. Assim, não se reconhecer na foto de sua carteira de identidade, no problem. Ao contrário.

Mais chato é não se reconhecer no espelho à sua frente. A não ser nas noites de Halloween, claro, quando todo mundo se fantasia de Freddy ou Chucky.

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De Freddy e de Chucky também me lembro.

Mas não desse cara de olhar azulado e cabeleira despenteada que me olha fixo através de dois vidros numa ar mação de metal. Objetivamente, tirando seu ar meio espantado e o calombo arroxeado que tem na testa, ele é passável. Bom, talvez eu não seja o tipo do garoto bonito, mas reconheço que a coisa poderia ser pior. Ao mesmo tempo, é estranho. Antes de descobrir que tipo de cara eu tinha, não conseguia imaginar o que me esperava. Era como se eu não fosse de carne e osso. Um espírito puro, sem um invólucro corporal. LOL.

Em suma, tudo isso para dizer que eu ficaria igualmente surpreso de me descobrir louro, ruivo ou de cabelos castanhos, olhos verdes, olhos de víbora ou castanhos, olhos de porco. Ou, pior ainda, com um estrabismo convergente.

Portanto, no final das contas, está tudo bem. Ou, melhor, devo me dar por satisfeito. Este rosto é meu presente e meu futuro. Mas vou precisar de um tempinho para que os dois se ajustem. Eu e o meu reflexo.

Foi por isso também que comecei este diário. Para me ajustar, me descobrir, me estruturar. Na esperança de que haja alguma coisa para descobrir e estruturar. Por enquanto, minha cabeça é como uma grande casa de paredes nuas. E cada um de meus pensamentos, uma bola arremessada por um campeão de beisebol. Ela dispara, quica, se descontrola. Sem nunca perder o impulso.

Não sei se é bom começar a escrever um diário. Não sei se sou o tipo de pessoa que escreve um diário. Mas tampouco sei se sou do tipo que salta de paraquedas. Talvez esta primeira página seja também a última. Vamos ver.

Enquanto isso, traçar estas letras, formar estas palavras, alinhá-las num caderno em branco, é bem legal.

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Mas tenho de retificar uma coisa. Uma coisa importante. Digam o que disserem, eu não nasci há 15 anos. Nem há quase 16.

Não. Eu nasci há um dia, duas horas e cinquenta e três minutos.

Mais tarde

Volto ao meu diário porque não consigo dormir. Percebo que não falei deles, e isso não é certo. Quando eu digo “não é certo”, não quero dizer que “não é correto”, mas sim que “não é uma coisa sadia”. Como não escovar os dentes antes de dormir. Podem aparecer bactérias e provocar cáries que fazem mal. Naturalmente, quando digo “eles”, não me refiro a bactérias.

“Eles” são meus pais. Mas vamos fazer as coisas do jeito certo: meu diário, eu te apresento Arnaud Walinzky, meu pai. Alto, magro, moreno de olhos azuis. Sim, ele se parece um pouco comigo. E, também, Beatriz, minha mãe. Baixa, loura de olhos castanhos. Nem gorda nem magra. Eu diria que bonita para sua idade. Elegante. Muito elegante, até. Ele atua no comércio, ela é secretária numa firma cujo nome esqueci. Pois é, como você viu, a memória não é o meu forte!

Não vou negar que achei muito esquisito quando eles me deram essa informação. Não estou falando, claro, do trabalho deles, mas do fato de se apresentarem como meus pais. Foi no hospital, alguns minutos depois que acordei. Foi uma coisa mais ou menos do tipo:

– Até que enfim! Ele está abrindo os olhos! (Beatriz)

– Já não era sem tempo! Já faz 4 horas que estamos esperando. (Arnaud)

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De minha parte, fiquei calado. Realmente, eu tinha acabado de abrir os olhos. Bem diante do relógio na parede. Ele marcava “7-0-0 PM”. Então, eu disse a mim mesmo que eu tinha noção de tempo. Ainda que, lá no fundo, uma fibra secreta tivesse preferido “0-0-7”. Seria mais estiloso.

– Romain! Diga alguma coisa! Como estão suas mãos?

(Arnaud)

– Romain, meu querido, está com alguma dor? (Beatriz)

Olhei minhas mãos, as palmas estavam um pouco vermelhas, mas nada de grave. Murmurei com voz rouca:

– Acho que elas estão bem.

Foi então que me virei para a direita. E lá estavam aquele homem e aquela mulher que eu descrevi há pouco. Ela, sentada numa cadeira cinza de plástico. Ele, de pé, vestido num terno escuro, imóvel, mas num tal estado de tensão que me parecia senti-lo vibrar. Devo ter olhado para eles de um jeito esquisito, porque a mulher se mostrou preocupada.

– Arnaud, vá chamar o médico. Depressa!

– Mas... – Por favor. Pelo menos uma vez, faça o que eu digo...

O homem hesitou, mas acabou obedecendo de má vontade.

– Romain, é a cabeça? Está doendo?

Minha cabeça? Agora que ela tocou nisso, sim, tinha de admitir, estava doendo.

– Sim, senhora... um pouco.

A “senhora” deu um grito, juntando as duas mãos diante da boca.

– Que é isso, Romain? O que há com você? Você... você não está me reconhecendo?

Eu a examinei atentamente. Seus cabelos armados, nem curtos nem compridos, emolduravam perfeitamente seu rosto oval. Ela parecia ter saído do cabeleireiro. Tinha umas

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ruguinhas finas em torno dos olhos, nariz reto, boca bem desenhada, realçada por batom vermelho. As sobrancelhas formavam arcos perfeitos, e sua fisionomia era a própria expressão da estupefação. Parecia que sua vida dependia de minha resposta. Eu gostaria muito de poder agradá-la, mas não podia.

– Sinto muito. Eu... eu não sei quem você é.

Novo grito, acentuado por um soluço abafado. A coisa começava bem.

– Você... você está brincando, não é? Você não é disso, mas... só pode ser isso!

Sua voz foi ficando cada vez mais aguda. Muito desagradável. Ainda mais que a situação não iria melhorar, p orque eu não estava brincando. Não me passava pela cabeça fazer uma coisa dessas. Tive o cuidado, porém, de não responder. Isso não foi suficiente para acalmá-la. Quando entendeu sem dificuldade a minha mensagem não verbal, ela exclamou:

– Ora, Romain, eu sou sua mãe! Fiquei sem ação, em estado de choque. Aquela mulher não era minha mãe, não era possível. Seu rosto não me dizia nada. Eu a via pela primeira vez. Ela era louca. Ou então era ela que estava de brincadeira comigo. Será que ela era atriz? Ou se tratava de uma pegadinha de televisão? Para me certificar, tentei visualizar a minha mãe de verdade. Aquela a quem eu chamava de “mamãe”. Tentei, tentei e tornei a tentar.

E só encontrei o vazio. Uma tela branca. Um buraco negro. Meu coração disparou. Procurei me agarrar a alguma coisa, mas não achei nada. Se eu tinha uma mãe, tinha também um pai. O homem de terno? Procurei lembrar-me de seu rosto. Eu não o tinha observado por tempo suficiente para

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gravar seus traços com precisão, mas eles bem podiam ser os de um desconhecido com quem eu tivesse cruzado na rua. De novo, comecei a pirar. Passei a mão nos olhos, esfreguei as têmporas. A mulher ao meu lado falava com uma voz aflita, e eu não a escutava. Nós dois nos livramos dessa situação estressante com a chegada de “Arnaud”, acompanhado do médico.

– E então, meu jovem, está recuperando o ânimo?

A pergunta me causou uma profunda perplexidade. Como poderia ter recuperado o ânimo, se cada vez mais me convencia de ter perdido a alma? Não tive tempo de continuar minha reflexão, porque a mulher exclamou:

– Que horror! Ele não sabe quem eu sou!

– Que história é essa? – disse o homem, irritado. – Romain, faça o favor de parar com essa palhaçada!

Olhei bem para ele para examinar sua fisionomia. Seus olhos azuis me diziam que ele não estava a fim de gracinhas, as sobrancelhas franzidas mostravam muito claramente seu descontentamento. Meu instinto me recomendou prudência, e eu fiquei calado. Pressentindo uma situação delicada, o médico pediu então à mulher e ao homem que saíssem, a pretexto de me auscultar.

Quando ficamos a sós, a calma me fez bem. Deixei escapar um suspiro.

– Eu sou o doutor Lucas, fui eu que o atendi no pronto-socorro.

– Pronto-socorro. Mas por quê?

– Parece que você passou mal. Um professor o encontrou inconsciente num corredor. Você deve ter caído no

c hão, porque tem um belo galo na testa, mas não posso lhe dizer mais nada, ninguém viu o que se passou. Você se lembra?

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– De quê? Da escola, do corredor ou do que se passou?

Dei uma de espertinho para ganhar tempo. Eu temia ter de responder. O doutor deu um meio sorriso. Ele era jovem, com um bom princípio de calvície, mas muito simpático.

– Digamos dos três, pra ter uma visão geral.

Ele era legal. Para agradar, fiz mais um esforço mental.

Será que eu me lembrava de ter caído? Não. Do corredor?

Também não. Da escola? Tampouco.

Ao ouvir minhas respostas, ele coçou o nariz.

– Você não está brincando, não é?

Começava tudo de novo. Eu estreava muito bem no papel de humorista. O único problema é que eu estava falando a verdade.

Respirei fundo antes de arriscar uma resposta.

– Não, não estou brincando. Não me lembro de nada.

Ao dizer essas palavras, me dei conta, pela primeira vez, do que estava me acontecendo. Até aquela altura, minhas ideias não estavam muito claras, como quando a gente acorda depois de uma longa sesta e não sabe dizer se é de noite ou de manhã. O homem e a mulher que se encontravam à minha cabeceira quando abri os olhos não me eram mais que desconhecidos um tanto esquisitos que, com suas perguntas, me impediram de refletir sobre minha situação. Agora era diferente. Não havia mais interferência na linha, mas nem por isso me respondiam ao telefone. Então a angústia voltou com toda força, e me senti sufocar. O doutor Lucas avaliou os acontecimentos. Mais profissional, impossível.

– Nada de pânico – principiou ele, levantando a mão para me acalmar. – Uma pequena amnésia passageira resultante de uma queda, isso acontece. Você ficou inconsciente por várias horas. O estranho é que as radiografias não mostram sinal algum de traumatismo craniano grave. Mas

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vamos fazer uma ressonância magnética para verificar. De todo modo, nesse tipo de situação as coisas, em geral, logo voltam ao normal.

– Ao normal? Mas depois de quanto tempo?

– Algumas horas, alguns dias... depende do caso. O importante é você não se estressar, pois isso pode retardar a recuperação da memória.

Eu não devia me estressar. Por que, então, essa recomendação produzia o efeito inverso? Por que nas frases “nada de pânico, nada de estresse”, só registramos as palavras “pânico” e “estresse”?

Fechei os olhos, esperando que tudo estivesse diferente quando os abrisse de novo.

Preciso dizer que não foi isso que aconteceu?

O médico me fez mais algumas perguntas de ordem geral. Eu as respondi sem dificuldade. Parecia que só tinham desaparecido as lembranças de minha vida particular. Eu sabia quem era o presidente da República, mas não era capaz de dizer o nome de um de meus amigos, e, pior ainda, nem o meu. Tive a desagradável sensação de ser um clone de ficção científica, perfeitamente programado para funcionar em sociedade, mas desprovido de uma identidade própria. Assustador!

– Vou falar com seus pais – disse finalmente o doutor Lucas. – Isso pode ser um choque para eles também. Essa fala me fez tremer.

– Você... quer dizer que aquela mulher e aquele homem são mesmo meus pais?

Minha voz fraquejou no fim da frase. Era menos assustador não saber quem eu era do que descobrir que tinha l aços familiares tão próximos com aquelas pessoas que me eram desconhecidas.

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O médico assumiu uma expressão de compaixão, mas se limitou a confirmar a informação. Ele me disse que só me manteria no hospital, sob observação, até sábado à noite, e que eu deveria voltar na segunda-feira para fazer uma ressonância antes de retomar minha vida “de antes”. Ah! Ah!

Pedi para ficar todo o fim de semana no hospital, para evitar essa coisa de ir e voltar, mas ele recusou, afirmando que os leitos de hospital custam muito caro e que havia muita demanda. Exit Romain, portanto.

Depois ele foi embora.

Não sei o que o médico lhes disse durante a conversa. Ninguém fez referência a ela em minha presença. O que sei é que tive de esperar por muito tempo. Muitíssimo tempo.

Quando o homem e a mulher voltaram, o relógio marcava “9-0-3 PM”. A mulher tinha chorado, era claro, e o homem se mostrava profundamente contrariado.

Eu sentia muito causar-lhes tanta preocupação, mas não sabia como podia resolver a situação. E não me agradava nem um pouco a ideia de dormir na casa deles no dia seguinte.

Graças ao médico, pelo menos me livrei do que temi durante toda a minha espera: ter de chamá-los de “papai” e “mamãe”.

De agora em diante, para mim, eles eram Arnaud e Beatriz.

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Domingo, 23 de maio

Hoje de manhã, ao acordar neste cômodo desconhecido que é o meu quarto, tive uma crise de angústia. Volta para casa. Bum! As lembranças de minhas últimas horas vieram à minha mente, toda orgulhosa de mostrar que ainda servia para alguma coisa. Mas só dessas últimas horas, viu?, nada sobre minha vida “de antes”. No que se refere ao “antes”, meu cérebro continua em greve. Então senti meu coração disparar. Ao mesmo tempo, lembrei-me do que me disse o doutor Lucas antes de eu vir embora, meio a sério, meio de brincadeira:

Você não precisa temer o que vai descobrir. Você está vivendo uma experiência superinteressante e, como toda experiência, pode ser muito enriquecedora. Pode ser esmagadora também, se você se deixar abater. Um conselho: viva o dia a dia. Imagine que você é o herói de um filme. Aceite as coisas do jeito que elas vêm e, principalmente, principalmente, repito, não force a memória. A memória é como um gato: se você o obriga a sentar-se em seu colo, ele foge. Se você o ignora, ele vem se roçar em você.

Imediatamente, decidi parar de me estressar. Claro que isso não funcionou.

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Bom, até eu me concentrar naquele troço que ele disse: “Imagine que você é o herói de um filme”. Eu sempre sonhei em fazer cinema. Pelo menos, é o que me parece.

De qualquer forma, acho essa ideia legal.

E eis-me aqui no papel de minha vida. Tanto no sentido próprio como no figurado.

Vou descobrindo o roteiro com você, meu diário. E também os atores, o guarda-roupa, as várias cenas etc.

Mas é preciso dizer que este primeiro dia de filmagem não foi lá muito empolgante.

Cenário principal um tanto clássico demais: azul, branco, bege. Tema marinho. Na verdade, a decoração do cômodo no qual passei todo o tempo, exceto o das refeições. Enfim, contando também algumas idas e vindas ao banheiro (cenário branco e cinza-escuro – higiene garantida pelo

“Doutor Limpeza”, aroma eucalipto imperial – exasperante). Portanto, em meu quarto tudo é de uma limpeza impecável, alinhado, organizado. Nem um grão de poeira. Talvez eu tenha um lado maníaco, talvez uma faxineira eficiente faça o serviço. Considerando o estado do restante da casa, eu me inclinaria para a segunda hipótese, a menos que a mania de organização seja uma coisa de família.

De todo modo, não é este quarto que vai esclarecer grande coisa sobre mim. Parece um quarto de exposição.

Uma paisagem marinha numa parede, um quadro de nós de marinheiro na outra. Do outro lado, na parede bege, um retângulo me pareceu mais claro que o restante. Levantei-me para observá-lo mais de perto. Como eu já desconfiava, havia um prego fixado naquele lugar. Logo, há pouco tempo tiraram um quadro dali. Teria ligação com minha amnésia ou nada a ver? Não consigo me lembrar, claro, vou ter de perguntar. Continuei minha exploração: uma cama

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simples com um edredom com listras azuis e brancas, uma estante cheia de livros clássicos e livros escolares de segundo ano, uma escrivaninha, uma cadeira, o material básico do p erfeito aluno do Ensino Médio e... um computador.

Nada muito divertido.

Liguei o computador. Passei o indicador sobre o leitor biométrico para desbloqueá-lo.

Bof.

Ah, sim. Os links para os jogos. Um clube de xadrez online e um jogo chamado Knightfight. Não consegui me conectar porque não me lembrava mais das senhas.

Quanto às refeições, a coisa não foi melhor. Quando desci para o café da manhã, a mesa já estava servida. O suco de laranja, os cereais sem glúten, as compotas orgânicas e dois biscoitinhos de arroz. Uma tigela, um copo e talheres.

Arnaud escutava um concerto na sala, enquanto Beatriz terminava de esvaziar a lava-louças.

– Nós o deixamos dormir – anunciou ela toda orgulhosa.

Pelo seu tom de voz, adivinhei que aquilo era uma concessão. Imaginei que esperassem que eu lhes agradecesse.

– Hã... obrigado.

– Não esperamos por você porque não sabíamos a que horas você iria se levantar.

– Sem problema – respondi.

Ao contrário, pensei.

– Eu sou alérgico? – perguntei olhando os alimentos à minha frente.

Beatriz emitiu um pequeno som que não consegui interpretar e disse:

– Na verdade, não. Mas é mais saudável, entende? Ajuda na digestão.

Balancei a cabeça. Se ela estava dizendo...

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Mordi um biscoito de arroz (não era ruim) e depois de engolir perguntei num tom indiferente:

– Parece que está faltando um quadro na parede bege do meu quarto. O que era?

Beatriz abriu a boca e logo travou.

– Eu... nós... falamos muito sobre você com o doutor Lucas, sabe? Ele nos... pediu para retirar certas coisas.

– Certas coisas?

– Sim – continuou Beatriz, tentando dissimular seu embaraço. – Ele disse que você precisava de um ambiente o mais neutro possível, para não estorvar sua memória. E, sobretudo, quanto menos pressão melhor. Escute, meu querido, prefiro que não toquemos mais neste assunto. Receio fazer uma bobagem e falar demais. Não quero de modo algum atrasar sua cura, entende?

Retesei o corpo instintivamente ao ouvir “meu querido”, mas Beatriz, totalmente entregue ao seu discurso, felizmente não notou. Aquilo só poderia piorar a situação.

– Eu entendo – respondi docilmente, para não me complicar ainda mais.

Foi nesse exato momento que Arnaud apareceu na cozinha. A tensão aumentou um grau, de tal forma, que mal consegui engolir meu último bocado de biscoito. No entanto, ele era todo sorrisos.

– E , então, meu filho, será que ouvi a palavra “cura”? Uma boa notícia para nos dar? – Você não entendeu bem, Arnaud – apressou-se em corrigir Beatriz. – Eu estava dizendo justamente que tínhamos tirado certas coisas da casa para não retardar sua cura.

Ele bufou e parou de sorrir, contrariado.

– Essas histórias não passam de bobagens. Romain está muito bem! Ele vai conseguir recuperar a memória sem todos esses disparates, não é?

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Procurei me preservar com uma resposta prudente:

– Eu não sei...

– Você disse ao médico que concordava – lembrou-o Beatriz, enérgica.

Arnaud ficou calado enquanto esperávamos sua decisão. Eu estava dividido entre respeitar as prescrições de um médico de quem eu gostava e a vontade de saber o que ele lhes pedira para me esconderem.

Por fim Arnaud voltou a sorrir e deu batidinhas em meu ombro, num gesto que se pretendia paternal.

– Está bem, o que está dito, está dito. Eu sempre o ensinei a respeitar seus compromissos, e você nunca me decepcionou. O mínimo que posso fazer é agir da mesma forma.

S enti-me aliviado como se acabasse de escapar de uma tempestade.

Em compensação, meu apetite sumiu. Deixei de lado os cereais e, com a desculpa de uma necessidade urgente, refugiei-me no quarto, passando antes pelo banheiro (onde aspirei vapores de eucalipto suficientes para ficar com as narinas desobstruídas até o próximo inverno).

Fiquei sentado em minha cama contemplando o espaço em que o quadro se encontrava até alguns dias antes. Livre da presença de Arnaud e Beatriz, tentei imaginar o que o quadro poderia mostrar. Meu cérebro levantou várias hipóteses, entre as quais a mais rocambolesca, mas não a menos sedutora, em que eu aparecia como um agente secreto. O quadro poderia recapitular minhas últimas missões. Sempre com o charme de 007. Bem, OK , nada convincente.

Imaginei também a possibilidade de um astro adolescente num ritmo de vida alucinante. Como morávamos numa pequena casa suburbana sem piscina e sem nada de luxuoso, tive de descartar também essa hipótese.

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Em suma, continuo a me perguntar o que poderia haver naquele quadro.

A estante ficava bem à minha frente. Meio ao acaso, tirei um livro de uma prateleira. Na capa, ondas com cristas espumantes lançavam-se contra um rochedo encimado por uma fortaleza maciça. Aquilo exerceu sobre mim uma atração irresistível. Em letras douradas, o título aparecia acima d a ilustração: O Conde de Monte Cristo e, em letras menores, o nome do autor: Alexandre Dumas.

Suponho que já o tinha lido antes, já que está na minha estante, mas eu não me lembrava de nenhuma das desgraças do pobre Edmond Dantès. Logo me deixei arrebatar p ela história e, quando cheguei à parte em que ele está preso no C astelo de If, me deu vontade de chorar. Sério. Digo isso a você, e a mais ninguém. Seria uma vergonha.

Mas não vá pensar por isso que sou tão sensível à infelicidade dos outros. Claro que isso também pesou. Mas não foi só isso. O que pesou mais foi o fato de a situação dele me lembrar a minha.

Eu também sou um prisioneiro. Meu Castelo de If é este corpo. Esta vida.

E dessa prisão não há como escapar.

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Segunda-feira, 24 de maio

Foi o doutor Lucas quem me deu este diário. Bem, ele mais parece um caderno de anotações. Ele me deu no sábado à noite, quando passou para verificar o meu estado.

– Tome – disse ele, me passando um caderno branco e grosso como um livro grande. – Ganhei num seminário, mas a preguiça me impediu de escrever alguma coisa n ele. Estava na minha escrivaninha, e achei que ele seria mais útil para você do que para mim. Você pode anotar aí suas impressões, seus sentimentos. Isso pode ajudar em sua situação.

– Com certeza – respondi imediatamente. – Assim, se minha memória falhar de novo, posso recorrer a ele.

Ele riu.

– Exatamente – ele concordou. – Vejo que você captou o espírito da coisa.

Acho que gosto muito desse médico.

Então, quando ele foi embora, abri o caderno. As páginas eram tão brancas quanto a capa. Tão virgens quanto minha memória. Todo aquele branco era muito bonito. Era puro. Sem falhas, sem manchas, sem erros. Ali, tudo ainda era possível. Como na manhã do mundo.

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Por um instante, me vi tentado a não sujá-lo. Deixar essa brancura imóvel refletir minha vida. Se eu não faço nada, não escrevo nada, não acontece nada. O tempo deixa de existir. Já consegui aceitar o fato de não ter mais passado, não deve ser difícil deixar de ter futuro. Só o instante presente. Impalpável, inapreensível.

Sim, era muito tentador. Sem princípio nem fim. Mas algo se rebelou em mim. Um troço tipo “pó de mico”. Aquela história: quanto mais a gente tenta esquecer, mais a coisa incomoda. A curiosidade, cara. Com certeza um grande defeito, mas sou capaz de apostar que isso vai me causar mais mal do que bem. Mas, de todo modo, a coisa é muito forte.

Assim, peguei a caneta onde se lia “antibiótico tal” que o doutor Lucas tinha posto em minha mesa de cabeceira e comecei a escrever a data.

A partir de então, eu o levo pra todo lado. É por isso que estou escrevendo nele na sala de espera do exame de ressonância magnética. Com isso, mato dois coelhos com uma só cajadada: isso me ocupa e impede Beatriz de se sentir na obrigação de conversar comigo. Então ela se põe a folhear tranquilamente uma revista de moda. Pernas cruzadas elegantemente, tailleur verde-claro perfeitamente alinhado e maquiagem impecável. A própria imagem da mulher ideal. Ninguém iria imaginar que ela precisa aturar um filho amnésico que a chama pelo nome porque não a reconhece. O que me faz pensar que essa situação tem lá o seu lado curioso: o normal é saber se o pai vai reconhecer o filho. Não se o filho vai reconhecer os pais.

Em suma, voltando a Beatriz, insisti para esperar sozinho. Ela recusou terminantemente.

– B em, Romain, nem pense nisso. O que iriam dizer?

Mulher ideal, mãe ideal.

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Ideal, mas pegajosa.

– Mas que tanto você rabisca nesse caderno?

Eu, sem levantar o nariz:

– Uns troços.

– A gente não diz “uns troços”.

Eu, levantando o nariz:

– Hã... umas coisas.

– Como assim “coisas”?

Eu, constrangido, esperando que viessem me buscar:

– Sobre o que eu sinto.

– Que ideia esquisita! Espero que isso não vire uma mania. Dá pra ver que ela está contrariada. Talvez um pouco aflita, também. Se faço questão que meu diário íntimo continue íntimo, não posso largá-lo na sala de estar...

Para me livrar do peso de seu olhar, eu digo:

– Foi o doutor que disse.

– Ah. Se foi o doutor, então...

Bingo. Acabo de descobrir a fórmula mágica. Depois de “Abre-te, Sésamo” e “Abracadabra”, temos agora o “Foiodoutorquedisse”.

A baixo o nariz. Ela abaixa o dela para a revista. Estou salvo.

Está demorando muito. Mas isso não me aborrece. É a vantagem quando não se tem mais nada para fazer. Nem plano, nem atraso, nem pressão.

Pronto. Já passei pela máquina infernal. Uma injeção, muito barulho e um longo momento de solidão. O resultado saiu: não há lesão craniana. Boa notícia? Má notícia? Não faço a menor ideia. Beatriz e o doutor Lucas estavam

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contentes, mas eu sempre me pergunto por que não me lembro de nada.

– Na minha opinião, você já pode voltar à escola amanhã – anunciou o médico.

Beatriz teve um pequeno sobressalto.

– Você acha? Tão cedo, doutor? Você acha que é razoável? Rezei para que meu aliado se mantivesse firme. Eu não tinha a mínima vontade de passar mais alguns dias em companhia de Beatriz ou, pior, de Arnaud. O mundo desconhecido da escola, por mais assustador que pudesse parecer, pelo menos tinha a vantagem da novidade.

– Não há, de fato, nenhuma contraindicação médica. Retomar o ritmo normal de vida só pode lhe ser favorável. Como sou velho demais (ou novo demais?) para pular no pescoço das pessoas, me contive. Mas não que me faltasse a vontade.

No carro, no caminho de volta, Beatriz voltou à carga. Meu galo estava longe de ter sido reabsorvido. Ainda estou em estado de choque. Melhor ficar quieto. De todo modo, já se pensava em recuperação, então...

A vida de Romain, cena 1: o herói no papel do aluno burro. Estranhamente, isso me surpreende. Sem que tivesse refletido de verdade sobre isso, imaginei me enquadrar na categoria nerd. O que mostra que também o ego tem a memória curta quando lhe convém. Fico sabendo, então, que ando meio atrasado em quase todas as matérias. Sou informado de que minha passagem para o Ensino Médio não foi muito tranquila. Isso não parece traumatizar muito Beatriz. A coisa me surpreende cada vez mais. Era de se esperar que ela fizesse disso o maior drama.

Beatriz continua procurando argumentos para retardar minha volta ao colégio, então eu apelo para a fórmula mágica.

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– Foiodoutorquedisse.

E acrescento:

– Se isso puder me ajudar a recuperar a memória, é bom, não é?

O argumento acerta o alvo. Bingo!

Ao chegar ao domicílio familiar, Arnaud foi informado imediatamente dos últimos acontecimentos. E não gostou.

Do meu quarto, eu o ouço gritar:

– Você não acha que ele tem coisa mais urgente a fazer do que perder tempo na escola?

Beatriz se empenha em acalmá-lo, e o tom baixa. Já não distingo mais suas palavras. Aposto dez contra um que ela usou o mesmo argumento que eu: foiodoutorquedisse.

À noite, Arnaud me anunciou, estoico, que no dia seguinte me levaria ao colégio de carro.

– Não acho que isso seja razoável, considerando o seu estado, mas se foiodoutorquedisse...

Ganhei! Pena que não tenha havido ninguém para aceitar a aposta.

– Normalmente, você pega o ônibus – ele acrescentou. – Mas como você não sabe em que ponto deve descer, eu vou levá-lo.

– Obrigado. Muita gentileza sua.

– É normal. E se isso pode ajudar você a recuperar essa bendita memória...

Finalmente, decido fazer uma pergunta sobre algo que me incomoda quando penso em minha volta ao colégio.

– Hã... Eu tenho amigos? Seria bom saber os nomes deles...

– Você pode parar de começar suas frases com “Hã”? –perguntou Beatriz com um sorriso. É muito vulgar.

– Ah, desculpe.

Nem por isso desisti do assunto.

– E os meus amigos?

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Arnaud e Beatriz se entreolharam.

– Você não é um garoto como os outros. Você não gosta das mesmas coisas que os jovens de sua idade. E ainda bem!

O álcool, os cigarros e as baladas não fazem seu gênero.

– Bem, tanto melhor. Mesmo assim, isso não me impede de ter pelo menos um ou dois amigos, não?

Nova troca de olhares. Arnaud voltou ao ataque.

– Escute, você não nos falou de ninguém. Mas bem... em sua idade, com certeza você não nos conta tudo.

Ele deu um sorriso que se pretendia encorajador ou mesmo de cumplicidade.

Bem, eu entendi.

A vida de Romain, cena 2: nosso herói no papel do poor lonesome cowboy.

Nem precisa dizer, minha vida é de dar inveja.

De repente o rosto de Beatriz se iluminou:

– Tem aquela garota... Como é que ela se chama, mesmo?

Ela lhe emprestou seus cadernos para você se recuperar nas matérias depois da gripe que pegou neste inverno... Ah, sim, Morgana! Uma loirinha muito bonita.

O nome não me disse nada. Mas se tenho proximidade com uma loirinha bonita, ótimo!

– De todo modo – disse Arnaud –, se você se aborrecer ou, melhor ainda, recuperar a memória, ligue-me imediatamente.

O mais importante para nós é a sua saúde e seu bem-estar.

– Ligar para o senhor?

Que gafe. Eu o chamei de senhor. Arnaud ficou magoado.

– Nós combinamos de nos tratar de você, Romain. Eu entendo muito bem que é complicado para você, mas, pode acreditar, para nós também é.

– Sinto muito – desculpei-me. – Escapou. É a surpresa.

– Surpresa?

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– Sim, não sei como poderia lhe telefonar se não tenho celular.

– Como não tem celular? E seu iPhone SE? Passamos um dia inteiro vasculhando lojas para comparar todos os modelos. Você o adora! Tanto que nós prometemos lhe dar o 8 se você...

Arnaud se interrompeu bruscamente. Ele trocou um olhar de frustração com Beatriz, depois exclamou:

Eu não entendo. Você fica com ele o tempo todo! O que você pode ter feito com ele?

Ele fixou os olhos em mim, à espera de uma resposta. E ela veio, imbatível:

– Eu não me lembro.

Ele respirou fundo. Beatriz interveio, falando baixinho:

Devem ter roubado quando ele estava inconsciente no corredor.

Hipótese bastante plausível.

– Se foi isso, é um escândalo! – exclamou Arnaud. Isso quer dizer que alguém o viu caído no chão e, em vez de prestar socorro, passou a mão em seu celular? Que diabo de colégio é esse?

E le continuou a bronquear nesse tom durante alguns minutos. Nem Beatriz nem eu dissemos mais nada, como se tivéssemos compreendido que ele tinha achado uma válvula de escape para dar vazão a sua frustração e irritação.

Fr ustração e irritação que não tinham a ver somente com o eventual roubo do meu celular, como eu percebi.

De volta ao meu quarto, arrumei a mochila para o colégio. Depois, retomei a leitura do livro. E esse O Conde de Monte Cristo é bem grande. Grande, mas bom. Muito bom, mesmo. Principalmente o fim do primeiro volume. Depois de 14 anos encarcerado, Edmond Dantès consegue fugir de uma prisão de onde não se fugia jamais.

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