tiago de melo andrade
começou a escrever no ano 2000, quando recebeu, pelo livro infantil A Caixa Preta (lançado pela editora Melhoramentos), o Prêmio Jabuti na categoria Autor Revelação. A partir de então, ele não parou mais: escreveu cerca de 40 livros para crianças e jovens. Seu texto elaborado, baseado em amplas pesquisas, e sua linguagem acessível fazem da obra de Tiago presença indispensável em escolas e eventos literários por todo o Brasil. Pela Melhoramentos, oautor publicou também os livros juvenis Carne Quebrada , A Estrela Mecânica , A História do Vai e Volta e O Ovo do Elefante . Hoje Tiago vive na cidade de Uberaba, em Minas Gerais.
Papamama nasceu em Barro Preto, povoado à beira do mangue. A mãe logo percebe que o bebê tem habilidades mágicas e telepáticas, poder de cura e infinita generosidade, que fazem com que o menino seja cultuado por todos que o cercam.
E é nesse pequeno povoado que Papamama encontra seu maior rival: oórfão Titum, que descobre de onde vêm os poderes de Papamama e se faz também poderoso. A luta entre os dois selará não só o destino da comunidade, mas do mundo inteiro!
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No povoado de Barro Preto nasce Papamama, um menino com poderes sobrenaturais. Desde o primeiro dia ele transforma a vida dos que o cercam com dons incríveis, passando a ser cultuado por todos, convertendo-se, ainda criança, numa divindade local. A vida de divindade, porém, não lhe agrada, e o menino resolve sair para conhecer omundo. Em toda parte descobre a mesma verdade: “a inutilidade de ser mágico, num mundo de gente violenta, insensível e idiota”.
E é em sua comunidade que surge quem quer antagonizá-lo: Titum.
Menino como ele, Titum descobre o segredo dos poderes de Papamama e se faz também poderoso, mas usará seus poderes para fins terríveis. Nas mãos de Papamama e Titum está o destino não apenas da comunidade de Barro Preto, mas do mundo inteiro.
TIAGO DE MELO ANDRADE O MÁGICO DO BARRO PRETO
tiago de melo andrade
Para Mário de Andrade
Um 1 Um
Pois foi que uma vez, lá pelas bandas do lugarejo
Barro Preto, a cabocla Tapati, agarrada à árvore de fazer força, pariu um menino magricela que nasceu em pé e sem chorar: Papamama. Foi um assombro tão espantoso que o mundo parou seu giro, um instante, para observar o recém-nascido, ereto sobre as perninhas finas de saracura.
Tapati tombou ao chão, exausta após o parto, sufocada de calor. Então, o menino, apontando o dedinho para o Sol que ia alto, no meio do céu, esturricando o globo, fez o fogo apagar até a mãe refrescar um pouco. O eclipse para fazer sombra na mãe foi o primeiro grande e desconhecido prodígio de Papamama.
Tapati tinha pele pintada de cobre e cabelos negros e grossos. O filho nasceu marrom bonito, como se fosse um pau de canela passado no fogo, com o cabelo escuro, cacheado.
O Barro Preto era um barral, um mangue, debaixo do céu turquesa, com muita planta bonita lançando folhas, do alto de castelos de galhos, donde moravam dinastias e clãs orgulhosos de insetos, os viventes mais antigos do lugar, chegados bem antes dos homens e ainda até dos macacos.
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No lugar onde o chão era mais duro, brotou um ajuntado de ranchos de palha, sob os quais se escondiam, do sol fumegante, os humanos. Do chão amolecido advinha o sustento: o povo passava os dias atolado até os joelhos, caçando caranguejo para comer e vender na beira da estrada.
Tapati, criada ali, nem sabia de outra vida. O pai de Papamama, meses antes de seu nascimento, morrera tragado por um dos muitos traiçoeiros sumidouros que se espalhavam pelo Barro Preto, de modo que a mãe era viúva com filho sem nome, pois quem escolhia os nomes, segundo os costumes daquela gente, eram os homens. Ao que parecia, o menino era amaldiçoado e ia viver inominado pelo resto de seus dias.
Por um tempo, ninguém quis a amizade dos dois, porque havia descaído sobre eles a fama de azar e má sorte. Foi um período de muita dificuldade e solidão, sem ninguém para dar consolo e benquerer para o bebezinho, tendo a cabocla e o pequenino que saírem da palhoça para caçar guaiamum no mangue.
Tapati amarrava seu bebê, numa faixa de juta, às costas e todos os dias ia labutar no lodaçal, catando caranguejo. Só parava para o de mamar do filho, que sugava, de pé, leite e lama.
Viveram assim até quando, perto do aniversário de 2 anos do filho, a cabocla afundou demais atrás de caranguejo e acabou sufocando com a cabeça atolada no barro. O menino, que até aí nunca havia falado, pediu aos caranguejos que desatolassem sua mãe. Fez um borbulho no barral, e a passarada avoou assustada dos galhos, chilreando medo. Então, Tapati emergiu, empurrada por um caranguejo gigante alaranjado e das pernas cabeludas. O animal, além de salvar sua vida, se entregou docilmente a ela como caça, contorcendo as garras
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de alicate para trás e dependurando as bolotas dos olhos para baixo, respeitoso.
Que espanto causaram mãe e filho quando retornaram à vila carregados pelo caranguejo, que, de tão imenso e alaranjado, ninguém teve dúvida, deveria de ser o pai deles todos. Antes de se atirar ao fogo para ser a ceia, disse a todos, na língua dos caranguejos, que o menino, dali em diante, deveria de ser chamado de Papamama. E assim o batizou, botando o alicatão sobre sua cabecinha de mil cachos.
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Dois 2 Dois
Havia muitos moleques no mangue. Todos eles já de cedo trabalhavam na coleta de caranguejo. A bem dizer, aprendiam a andar era pisando no mole do barro. Tinha até brincadeira e disputa de quem catava mais caranguejo ou quem possuía, no cesto, ao fim o dia, o maior, mais colorido e das patas mais carnudas.
Papamama não participava das disputas e ficava triste, na palafita. Depois de ter sido batizado pelo caranguejo, sua vida mudou.
O povo da vila não o deixava trabalhar mais não, nem na lama nem à beira da estrada, vendendo. Agora, era cultuado como algo mágico. Ele e sua mãe, sempre cercados de mimos e de gente amiga, trazendo comida e abanando do calor e das moscas, com folhas de bananeira.
De vez em quando, Papamama saía com uma mágica para agradar esse séquito que o cercava. Fez uma árvore dar leite pela ponta de um galho cortado por uma faquinha de prata com cabo de osso que ninguém sabia de onde veio. Nunca teve leite com tamanha fartura no Barro Preto, porque a criação lá
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sempre foi mirrada e atolada, mas a árvore dava leite como o quê. Encheu baldes, panelas e depois todas as vasilhas de que se dispunha, pois ninguém queria desperdiçar nada.
Mesmo assim, sobrou muito leite, que continuou derramando, farturento, aos borbotões, até a árvore ficar cercada por um lago. Papamama, então, foi até lá e enfiou o de do sujo, fazendo-o azedar. O leite empelotou, blocos brancos flutuavam sobre um líquido translúcido. Depois, com o passar dos dias, aquele material foi se cando até virar um enorme e delicioso queijo, que o povo do Barro Preto levou meses para comer, a golpes de enxada.
Por essas e outras, o menino era guardado em casa como um tesouro, e sempre alguém se revezava com sua mãe para ficar tomando conta dele, fazendo comida, dando banho com sabão de cinza, na bacia de alumínio, e escovando os cabelos: um príncipe! Mas Papamama não gostava daquela vida, preso, com os adultos sempre vigiando. Vivia cabisbaixo e triste.
Por mais que tivesse dom especial, não era dono de seu nariz e tinha que obedecer aos adultos. Mesmo que ele fizesse uma árvore dar leite, não deixava de ser um menino, e os maiores zelavam por ele e mandavam nele. Era assim desde sempre. Pois já existiram, em outras épocas, pessoas com dons parecidos que foram tratadas da mesma maneira. Era o costume. Por isso, passava muita vontade de estar junto das outras crianças, sujo de barro e caçando guaiamuns.
Numa manhã, Papamama acordou com os passarinhos, fugiu da mãe e foi escondido para a lama ter convivência com os outros meninos, que ele estava com muita vontade de ser criança também. Foi muito mal recebido, porque era cabeçudo e tinha os olhos esbugalhados. Os meninos nunca o tinham
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visto e não sabiam que aquele era Papamama, o afilhado do caranguejo. Eles o rodearam, debochando:
– Que cabeção grande! – disse uma garota, abrindo as mãos sobre a moleira, medindo.
– E os olhos esbugalhados... parece um caranguejo – emendou outro menino, esticando as pálpebras com a ponta dos dedos.
– Nunca vi um caranguejo tão enorme! – concluiu mais um, olhando de esguelha.
E ainda jogaram barro nele, lambuzando o cabelo e a cara.
Papamama aceitou calado e depois, ainda muito humilde, pediu:
– Posso catar caranguejo com vocês?
Os meninos riram tanto dele, que parecia tão fraco quanto limpo e sem jeito até para pisar no amolecido chão.
– Se você conseguir... – desfez um deles.
Começou a corrida. Titum, um moleque sem pai nem mãe, com pernas e braços compridos, com jeito de perna de garça, era o campeão, quase todos os dias, pois seus longos dedos magros se estendiam fundo, pinçando os animais das entranhas da terra. Mas era uma disputa acirrada, e todos os meninos enchiam os cestos com caranguejos, muitos, muitos. Menos
Papamama: por mais que se esforçasse, atolado, chafurdando na lama, não conseguia encontrar nenhum e ainda tinha de tolerar Titum, que, sempre que voltava de seu cesto de guardar caça, fazia questão de passar por ele e dar um tapa estalado em sua nuca. Papamama, mesmo sem saber o motivo de tanta raiva, ficava calado, só tinha preocupação de achar caranguejo, ao menos um.
O Sol ia escondendo a cara de fogo atrás das árvores, e a hora de encerrar o trabalho estava chegando. Parecia ser mais um dia de glória de Titum, cujo samburá estava de caça
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fugindo pela tampa. Contudo, na boquinha da noite, Papamama, com o braço enfiado, até o talo, na lama, gritou:
– Achei um! – Dizendo isso, puxou um caranguejo, que, ao sair do barro, trouxe pela garra outro, que, por sua vez, trouxe outro e mais outro e mais outro. E assim iam saindo de garras dadas, numa espécie de corrente que o menino foi puxando, até encher seu cesto e mais outros dois, que restavam vazios, e ainda assim continuou. Não parava mais de sair bicho do mole do chão! Como iam transbordando pelos cestos, um dos moleques teve de buscar reforço de samburá, na vila, para acomodar toda a caçada de Papamama, que só perdeu força quando encheu o décimo cesto. Ficou feliz, pois achou que vencera a brincadeira, e os meninos agora iam gostar dele e ser seus amigos. Contudo, os meninos tiveram ódio de Papamama e, liderados por Titum, deram nele uma surra de cipó grosso.
– Você é um trapaceiro!
Foram com os bichos para a vila. Quando os adultos chegaram do outro lado do mangue, ficaram espantados com a caça dos mole ques. Era fartura nunca apresentada em qualquer história contada pelos anciões do Barro Preto. Nem na época, antes da mancha de petróleo, quando o mar ainda dava peixe. Foi uma grande festa, e os caranguejos chiaram nas fogueiras, e a gente da lama teve uma grande ceia, com fartura inédita.
Com o gozo, a glória e a fama daquele prodígio ficaram Titum e outros meninos, e Papamama, pisando nas sombras, retornou, com as carnes trêmulas de cansaço e dor, para casa. Lá, os olhos de sua mãe brilhavam no escuro, esperando por ele. O menino tinha sobre si uma armadura de barro e sangue secos.
Tapati não disse nada. Apenas o levou para a velha bacia de alumínio e o esfregou com bucha e sabão de barra. Papamama
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escutava o barulho da festa, lá fora, as risadas, os tambores batendo, as cordas vibrando nas cabaças. Ninguém se lembrou dele não, nem para oferecer uma patinha assada. Papamama sentiu uma coisa tão ruim dentro dele, que lhe subia das entranhas das fronteiras do estômago com os intestinos, uma fleuma calorenta.
Quando a lua cheia já ia bem alta no céu, exibindo sua barriga de prata, os festejos se acalmaram. Alguns estavam tão empanturrados de comida que sequer conseguiram voltar pra casa. Dormiram ali mesmo, em derredor das brasas da fogueira. Um deles foi Titum.
No pesado sono da indigestão, teve até um sonho. Estava deitado na rede, tirando uma pestana em sua choça, quando acordou com algo frio tocando sua barriga. Então abriu os olhos, assustado, e viu o menino cabeçudo e olhudo coberto de barro e sangue, com o dedo mindinho atolado em seu umbigo, afundando, afundando. Doía muito, e Titum teve vontade de sair dali, contudo não conseguia se mexer. Teve vontade de gritar, mas a voz não saía, como acontece em mundo de sonho.
Acordou assustado, olhando em derredor. Não estava na rede nem em casa, e a Lua resfriava as cinzas da festa. Teve uma momentânea sensação de alívio, de quando se desperta de um pesadelo; contudo, logo sentiu uma pontada no estômago, seguida de forte engulho. Algo subia pelo seu esôfago e escapava pela garganta, arranhando as amídalas e o céu da boca! Percebeu, para seu horror, que estava pondo pela boca um caranguejo vivo. Suas garras estalavam, batendo nos dentes, até cair no chão e sair andando de lado.
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Três 3 Três
Na tarde em que Papamama completou 10 anos, fez sol com chuva. Um arco-íris desceu sobre a cabeça dele, e lá ficou aninhado, durante uma novena. Por onde passava, ficava aquele rastro de cor e cheiro de terra molhada. Depois desse tempo, dissipou, mas, a partir daí, os cabelos dele ganharam mais volume, como se ele tivesse levado um choque. Após o suce dido, de vez em quando alguém via escapulir da cabeleira passarinhos minúsculos, borboletas, e até Papamama, quando precisava, enfiava a mão ali e tirava uma faquinha de prata com cabo de osso, bem bonita, que ninguém sabia de onde tinha vindo.
Fazia tempos não aconte cia algo especial com Papamama, porque ele esteve deprimido por longo período, e muito triste e arrependido do que fez a Titum. O moleque nem podia vê-lo que ficava tremendo e logo dava um jeito de sair de perto. Mas naquela noite teve tanto ódio de Titum!
O caso se espalhou, e nenhuma criança da vila tinha amizade por ele: era medo, respeito ou devoção. Em sua cabana, Papamama sentia muita solidão e sofria, chorando baixinho,
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escondido. Só não penava mais porque amava o Barro Preto e se sentia bem vivendo no lamaçal, o barro subindo morno e mole entre os dedos do pé. Gostava dali porque ali nasceu!
Era seu manguezal: água e terra misturadas numa poção encantada; árvores imponentes montadas em cascatas de raízes; a folhagem verde, reluzindo como joia ao sol a pino; e os caranguejos, pequenas esculturas que se movem de banda.
Mesmo quando vinha algum forasteiro e injuriava o Barro Preto, chamando-o de fim do mundo ou de charco fedorento, Papamama nem ligava e até sentia pena, porque aquele vivente era cego de alma e não podia enxergar a beleza do manguezal.
Um dia, uma enorme boca de lata se abriu sobre o rio que cruzava o Barro Preto. As máquinas vieram cortando a terra e enfiaram em suas entranhas um tubo de ferro enorme. Dentro dele cabia um homem de pé, e, se caminhasse por ali, na dire ção oposta, em um dia, ia dar na cidade grande. O povo do Barro Preto não ligou muito. No começo, até apreciavam as coisas que o cano, como uma cornucópia abençoada, trazia para o mangue. Vinha de um tudo pelo tubo: bolas de futebol, geladeiras antigas, sofás rasgados, cadeiras quebradas, fezes, fogão, talheres, urina, garrafas pet, restos de comida, correntinhas de ouro, derivados de petróleo, sacos de plástico, gordura, chinelos de borracha coloridos...
Com o tempo, o mangue adoe ceu, contaminado pela água maligna vertida do tubo junto com os presentes da cidade. Os caranguejos sumiram, e fome e doenças começaram a tomar o Barro Preto, com meninada amarela carregando, sem ânimo, os umbigos estufados de sombra em sombra.
Ia ser o fim do Barro Preto, não fosse Papamama, que, numa noite de lua, ajoelhou-se sobre o cano, fechou os olhos
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e ficou lá, nessa posição, murmurando, até o Sol erguer sua coroa dourada sobre as árvores. Quando o primeiro raio da manhã tocou o menino, fez um brilho bonito no ar, e as gotas de orvalho resplandeceram nas folhagens, como se um relâmpago de ouro tivesse cruzado os céus. Depois disso, passaram a sair do tubo de esgoto só coisas boas.
A água por ali vertida era límpida, cristalina, e os objetos que vinham boiando nela eram novos, como que saídos de uma loja. Ao contrário de dejetos, rolavam pelas águas flores e frutas, e, em vez de baratas, havia borboletas pelos ares. O povo ficou feliz, porque Papamama, usando seu poder, tocou a cidade e fez com que seus moradores ficassem bons com o Barro Preto, mandando coisas boas pelo cano. Papamama não disse nada.
A notícia se espalhou, e logo veio gente ver o duto de esgoto que vertia água perfumada com flores e frutas. Era uma coisa incrível, porque na cidade continuavam enfiando pelo cano a podridão de sempre. Alguma coisa acontecia no meio do caminho. Francisco Bretão era pesquisador e fez a seguinte experiência: foi ao banheiro e fez uma necessidade, na qual espetou um alfinete de cabeça vermelha. Puxou a descarga e foi ver o que saía do outro lado do cano. Passaram-se mais ou menos dois dias, que foi o prazo para o experimento navegar pelo esgoto, e, eureca!, saiu do outro lado uma bela maçã espetada com o alfinete. Então ele mandou uma cadeira velha com o assento de palhinha furado. Foi o tempo de o móvel passar pelo cano para sair do outro lado tinindo: lixado, envernizado e com a palhinha trançadinha, estalando de nova.
O povo todo que ia ao Barro Preto meter os estudos para desvendar o cano mágico não escutava os locais. Ninguém
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dava bola para o que diziam: que o acontecido era obra de Papamama, o menino. Só davam importância ao cano... Um tal de dr. Adalberto Barbeitas, físico, óculos fundo de garrafa e cara de panela de pressão, teve a coragem de colocar um daqueles capacetes com lanterna e se enfiar numa boia para ver, com seu próprios olhos, o que aconte cia ali dentro.
A princípio era um duto de esgoto como outro qualquer, com dejetos boiando e toda sorte de lixo que as pessoas têm o mau hábito de atirar nas galerias. Insetos rastejavam pelas paredes curvas, e o vapor daquela sauna nauseabunda embaçava seus óculos. A meio caminho, contudo, surgiu uma parede de luz colorida, como se um arco-íris atravessasse o duto ao meio. Dr. Barbeitas entrou tenso na luz e percebeu que era ali que tudo se dava. Ao seu redor, baratas explodiam, virando lindas borboletas, e os dejetos na água desabrochavam em flores e frutos.
Ele mesmo sentiu transformações: suas roupas se ajustaram ao corpo como se fossem novas. Até um botão da camisa dele, que havia sumido, reapareceu. E mais: as carnes de seu corpo voltaram a ser tesas, sua barriga se esvaziou, como um balão de festa, e, em sua cabeça, sentiu os cabelos fartos outra vez.
Quando, enfim, a luz se dissipou, tudo era maravilhoso. O cano parecia de prata, e as águas cintilavam cristalinas com a luminosidade que vinha da saída. Borboletas voavam graciosas, e um belo sofá verde e antigo, de franjinhas douradas, boiava, restaurado em todo seu conforto e beleza. A surpresa maior mesmo foi quando as novas fuças de dr. Barbeitas cruzaram pelo cano. Ele não tinha mais cara de panela de pressão, mas, sim, a bela estampa do ator James Dean.
Depois do suce dido com o doutor, fez-se uma fila de gente para entrar pelo cano e ficar linda como ele. Os jornais
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apelidaram o duto de cano da juventude, por onde entrou um velho cientista, com cara de antigamente, e saiu, pelo outro lado, um jovem lindo, na força dos primeiros anos!
Na cidade, empurradas por essa maravilhosa promessa, as pessoas foram entrando de cambulhada no cano milagroso. Problema foi que, quem quer que fosse que fizesse a travessia, saía, pelo outro lado, com a mesma cara: a do James Dean! Não era um cano da juventude, mas, sim, uma máquina de tirar xerox. Até que se dessem conta disso, já havia se formado um batalhão de James Dean no Barro Preto.
– Meu Deus! E agora? Como vamos fazer? – desesperou-se James Dean.
– Vamos fazer o caminho inverso. Quem sabe resolve o problema? – sugeriu James Dean.
Foi aquele empurramento de sósias querendo passar, ao mesmo tempo, de volta pelo duto. Que nada! Do outro lado continuou saindo um monte de James Dean, pois o que era modificado pelo cano não voltava nunca mais a ser o que era antes.
Vieram dois estrangeiros estudar o fenômeno. A gente dos caranguejos tentava explicar que o cano não tinha nada de mais e mostrava Papamama, um menino simples e sujo de barro. Ninguém dava importância a ele, não. Eram só olhos para o tubo: medir, saber de que material era feito, tirar raios X, verificar se emitia algum tipo de radiação, fazer análise química...
Por fim tiraram o cano e levaram-no a outro país, com mais equipamentos, para estudo e pesquisa. Houve quem
protestasse:
– O cano é nosso!
Porém não teve jeito, o cano se foi. No exterior, voltou a ser um cano normal: o que entrava de um lado saía pelo outro
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sem tirar nem pôr. E o Barro Preto voltou a ser um lugar limpo, com caranguejo para comer, sem esgoto jogado no rio. Nem assim, depois desse heroísmo, Titum conseguia gostar de Papamama. Também não se arrependia da surra de cipó. Ficava olhando essas coisas, o que ele fez com o cano, a adoração da gente do Barro Preto por ele. Achava bom o povo das cidades fazer pouco de Papamama, desacreditar dele. Pensava que, se fosse como ele, não ia ser bobalhão. Seria esperto e mandaria em todo mundo no Barro Preto. Titum queria ser o rei do mangue, ter mágica no corpo.
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