O Pescador de Histórias

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HELOISA PIRES LIMA

O Pescador navega por águas africanas. Às vezes, percebe a fartura, prepara o mergulho e, então, pesca. Não peixes, mas, sim, histórias. Desse modo, ele se alimenta dos acontecimentos ribeirinhos. A leitura é um deslizar na correnteza dos pequenos contos entre lugares e tempos. O conjunto desses leitos fabulosos apresenta ao leitor uma África rara nos livros infantojuvenis. Os contos partem de eventos mitológicos bastante desconhecidos para o coração brasileiro, o que torna O Pescador de Histórias água cristalina para a imaginação mergulhar.

OPESCADORDEHISTÓRIAS

Ilustrações ÉLON BRASIL

HELOISA PIRES LIMA

O depescador histórias

Ilustrações

ÉLON BRASIL

O Sol se escondia para estourar as bolhas de espuma que, juntas, formavam as nuvens do céu. O vento ajudava a desmanchar as gotas suspensas que escorregavam lá do alto até virar pingos de chuva cá em baixo. Duas delas caíram bem dentro de um olho-d’água que brotava na terra. Os respingos saltaram e ajudaram a espalhar fios molhados pelo chão. Continuando a deslizar, inventaram caminhos de rios, pelos continentes. E sobre esses rios caudalosos, desde sempre navega um barco colorido. E, dentro dele, há um Pescador.

O Pescador atravessa as correntezas. Quando percebe a fartura de vida, ele prepara o mergulho e, então, pesca. Não peixes, mas, sim, histórias. Desse modo o Pescador se alimenta de ideias ribeirinhas. Em seguida, parte, seguindo sua própria história de ser o Pescador de Histórias. Dessa vez ele segue pelas águas da África.

Para a linda Moza, a tia mais mimosa.

Meus agradecimentos a Meire Cazumbá e Arthur Shaker.

Sumário O brilho precioso de Wagadu 11 O presente do Nilo 17 Entre a neve e o vento rosa 29 Olhos de diamante 37 Do vocabulário 45 Biografia da autora 47

O brilho precioso de Wagadu

O brinco da princesa soninquê, uma espiral em ouro maciço, tilintou ao sol do meio-dia. Mas era o brilho irradiado de uma lágrima da moça o que poderia atrair qualquer pescador do Rio Níger. O pranto transbordava uma imensa tristeza e revolta. Os chefes reunidos haviam decidido: Yataberê, a mais bela e pura entre todas as filhas, fora a escolhida para o sacrifício.

A princesa chorava por seu destino: ter que seguir a tradição. Afinal, diziam, era a vez de Yataberê assegurar a glória do reino de Wagadu. Seria inevitável seu encontro com Bida, a serpente de sete cabeças. O ser sobrenatural abandonaria a mata sagrada para buscar sua prometida. Desde sempre o povo soninquê via Bida como a protetora das águas, aquela que garantia a fertilidade do solo de Wagadu. E, também, como a guardiã das pepitas que os séculos transformaram em metal precioso. Bida, assim acreditavam, distribuía chuva, fertilidade e muito ouro. E as filhas reais precisavam alimentar essa proteção. Yataberê deveria seguir para o sacrifício.

O Pescador mirava as ondas do grande rio negro quando adormeceu. Sua embarcação, levada pela correnteza, acabou voltando algumas léguas. Era como retornar a um tempo, lá pelo século XI, quando as línguas chamavam aquele mesmo rio de Djolib. As ondulações das águas iam e vinham, parecendo querer repetir a mesma história desses tempos passados. Aquela da rivalidade entre dois irmãos na disputa pela sucessão ao pai soberano, logo após sua morte.

As águas conheceram o desentendimento que levou a uma briga violenta entre os príncipes de Wagadu. O irmão perdedor, sentindo-se muito humilhado, foi procurar a ajuda mágica de Bida. O acordo com a poderosa serpente deveria garantir a vitória sobre o irmão, a chuva para as abundantes colheitas, além da manutenção da riqueza do reino. Em troca, a promessa de oferecer anualmente a princesa mais bela e mais pura do reino como presente ao animal sobrenatural. E assim aconteceu. Desde então, logo após Bida devorar uma princesa em sacrifício, Wagadu era banhada por uma chuva de ouro fino.

O dia da entrega chegara. Yataberê foi vestida com o mais belo dos tecidos. Pulseiras e colares confeccionados com o metal precioso completavam sua beleza. O preparo refletia a tradição soninquê convencida de que o sacrifício era para o bem de Wagadu. E tudo aconteceria outra vez, não fosse o guerreiro Amadou.

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O Pescador acordou com o grunhido de um pássaro. A ave prendeu sua atenção pela forma como estava prestes a atacar uma presa que nadava, em seu ritmo natural, próxima à embarcação.

A postura de Amadou, o guerreiro negro, foi igualmente inflexível. Apaixonado por Yataberê, ele não se conformara com a notícia de ela ser entregue a Bida. Desesperado, sabia que para mudar o destino fatal teria que enfrentar a serpente extraordinária. E só havia um jeito de conseguir ficar frente a frente com Bida: deixar seguir o ritual. Só assim, atraída pela escolhida, Bida deixaria a floresta mágica. O brinco espiralado da princesa poderia refletir mais do que o grande amor de Amadou, que estava escondido no local marcado para o sacrifício. Lá, pôde escutar as preces do sacerdote exaltando a família Yataberê e louvando, um a um, os ancestrais que asseguraram o poder de Wagadu. Os cantos serviram para encorajar a jovem à espera do instante fatal. Depois, o silêncio. No meio da noite o animal foi se aproximando. A primeira cabeça se esgueirava para examinar a pureza e a beleza da jovem oferecida como presente. Yataberê sentiu sua hora chegar.

O Pescador em meio ao Rio Níger não despregou os olhos do pássaro. Viu o instante em que a ave tomou a decisão de embicar, atravessando o céu na direção exata. A caça mal teve tempo de perceber o bote. O golpe foi certeiro.

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Também foi assim quando o jovem Amadou armou o ataque, sem pestanejar. Ele havia procurado o ferreiro. Alimentara a família do ferreiro enquanto este preparava a espada que ele agora segurava em suas mãos. A arma fora moldada pela determinação de salvar a amada. O amor por Yataberê elucidou sua mente. Chegara o tempo de acabar com o domínio da fera de sete cabeças sobre o povo soninquê. Ele tinha a certeza de agir pelo bem de Wagadu. E, quando o bicho sorrateiro estava já prestes a tocar Yataberê, o brilho do fogo reluziu na lâmina da espada, que, como um raio, decepou a cabeça frontal. A habilidade corajosa alcançou a segunda, a terceira e, uma a uma, todas as cabeças de Bida foram conhecendo o golpe inesperado e improvável. Quando a última cabeça da serpente caiu, a noite de Wagadu desapareceu. E os olhos de Yataberê e Amadou se encontraram, brilhando e iluminando os novos tempos.

O Pescador continuou atento às novas paisagens. O Sol fazia reluzir as águas do Níger.

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