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Prólogo
Rio de Janeiro, 12 de setembro de 1822 Cinco dias depois da Independência do Brasil
Uma igreja toda de ouro. Em seus 23 anos de vida, Mogotsi nunca tinha entrado num lugar tão luxuoso.
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Estava sozinho, sentado na primeira fileira da Igreja de São Francisco da Ordem Terceira da Penitência, para onde havia sido levado em segredo depois de ser obrigado a fugir às pressas de São Paulo, quando a comitiva do príncipe Dom Pedro se aproximava do Rio Ipiranga.
Agora, Mogotsi admirava a riqueza do interior daquela igreja. A pintura retratando São Francisco de Assis no teto, rodeado de anjos. O arco monumental que dava acesso ao altar. E, principalmente, o brilho dourado que recobria as paredes da ampla nave, como se elas tivessem sido esculpidas num enorme pedregulho de ouro.
Mogotsi ainda não entendia por que tinha sido levado até uma igreja. Desde que impedira a tentativa de assassinato do príncipe, algumas horas antes de ele proclamar a Independência do Brasil, homens leais a Portugal, infiltrados na guarda de honra, procuravam por ele para matá-lo. Eles tinham duas fortes razões para isso.
A primeira era se vingar de Mogotsi por ele ter atrapalhado o plano de assassinar Dom Pedro. Com o príncipe morto, Portugal removeria seu maior obstáculo para transformar o Brasil novamente em colônia. A segunda, porque Mogotsi vira, pelo menos, um dos homens envolvidos no plano e poderia reconhecê-lo e denunciá-lo às autoridades brasileiras. Uma vez preso, ele entregaria os outros, e seriam todos caçados e, se capturados, severamente punidos. Tentar matar um príncipe, afinal, era coisa muito séria.
Mas isso não apagava a pergunta: por que o tinham trazido para uma igreja?
Mogotsi estava tão concentrado nos próprios pensamentos que nem percebeu um homem vestido com o hábito marrom dos franciscanos surgir de uma porta à direita do altar e caminhar até ele.
– Mogotsi? – perguntou o homem, aproximando-se. Ele tinha olhos grandes, cabelos prateados e rosto comprido. Devia ter cerca de 50 anos.
Mogotsi balançou a cabeça em aprovação. O homem sentou-se ao seu lado.
– Sou o frei António de Arrábida. O emissário do padre Belchior me procurou para te dar abrigo.
O padre mineiro Belchior Pinheiro de Oliveira acompanhava a comitiva de Dom Pedro na viagem a São Paulo. Tinha sido uma das testemunhas da declaração da Independência cinco dias antes.
– Ele disse que estou em perigo? – perguntou Mogotsi.
– Disse, mas fiques tranquilo. Agora, tu estás em segurança – frei António gesticulou para Mogotsi se levantar. – Venha comigo. Não é seguro conversarmos aqui. Alguém pode chegar e te ver. Mogotsi acompanhou o frade. Entraram pela mesma porta lateral pela qual frei António tinha acabado de sair e atravessaram a sacristia, menos luxuosa do que a nave da igreja, mas ainda assim muito bonita, decorada por móveis pesados e belas pinturas sacras no forro. Subiram, em seguida, por uma escadaria de pedra e foram até um salão espaçoso, iluminado pelos raios de sol que entravam pelas fileiras de janelas abertas para a mata verde do Morro de Santo Antônio. Uma comprida mesa de madeira maciça rodeada por trinta cadeiras ocupava quase toda a extensão do recinto, e frei António convidou Mogotsi a escolher uma delas para se sentar.
– Por que não me contas, com as tuas palavras, exatamente o que aconteceu, filho? – pediu o frade, acomodando-se em frente a Mogotsi.
Mogotsi respirou fundo.
– Eu era um dos homens da guarda de honra de Dom Pedro – começou ele.
Frei António fez um gesto com a cabeça para que ele continuasse.
– Estávamos na cidade de Santos, acompanhando o príncipe – prosseguiu Mogotsi. – No dia seguinte, seguiríamos para São Paulo. Na manhã do dia 6, antes de sairmos para inspecionar os fortes da cidade, vi um dos soldados colhendo folhas de um arbusto florido muito bonito. Uma espirradeira.
– Uma planta muito bonita, porém venenosa –comentou o frei António.
– Sim. Se ele estivesse colhendo as flores, eu entenderia. Poderia querer presentear com elas alguma moça. Mas as folhas não serviam para nada.
– E o que ele fez?
– No final da tarde, fizemos nossa última parada, na Fortaleza de Santo Amaro. Após a visita, os oficiais do forte ofereceram uma ceia para Dom Pedro. Estranhei quando vi o mesmo soldado que tinha colhido as folhas da espirradeira servir um chá numa caneca e levá-la ao príncipe. Corri na direção dele e fingi tropeçar para derrubar a caneca. Consegui, mas o príncipe já tinha bebido o primeiro gole.
Mogotsi fez uma pausa e continuou:
– O soldado ainda insistiu com o príncipe, dizendo que poderia servir outra caneca, mas Dom Pedro ficou muito contrariado por estar com a farda molhada e resolveu ir embora. Ele deu a desculpa de que estava cansado e que se deitaria cedo, pois seguiria viagem para São Paulo antes do nascer do Sol.
Frei António havia sido informado pelo padre Belchior sobre o restante da história. No dia seguinte, 7 de setembro, enquanto subia a Serra do Mar a caminho de São Paulo, acompanhado de sua comitiva, o príncipe sofreu dores intestinais e uma forte disenteria provocadas pelo primeiro e único gole do chá envenenado. Um grande incômodo, porém um mal menor, pois, se tivesse tomado a caneca inteira, Dom Pedro não sobreviveria.
No fim da tarde, durante uma parada da comitiva nas margens do Rio Ipiranga, já perto de São Paulo, o príncipe recebeu a notícia de que os portugueses estavam preparando um ataque militar ao Rio de Janeiro a fim de eliminar os conspiradores separatistas e, assim, manter o domínio sobre o Brasil. Soube, também que, em Lisboa, cresciam as pressões para destituí-lo da condição de herdeiro do trono português, devido à sua atuação como regente no Brasil, considerada rebelde e contrária aos interesses de Portugal.
Encurralado, desafiado e, segundo relatou o padre Belchior, “tremendo de raiva”, Dom Pedro, então, decidiu-se, ali mesmo, pela única saída: a proclamação da Independência.
Frei António sorriu e disse a Mogotsi:
– Tu salvaste a vida do príncipe, filho. E, graças a isso, garantiste a Independência do Brasil. – O frei abriu os braços. – És um herói! Um herói da nossa Independência!
Mogotsi ficou encabulado com o elogio. – Aquele soldado sabe o que eu fiz – disse. – Percebi pela cara que ele fez para mim quando derrubei a caneca. Naquele momento, tive certeza de que estava em perigo e, à noite, procurei o padre Belchior para contar o que acontecera. O padre prometeu prevenir o príncipe e, na mesma noite, começou a planejar minha fuga. Eu iria com a comitiva até São Paulo, e, de lá, ele faria com que eu chegasse em segurança ao Rio de Janeiro.
– E aqui estás – disse frei António, com um sorriso. – Deixe-me adivinhar: o soldado que tentou matar o príncipe é português...? Mogotsi fez que sim com a cabeça.
– Sabes o nome dele? – perguntou o frade.
– Não.
– Conseguirias reconhecê-lo?
– Sem dúvida.
Frei António comprimiu os lábios, pensativo.
– Escuta, meu filho: tu sabes que Portugal está a fazer de tudo para impedir a Independência desta terra. Os portugueses têm consciência de que, sem a liderança de Dom Pedro, algumas províncias brasileiras continuarão leais a Portugal. Outras, por sua vez, talvez decidam se separar do Brasil. Só a coroa sobre a cabeça de nosso príncipe Dom Pedro é capaz de manter o país independente e unido. Tu és a única pessoa que pode identificar o assassino, e os portugueses tentarão silenciar-te. Tu deves ficar escondido para permanecer a salvo. Mas não poderás esconder-te para sempre. – E completou: – Podes viajar e conseguir um bom trabalho em algum lugar longe daqui. Pelo que vejo, és um homem instruído.
– Tive o privilégio de estudar, graças ao meu pai, que sempre valorizou o conhecimento. A cor escura da minha pele não deixa dúvidas sobre minha origem africana. Poucos sabem que meu pai era um nobre. Ele era o Kgosi Monametse , rei do povo Kawana, no sudeste da África. Foi capturado por um exército inimigo e vendido a traficantes de escravos que o trouxeram para o Brasil. Aquele homem no Vale do Paraíba que o comprou ficou impressionado ao ver como meu pai era educado e aprendera rápido o português. O fazendeiro era fascinado pela nobreza, sonhava em receber um título de barão ou visconde e, quando descobriu que meu pai tinha sangue real, decidiu alforriá-lo e deu-lhe um pedaço de terra para viver. Foi onde nasci. Com o tempo, meu pai se apaixonou pelo Brasil e sonhava com o dia em que esta terra se tornaria independente de Portugal. Ele morreu no começo deste ano sem ver seu sonho realizado. Quando a comitiva do príncipe Dom Pedro passou próximo das minhas terras, resolvi me juntar a ela e fui incorporado à Guarda de Honra. Eu queria ajudar o príncipe, colaborar de alguma forma para tornar o Brasil independente e, assim, realizar o último desejo do meu pai.
Mogotsi sentiu uma súbita saudade do pai. O velho Monametse odiava os colonizadores portugueses, principalmente por comprarem seres humanos na África e trazê-los à força para trabalhar como escravos no Brasil. Tanto ele quanto Mogotsi tinham esperanças de que a Independência daria um fim imediato àquela aberração. Nenhum dos dois, é claro, podia imaginar que a escravatura só seria abolida no país mais de sessenta anos depois.
– O desejo do teu pai foi já realizado – disse frei António. – Onde quer que esteja, ele deve se sentir orgulhoso ao saber que seu filho garantiu que a Independência fosse declarada.
Mogotsi imaginou a alegria do pai se visse o Brasil livre.
O que pretendes fazer de agora em diante?
Ainda não pensei nisso, mas voltar para o Vale do Paraíba está fora de questão – respondeu Mogotsi. – Os conspiradores já estavam na comitiva quando passaram pela minha casa e, neste momento, podem estar a vigiá-la à minha espera.
O rosto de frei António se iluminou de repente.
A história que me contaste sobre o teu pai me deu uma ideia. Assim como Dom Pedro está para se tornar o soberano do Brasil, tu bem que podias pensar em retornar à terra do teu pai e recuperar o teu reino. Como é mesmo o nome do teu povo?
– Kawana.
– O que achas da minha ideia?
Não sei se estou preparado para uma missão como essa... – Dom Pedro também não estava preparado para declarar a Independência. As circunstâncias e a necessidade o levaram a isso.
Mogotsi nascera no Brasil e nunca pisara na África. O pai, no entanto, lhe ensinara a língua dos kawanas e lhe descrevera tudo relacionado à terra onde seu povo vivia. De tanto o pai lhe falar sobre a geografia daquele pedaço da África, Mogotsi saberia como chegar lá. Bastaria se apresentar às pessoas certas e ele seria reconhecido como o herdeiro do grande chefe Monametse.
– Por ora, serás hóspede no nosso convento aqui ao lado – disse frei António. – Conseguirei um hábito para ti e direi a todos que és um frade de outra província que veio passar uns tempos conosco. Enquanto isso, buscarei informações sobre os navios que partirão do Rio de Janeiro para o sudeste da África. Se quiseres embarcar em algum deles, planejaremos como fazer isso em segurança. Mogotsi começava a gostar da ideia.
– No momento certo, contarei a Dom Pedro o que fizeste por ele e pelo Brasil – declarou frei António.
– Não sei se sabes, mas sou conselheiro e confessor do príncipe. Ele acreditará em mim e tenho certeza de que irá recompensar-te.