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Capítulo 1
O Clube de Leitura
Rio de Janeiro, cerca de duzentos anos depois
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Joaquim chegou atrasado à livraria – nenhuma novidade, aliás, já que vivia se atrasando para tudo. Perdera a conta das vezes em que não conseguiu assistir à primeira aula por cruzar o portão da escola depois do horário. Alguns colegas até já o tinham apelidado de “Joaquim Segunda Aula”.
O Clube de Leitura, é claro, já havia começado. Felizmente, Keeya deixara sua bolsa sobre a cadeira ao lado, guardando o lugar para ele.
– Qual o livro de hoje? – perguntou Joaquim, depois de cumprimentar a amiga.
– Um suspense americano – respondeu Keeya, retirando da cadeira a bolsa e um livro grosso para Joaquim se sentar. – O título é Fuga Sem Trégua.
É bom?
– É bonzinho – disse Keeya, sem muito entusiasmo.
– É a história do casal Samantha e Joe Cardwell. Eles são sequestrados por mafiosos espanhóis por terem visto a chegada de um carregamento de droga a uma praia. A cena em que eles fogem do cativeiro é a melhor. Samantha usa os grampos de cabelo para abrir a fechadura da cela, e aí começa a fuga que dá nome ao livro. Mas não é uma fuga tão eletrizante. Ela é sem trégua, pois os dois passam quase todo o livro fugindo.
– A julgar pela empolgação do Rodrigo, o livro é uma obra-prima que vai ganhar o Prêmio Nobel de Literatura este ano.
Joaquim se referia a Rodrigo Quaresma, um bancário que, nas horas vagas, editava o site Festim Literário e organizava, havia dois anos, o clube de leitura de mesmo nome. O clube acontecia toda segunda-feira numa livraria no bairro da Tijuca e reunia seguidores do site e aficionados por leitura em geral para conversar sobre um livro, um escritor ou um gênero literário. Rodrigo era um cara animado, mas naquele fim de tarde a animação dele parecia ainda maior. Ele brincava com a plateia, soltando piadinhas a cada comentário sobre o livro, como se estivesse ao vivo em algum programa humorístico sem graça.
– Comecei a frequentar o clube porque queria conhecer melhor a literatura brasileira – queixou-se Keeya. – Mas há várias semanas o Rodrigo só fala de autores de fora. Se continuar assim, acho que vou deixar de vir.
Não faz isso – reagiu Joaquim. – Se você não vier mais, com quem vou conversar?
Joaquim descobrira o Clube de Leitura por acaso. Ele morava com a mãe e a avó num prédio ali perto e fora à livraria num fim de tarde em busca de um livro de literatura que tinha sido adotado pela escola e cuja prova aconteceria na semana seguinte. Como sempre, tinha deixado para providenciar na última hora. O clube estava acontecendo naquele momento e, enquanto a vendedora buscava o livro no estoque da livraria, Joaquim ficou observando a conversa empolgada sobre literatura daquela galera jovem, como quem fala do lançamento de algum filme concorrido ou do game do momento. Havia umas garotas bonitas, mas todas eram mais velhas e, é claro, não dariam bola para ele.
Depois de comprar o livro, em vez de ir embora, Joaquim resolveu ficar um pouco mais e foi nesse momento que avistou Keeya. Ela era a única ali que tinha a mesma idade que ele – 15 anos –, enquanto todos os outros participantes do clube aparentavam mais de 20, incluindo Rodrigo Quaresma, que devia estar próximo dos 30. Descobriu, mais tarde, que Keeya era de Kawânia, um pequeno país no sudeste da África, e que estava fazendo um intercâmbio no Brasil para estudar português. A língua portuguesa, segundo ela, era a terceira mais falada em Kawânia, depois do sekawana e do inglês.
Ela contou que soubera do clube ao procurar pela internet sugestões de livros brasileiros e acabou chegando ao site de Rodrigo Quaresma. Naquele fim de semana, o clube falaria do lançamento de uma jovem escritora brasileira, e Keeya se animou em participar. As edições seguintes do clube também focaram autores nacionais, mas depois disso Rodrigo praticamente só selecionou estrangeiros, o que foi deixando Keeya cada vez mais decepcionada.
– Esses livros americanos também são vendidos nas livrarias de Kawânia – comentou ela, com o leve sotaque que tornava a sua voz musical e única. – Nada contra, mas eu queria aproveitar essa temporada no Brasil para conhecer melhor os autores daqui.
– Por que não procuramos outro clube de leitura? Tem vários pela cidade – sugeriu Joaquim. – Não andam dizendo que o Rodrigo pensa em desistir do clube e se mudar do Rio?
Keeya deu de ombros. – Acho que isso é boato. Olha só o entusiasmo dele. Não é o de alguém que pensa em largar tudo. E eu gosto de vir aqui. Já me acostumei.
– Então, por que não conversa com o Rodrigo e pede a ele para falar mais de literatura brasileira? Ele parece ser um cara legal e, com certeza, vai te ouvir.
Lá na frente, Rodrigo falava sem parar, gesticulando muito.
– Antes de distribuir os números para o sorteio de hoje, queria pedir a sugestão de vocês – disse ele, abrindo os braços teatralmente. – Qual livro vocês gostariam de ver aqui no clube nos nossos próximos encontros?
Keeya se animou.
Acho que ele acabou de me dar uma deixa.
Ela e Joaquim estavam sentados numa das últimas fileiras, e as pessoas acomodadas nas cadeiras à frente eram mais velhas e mais altas. Para azar de Keeya, a garota mais alta de todas estava acomodada na cadeira bem em frente à dela, e sua farta cabeleira cor de trigo ajudava ainda mais a bloquear a visão do que acontecia lá na frente. Keeya precisava se levantar para ser ouvida e, ao fazer isso, não percebeu que a alça de sua bolsa envolvia o braço direito. A bolsa acabou virando e, por estar meio aberta, alguns objetos se espalharam sob as cadeiras da frente. Ao se agachar para pegá-los, Keeya derrubou, sem querer, o livro que estava sob a bolsa, piorando a situação. Ele caiu no chão, produzindo um baque surdo, e se abriu sozinho bem na parte em que Keeya colocara um marcador de páginas. Joaquim se inclinou para apanhá-lo. O livro era escrito em inglês, e, sem querer, ele leu um trecho:
A pesquisa revelou que Dom Pedro I teria sabido tardiamente da ação heroica de Mogotsi e destinado a ele um tesouro como retribuição por, na véspera da declaração da Independência, ter salvado a sua vida. No entanto, essa informação só foi encontrada numa carta, supostamente escrita por uma das damas de companhia da Imperatriz Leopoldina, primeira esposa de Dom Pedro, e é possível que a história tenha sido inventada ou exagerada.
Joaquim conferiu a capa do livro. Ela trazia a pintura de um homem altivo, com vestes reais africanas, tendo algumas imagens em preto e branco no fundo, incluindo uma que Joaquim reconheceu logo: era o famoso quadro Independência ou Morte , pintado por Pedro Américo em 1888 e que mostrava uma versão épica do Grito do Ipiranga. O título do livro, em grandes letras verdes, era Mogotsi – A Biography (Mogotsi – Uma Biografia, em inglês).
– Que livro é esse? – É o que eu estou lendo.
– Eu sei que você está lendo. Mas quem é Mogotsi?
E que tesouro é esse de Dom Pedro I?
– Oh, pelo que estou vendo, você entende bem inglês... – brincou Keeya.
– Vai me contar ou não?
Keeya soltou um suspiro.
– Mogotsi foi o fundador do reino de Kawânia. Nasceu no Brasil, filho de escravos, e voltou à África para reassumir as terras do povo Kawana e refundar o reino que, antes, era governado pelo pai dele.
– E o que Dom Pedro I tem a ver com isso?
Keeya apontou para o livro.
É o que você leu. Um dia antes da proclamação da Independência do Brasil, Mogotsi teria evitado que Dom Pedro fosse assassinado. Quando soube disso, o imperador resolveu dar a ele um tesouro como retribuição, mas, a essa altura, Mogotsi já tinha voltado para a África.
Joaquim aprendera nas aulas de História que o Grito do Ipiranga, embora importante, não garantiu sozinho a independência de todo o território