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NOTA DO AUTOR

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RIO SEM MARGEM

RIO SEM MARGEM

Os poemas deste livro são elaborados (recorrendo-se ao método da sobreposição e colagem; da retradução e do acrescento de versos ao material original), com base em jogos de adivinhas, em provérbios, motejos ou poemas e canções da tradição oral de alguns dos dezoito povos (cada qual com a sua língua, os seus rituais, a sua gastronomia, a sua literatura oral, a sua música, as suas danças e a sua identidade social e humana) que formam o riquíssimo e vasto mosaico étnico, linguístico e cultural de Angola. As recolhas da literatura da tradição oral, em Angola, começaram a ser feitas e transpostas para a língua portuguesa, a partir de meados do século XIX, por alguns naturais da terra, mas, sobretudo, por missionários, quer católicos, quer protestantes. E, já no século XX, também por funcionários administrativos do próprio regime colonial português, com o propósito de mais facilmente subjugar os angolanos ao colonialismo.

Angola foi colônia portuguesa até 11 de novembro de 1975, data da sua independência nacional, tendo sido o Brasil o primeiro país no mundo a reconhecer a então República Popular de Angola como novo Estado soberano.

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Por essa razão, muitas das traduções para o português dessas recolhas da literatura da tradição oral eram forçadas e desvirtuavam ou traíam os originais, de maneira a se tornar epopeias do colonizador, e não uma forma de resistência e de preservação das suas culturas por parte dos angolanos.

Foi, pois, para devolver à angolanidade, em forma de poema, a verdadeira poesia da sua tradição oral que este livro foi escrito.

Vale acrescentar, para o leitor brasileiro, algumas breves informações sobre os povos ou grupos etnolinguísticos angolanos, aqui representados.

Os Ovimbundu são o povo ou grupo etnolinguístico mais populoso de Angola, cuja língua falada é o umbundu. Vivem no Planalto Central de Angola, nas províncias do Huambo e do Bié, estendendo-se, ainda, para oeste, na província de Benguela e parte da província da Huíla, e, para leste, na província do Moxico.

O povo Kimbundu habita o litoral do centro-norte de Angola, nas províncias de Luanda, Bengo e Kuanza-Sul, e o interior, nas províncias de Kuanza-Norte e Malanje. A sua língua é o kimbundu − língua essa que tantas palavras deu à língua portuguesa que hoje falamos.

O povo Cabinda vive no enclave do mesmo nome, a norte do Rio Zaire, que separa Angola do próprio enclave, e faz fronteira com a República do Congo e a República Democrática do Congo. Os cabindenses são considerados os filósofos da tradição oral em Angola, sendo, ainda, extraordinários escultores em madeira, sobretudo de testos de panelas, cujas esculturas servem de modo de comunicação entre si, como se fossem cartas ou recados. A sua língua, do grupo etnolinguístico kikongo, é o fiote ou oio.

O povo Kikongo habita o norte de Angola, nas províncias do Zaire e do Uíge e em parte da província de Cabinda. A sua língua é o kikongo.

Já o povo Nganguela, subdividido em Ambuela, Nganguela e Luvale, habita uma faixa das províncias do Moxico, do Bié e da Huíla, e a província do Kuando-Kubango, no sudeste do país. As suas línguas são o nganguela, o ambuela e o luvale.

O povo San ou Khoi-San é um grupo nômade que vive entre o sul de Angola (nas províncias de Huíla, Cunene e Kuando-

-Kubango) e o norte da Namíbia. É o povo mais antigo do território que é hoje Angola (onde se teriam fixado há mais de 11 mil anos) e o único que não é de raiz bantu. A sua língua é monossilábica e caracteriza-se por ser falada com cliques, espécie de estalidos produzidos pelos dentes, língua, céu da boca e lábios. Esses cliques apresentam múltiplas sonoridades que equivalem a outros tantos significados e surgem intercalando-se nas próprias palavras, como se delas fossem mais uma sílaba. Vivem da caça com arco e flecha e da colheita de frutos, raízes comestíveis que só eles conhecem e mel silvestre. Moram em pequenos abrigos rudimentares, que constroem com arbustos, ou em grutas e escavações naturais do próprio terreno. São profundos conhecedores da fauna e da flora, que respeitam religiosamente, nunca colhendo ou caçando mais do que necessitam no momento, partilhando tudo entre si. Contudo, não criam animais, porque, dizem, “os animais existem para nos alimentar, e não nós a eles”.

Os Kwanyama, povo guerreiro e um dos últimos a ser subjugados, já no século XX, pelo colonizador português, habitam o sudoeste de Angola, na província do Cunene e em parte da Huíla. É o grupo etnolinguístico angolano com mais criações poéticas de tradição oral. Sendo um povo pastoril por excelência, as suas composições poéticas são celebrações e epopeias sobre o seu gado e a sua vida e ritos pastoris, salientando-se a festa anual do cortejo do boi sagrado. A sua língua é o kwanyama.

A segunda parte deste Rio sem Margem, Da Moeda Estrangeira: Conversão, releva o interesse e a paixão do autor pela poesia do mundo dita primitiva − por certo a mais moderna, a mais viva e imperecível, ou seja: a derradeira guardiã da memória da humanidade e o alicerce para a construção de todo poema capaz de se inscrever por direito próprio nos múltiplos horizontes da Terra. Cabe ainda acrescentar que é apenas depois do pôr do sol, à noite, ao redor das fogueiras comunitárias, que se narram os contos ou se fazem os jogos de adivinhas e provérbios. E o mesmo acontece com a entoação da maioria dos cânticos e das danças.

A razão para que assim aconteça tem a ver com o fato de não prejudicar o labor diário. Os Kimbundu, porém, alegam que, se o contador ou alguém narrar contos ou fizer jogos de adivinhas e provérbios durante o dia, nasce-lhe uma cauda de tal modo grande e pesada que não conseguirá sequer arrastá-la. Já os Ovimbundu têm um provérbio que diz: “Propor adivinhas (ou contos e provérbios) durante o dia faz nascer corninhos nos sovacos da avozinha”.

No final do livro encontrará o leitor um glossário para as palavras de línguas faladas em Angola, que não lhe são familiares. E um elucidário sobre os poemas, com o qual se pretende fornecer alguns dados culturais dos vários povos referenciados ou mesmo dar notícia do processo de escrita utilizado pelo autor, criando assim pistas que possam contribuir para proporcionar uma leitura mais rica e uma fruição estética o mais prazerosa e proveitosa possível. Porque a leitura de um poema deve ser sempre uma festa – uma festa para a imaginação e para a sensibilidade, um ato de enriquecimento do ser humano em sua mais íntima e pessoal valoração intelectual e humana. E nunca o contrário, mesmo quando a leitura de um poema nos dói e nos comove até as lágrimas.

Zetho Cunha Gonçalves

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