Para Lina
sumário Apresentação ........... 9 Abrindo o fole ......... 12 Capítulo 1 / A gaita. E ponto ......... 19 Capítulo 2 / origens ......... 29 Capítulo 3 / “De relho em pé, prontos para a vitória” ......... 43 Capítulo 4 / Neonativismo ......... 49 Capítulo 5 / O primeiro disco ......... 65 Capítulo 6 / Gaudério on the road ......... 79 Capítulo 7 / “Grosso não faz jazz” ......... 97 Capítulo 8 / “Pra ti, guria” ...... 111 Capítulo 9 / Longe demais das capitais ...... 129 Capítulo 10 / Borghetti Blues ...... 141 Capítulo 11 / Borghetti 2.0 ...... 165 Capítulo 12 / Fandangueando ...... 179 Capítulo 13 / Mundo velho, velho Mundo ...... 195 Capítulo 14 / O Rio Grande em duas pernas ...... 207 Capítulo 15 / Fechando o fole ...... 217 Discografia ...... 225 Referências ...... 239
Apresentação
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enato Borghetti é uma pessoa descomplicada. Autorizo-me a fazer tal afirmação porque convivo com ele (e com sua família) desde o lançamento do primeiro disco, em 1984. Se não fosse assim, em algum momento desses trinta anos ele teria manifestado, mesmo inconscientemente, algum lado obscuro do caráter. Estivemos juntos em incontáveis shows, viagens, festivais, bailes, estúdios de gravação, programas de TV, bares, cervejadas, churrascos, comilanças em sua casa e na casa dos pais. Em 1996, com o insuperável Ayrton “Patineti” dos Anjos, chegamos ao máximo de compartilhar cinco dias e noites comendo comida barata e dormindo no quarto triplo de um hotel da Rua Moufettard, só pra “honrar a pataquada” de gravar uma música em Paris. Uma! E a Valsa do Coroa, homenagem ao patriarca Rodi Pedro Borghetti, ficou linda na combinação das gaitas gaúchas de Renato e Raulito Barboza com a francesa de Daniel Colin. Foi inesquecível, vamos combinar, como diria o Pati. Eu nunca o vi brabo, irritado ou contrafeito, jamais o vi “dar uma de artista” para mostrar-se superior ou resolver alguma pendenga – quem vive no meio sabe que muitos artistas de sucesso adquirem manias e têm apreço pelo poder. Já Borghetti é um dos artistas mais light e boa-paz que conheço, tanto no cotidiano pessoal quando na relação com o público.
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Esse Tal de BORGHETTINHO
Não se mete em encrencas, tendo opiniões próprias até pode discutir levemente, mas evita polêmicas. Prefere colecionar e alimentar amizades. Então, deve ter sido fácil escrever a biografia deste gaúcho sem maiores contrastes, sem arroubos, sem inimigos, um sujeito, pode-se dizer, comum fora do palco. Mas engana-se quem pensar assim. Personalidades descomplicadas como Renato Borghetti, amado por fãs de todas as idades, admirado por artistas de todos os gêneros, respeitado por críticos regionais, nacionais e mundiais, são especialmente difíceis de biografar. Pior ainda se tiverem a fama de tímidas. O biógrafo precisa dedicar-se feito o garimpeiro que espera com paciência a descoberta de uma pepita. E de repente ela vem, e traz a expectativa de outras. Pois uma das tantas coisas que esta biografia de Renato Borghetti revela é que o experiente jornalista Márcio Pinheiro teve paciência de sobra para cercar cada informação obtida nas dezenas de entrevistas. Além de traçar milimetricamente a linha do tempo do homem, artista e pai, traz à tona muitas histórias desconhecidas do público. Conhecedor da história da música brasileira, leitor de biografias, Márcio tem o saudável vício de conectar coisas que parecem separadas. O leitor entenderá que Borghetti não é só um fenômeno gaúcho, pois se foi personagem marcante da revolução provocada pelos festivais nativistas, também teve sua música absorvida por todas as regiões do país e, em especial a partir dos anos 2000, solidificou uma carreira internacional tocando com seu grupo música regional do Sul do Brasil. Tudo o que o leitor gostaria de saber sobre Borghettinho está aqui. Pela primeira vez neste texto escrevo “Borghettinho”. O país inteiro o conhece assim. O diminutivo aproxima, familiariza, justificando o que disse antes sobre a popularidade carinhosa. Pode parecer preciosismo, mas no livro estão Renato Borghetti e Borghettinho – só lendo para perceber as sutis diferenças entre eles. Certo é que não fazem anúncios de bebidas alcoólicas nem participam de campanhas políticas. 10
APRESENTAÇÃO
Do incomum namoro dos pais Rodi e Alda à criação da Escola de Gaiteiros, das constantes viagens aos dias plácidos na fazenda à beira do Guaíba com a família e os amigos, esta biografia torna-se o livro de referência sobre o personagem que sintetiza talvez a maior expressão de sucesso do Rio Grande campeiro – por isso é um embaixador natural do estado. O álbum de estreia entrou para a história da música brasileira como a primeira – e única – gravação instrumental a receber o Disco de Ouro. O livro desfaz mitos reproduzidos pela imprensa como o de que ele é caladão, ou de poucas palavras, apresentando-o como um agradável conversador, cheio de causos para contar. Algumas minúcias só são reveladas graças ao dom de Márcio para colecionar curiosidades. Por exemplo: qual o único legume que não entra na mesa de Borghetti? Ao descobrir, o leitor dará boas risadas, pois a conhecida metáfora ligada ao tal legume é bem própria de seu temperamento... Juarez Fonseca
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Abrindo o fole
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ste livro começou a nascer no final do inverno de 2013. Já havia conversas entre Gustavo Guertler, da editora Belas-Letras, e Marcos Borghetti sobre a ideia de um registro por escrito da longa e exitosa trajetória de Renato Borghetti. Eu entrei com o projeto em movimento. Marcos – pela altura, pela espontaneidade, pelo jeito desbragado – é conhecido por quase todos como Marcão. Foi ele quem me convidou – muito provavelmente por sugestão do Rene Goya – e desde o primeiro momento encontrou em mim um parceiro entusiasmado e confiante no sucesso da empreitada. Não era uma tarefa fácil, mas era – inegavelmente – um desafio sedutor e estimulante. Já conhecia Renato e Marcão. Nos últimos anos, havíamos nos envolvido em projetos comuns (duas séries para televisão e um documentário em DVD). Havia ainda um conhecimento prévio entre o jornalista com passagens por quase todos os órgãos da imprensa gaúcha e um dos maiores símbolos da música feita no Rio Grande do Sul em qualquer estilo, em qualquer época. Nestas mais de duas décadas em que nossas vidas profissionais estiveram relativamente próximas, por dezenas de vezes entrevistei Renato Borghetti. Agora seria diferente. As reportagens serviriam apenas como um indicativo inicial para revelar algo gigantesco. Nesses doze meses, traba-
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lhei em cima da trajetória profissional e pessoal de um homem que ocupa três tempos quase que simultaneamente. O passado de Borghetti é conhecido por todos: o artista precoce que quando ainda era pouco mais do que um adolescente já havia se tornado uma referência na música brasileira. Mais: Borghetti não foi apenas importante na música. Teve ainda papel fundamental numa série de mudanças comportamentais entre jovens urbanos e campeiros do Rio Grande do Sul a partir da década de 1980 – aí incluídos o uso da bombacha, a revitalização do chimarrão e a popularização dos festivais nativistas. O presente continua rico. Borghetti segue em atividade. Compõe bastante, toca mais ainda, grava com frequência, está sempre em contato com nomes consagrados e jovens talentos, e nunca se afastou da estrada, das infinitas turnês que tomam conta de uma das agendas mais movimentadas do showbiz brasileiro. E até o futuro é possível vislumbrar. Borghetti – a partir de um projeto da magnitude e do alcance da Fábrica de Gaiteiros – já inscreveu seu nome na posteridade. Seu legado musical durará por muitos anos, formando gerações de novos gaiteiros e mantendo viva sua música, sua arte. Nesse ano de trabalho, envolvi-me em um dos momentos mais criativos da música feita no Brasil. Tive a oportunidade de (re)ler, (re)ver, (re)ouvir reportagens, LPs, microfilmes, CDs, mp3, vídeos e DVDs. Revirei páginas de jornais velhos, emocionei-me lembrando de shows que já adormeciam em escondidos escaninhos da minha memória e, principalmente, conversei com dezenas de pessoas. Para um profissional da conversa como eu, curioso e sempre com um arsenal de perguntas, não poderia haver prazer maior do que encontrar amigos, parentes, parceiros e admiradores que tanto me ajudaram a desvendar a força pessoal e artística de Renato Borghetti. As entrevistas, as conversas também serviram para derrubar alguns mitos. O primeiro e maior deles, com relação ao meu personagem. Passei anos ouvindo que Renato era um cara tímido, introvertido, de poucas palavras. Esse período de convivência mais in13
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tensa me confirmou algo que eu já vinha intuindo e de que agora tenho certeza: é tudo mentira. Renato é um dos caras mais falantes e engraçados que conheço. Em diálogos ou em conversas em pequenos grupos, ele se solta, gesticula exageradamente, fala um tom acima do seu habitual e desencava um repertório de histórias fantásticas, criativas, divertidas, pitorescas e emocionantes. A Renato, pela confiança, pela cumplicidade e pela amizade, meu eterno agradecimento. Teve ainda Marcão, Rodi e Alda, irmão e pais de Renato. Durante esse período, todos foram incansáveis em me ajudar. Receberam-me no escritório do artista e em suas casas. Reviraram seus arquivos, recuperaram fotos, livros e empoeirados recortes de jornais. Mas, principalmente, colocaram a memória para trabalhar resgatando histórias ocorridas há quase sete décadas. Foram fundamentais para que eu compreendesse as origens familiares e ainda os primeiros passos (na vida e na música) de Renato. A eles, também agradeço de maneira muito especial. Se Renato teve um berço que lhe garantiu essa sólida base, também soube passar o ensinamento adiante. Primeiro, ao lado de Cadica (com quem teve os filhos Emily, Pedro, Nina e adotou Cátia). Depois, com Ingrid, com quem está casado desde 2007 e com quem tem a filha Dora. Tanto Cadica quanto Ingrid foram generosas e detalhistas em seus depoimentos, ajudando-me muito a compreender melhor o homem por trás do músico. Também sou grato aos depoimentos dos filhos, em especial a Emily e Pedro, os dois parceiros de Renato não apenas na vida, mas também nas escolhas artísticas. O imenso mosaico que é Renato Borghetti se completa com os que sempre estiveram ligados a ele através da música. São amigos e parceiros de tantas andanças e tantos sons. Sou muito grato aos depoimentos, entrevistas e conversas com Arthur de Faria, Ayrton dos Anjos (o Patineti), Claudinho Pereira, Daniel Sá, Duca Leindecker, Ernesto Fagun14
ABRINDO O FOLE
des, JC Botezelli (meu querido Tio Pelão, de São Paulo), Hilton Vaccari, Humberto Gessinger, Jorge André Brittes, Luís Augusto Fischer, Marcos Abreu, Neto Fagundes, Pablo Chasseraux, Paulinho Fagundes, Pedrinho Figueiredo, Rafael Berlezi Revi, Vinicius Brum, Vitor Peixoto, Yamandú Costa, Zé Nogueira e Zuza Homem de Mello. Todos vocês, de muitas maneiras, tornaram meu trabalho mais fácil e prazeroso.
Este livro é meu primeiro trabalho autoral de maior fôlego. Nos quase trinta anos em que música e palavra se misturam profissionalmente em minha vida, nunca havia encarado uma tarefa tão grande e complexa. Jornalista desde 1989, com passagens por redações de Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro, costumo brincar (meio a sério) que nesses anos todos apenas não escrevi bula de remédio. Já tive textos publicados em jornais, revistas e sites (muitos deles extintos, espero que não por culpa minha), escrevi para programas de TV e de rádio, fiz textos para materiais publicitários, eventos culturais e roteiros para documentários (todos enfocando temas musicais e tratando de personagens como Ernesto Fagundes e Bebeto Alves, além do já citado Borghetti). Nos últimos cinco anos, à frente da Coordenação do Livro e Literatura da Secretaria da Cultura de Porto Alegre, estive envolvido com todas as etapas que fazem parte da feitura de um livro, sendo responsável pela publicação de mais de duas dezenas de obras. Por compreender este complexo e fascinante sistema, só tenho a agradecer a oportunidade proporcionada por meu editor Gustavo Guertler e pelos irmãos Borghetti, que acreditaram em mim e me apoiaram em todas as etapas deste projeto. O período de produção deste livro foi também um período de perdas. 15
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formato é simples e facilmente reconhecível – duas caixas de madeira com um fole no meio. Já a estrutura é complexa. São centenas de peças dispostas numa intrincada armação que mistura não apenas madeira e papelão (de um tipo especial que não sofra com a umidade do suor) e muitos outros itens: molas de aço, palhetas de alumínio, fios de arame, couro (que deve ser sempre bem macio) e percalina (um tecido de algodão leve e brilhante, muito utilizado em forros e também em encadernações). Pulmão do instrumento, o fole é feito de um papelão grosso, dobrado em gomos (em geral dezesseis, sendo os dois das pontas presos nas caixas e quatorze livres) forrados por tiras de pano ou couro e pregado às caixas com pequenos pinos, semelhantes a pregos. Nas extremidades ficam o teclado (no lado direito) e os baixos (no lado oposto), duas partes compostas por inúmeros componentes que obedecem a uma mecânica que há mais de um século não se modifica. A gaita-ponto tem características únicas e peculiares. É diferente até mesmo de outros instrumentos aparentemente semelhantes, como o bandoneon. Para começar, a didática é distinta. A transmissão do conhecimento se dá quase sempre de maneira oral, não sendo comum o uso de métodos ou de material teórico. Além disso, gaita-ponto não é de fácil aprendizado e exige muitas horas de estudo diário. Tampouco é um instrumento charmoso (como o saxofone, o trompete, o violoncelo ou o violino) ou prático (como o violão e a guitarra). 20
Foto Marcelo Ruschel
SessĂŁo de fotos para o disco GaĂşcho, 1996.
Esse Tal de BORGHETTINHO
Ao contrário do seu primo mais famoso, o acordeon, a gaita-ponto nunca viveu um período de sucesso popular. No Brasil, o acordeon teve seu auge a partir dos anos 1940 e 50. O pernambucano Luiz Gonzaga foi o maior responsável pela boa imagem do instrumento, influenciando discípulos que se mantiveram fiéis ao acordeon – o caso mais exemplar é o de Dominguinhos – e outros que posteriormente enveredariam por novos caminhos, como João Donato, Gilberto Gil, Hermeto Pascoal e Edu Lobo. O sucesso de Luiz Gonzaga foi bem percebido por Mário Mascarenhas. Mineiro de Cataguases, onde nasceu em janeiro de 1929, Mascarenhas tocava acordeon desde os quinze anos. Viveu uma temporada na Itália e depois nos Estados Unidos, aperfeiçoando nos dois países seus estudos na música. De volta ao Brasil, Mascarenhas desenvolveu o projeto de criar métodos de ensino para o instrumento. A ideia deu tão certo que em meados da década de 1950 ele chegou a ter mais de mil alunos, tornando o acordeon popular até mesmo junto à classe média do centro do país. Com a ascensão da Bossa Nova e da Jovem Guarda, o acordeon não conseguiu manter sua popularidade e perdeu muito da força musical. O resultado prático foi a baixa procura e, por consequência, o fechamento de uma grande quantidade de fábricas. A partir de então, também ficariam mais evidentes as diferenças geográficas. No Nordeste brasileiro, a gaita de botão formou poucos seguidores (os mais conhecidos são os irmãos paraibanos Zé Calixto e Luizinho Calixto e o pernambucano Arlindo dos Oito Baixos). Estes artistas ficaram num plano inferior em relação aos que optaram por um modelo mais comum, o acordeon de teclas, semelhante ao popularizado por Luiz Gonzaga. Batizado popularmente de sanfona, o instrumento se tornaria o principal símbolo da música de inspiração regional, incluindo-se aí baião, coco, xote e xaxado. Já no Sul, esse tipo de acordeon também conseguiria grande aceitação, mas teria que dividir o protagonismo com a 22
A GAITA. E PONTO
gaita-ponto, mais afinada a ritmos como o vanera, milonga e chote (com “ch”, diferente do xote com “x” do nordeste brasileiro). Singular até na sonoridade, a gaita-ponto é um dos poucos instrumentos em que o som original jamais foi reproduzido fielmente pelos modernos sintetizadores eletrônicos. Além disso, tem grande resistência e durabilidade: a mesma peça pode acompanhar um artista por toda a vida, claro que com pequenas reposições e alguns cuidados e retoques, principalmente na afinação. O fole, por exemplo, deve ser mantido fechado quando não está em uso, de preferência com uma pequena corrente de couro ou metal unindo uma extremidade à outra. Antes de guardar – ou ainda depois de muitas horas de execução – é aconselhável passarlhe uma flanela, evitando que o suor se acumule, umedeça e danifique a madeira e o aço. Também é preciso levar em consideração as bruscas alterações de temperatura. A elevação faz com que as palhetas fiquem mais macias e, consequentemente, a afinação baixa – com o frio, ocorre o oposto. Além disso, a mistura de breu e cera de abelha, que afixa as palhetas, pode derreter com o calor. A gaita-ponto é múltipla na maneira como pode ser identificada. No Brasil, são muitos os seus nomes: gaita de botão, gaita botoneira, gaita de oito baixos, gaita diatônica, gaita de voz trocada, gaita de duas conversas, gaita de duas hileras, fole de oito baixos, pé-de-bode. No Rio Grande do Sul, ela tem um sinônimo: Renato Borghetti.
Há quase quarenta anos Borghetti e a gaita-ponto estão ligados por uma relação sólida que resiste a viagens e turnês pelos quatro cantos do mundo. O relacionamento começou como brincadeira, quando Renato tinha doze anos e ganhou de presente uma Hering de oito baixos 23
Sessão de fotos para o disco Gaúcho, 1996.
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Foto Marcelo Ruschel
A GAITA. E PONTO
Sessão de fotos para o disco Gaúcho, 1996.
(atualmente em exposição na Fábrica de Gaiteiros, em Barra do Ribeiro). Aquele era o modelo mais aconselhável para principiantes. Não havia qualquer espécie de material de ensino teórico. Renato ia descobrindo o instrumento aos poucos e, em dois anos, isso deixaria de ser brincadeira. Ele aprendia intuitivamente e também pela observação do que era feito por alguns músicos que na época já eram considerados referência: Pedro Raymundo, Tio Bilia, Irmãos Bertussi, Gilberto Monteiro, Albino Manique e o maior deles, o argentino Raulito Barboza. Pelas décadas seguintes, a lista de influências se ampliaria com nomes nacionais – Dominguinhos, 24
Foto Marcelo Ruschel
Esse Tal de BORGHETTINHO
A GAITA. E PONTO
Luiz Gonzaga e Hermeto Pascoal entre os mais destacados – e internacionais – como o espanhol Kepa Junqueira, o italiano Ricardo Tesi e o grupo português Danças Ocultas. Além da dedicação, que obriga o músico a constantes ensaios e estudos, a gaita exige carinho. Quando viaja, Borghetti nunca a despacha. A gaita-ponto é levada próxima ao músico. Ciumento sem ser exagerado, por muitas vezes precisou pedir emprestada a gaita de colegas, como também já cedeu a sua para que outros a usassem. Nessas ocasiões, sem saber se o outro músico é igualmente cuidadoso, ainda hoje há o medo e a incerteza sobre como reencontrará o instrumento. Para evitar imprevistos maiores, o jeito é carregar uma espécie de caixa de primeiros-socorros para qualquer emergência. O equipamento consiste num estojo com remendos de couro: em caso de estrago, o próprio dono é capaz de fazer os reparos imediatos. Isso evita o hábito, mantido até pouco tempo atrás, de viajar sempre com uma gaita reserva. Músico com alma de luthier, Borghetti sempre foi muito curioso com relação às gaitas. Na década de 1980, quando ainda existia a marca Universal, ele constantemente visitava a fábrica em Caxias do Sul para sugerir alterações e adaptações no instrumento. Para um modelo que idealizara, sugeriu a colocação de quatro notas a mais em uma gaita diatônica normal, criando no centro do instrumento uma oitava cromática que não havia normalmente. A ideia surgira durante uma viagem com o mestre argentino Raulito Barboza a Buenos Aires para encomendar uma gaita Anconetanni. Na ocasião, os donos da fábrica colocaram por conta própria as tais quatro notas, só que duas em cada extremidade das hileras (as carreiras de botões do teclado), de tal forma que a distância entre elas dificultava a execução. De volta ao Brasil, Renato sugeriu à Universal que desenvolvesse aquele modelo com os quatro botões no centro, mas em uma terceira hilera. A proposta deu tão certo que Renato usa o padrão até hoje e muitas fábricas adotaram a inovação. 25
Esse Tal de BORGHETTINHO
De curioso, Borghetti se tornaria grife no instrumento e consultor em sua construção. Para transformar ideias em realidade, ele mantém desde o início dos anos 2000 um contrato com a Scandalli, principal fábrica italiana – e talvez do mundo – de gaitas e acordeons. A empresa foi criada na cidade de Ancona, em 1900, como uma pequena oficina especializada em produção e reparo de acordeons. A marca leva o sobrenome de seu fundador, Silvio Scandalli, artesão cujo espírito inventor e o cérebro para os negócios transformariam, em poucos anos, o pequeno empreendimento numa indústria forte, capaz de resistir a duas guerras e se consolidar mundialmente. Atualmente, a gaita de Renato obedece a todas as suas recomendações: palhetas mais resistentes, emprego de aço e madeira em determinadas partes e, principalmente, o fole reforçado para melhor resistir ao contato com o suor. Essa parte é a mais próxima do peito e deve ser tratada quase como se fosse uma extensão do próprio corpo do gaiteiro. Produzida em uma linha de montagem, mas concebida como peça artesanal, trata-se de um objeto com status de raridade. O modelo mais recente, por exemplo, levou dois anos para ficar pronto e tem todo o acabamento em madeira rústica.
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