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Foto: Laurel Martin-Jacobs Foto: Laurel Martin-Jacobs
POR TRÁS DA MAQUIAGEM
GENE SIMMONS Tradução Fernando Scoczynski Filho
Título original: Kiss and Make-Up Copyright © 2001 Gene Simmons Company Todos os direitos reservados Publicado mediante acordo com a Random House Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida para fins comerciais sem a permissão do editor. Você não precisa pedir nenhuma autorização, no entanto, para compartilhar pequenos trechos ou reproduções das páginas nas suas redes sociais, para divulgar a capa, nem para contar para seus amigos como este livro é incrível (e como somos modestos). Este livro é o resultado de um trabalho feito com muito amor, diversão e gente finice pelas seguintes pessoas: Gustavo Guertler (publisher), Marcelo Viegas (edição), Celso Orlandin Jr. (capa, projeto gráfico), Schäffer Editorial (diagramação), Fernando Scoczynski Filho (tradução), Jaqueline Kanashiro (preparação) e Fernanda Simões Lopes (revisão). Foto da capa: Constantine Tofalos / Alamy Stock Photo. Foto da quarta capa: Bob Gruen. Obrigado, amigos. 2021 Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS
Todas as fotos são do acervo pessoal do autor, exceto quando indicado.
Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS
S592
Simmons, Gene, 1949Kiss: por trás da maquiagem / Gene Simmons; tradução: Fernando Scoczynski Filho. - Caxias do Sul, RS : Belas Letras, 2021. 288 p. il. Título original: Kiss and Make-Up ISBN: 978-65-5537-074-4 ISBN: 978-65-5537-073-7 1. Rock norte-americano – Heavy Metal. 2. Kiss (Grupo de Rock). 3. Simmons, Gene, 1949- . I. Título. II. Scoczynski Filho, Fernando (trad.).
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CDU 784.4(73)
Catalogação elaborada por Rose Elga Beber, CRB-10/1369
PARA MINHA MÃE, que me deu a vida e me ensinou a alcançar o céu. PARA SHANNON, NICHOLAS E SOPHIE, que me ensinaram a amar outra pessoa além de mim.
Sumário Abertura 9 Grandes expectativas Israel (1949–1958)
Passeio de foguete
Chegando à América (1958–1963)
Noites loucas
Os anos 1960 e os Beatles (1964–1969)
Juventude em chamas
Meus anos na faculdade (1970–1972)
Deixe-me ir, rock and roll
Tempos difíceis em Nova York (1972–1973)
Nada a perder
O nascimento do KISS (1973–1974)
Grite alto
Na estrada, em ascensão (1974–1975)
Rock and roll a noite toda Alive! e Destroyer (1975–1976)
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Sou uma lenda à noite Love Gun (1976–1977)
Daí ela me beijou
A vida com Cher (1978)
Vida suja
Dynasty e Unmasked (1979–1980)
Só um garoto
O novo integrante conhece os anciões (1980–1982)
Virou um inferno
Lick It Up e meu trabalho como ator (1983–1984)
Prova de fogo
Uma morte na família KISS (1985–1993)
Motivo para viver
Cara a cara com o KISS Army (1993–1995)
Para sempre
Reuniões e despedidas (1996–2001)
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Discografia 280
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Foto: Bob Gruen
Abertura Daqui a algum tempo, após os últimos acordes de “Rock and Roll All Nite” ecoarem pelo palco do Shea Stadium, vou pegar meu baixo e sair pela direita do palco. Após vinte e nove anos gloriosos e tumultuosos, cheios de extremos altos e baixos, a América terá visto os últimos momentos do KISS no palco. A América foi a nossa casa. Esse era o nosso povo. E tocar o último show será, no mínimo, agridoce1. Trinta anos antes, não havia KISS. Havia apenas Gene Simmons, aspirante a músico de rock, morando em Nova York. Dez anos antes disso, não havia Gene Simmons – apenas Gene Klein, um rapaz judeu que morava no Queens com sua mãe solteira. E, dez anos antes disso, não havia nem um Gene Klein – apenas Chaim Witz, um garoto pobre que vivia em Haifa, Israel. Todas essas pessoas, é claro, eram eu, e eu era todas essas pessoas. Nasci em Israel, vi o mundo mudar ao meu redor quando vim à América com minha mãe, e depois comecei a mudar – primeiro meu nome, depois meu rosto. Quando comecei a tocar baixo, foi uma transformação, de certa forma. E, quando subi ao palco, foi a transformação mais profunda de todas. No decorrer do processo, ajudei a guiar o KISS ao ápice do rock and roll: após algum tempo, nosso número de discos de ouro estava logo atrás dos Beatles, e à frente de qualquer outro grupo americano na história. Na história da minha vida, sou o personagem principal. Mas inúmeros personagens coadjuvantes ajudaram a definir minha existência. Primeiro, há a mulher que me deu a vida, minha mãe, que resistiu a horrores indescritíveis nos campos de concentração nazis1 Após o lançamento original deste livro, o KISS continuou fazendo shows. Até o momento do lançamento desta edição, o KISS continua em atividade, com quarenta e oito anos de carreira. (N. do T.)
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tas, e sobreviveu, até prosperou, com uma reserva de energia que eu só consigo imaginar. Em seguida, há meus colegas de banda, minha segunda família – Paul Stanley é como o irmão que eu nunca tive, e Ace Frehley, Peter Criss, Eric Carr, Eric Singer, Bruce Kulick e outros me ajudaram a criar e sustentar o KISS (e, em alguns casos, fizeram o possível para destruir aquilo que Paul e eu havíamos criado e sustentado). E, por último, mas não menos importante – talvez ainda mais importante que os outros –, minha querida e incomparável esposa, Shannon Tweed, e nossos dois filhos, Nicholas e Sophie, dos quais somos os pais mais orgulhosos que você possa imaginar. ✦✦✦
Quando me sentei para escrever a história da minha vida, refleti muito, tendo em vista os livros que eu já tinha lido. Quanto mais pensava sobre isso, mais percebia que a minha história é sobre poder e a busca por poder. Sempre li tudo o que pude, especialmente livros que me ensinam coisas novas: Religião, Filosofia, História, Ciências Sociais, e assim por diante. Há milhares de livros, de A Gênese Africana a Fogo Sobre A Terra, que narram a eterna busca da humanidade pelo poder. No fim, todos os conflitos parecem ser sobre isso – quem tem e quem quer ter poder. Instintivamente, percebi, bem cedo, que poder era o que eu realmente queria. Fama e fortuna são legais, mas é possível ter ambas e não ter poder. Poder é algo que eu queria desde a primeira vez que pisei na América. Tiraram sarro de mim porque eu não falava inglês ou por ser judeu, mas, no fim das contas, era só minha ausência de poder. Alguém, talvez Maquiavel, uma vez disse que é melhor ser temido que amado. Entendo isso. O amor é evasivo. O amor tem suas necessidades. Você tem que doar. Você tem que se preocupar com a felicidade de alguém. O poder é uma ideia mais clara, um conceito mais óbvio. Quero entrar num restaurante e ser servido. Quero que as mulheres me desejem, porém não necessariamente porque as desejo. As mulheres entendem essa ideia perfeitamente. Uma mulher
KISS: Por trás da maquiagem
quer ser o mais atraente o possível, com maquiagem, roupas e perfume, porque ela quer ser desejada por todos os homens, apesar de ela talvez não estar interessada em nenhum deles. Sei que estou falando em termos gerais, mas defendo minhas palavras. Imagino que parte desse meu desejo por poder era para não sofrer com as provocações alheias. Quando cheguei à América, me senti um estranho numa terra estranha. O livro de Robert A. Heinlein me disse muito, como nenhum outro livro havia me dito. Era a minha história. Fui excluído por ser diferente, por não falar inglês bem, porque eu estava sozinho. Então pensei que não precisava de ninguém, não queria ninguém e só podia depender de mim mesmo. Se eu não me esforçasse e conseguisse as coisas por conta própria, ninguém me daria de graça. ✦✦✦
A história do KISS, do Gene Simmons, é uma história de ambição e boa sorte, a realização do sonho impossível do garoto imigrante. Mas é também a história da maior banda de rock do mundo, e isso quer dizer que há muito sexo, drogas e rock and roll. Não posso aceitar crédito algum pelas drogas – sou abstêmio, nunca estive bêbado na minha vida, nem uma vez sequer. Mas e o sexo? Por grande parte da minha vida adulta, não tive namoradas, mas tive muitas garotas. Mais que muitas. Depois de um tempo, eu comecei a guardar fotos Polaroid para me lembrar desses contatos. De certa forma, amei todas elas. Mas, quando acabava, acabava. Sem confusão, sem choro. Sem agonia. Até hoje, fiz cerca de 4.600 contatos. E tenho que dizer: todas foram maravilhosas e melhoraram minha vida de muitas formas. A comida passa a ter um gosto melhor. Fico assobiando e cantarolando. Eu me sinto vivo com isso. De alguma forma, após todas essas loucuras com mulheres, apesar dos números estarrecedores, consegui me tornar um pai dedicado. Se isso soa estranho para você, pense no quão estranho é para mim. Meu pai deixou minha família quando eu era jovem, e cresci
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com a ideia de que nunca teria filhos, em parte porque me lembrava da dor de ser abandonado, em parte porque vivia com medo de repetir os erros do meu pai. Daí conheci uma garota chamada Shannon Tweed. Pisquei e, quando percebi, estava segurando meu filho no hospital, sem vontade de devolvê-lo aos médicos. Como reconcilio o pegador com o pai de família? Da mesma maneira que reconcilio o jovem imigrante tímido com o Demon vestindo couro que sobe no palco para cuspir fogo. Toda personalidade tem contradições, e uma grande personalidade tem grandes contradições. ✦✦✦
Vivi minha vida para mim. Não tenho medo de admitir. Mas eu também vivi para os fãs: para os soldados fiéis do KISS Army, aqueles que sempre estiveram ao nosso lado, nos bons e nos maus momentos, nas mudanças de moda, que enfrentaram trânsito e tempo ruim para nos verem e serem entretidos por nós. Quando me sentei para escrever este livro, fiquei dividido, pensando se deveria falar a verdade sobre a banda: sobre as disputas e brigas internas, os conflitos e distúrbios de personalidade. Fiquei dividido por medo de que a verdade arruinasse a percepção que as pessoas possam ter de seus heróis. O KISS poderia ser sobre qualquer coisa, mas é sobre heróis, sobre mágica, sobre acreditar e dar o seu melhor. Vocês, os fãs, sempre mereceram o melhor de nós. É um dos motivos pelos quais sempre nos apresentamos com a mesma frase nos shows: “Vocês querem os melhores, e vão receber os melhores. A maior banda do mundo, KISS”2. Na saúde e na doença, estivéssemos com vontade ou não, acreditávamos que tínhamos uma obrigação de ir lá, tocar com o coração e dar o nosso melhor. Acredito que, quando as crianças crescem, elas descobrem a verdade sobre os pais. Vocês, que acreditam no KISS, precisam saber a verdade. Sei que muitas das coisas que vocês lerão neste livro serão difíceis de digerir. Sei que integrantes da banda me odiarão mais do 2 “You wanted the best, you got the best. The hottest band in the world, KISS.”
KISS: Por trás da maquiagem
que nunca e dirão que tudo a partir da capa deste livro é uma mentira, apesar da minha memória, apesar dos documentos, apesar das testemunhas que podem comprovar os eventos. De qualquer forma, aqui está a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade, então, Deus me ajude.
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Eu nasci em 25 de agosto de 1949, em um hospital em Haifa, Israel, próximo ao Mediterrâneo. Ao nascer, fui batizado Chaim Witz: Chaim é uma palavra hebraica que significa vida, e Witz era o sobrenome do meu pai. Um ano antes disso, Israel tinha se tornado independente, após cerca de 100 milhões de árabes tentarem evitar que Israel surgisse no mapa mundial. A guerra pela independência de Israel veio logo em seguida a outro conflito, a Segunda Guerra Mundial, com o terrível plano dos nazistas de eliminar os judeus da terra e, posteriormente, do mundo. Os pais da minha mãe eram judeus húngaros, e minha mãe tinha crescido na Hungria durante as décadas de 1920 e 1930. Quando ela
Grandes expectativas:
Minha mãe e eu fazendo pose para a foto. Eu estava com um martelo – por algum motivo, eu amava martelos.
KISS: Por trás da maquiagem
tinha catorze anos, foi enviada aos campos de concentração, onde ela viu a maioria de sua família ser eliminada nas câmaras de gás. Nos campos, ela se tornou a responsável por fazer o cabelo da esposa de um comandante, então ela era protegida de muitos dos horrores que recaíram sobre os outros judeus. Após sobreviver àquela época horrível de guerra, ela foi para Israel. Acho que o instinto de sobrevivência daquela geração era tão forte que, após sair dos campos, eles não conseguiam imaginar fracassar em qualquer outra coisa, então rumaram para aquela nova e estranha terra. Israel era um país novo, apenas um ano mais velho que eu, e sua existência ainda era questionada. Mas eu não estava ciente dessas
Israel 1949~1958
Éramos pobres, mas, como eu estava com frio, minha mãe costurou um casaco para mim, usando como base meu cobertor. Aqui, eu estava comendo um pretzel, aos dois anos de idade.
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coisas. Era uma parte tão comum da minha rotina diária que não conseguia separar aquilo de qualquer outro aspecto da minha experiência. Por exemplo, lembro que meu pai, Yechiel (ou Feri) Witz – que tinha uma aparência física imponente, pelo menos 1,95 m –, chegava nos fins de semana e colocava sua metralhadora na mesa da cozinha. As linhas de frente eram a 80 km dali, e todo mundo, todos os homens e a maioria das mulheres, fazia parte do exército. Não havia dispensa. Se você morava lá, você estava no exército. A arma na mesa é uma das poucas coisas que me lembro do meu pai, porque ele não passava muito tempo conosco. Recordo que ele era um ser grande e poderoso, com uma presença igualmente grande e poderosa. Uma memória vívida se destaca. Uma vez, tinha um rato
Chaim, Flora e Feri Witz.
KISS: Por trás da maquiagem
na casa, que correu pela sala e entrou debaixo do sofá, e lembro-me de o meu pai erguer o sofá com um braço enquanto ele tentava espantar o rato com o outro braço. Eu malmente acreditava naquilo. Um homem levantando um sofá? Era diferente de qualquer coisa que já tinha visto. Parecia impossível. Tive poliomielite quando criança, provavelmente com três anos de idade. Aparentemente, perdi a maioria dos movimentos da cintura para baixo. Os médicos estavam com medo de que piorasse e me encaminharam para o hospital. Lá, fiquei afastado da enfermaria, isolado, e, quando meus pais me visitavam, tinham que se comunicar comigo por uma janela fechada. Por algum motivo, mesmo sendo tão jovem, eu já tinha uma noção do que era certo ou errado, e sabia que era errado ir ao banheiro na sua própria cama. Minha mãe me ensinou a ir ao banheiro bem cedo. Ela me mostrou o vaso sanitário e explicou para que servia. Naquela época, não havia fraldas em Israel, e logo aprendi que a cama era para dormir e o banheiro era para outra coisa. Estava bem claro. No hospital, na enfermaria, eu precisava sair da cama para usar o banheiro. Eu reclamava e chorava, daí reclamava mais. Sabia que precisava ir ao banheiro. Sabia que qualquer outra solução para o problema era a solução errada. Mas a enfermeira não vinha, e, de alguma forma, consegui me pendurar para fora do berço e usar o chão como banheiro. Daí a enfermeira chegou. Ela não estava lá quando eu precisava, mas, assim que apareceu cocô no chão, ela veio e começou a gritar comigo, imaginando por que eu tinha que fazer aquilo justamente fora do berço. E minha mãe entrou lá, gritando com a enfermeira, culpando-a por não estar lá quando era necessário. “O que você esperava que ele fizesse?”, ela perguntou. “Que fizesse cocô na própria cama? Ele sabe que isso é errado.” Aos olhos dela, eu era incapaz de fazer algo errado. Sempre fui solitário, apesar de ter amigos. Passava o tempo sozinho, observando as coisas, organizando o mundo ao meu redor, na minha mente. Por exemplo, era fascinado por besouros. Em Israel, tinha uns besouros enormes, ao estilo do Antigo Testamento. Os besouros na América não são nada em comparação. Os besouros israe-
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litas eram do tamanho de pequenos dinossauros, talvez uns 5 cm. Tinham cores brilhantes, eram lindos. Pareciam joias. E eu amarrava fios em seus pescoços, e os colocava em caixas de fósforo com um pouco de açúcar. Os besouros moravam lá até eu abrir a caixa. Daí eles voavam um pouco, ainda amarrados ao meu fio. Conforme eu crescia, me tornava menos solitário. Eu me interessava mais em me exibir para as outras crianças e receber atenção. Então, deixei de ser o tipo de criança que viraria um falcoeiro de besouros, deixando-os voar por aí, presos a uma coleira de fio, para ser o tipo de criança que colocaria um besouro na boca e o deixaria andar ali um pouco. As outras crianças se impressionavam com isso. Elas achavam que era nojento e corajoso. Mas, o mais importante, elas não conseguiam parar de olhar para aquilo. Apesar de ter nascido em Haifa, minha família morava em um lugar próximo, uma pequena vila chamada Tirat Hacarmel, cujo nome foi inspirado no Monte Carmelo bíblico. E lembro que, quando era criança, eu subia naquela montanha, que parece mais uma colina, como as colinas do sul da Califórnia. Lembro-me de subir aquela colina e pegar frutos de cacto, daí descer e vender os frutos na garagem de ônibus por meia pruta, que é basicamente meio centavo de dólar. (Frutas de cacto são doces e suculentas por dentro, mas têm espinhos no exterior. O nome em hebraico delas é sabra, palavra que usam para descrever israelitas, porque eles também são espinhentos por fora e doces por dentro.) Viver em Israel, entre tantos sabras, era estranho, especialmente na escola, porque as escolas israelitas ensinavam uma mistura peculiar de história, religião e política. Imagine só: na aula, aprendíamos sobre um livro antigo chamado Bíblia, e nos diziam que os eventos descritos nesse livro – eventos incríveis mesmo – tinham acontecido, de fato, no país em que vivíamos. Era uma ideia difícil de engolir e entender. Porque temos aqui um livro inteiro falando sobre a criação da vida, e Abraão, Isaac e Jacó, e o dilúvio e o Êxodo. Daí diziam: “Aconteceu aqui. Você mora neste lugar”. O negócio era pesado.
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Ao mesmo tempo, eu não tinha muita consciência como judeu em Israel, porque quase todo mundo era igual a mim nesse aspecto. Claramente, havia árabes andando na rua, e alguns cristãos, mas eu não tinha ideia disso. Não sabia de nada além de eu ser israelita. É de se imaginar que minha mãe, após a guerra e os campos de concentração, teria sido consumida pelo que aconteceu com ela, mas não foi assim. Era doloroso demais para ela falar sobre aquilo. Nunca conversava sobre os campos e raramente falava sobre sua infância na Hungria. A única coisa que ela mencionava, de vez em quando, era que o mundo é grande, e há pessoas boas e pessoas ruins. Até hoje, me surpreendo com o autocontrole dela. É prova de que minha mãe é uma pessoa melhor do que eu jamais serei, moralmente, eticamente ou de qualquer outra forma. Ela tinha, e ainda tem, uma confiança perpétua na humanidade. Ela ainda acreditava que o mundo é um bom lugar, e que o bem prevalece sobre o mal na maioria dos casos. Não sei se eu teria o mesmo ponto de vista, caso tivesse passado pelo que ela passou. Quando você é criança, você não sabe que as pessoas têm diferentes raças, etnias e religiões. A única coisa que percebi sobre minha vizinhança é que ela era repleta de idiomas diferentes. Alguns judeus em Israel falavam hebraico. Alguns falavam iídiche, que é uma língua europeia combinando hebraico e alemão. Na minha casa, a língua mais importante era a húngara, porque minha mãe não falava hebraico muito bem. Depois, quando minha mãe começou a
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trabalhar, passamos a ouvir turco e espanhol, porque minha babá era turca e os vizinhos eram espanhóis. Bem jovem, eu já falava hebraico, húngaro, turco e espanhol. Eu não sabia da existência da América ou do resto do mundo. Mas me lembro de a minha mãe me levar para assistir a um filme. Eu devia ter uns quatro anos. Foi minha primeira experiência com imagens que não eram baseadas na realidade. Nunca tinha visto uma televisão, e escutava o rádio só de vez em quando. Fomos ao cinema, mas não tínhamos dinheiro para entrar, então minha mãe me segurou no colo do lado de fora, e assistimos ao filme, que era exibido numa grande tela, sem telhado. Foi incrível. Eu fiquei paralisado. Depois, me lembrei de que era Broken Arrow, com Jimmy Stewart e Jeff Chandler. Mas, na época, eu só via imagens gigantes de cowboys e índios, e um Velho Oeste mítico, onde havia heróis e bandidos. Cowboys foram os primeiros super-heróis para mim, os primeiros personagens que ofuscavam a realidade, que eram mais poderosos do que pessoas comuns. Apesar da importância que isso viria a ter para mim – o conceito de heróis e a mágica do cinema –, o que mais me impressionou foi o som da língua inglesa. Talvez tenha sido a primeira vez que ouvi inglês, e tinha um som esquisito para mim. Era um dos idiomas que, quando crianças em Israel, imitávamos. Aos meus ouvidos, a língua dos americanos tinha seu próprio som, com muitos ipsilones e sons de erres suaves. Esses sons não existiam em hebraico. Esse era meu inglês falso, e soava agradável para mim. ✦✦✦
Desde o princípio, ao que parece, meu pai e minha mãe estavam separados. Um conflito simples estava no centro do casamento ruim dos meus pais. Minha mãe, Flora, era maravilhosa quando jovem. Ela tinha uma aparência de atriz de cinema, clássica, como Ava Gardner. Na vila europeia de onde eles vieram – Jand, Hungria –, ela era desejada, porém não tão desejada quanto meu pai. Ele era valorizado por ser o mais alto da vila, provavelmente com 1,95 m ou 2 m, mas
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me lembro de ele ser ainda maior. Na minha memória, ele tinha mais de 2 m, um gigante. Apesar de seu nome ser Yechiel em hebraico, ele era chamado de Feri, em húngaro. Quando eles se conheceram e se casaram, eles eram jovens, com vinte e poucos anos, e, logo nos primeiros anos de casamento, minha mãe percebeu que meu pai não seria o tipo de provedor de que ela precisava. Por algum motivo, ele nunca conseguia dar conta das coisas. Ele não conseguia gerenciar um negócio. Ele não era pragmático; era um sonhador. Para um carpinteiro, ser um sonhador era basicamente o mesmo que estar desempregado. Ele fazia móveis que amava, mas de que ninguém mais gostava, e ele se surpreendia ao descobrir que ninguém queria comprá-los. Mas ele se importava mais com fazer o que queria fazer. E lembro que ele talhou um patinete para mim com suas próprias mãos. Não um patinete elétrico, mas um daqueles de empurrar, com as rodinhas e a plataforma. Ele o fez para o meu aniversário. Era impressionante ver o que ele conseguia fazer, e tenho certeza de que minha mãe ficava feliz ao vê-lo ser criativo. Mas, após um tempo, as necessidades práticas também precisam ser consideradas: como ganhar dinheiro? Ele não sabia como, ela continuava perguntando, e eles brigavam o tempo todo. Mesmo se estivéssemos vivendo em um país seguro, com uma classe média segura, eles provavelmente ainda teriam lutado, mas estávamos à beira de uma nova fronteira, em um novo país, com novos vizinhos, novos idiomas e novas regras. Então a ansiedade da minha mãe quanto a esses problemas só aumentou. Fosse por causa da pressão dela ou dos problemas de autoestima dele, suas discussões às vezes acabavam em violência física. Não eram surras terríveis e não vinham de um lado só: lembro que, de vez em quando, um empurrava o outro. Teve uma vez – eu devia ter uns quatro anos – que eles estavam discutindo e pulei na perna do meu pai e comecei a morder, perto do joelho. Nem lembro se era uma briga séria, mas eu queria proteger minha mãe. As coisas não estavam melhorando. Meu pai saiu de Haifa e foi para Tel Aviv, para procurar trabalho e tirar uma folga da minha mãe.
KISS: Por trás da maquiagem
Quando ele partiu, minha mãe começou a trabalhar numa cafeteria chamada Café Nitza. Nunca me esquecerei disso, porque na placa do lugar tinha uma figura tipo Mama Beulah, uma negra, grande e feliz, tomando café. Até aquele ponto, acho que nunca tinha visto um rosto negro. Ela era tão grande e feliz, aquele rosto na placa. Eu tenho uma lembrança de visitar minha mãe lá, tomar meu primeiro café e comer bolo de semente de papoula. Lembro-me do efeito da cafeína, de achar que iria desmaiar. Eu mal podia acreditar no que estava acontecendo comigo. Tudo começou a se mexer numa velocidade diferente; na minha mente, parecia que estava arrastando a fala.
Eu via meu pai como um exemplo – ele era tudo o que eu admirava.
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Minha mãe gostava de trabalhar. Isso aumentava a autoestima dela, e ela tinha disciplina, trabalhava duro. Mas, ainda assim, ela queria fazer o seu casamento dar certo. Um dia, ela me disse que íamos visitar meu pai. Então viajamos até Tel Aviv e procuramos por ele, em vão, por um tempo. Ele não estava onde era para estar. Ele não estava em nenhum dos lugares que minha mãe esperava encontrá-lo. Então fomos ao cinema. Não sei se minha mãe suspeitava que ele estaria lá ou se ela só queria relaxar um pouco. Mas, no lobby, eu vi meu pai brevemente. Ele estava no topo da escadaria, com uma mulher loira. Virei para minha mãe e disse: “O pai está lá com uma mulher loira”. Na época, não tinha ideia do que era ciúme. Isso nem passou pela minha cabeça. Essa procura por meu pai parecia um jogo: e ganhei, porque o encontrei na escadaria com uma mulher loira. Minha mãe pensava de forma diferente. Fomos até o apartamento dele, e, de alguma forma, ela conseguiu uma chave. Entramos, ela revistou os bolsos dele e encontrou camisinhas. Voltamos para Haifa, seguimos com nossas vidas, e essa foi a última vez que meu pai teve algum papel nelas. Ele não apareceu de novo. Não tenho ideia se minha mãe tentou contatá-lo em privado, e até hoje ela não fala sobre isso. Para mim, como criança, aquele foi o fim da história. A última imagem que tive do meu pai foi dele no topo da escadaria, com uma mulher. Depois disso, ficamos somente minha mãe e eu, e ela se dedicou a me criar. Ela teve um encontro ou outro com uns caras, e ela sempre tentava explicar, da melhor maneira possível, o que estava ocorrendo. Eu não reagia muito bem, provavelmente porque imaginava que perderia o afeto dela para outra pessoa. Fiquei ciumento e levantei a guarda, e avisei-a de que ninguém mais poderia ficar entre nós. De alguma maneira funcionou, porque minha mãe ficou solteira até eu completar dezoito ou dezenove anos. Logo após meus pais se separarem de vez, minha mãe e eu nos mudamos de Tirat Hacarmel para Vade Jamal, outro vilarejo na área de Haifa. À época, eu tinha cinco ou seis anos, e comecei a entender em que país vivia. Primeiro, era um país pobre, que estava encon-
KISS: Por trás da maquiagem
trando o seu rumo. Israel tinha um sistema de vale-refeição e dava para comer carne uma vez por semana. Não dava para comprar nem leite. Tinha que ter o vale. Não podíamos ter certos luxos: nunca via papel higiênico ou lenços. Nós nos limpávamos com panos. Depois, os panos eram lavados. Ninguém sabia o que era um chuveiro. Eu tomava banho em uma banheira de metal, e minha mãe aquecia a água no fogão, para colocar na banheira, panela a panela, até ficar cheia. Apesar disso, eu não tinha ideia do que era alguém rico ou pobre. Havia buracos de bala nas paredes do apartamento onde morávamos, porque, três anos antes, os árabes e os judeus lutavam nas ruas, durante a Guerra da Independência. Mas eu não reparava nos buracos de bala. Era só um prédio, para mim. Lembro-me de um incidente: de vez em quando, minha mãe economizava dinheiro para fazer uma babka, que é uma espécie de bolo. Quando ela fazia a cobertura, me deixava passar o dedo na panela e sentir o gosto. Lembro-me de ficar horrorizado, porque tinha um buraco no meio da panela. Eu ficava com vergonha de falar algo para minha mãe, porque achava que ela sentiria vergonha também. Quando finalmente toquei no assunto, ela deu risada, porque a forma de metal que é usada para fazer babka realmente tem um buraco no meio. Achava que era uma panela estragada, um sinal da nossa pobreza. ✦✦✦
Fui o único filho da minha mãe. Não houve outras crianças nem outro marido. Consequentemente, ela me protegeu muito. Éramos um time, e ela estava determinada a me dar uma boa educação e garantir que outras pessoas me tratassem com respeito. Algumas das memórias mais vívidas que tenho são da minha mãe me defendendo, o que ela fazia com paixão. Acho que era o jeito de ela anunciar ao mundo que me valorizava e esperava que os outros fizessem a mesma coisa. Minha mãe tinha umas botas enormes, que subiam até a coxa, tipo botas de encanador – diferentes das botas estilosas que os americanos
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conhecem. Eram desengonçadas, e me lembro de observar aquelas botas andando pelo chão, enquanto eu andava logo atrás dela. Um dia, andando atrás daquelas botas, vi um garoto da vizinhança que tinha o mau hábito de jogar pedras. Ou, mais precisamente, ele tinha o mau hábito de jogar pedras em mim. Eu estava cuidando da minha vida, e, de repente, uma pedra atingiu minha cabeça. Minha mãe correu – eu nunca tinha visto ela se mexer tão rápido – e foi atrás do menino. Pegou ele pela mão, o levantou do chão e bateu nele com tanta força, que ele chacoalhou como um saco de batatas. O garoto chorava, mas ela não conseguia parar de bater nele. Era tapa atrás de tapa. Daí ela pegou minha mão, na frente dos pais dele, como se ela dissesse: “É isso aí, vai fazer o quê?”. Não houve consequências. Fomos embora. Em outra ocasião, a proteção da minha mãe nos levou à delegacia. Isso foi algum tempo depois, quando eu já estava estudando em Vade Jamal, depois que já tinha me estabelecido como criança exibida: o garoto que sempre tinha que ir mais longe, mais alto, mais rápido. Tinha uma figueira no terreno ao lado da escola. A árvore estava plantada no quintal da vizinha, mas os galhos alcançavam a escola. As crianças adoravam subir naquela parte da árvore e passar para o quintal da vizinha. Quando a mulher aparecia, todo mundo saía correndo. Geralmente, eu era o último a descer, porque ficava nos galhos mais altos. Teve uma vez que eu demorei demais para descer, e a mulher me pegou. Ela estava com um caule de bananeira na mão e começou a me bater com aquilo. Não consigo lembrar se ela me machucou ou não, mas me assustou, e me deixou sem fôlego. Meus amigos me levaram para casa depois da escola e, na minha frente, contaram à minha mãe sobre a surra. Imediatamente, fomos até a rua. Segui minha mãe e suas botas até a casa da mulher. Chegamos lá, e minha mãe bateu na porta até a mulher sair. Lembro-me de me assustar com seu tamanho. Ela era grande, maior que minha mãe, e tinha uma aparência hostil. Parecia ter tido uma vida difícil. Minha mãe só fez duas perguntas. A primeira: “Você bateu no meu filho?”, à qual ela respondeu: “Sim, ele subiu na minha árvore, e qualquer pessoa que faz isso está tentando
KISS: Por trás da maquiagem
roubar meus figos, e vou bater em qualquer um que eu veja fazendo isso”. A segunda: “Com o que você bateu nele?”. Minha mãe estava com uma voz calma, como se apenas quisesse informações. A mulher respondeu: “Vou te mostrar com o que bati nele”. Ela trouxe o caule de bananeira. Minha mãe arrancou o caule de sua mão e começou a bater na cabeça da mulher com ele. A princípio, ela golpeava com uma mão; depois, ela usou as duas mãos juntas, como se estivesse jogando baseball, acertando a cabeça da mulher, com força, do mesmo jeito que se usa uma marreta. A mulher estava sendo enfiada no chão. As pernas dela cederam e ela se apoiou com a bunda na porta, mas minha mãe continuava a bater na cabeça dela. Quando ela terminou a surra, fiquei impressionado, porque nunca tinha visto sangue literalmente jorrar da cabeça de alguém, como um sprinkler. Estava espirrando sangue para todo lado. Era quase cômico. A mulher estava coberta de sangue, e minha mãe também. Era difícil de acreditar. Parecia até um filme de terror vagabundo. Como era uma cidade pequena, a polícia chegou rápido. Tinha uma delegacia perto da escola. Os policiais nos levaram a pé até a delegacia, a duas quadras dali. Eles não tinham viaturas. O sargento atrás da escrivaninha ostentava um bigode enorme; não dava para ver sua boca. “Você...” ele começou a falar para minha mãe e, antes que terminasse, ela respondeu: “Sim, bati na cabeça dela”. O
Meu pai, aos quarenta e quatro anos de idade.
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Gene Simmons
sargento perguntou por quê, e ela contou a história e explicou seus motivos: não importava se o filho dela estava certo ou errado, pois ninguém podia encostar um dedo nele. Em seguida, ela se empolgou ao relatar os eventos, devido a toda a emoção do momento, e deve ter se sentido desafiadora, pois começou a gritar com o sargento, e disse a ele: “E, se você olhar pro meu filho do jeito errado, abro a sua cabeça também”. O sargento repetiu essas palavras com uma cara de quem não estava acreditando, e os outros policiais começaram a rir. Daí nos deixaram ir embora. ✦✦✦
Quando me lembro de Israel, percebo que, em geral, minhas memórias são sobre minha mãe, ou roupas, ou comida – as coisas básicas. Saí de lá quando ainda era criança, então minha personalidade ainda não estava formada. Mas, de vez em quando, alguma memória daquele tempo ainda me surpreende com sua força e explica algo sobre mim. Por muitos anos, por exemplo, eu não suportava ver aranhas. Vagamente me lembrava de algum incidente da minha infância, mas não tinha os detalhes. Até que a memória voltou: certa manhã, minha mãe estava se vestindo para ir ao trabalho, e eu estava me arrumando para ir à escola, e ela colocou meu chapéu na minha cabeça. Ele não serviu direito – tinha um calo nele. Ela tirou o chapéu, dizendo que meu cabelo deveria estar desarrumado. Enquanto ela falava, a maior aranha que eu já vi na vida saiu do chapéu e fugiu. Gritei, e por anos eu achei que aranhas estavam esperando para me pegar. Criei o hábito de olhar em roupas, chapéus e bolsos, para verificar se não tinha nada rastejando dentro. Tive uma história parecida com galinhas. Na frente da nossa casa, vivia uma família marroquina, que sempre me tratava como se eu fosse filho deles. Uma das filhas da família se chamava Jonet. Ela era um pouco mais velha que eu – ela tinha uns doze, enquanto eu tinha cinco ou seis. Ela sempre me dava sanduíches enormes de pepino e manteiga. Era assim que fazíamos na época: pão, algum
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vegetal e um monte de manteiga, e isso era o sanduíche. Era muito bom. Eu sempre gostava de visitar aquela casa. Essa família tinha um frango, com plumagem vermelha, e eu sempre tirava migalhas do meu bolso para dar a ele. Assim que eu entrava, o frango começava a fazer barulhos. Era como se ele achasse que estava na hora de dar comida no zoológico. Teve uma vez que fui à casa da Jonet, esperando ganhar um sanduíche. Mas ela disse que precisava sair, levando o frango por uma coleira. O frango se debatia, não queria ir. Ela tentou forçá-lo a ir, mas ele resistia. Então eu disse: “Deixe-me pegar o frango no colo, ele gosta de mim”. Fui pegar o frango, mas ela avisou: “Não faça isso, ele vai bicar seus olhos”. Ignorei o conselho e peguei aquele frango enorme no colo, e ele se acalmou nos meus braços como um bebê recém-nascido. E saímos de lá. Eu não sabia aonde estávamos indo, mas tive a coragem de carregá-lo. Após algum tempo, comecei a sentir o peso do frango. Devia pesar mais que dois quilos. Perguntei a Jonet quanto faltava, e ela disse: “É bem perto, virando a esquina”. Assim que viramos a esquina, apareceu um homem grande vestindo um avental e tirou o frango dos meus braços. Ele segurou o animal pelo pescoço e o quebrou. Em seguida, pegou uma faca e cortou a cabeça do bicho. Vi o corpo do frango correr enquanto sua cabeça ainda estava na mão do homem. Foi a coisa mais horrível que já vi. Por causa dessa memória, eu era incapaz de comer frango, de qualquer maneira que fosse. Especialmente se a cabeça ainda estivesse conectada, com as asas e tudo. Dá para imaginar que esse trauma passaria, mas, até os meus trinta e poucos anos, se eu comesse frango, teria que ser em qualquer formato que não lembrasse um de verdade. Apesar de tudo isso, me diverti em Israel. Minhas necessidades eram simples, porque precisavam ser. Desde que eu tivesse pão com geleia, estava feliz. Até hoje tenho nojo de comidas chiques, como massas francesas e cenouras baby. Me dê uma fatia de bolo e já estou no céu.
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