O último rei do rock

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Dedicado a Ana. Um especial agradecimento a Rogério Hetmanek que, em uma conversa, abriu a janela.


© Copyright by Carlos Maltz, 2015 Editor Gustavo Guertler Coordenação editorial Fernanda Fedrizzi Revisão Mônica Ballejo Canto Capa e projeto gráfico Celso Orlandin Jr. Texto da orelha Isabela Abes Casaca Ilustrações dos CDs Victor el escama

Esta é uma obra de ficção sem compromisso com a realidade.

Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr. Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS

M261u

Maltz, Carlos. O último rei do rock / Carlos Maltz. Caxias do Sul, RS: Belas-Letras, 2015. 376 p. ISBN 978-85-8174-226-7 1. Romance brasileiro I. Título.

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CDU: 821.134.3(81)-31

Catalogação elaborada pela Bibliotecária Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz CRB 10/904

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

IMPRESSO NO BRASIL

[2015] Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA BELAS-LETRAS LTDA. Rua Coronel Camisão, 167 Cep: 95020-420 – Caxias do Sul – RS Fone: (54) 3025.3888 – www.belasletras.com.br


Pois quando é que nós, seres civilizados, nos tornamos verdadeiramente sérios? Quando conhecemos o inferno de cabo a rabo. Sem isso, o hedonismo e a frivolidade disseminarão o inferno por todos os nossos dias. Saul Bellow


1. 11h11min 9 2. Orgasmo transatlântico 13 3. Ela não era exatamente uma Phd em sorrisos 21 4. O último dos homofóbicos 31 5. Um mágico-de-oz-pós-moderno 41 6. Roberto Tálamo (meu cérbero me modreu) 47 7. O diabo ouve Fink Ployd? 71 8. Gente pobre e crianças ainda usavam olhos que não eram azuis 87 9. Será que esses caras tavam comprando seus sorrisos no mesmo fornecedor? 97 10. Between heaven and hell 113 11. Instant karma gonna get you 117 12. A mesma cara de idiota que eu sempre tive 127 13. Diacetilmorfina hidroclorida 135 14. Tipo aqueles Adidas do século passado 143 15. Alto paraíso 149 16. A queda d’água 159 17. MYZeneraXion 165 18. A era dos peixes de água rasa 177 19. NTZSCH-01 185 20. A queda da Bastilha 191 21. O carro do Sol 197 22. A queda 201


23. Between a rock and a hard place 211 24. Narcissus Von Faiq 217 25. Pausa pra respirar 239 26. Coice de porco 243 27. Mas nada tanto assim 265 28. Vermelho 279 29. Lá no túnel 289 30. Tinha um cara estranho me olhando 295 31. Cão negro 301 32. Samsara 309 33. Dôug shtiváns 315 34. Tu vai ter que morrer, véio, se tu quiser ficar vivo 319 35. Não dizem que a vida começa aos quarenta? 323 36. Na montanha 327 37. Minha nova velha casca 337 38. A morte e a morte de Néstor Tracjgtemberg 343 39. El Furbo de Oro 349 40. Naquele momento ele não teve a menor dúvida 355 41. Também tinha a minha parte 361 42. Os dias simplesmente passaram e ninguém mais apareceu 365 43. Apenas mais um colossal congestionamento de carros coreanos cinzentos 371



1. 11h11min

O que me levou a vender a minha alma?

Boa. Vai por aí.

Bom, partindo do pressuposto de que existe alguma, não é

mesmo? E naquela época eu tenho quase certeza absoluta de que achava que não. Mas... O que você faria no meu lugar se tivesse quarenta anos, fosse o líder de uma bandinha de mierda, sem futuro nenhum e recebesse uma proposta daquelas? É.

É. E tinha aquela porra da minha obsessão de ser maior do

que “ele”.

Tinha, né?

Tinha. Imagine se você fosse um garoto que como eu tives-

se nascido naquele dia, naquela hora e naquele local. Imagine se você tivesse crescido com aquela história maluca ao seu redor. E se você acreditasse realmente que aquela coincidência absurda era algo maior do que apenas uma coincidência. Imagine. Se você tivesse se tornado adulto e descoberto que tudo aquilo não passava de um delírio megalômano e entrasse em uma desilusão profunda. E imagine então que de repente aparecesse um cara te propondo transformar o seu sonho, que você achava que não passava de um delírio maluco, em realidade. O que você faria no meu lugar?

Compreendo.

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Hoje nada disso me atormenta mais, sabe?

É?

É. Não tenho do que me queixar. Tomo conta do café deca-

dente, que foi a herança que meu pai me deixou. Além dos livros de papel. Já não tenho quase queixas, sabe?

Huuummm. É mesmo?

É. Nem arrependimentos. Nem cabelo. Nem ereções. Já faz

tanto tempo.

Faz, né?

Faz.

É. Faz.

Por que eu escrevi o livro?

Huumm. Booooooa pergunta.

Por causa da Poly. Eu nunca mais a tinha visto desde aqueles

dias. Nem sabia se ela ainda estava viva. Foi ela quem me achou, sabe? Veio da Europa até aqui só pra me ver.

Expressionante!

É. E foi ela quem me sugeriu que talvez essa história maluca

pudesse interessar a alguém. Talvez alguns velhos fãs da banda que ainda quisessem saber como e por que eu desapareci sem deixar rastro. Ela me convenceu, sabe? Eu nem achava que essa história ainda pudesse interessar a alguém.

Modestia sua.

Não, não, nem tenho esse tipo de pretensão mesmo.

Sei.

Sério. Eu. Eu não tava nem ai. Já tava conformado em sumir

do mapa sem deixar nenhum rastro. Tava achando até bom.

E por que diachos essa história ainda interessaria a alguém,

além dos fãs da banda, depois de tanto tempo?

Talvez pelo lance dos implantes, né? Desde aqueles dias, eu

nunca mais tinha ouvido falar de implantes nanoneurais. Tudo bem, eu também ando meio desplugado. E Buenos Aires é um bom lugar

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pra quem quer se refugiar das avalanches tecnológicas. Esse povo daqui não se liga tanto nessas coisas. Olham mais pra trás do que pra frente. Tipo. Aqui é mais fácil de ficar... Assim... Meio que longe do fato de já estar meio que longe demais das capitais. Sabe? Tipo. A gente vive meio que num mundo à parte aqui.

Que a prepotência portenha nos proteja!

Acho que… Sí. Hehehe. Pienso. Sim. Acho que cheguei quase

a acreditar que os caras da

ManGodCorp tinham desistido defi-

nitivamente desses trem de ficar implantando chips nas cabeças das pessoas. Especialmente depois que aquelas mierdas, digo, merdas todas, aconteceram. Mas, quer saber? No fundo eu sabia que eles não iam desistir assim tão fácil. No fundo eu sabia que eles só tavam dando um tempo pra opinião pública esquecer as coisas que aconteceram e voltar à carga depois. Los hijodeputas. Talvez agora que eles estão voltando a falar desse assunto, este livro possa ser útil por aí. Pra alguém que queira saber como tudo aquilo começou e como foi que aquelas coisas aconteceram.

Huuummm. Talvez tenha até algum valor histórico, não é

mesmo?

Histórico? Talvez. Sim. Mesmo. Bueno. Quien sabe en el futu-

ro, quando los implantes cerebrais já forem seguros e a humanidade 2.0 for uma realidade, algum historiador possa ver nesse meu relato pessoal algum valor histórico. Sei lá. Quien sabe. Os primórdios da humanidade trans-humana. Yo que sé. Algo assim. Enfim. Espero que possam perdoar, entre outras coisas, a minha cara de pau em me meter a escrever um livro.

É. Mesmo.

É. Bom, escrever também é modo de dizer, né? Na real eu es-

tou só ditando, e o Cyb-Hmngwy-03 é quem está transformando essa minha fala caótica em texto. O modelo que eu estou usando, 03, permite até que você escolha o estilo do autor que vai clonar. Tipo. Tinha uns quinhentos nomes diferentes no menu. Fiquei tentado a

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escrever como se fosse Dostoievski, ou Bukowski, sei lá, um cara com um nome desses. Ou misturar todos eles, tipo disco do Muse, sabe? Mas depois achei melhor deixar o texto o mais natural possível. Já que vai ser ruim mesmo, que pelo menos seja autêntico. Autenticamente ruim. Talvez seja essa a única possibilidade literária que sobra prum mané como eu.

Sua sinceridade me comove.

Estranho. De certo modo, mesmo que já tenham se passado

tantos anos, eu estou fazendo exatamente aquilo que “ele” disse que eu tinha que fazer. Aquilo que “ele” disse que seria a tal da minha “missão”. Sei lá, pode ser isso também. Veja só: bem ou mal, depois de tanto tempo, eu vou cumprir a tal da minha “missão”, como “ele” disse.

Coincidência.

É. O relógio na Plaza San Martin está marcando agora:

11h11min. Eu tô vendo pela televisão. Coincidência também, né?

É. Outra. É. Outra.

É.

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2. Orgasmo transatlântico

É. E... Houve um tempo em que as mulheres eram virtuosas,

hoje elas são virtuais. É. Hehehe é. Mas... Quem se importa?

Não, não, eu sei. Quer dizer. Eu mesmo... Não. Não me impor-

to. Na verdad. Nem sei, acho que acho até bom.

Huuum. Acha é?

Acho. Sei lá. Acho que acho.

Gosto da sua convicção. Naquele momento... O bauzão véio gemeu na curva e ela

gemeu no meu aurafone novinho. No mesmo instante. Exatamente.

Coincidência.

Coincidência? Coincidência. Também.

É. Parece letra de música sertaneja. Hehehe. Por que eu lembro esse detalhe idiota? Eu tinha quase certeza

de que ela era nova na área, sabe? Naquela época eu conhecia todas as mina de todos os sites de SSS. Ainda eram poucos. Pelo menos comparando com os que têm hoje. Eu saberia se a tivesse visto antes. E aquele nome: Polythene Pam: completamente prego, inolvidable. As mina do SenSoSex tinham nicknames como cyber isso ou aquilo, ou o nome da vagaranha pop do momento, que naquela época devia ser a Jost Eve, a

TaYmmYnnY, ou a Ginger. 13


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Relógio do e-Glass: 04h44min.

Coincidência.

É. Outra. Ela não devia ter mais do que 18 anos. E 58 quilos.

Nem sei se ela tinha 18 anos.

Talvez. 68 quilos.

Porraí. Por que uma garota de 18 anos usaria um nome daque-

les? Será que a mãe dela era fã dos Beatles?

Ou a avó. Hehehe.

Engraçadinho. Adicionei-a. Ela tinha o maior jeito de burgue-

sinha. Sabe essas burguesinhas de mierda, digo merda, que ganham grana transando SenSoSex em seus quartos, enquanto papai e mamãe dormem tranquilamente no quarto ao lado?

Mas que burguesinha gostosa ela era né?

É. Às vezes até aparecia uma pérola daquelas no meio da feira

paraguaia que era o SenSoSex. Era raro, mas quando aparecia, era golaço. Eu sentia algo mágico. Tipo: um sentimento de que existe alguma ordem no universo, algum deus, a tal da “sintonia fina”, entende?

(sinfonia rima?) Ou a esquizofrenia da prima. Hehehehe.

Ou o próprio Deus, se você quiser chamar assim, ou sorte. Era

o mais perto que eu podia chegar de qualquer sentimento “religioso” naquela época.

Religioso?

É. Tipo. Acho que deve ser parecido com o cara acertar na

roleta. Aquela bolinha de aço girando. Os números passando, todos aqueles números. E de repente: PIN! Ela cai exatamente no seu número que estava passando por ali exatamente naquele instante. Por pura coincidência. Entiendes?

Coincidência?

Laputamadrequeteparióhijodeputademiercoles. Coincidência

sim. E não é, porra? É o quê, então?

Sorte.

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o último rei do rock

Sorte? Sorte. Hehehe. Deve ter sido por isso que meu pai fi-

cou viciado naquela mierda, sabe?

Merda?

É. Merda. Não. Não. Sorte. Roleta. Cassino. Esses trem. Ele

mesmo me disse depois que os cassinos viviam apinhados de judeus. Segundo ele, os cassinos eram tipo as sinagogas dos judeus ateus. Adoradores do abstrato deus “acaso”, ou sorte, se você preferir chamar assim. Judeus ateus. Que nem ele. E que nem eu. Veneradores da matemática pura e das impessoais e confiáveis probabilidades estatísticas. E da sorte. Cassinos & Sinagogas. Oia... Podia ser o nome de um disco. Tipo. “Cassinagogas de Bengala”. Hehehe. Cassinagogas? Karaka. Que mierda. No. Quer dizer... Mer... Não que ela fosse exatamente a mais gata sabe? Não. Nem fudendo. Não era mesmo. De verdad, ela era até mei prego. Nem sei por que eu fiquei com tanto tesão nela. Era meio velhusca, sabe? Meio formal, sei lá. Antiga. Careta. Normal. Tipassim.

Será que não foi por isso mesmo?

O fato de ela ser uma garota convencional e inteligente no

meio daquele tecnoaçougue? É. Eu pienso isso também. Às vezes. E ela era a única que não tinha aqueles troços horrorosos pendurados no umbigo, sabe? Sim, eu penso às vezes. Que era por isso mesmo. Era difícil mudar para outra sala depois que você sintonizava a dela, sabe? Simplesmente impossível desgrudar o olho. Ela era meio ímã de olho. Você poderia passar horas só olhando ela ali conversando com os caras.

Conversando?

É. Os manés pagavam de boa pra ficar só conversando com ela.

A caretinha tinha talento pra coisa, né?

Tinha. Pior que tinha mesmo. Que as manha pra ganhar di-

nheiro naquela arapuca era a mina ser real. Tinha que ser gente,

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sabe? Ou pelo menos o mais parecido possível. Tinha que fazer o que as sexobôs não faziam. Pelo menos as sexobôs daquela época. Ela sabia. Ela era a melhor de todas. La mistura perfecta de una ingenuidade suburbana naive com uma sacanagenzinha pop de programa de tevê de sábado à tarde. Tipo, ela conseguiria fazer você perpetrar uma boçalidade do tipo:

– O que uma menininha que nem você está fazendo num pu-

teiro eletrônico como esse, baby?

Hehehe.

És óbvio que ela ia arrebentar. E ela chegou lá mesmo. Em

menos de dois meses a sala dela já tava bombando. Ela tinha um lance, sabe? Uma parada diferente: contraditória. Esse era o lance dela: contradição.

Você chegou a pensar que ela podia ser um clone?

Clone? Não. Não. Hehehe. Clone. Sem chance. No, no, dejate

joder boludo. Definitivamente não existiam clones decentes naquela época. No chance. E. Quer saber? Mesmo os que existem agora são uma porcaria. Pelo menos, em minha modesta opinião. Umas porcarias chinesas. Bonecas infláveis que andam. E aqueles bibelozinhos virtuais: as sexobôs. Não sei como alguém podia sentir tesão numa porcaria daquelas. As sexobôs daquela época. O cara tinha que ser muito retardado. Que as sexobôs daquela época não tinham a menor contradição. Elas eram óbvias. Lineares. Tipo... Como um direitista norte-americano. Ou um esquerdista sul-americano: óbvias... Sabe? Mas ela... Que enigma, meu! Que esfinge! Ela te deixava doido pra decifrá-lá. Os caras marchavam numa grana preta pra poder decifrar o enigma daquela menina caretinha. Que ao mesmo tempo trazia dentro de si uma fêmea tão misteriosa. Que droga que ela era, meu! Que potência! Só uma mulher real podia ter um poder daqueles. De levar um cara a fazer qualquer coisa para se apoderar do mistério que se esconde no mais fundo do seu ser.

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Mais fundo do seu ser? Hehehehe. Decifra-me ou de$-cifro-te.

Hehehe.

É. Isso. Em menos de três minutos de ação eu já sabia que ela

seria a rainha do SenSoSex em bem pouco tempo. E o nome dela, meu. Puta coincidência, carajo, eu tinha escutado o Abbey Road naquela tarde, depois de sei lá quanto tempo. Abbey Road, entiendes?

Achei que você tinha mudado de ideia sobre as sexobôs.

Bão. Es verdad que elas melhoraram muito nos últimos diez

años, mas. No, no. É óbvio que ela não era uma sexobô, é óbvio que tava viva. E tinha muita classe. Apesar de ser convencional e meio formalzinha, ou talvez, por isso mesmo. Ela sabia fazer aquela porra com arte. És óbvio que ela era real. Quem construiria uma sexobô daquelas? As sexobôs daquela época eram tão óbvias.

Óbvias como uma banda punk paulista, um presidente argen-

tino populista, ou uma psicóloga francesa feminista?

Psicóloga feminista? Hehehe. Psicóloga feminista. Hehehe.

Carajo. Realmente. Hoje tu tá phoda. Sim. Ela era real. Eu tinha quase certeza disso. Quase não, eu tinha certeza mesmo. Dava vontade de pular no colo dela, sabe? Ela tinha as manha de te deixar completamente desarmado.

Desmamado?

É. Ou. Desalmado. Sei lá. Ela ficava lá só falando com os caras,

sabe? Os manés pagavam de boa pra ficar só falando com ela. De boa. Ela ficava mostrando as calcinha e dando conselho sentimental pros caras.

Tipo: a puta filosofal.

Puta filosofal? Putasquispariu véi. Boludo hijodeputademier-

coles. Hahaha. Hoje tu tá...

Hehehe.

A sala tava lotada. Mas eu não queria só conversar, não. Eu

tava doido era pra inaugurar o meu auraPhone7 e tava ficando doido por ela. Doido pra usar ela. Sem sentimento nenhum. Tipo: nem

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amor, nem culpa, compaixão, raiva, nada. Sabe? Usá-la como se ela fosse uma sexobô. Que o meu lance naquela época era usar as mina real como se elas fossem sexobôs. I’d loooove to turn you oooooonnnnnnn.

Gente fina o C, né?

É. Pozé. O meu lance era juntar o útil ao agradável, sabe? Tipo.

E no caso dela o prazer era ainda maior por ela ser inteligente e ter... Huuummm... “Alma”?

Huuuummm... É?

É. Paguei a taxa mais alta e furei a fila, que pelos valores habi-

tuais, levaria umas duas horas. Eu não tinha duas horas, tinha que ser imediatamente. A luz verde acendeu nos meus SenSoGlasses. Eu tava sozinho com ela no SenSoSpace. Ela começou a falar, queria ganhar a minha grana sem ter que tirar a roupa, só na balela. Mas eu não ia cair na conversa dela. Apertei meu dedo no SenSoTrigger, ela viu o sinal e acoplou a SenSoPanty. Começamos. Eu não disse nada. Queria muito inaugurar o meu brinquedinho novo. Apertei suavemente o SenSoTrigger. Apertei e penetrei suavemente. Entrei na parada. Aquilo era a coisa mais importante do mundo, eu tava presente. O auraPhone7 era fantástico mesmo. Minha mente e meu corpo estavam todos ali. Não havia nenhum outro pensamento. Nada! Presença total!

Zen bundismo.

Fiadamãe. Eu tava lá, não tenho nenhuma dúvida disso. O gati-

lho era extremamente sensível. Não tinha comparação com o modelo anterior. Os caras da Paradise tinham evoluído cinquenta anos em cinco. Eu tava presente de corpo e alma, ou como queiram chamar isso. Sim, eu tava ali. Ela tava lá. E eu tava tocando nela. Virtualmente penetrando a mina, entende? O aura7 era muito superior ao aura6. Ela gemeu.

– Não, não ainda, baby. Espera.

O equipamento era de uma precisão terrível. O cúmulo da tec-

nologia aplicada ao prazer humano. A gente poderia ter um orgasmo simultâneo com aquela porra. Ela tava sentindo prazer mesmo. Ou

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então era um clone programado pra funcionar em sincronia perfeita com o SenSoTrigger, o que seria praticamente impossível naquela época. Acho.

Acha?

É. Tenho quase certeza. Penetrei um pouco mais. Naquele mo-

mento eu não tinha dúvida nenhuma, não precisava pensar, era como se eu a estivesse realmente tocando. Era até melhor que isso, porque não tinha nenhuma das inconveniências tipo noia de pegar uma DST, essas coisas. Eu a estava tocando mesmo, sem os inconvenientes de tocar em alguém. E nós estávamos a milhares de milhas de distância! Ela gemeu de novo. Agora eu não tinha a menor dúvida: o gemido era real. Ela estava tendo prazer de verdad. Coloquei o dedo todo pra dentro do trigger. Ela gemeu mais forte. Sim, ela era real. Ela era uma pessoa real. Agora eu não tinha mais dúvida nenhuma. Ela conversava, era complexa e estava tendo prazer real. Só podia ser real. Eu tava penetrando virtualmente uma garota real que tava lá do outro lado do mundo. Comparado com isso, o aura6 não era mais do que um cineminha 5D.

Comecei a acariciar o SenSoTrigger num ritmo constante e

intenso. A menina caretinha, que a essa altura estava só de scarpins pretos, tirou os sapatos e ficou completamente nua. Ela era magra e branca. Seus pés não eram pequenos, mas deliciosamente sensuais com as unhas pintadas de um preto brilhante. O contraste entre a brancura da pele e o preto brilhante das unhas, dos cabelos negros e dos pelos pubianos abundantes era lindo e não tinha nada de vulgar. Parecia um sofá chique desses de couro de verdad. Ou uma Gibson Les Paul preta americana de verdad.

Coloquei o outro dedo no trigger e apertei tudo o que dava.

Ela gemeu bem forte. Penetrei-a com mais força, agora com os dois dedos. Pra ver até onde a coisa ia. Ela sabia surfar naquela onda, tava gozando. Eu gozei também. Não existia mais espaço, tempo, nada. Só nós dois, e aquele orgasmo que passava de um “aura” pro outro.

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De um continente pro outro. Uma transa transatlântica. Um orgasmo transatlântico. Transatlântico, véi:

T-R-A-N-S-A-T-L-Â-N-T-I-C-O! Orgasmo transatlântico? Podia ser nome de disco de uma banda cover do Led Zeppelin.

Hehehe. A gente tava gozando juntos. De verdad, gozando

mesmo. E ao mesmo tempo. Eu em algum ponto do Planalto Central da América do Sul e Polythene Pam em alguma cidadezinha chique e decadente da Europa Central. A gente gozou junto. Tenho certeza disso. Tenho certeza!

Hehehe. Eu não disse nada.

Nossas pequenas mortes se uniram em algum lugar do invisi-

ble e vibraram na nuvem de possibilidades. Aqui e agora não existia mais... Nada.

É um poeta.

De repente, um grito estridente me trouxe de volta ao banco

do ônibus. O bauzão véio gemeu na curva de novo. Aqui e agora eu tava na rotatória de Sobradinho. Estávamos chegando a Brasília. Fechei a sala da menininha careta sem me despedir.

(Não dou moral pra piriga).

Hehehe.

Bom. Pelo menos, não dava.

Tirei os auraPhones7 e abri a cortina da janela. O relógio do

ônibus marcava: 05h05min.

Coinci..

Também. O dia amanhecia. A luminosidade absoluta do pla-

nalto esbranqueceu minha cegueira. Eu não sentia mais nada. Zerado. Seria isso que chamam: paz?

Hã?

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3. Ela não era exatamente uma Phd em sorrisos

Levamos umas três horas para vencer os vinte e poucos quilô-

metros que nos separavam do SHLN, o setor dos hotéis da Asa Norte. Engarrafamento moderado para os padrões daqueles dias. Por toda a Via EPIA senadores, deputados e mortais comuns bocejavam em seus carros espantando o sono e a vontade de desistir de tudo por algum romance vagabundo qualquer. Naquela época ainda existiam muitos carros que eram dirigidos por pessoas. Pelo menos num país como o Brasil. Isso foi bem antes da proibição de motoristas humanos na Suécia.

Era raro a gente encontrar algum ônibus antigo que tivesse

um aparelho de ar condicionado decente. E a gente não tinha grana pra alugar um ônibus novo naquele tempo. Os aparelhos antigos já não faziam nem cócegas no calor que andava fazendo. A galera achou melhor ficar no hotel, já que tínhamos uma passagem de som no final da tarde e o show estava marcado pras onze da noite. Aquele era um show importante pra banda. Desde o lançamento de

Robôs

e Remédios, em 2018, a gente não tocava em Brasília. Era tipo uma volta a nossa cidade.

Não exatamente uma volta triunfal.

Pozé. Não exatamente. O máximo que a gente conseguia na-

quela época em Brasília era tocar em alguns bares que tinham entra-

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do na onda do punk revival e abriam espaço pras bandas decadentes que nem nós.

Quando chegamos ao hotel, lá pelas nove, o calor já estava in-

fernal e a Melissa estava diferente. Achei que talvez houvesse a sombra de um sorriso no rosto dela, o que, no caso da Melzinha, era tipo mais raro do que grana parar no meu bolso.

– Preciso falar com você urgente. Só com você. – Ela disse.

Bão. Oi, né maninha? (capricorniana seca da porra).

– Oi, Juan.

Coisa boa ou coisa ruim maninha?

– Tipassim. Coisa excelente véi.

O céu estava tão azul e luminoso que a gente tinha que falar

um com o outro quase que de olhos fechados. Os raios do sol surfavam nas ondas de asfalto que virava maria-mole.

Mel Lee, ou Melissa Li Wu Sun era peça rara. Baixinha, gor-

dinha, cabelos negros, lisinhos. Olhos puxadinhos. Mãe chinesa, pai brasileiro. Sempre de calça jeans rasgada e uma camiseta com um desenho infantil tipo Pato Donald ou a Mafalda. Uniforme de fã dos Ramones. Tênis é óbvio. All Star vermelho clássico básico, cano alto, na imensa maioria das vezes.

Conheci a Mel Lee quando ela tinha treze anos. Foi logo de-

pois da gente ter lançado

Estranhos para o Mundo. Lá

por 1998, 1999. A gente ainda era uma bandinha cover e se chamava

Ladrones. Ela foi a nossa primeira fã. E a mais fiel. A primeira que apareceu. E nunca mais nos deixou. Ela tava junto com a gente em 2000 quando o Ra-Tón e o Daniel-Loló entraram pra banda, quando a gente passou a se chamar

Punk Freud. Mas esse nome também

não durou muito.

Ainda bem, né?

É. Logo a gente passou a ser

Os Paralelepípedos

do Óbvio. A Mel acompanhou a gente na gravação e na tour do Resólver, o nosso disco de estreia com o novo nome. Tava lá em 22


o último rei do rock

2002 quando a gente gravou o

Morfinalmente. E ralou junto

naqueles anos do começo, quando a gente dormia em espeluncas e viajava com os caras dos

Paquitas Pretas e do Estupro

Japonês. Ninguém da banda jamais comeu a nossa irmãzinha. Tenho quase certeza disso, tá?

Eu não disse nada.

Mas a coitada viu e ouviu tanta coisa escrota, com aquela ida-

de, que eu achava que nada mais nessa vida seria capaz de traumatizá-la. Eu nem poderia imaginar o que ainda viria pela frente. Em 2004, a banda gravou

Minotauro Miniatura e a Mel foi com a gente

pra São Paulo. Foi o nosso maior sucesso comercial. Em 2005, a gente era número um no Brasil inteiro. Levamos um tombo feio do nosso empresário. Foi uma mierda. Ele pegou adiantado o cachê de uns seis meses de shows, que na época era muita grana, detonou tudo com cocaína e putaria e sumiu do mapa. A Mel Lee tinha uns vinte anos. Virou nossa empresária, produtora, etc. Segurou a onda legal. E nunca mais deixou de ser nossa empresária, produtora, etc.

Naquele dia infernalmente quente e fatal, quando chegamos

a Brasília, ela tava lá, mais uma vez na frente do hotel toda suada esperando o ônibus da banda. Ela não era exatamente uma PhD em sorrisos. A Mel Lee era meio deprê. Meio bastante. Tomava um monte de remédios. Uns doze. Ou treze, ou quinze. Sei lá. Talvez dez.

Cinco?

Porraí. Variava. Vezporoutra ela ficava lá, quieta. Só na dela.

Eu mesmo não era muito de deprimir, sabe? Achava que uma

pessoa tão deprimente que nem eu não poderia se deprimir. Pelo menos eu achava isso naquela época.

Descemos do latão. Dava pra pegar o calor com a mão. A Mel me

puxou prum canto da recepção do hotel. Ela não queria que os outros caras ouvissem a conversa. Disse esbaforida algo mais ou menos assim:

– Véi tem uma parada aí. Uma parada forte, uma parada muito

forte. 23


carlos maltz

Que parada?

– Um cara ligou.

Que cara?

– Um tal de Belair Bardian.

Karaka! Que nome de um boiola. Nunca ouvi falar. Ligou pra

nós? Pra quê? Ele é coveiro?

– Karaka véi, que merda.

Hehehe. Foi mal maninha. Quero dizer: o cara é do ramo?

– Mais ou menos.

Mais ou menos?

Mais ou menos?

Ela esticou o pescoço e abriu o peito, ficou parecendo pavão,

sei lá, tipo aqueles bicho que aumentam de tamanho pra impressionar o adversário. Falou:

– Ele é... Da... ManGodCorp.

ManGod?

– É. O cara falou que quer entrar em contato com você o mais

rápido possível. Huahuahuahuahuahua. ManGod. Huahuahuahuahua.

– Que é, Juan?

Isso deve ser pegadinha, Mel, tu é prego demais, véi.

– Não é não, Juan. O cara é quente mesmo. Ele é o número um

do departamento artístico da ManGodCorp no Brasil, mesmo. Eu pesquisei.

Tu tá viajando. E o que é que esses caras da ManGod iam

querer com a gente? Esse tipo de gente não perde tempo com manés como nós. Issaí é pegadinha.

– E se for verdade?

Se for verdad? Hehehe. Tipo. Não tem a menor chance de ser

verdad. Maninha. Um trem desses. Eu aposto tudo o que eu tenho que é pegadinha.

– Tudo o que você tem? Você quer dizer as dívidas, né?

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o último rei do rock

Pô véi.

– Não te faz de vítima, Juán. Porra. Caralho. Tipo. Tu fala o que

tu quer pras pessoas, mas não aguenta nada. É só triscá que tu já pula feito sapo no cio.

Sapo no cio? Karaka. Nome legal pruma banda. Hehehe. O

nome do disco podia ser: A CIA foi pro brejo. SAPO NO CIO: A CIA FOI PRO BREJO. Tá bão, maninha, eu vou ficar quieto. Vai saber. Quem sabe esses caras querem comprar o repertório dos Paralell, né? Eles tão comprando tudo. Ouvi dizer que eles andaram procurando os caras do Charlie, do Fresno, do NXZero. A velharada toda. Bão. Os que sobraram, né? Vai ver os chineses se interessaram em comprar o nosso repertório para usar como arma bioquímica ou como ferramenta de tortura e o povo da ManGod resolveu comprar na frente só pra não perdê a parada. – Senhor Juan LMK, eu já pedi um milhão de vezes pro senhor

guardar essa sua autodepredação pro senhor mesmo. Se o senhor não tem respeito pela sua pessoa nem pela sua banda, tenha pelo menos um pouco pelas pessoas que tem amor pelo senhor e por essa banda.

Nem pela sua banda nem pela sua bunda. Hehehe. Tudo bem

maninha. Desculpa, você tem toda razão. “Autodepredação”. É isso mesmo. Eu sou um autodepredador. É isso mesmo o que eu sou. E quer saber de uma coisa? O pior é que eu acho que isso é o que eu tenho de melhor. É o meu lado judaico sabe? Que eu herdei do meu pai. A autoironia. E essa sofisticaçãozinha intelectual de mierda que não me serve pra nada. Autoironia. Acho que é o que eu tenho de melhor. Essa mistura ridícula de sofisticação e tosquice. É isso o que eu tenho de melhor. A única coisa mais individualizada que eu tenho. Minha marca pessoal. Isso e o fato de eu ser o último homofóbico do rock. Hehehe. Por que eu não herdei a inteligência do Einstein, a sabedoria do Bubber? Por que eu não tenho o talento pra escrever do Roth, do Bellow. Nem um “Ar de Dylan” eu fui capaz de herdar. Por que eu não herdei a capacidade que eles têm para ganhar grana? Eu consegui

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carlos maltz

juntar o inútil ao desagradável: sou um judeu pobre. E burro. E inteligente o bastante pra perceber a minha burrice. Na verdad, nem judeu mesmo eu sou, porque minha mãe não é judia. E os judeus...

– Não acredito que eu estou tendo que ouvir essa conversa

ridícula de novo.

Tá bom, maninha, tá bom. Não vou dizer mais nada, tem horas

que é melhor o cara ficar de bico fechado. Né mêss?

– No seu caso, Juan, é quase todo o tempo.

Só não é quando eu estou em cima do palco, né?

– Às vezes brou. Às vezes. E de uns tempos pra cá, cada vez

menos.

Tu é phoda né, maninha? Vamos ver, né? Quem sabe esse tal

de “deus” existe mesmo e resolveu olhar pra nós. Se esses caras da ManGod resolverem comprar o nosso repertório, mesmo que seja pra usar como inseticida, a gente tá feito.

– Bombar na China é grana que tu não consegue nem imagi-

nar, Juan. Quem sabe eles estejam querendo uma banda das antigas. Tipo punk das antigas mesmo. Que nem a gente.

Bombar em Bombain.

Bombar em Bombain? Hehehe. Tipo. Podia ser o nome de um

disco de uma banda tipo cover de eletroworld music.

– Bombain não é na China, Juan. É na India.

Tu não tem jeito mesmo, né minha irmãzinha? Tu não tem jeito

mesmo véi. Tu não desiste. Maninha: o rock’n’roll morreu. Mó-rreu! E eu nem sei como durou tanto tempo. Nós somos mortos vivos. Zumbis. Somos uma múmia de nós mesmos sobrevivendo das migalhas que outros velhos nostálgicos e decadentes nos atiram. Walkin deads. Flogging a dead horse. Não vai acontecer mais nada, maninha. Não vai acontecer mais nada com a gente. A gente vai continuar nessa decadência lenta e pegajosa até o fim. E eu te digo mais uma coisa minha amiguinha, te digo pela milionésima vez: eu prefiro a minha

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o último rei do rock

decadência lenta e pegajosa a virar um bibelô de chinês. Eu não vou entrar nessa, não vou vender a minha alma. E...

– Alma? Alma? Hahaha. E desde quando você tem alma doutor

Juan LMK? Não foi você mesmo que disse que a coisa mais punk que a gente poderia fazer seria trair o punk? Vender a banda pros chineses, virar um mangázinho de roqueiro, tocar naqueles festivais idiotas de rebeldia programada pelo estado para anestesiar aqueles milhões de adolescentes sedentos por qualquer coisa real, ficar milionários e trair todos os nossos ídolos? Não foi você mesmo quem disse isso?A grande trapaça do rock’n’roll? Não foi você mesmo quem disse isso, que o Malcom e o Johny, seja lá onde eles estivessem, iam babar de inveja da gente? Não foi você mesmo quem disse que esse seria o nosso maior ato punk, a nossa maior rebeldia: a rebeldia contra a rebeldia, a rebeldia ao quadrado. A nossa arte maior?

É, eu disse maninha, eu disse. Eu disse? Não, eu não disse.

Não é bem isso ai que eu disse. Acho. Mas mesmo que tenha dito, eu devia estar muito doido quando disse. Não tem nada a ver, véi. Não, eu não vou fazer uma porra dessas. Quero que os chineses se phodam. Bom, isso se os chineses quiserem a gente, né? Nós estamos falando aqui sobre especulações. Tem um milhão de bandas preles chamarem antes da gente. E quer saber? Depois daquelas “voltas” picaretas todas dos Pistols, quem é que ainda acredita em qualquer integridade punk, seja lá o que isso quer dizer em 2020? Maninha, punk rock é só um estilo, uma forma de se vestir e tocar que lembra alguma coisa qualquer que tenha existido de verdad no mundo real algum dia. Como os outros estilos: heavy metal, reggae. São lembranças. Sabores. Tipo aqueles pacotinhos de “molho” que vêm junto com o macarrão chinês. Punk rock. Caralho, a gente podia ser qualquer coisa. Até pagode a gente poderia tocar, se a gente soubesse. Mas a gente só sabe essa porra de punk rock. A gente só sabe fazer pose de punk rock. A gente só fica bem de casaco de couro e calça rasgada, essas porra.

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carlos maltz

– Sabe o que eu acho, senhor Juan LMK? Eu acho que o se-

nhor está é ficando velho. Ficando velho, gordo e covarde. Um velho gordo covarde e acomodado. O senhor está acomodado nessa vidinha de merda que está levando. Um showzinho de merda aqui, outro ali. Um autografozinho pruma filha de um fã aqui, uma fotinho com o neto de outro ali. “Olha que fofinho: O Juan LMK, dos Paralelepípedos”. Ganha uma merrequinha aqui, compra o seu baseadinho synth e fica chapadinho fazendo SenSoSex com aquelas piranhas virtuais. Um velho acabado, sem coragem pra ser o artista que é. O senhor ainda vem falar de alma. Sua alma está chorando, senhor Juan LMK, jogada na lama. Humilhada. Senhor Juan LMK. Sua alma está na lama.

Alma de lama.

Alma de lama? Karaka. Podia ser o nome de um disco. De uma

banda tipo cover dos Beatles. Só que na capa. Tipo... Com a foto de um garotinho tibetano na capa. Saca? Tipo meio cover da capa do Boy do U2 só que o garotinho é tibetano. Tipo... Uma foto distorcida, que nem a da capa do Rubber Soul. Lama. Sacou? Tipo Dalai-Lama. Hehehe. Alma de borracha. Alma de Lama. Sacou, Lama? Tipo... Mistura a lama com o Lama. Hehehe. Joga o Lama na lama. Hehehehe. Sacou?

– Karaka, que merda. Chega Juan. Chega! Vazei! Fui nessa!

Putasquispariu que saco véi. Não aguento mais essa conversa imbecil de drogado de merda.

Foi tudo o que ela conseguiu dizer. E saiu. Subi para o meu

quarto e fiquei deitado na cama. A tentação de fumar uma vela sintética e procurar a menina caretinha no SenSoSex era grande, mas eu estava completamente duro. E meus cartões estavam estourados. O jeito era esperar até a noite para receber o cachê. Fiquei deitado ali na cama olhando pro teto. Estou perdido, sei que estou. Cego para assuntos banais. Problemas do cotidiano, eu já não sei como resolver. Já estou vendo TV como companhia. Que prego, porra. I’m a plastic man with a plastic soul. Essa porra aqui no meu pensamento

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o último rei do rock

agora. Estou fudido, sei que estou. Isso sim. Que lombra, véi! Cago para assuntos banais. Sob um leve desespero que me leva que me leva daqui. Sim, só um leve desespero. Só um leve desespero? Eu vou sair dessa. Sim, vou ganhar uma grana e sair dessa. Só um leve desespero. Lembrei da camiseta dos Ramones que eu tava usando no dia que minha mãe falou pela primeira vez do meu pai. Aquela clássica. Cinza com as letras pretas. Por que a gente lembra esses detalhes idiotas? Eu fiquei chocado pelo fato de ele ser argentino. Fiquei mais chocado pelo fato do meu pai ser argentino do que ele ser judeu. Ou pelo fato de ele ter saído pra comprar cigarro numa manhã de domingo em Nova York e nunca mais ter aparecido. Por que eu lembro esse detalhe idiota? Nessa época, meu pai era um cara inexistente na minha existência. Pessoa que não significava nada pra mim. Pense um feladamãe que sai pra comprar cigarro num dia, deixa a mulher e o filho no apê e não aparece nunca mais. O único pai que eu tive foi o Panka. Eu vou sair dessa. Vou sair sim. Se eu tivesse um pra fumar agora. Tasquispariu véi. Eu precisava fumar um imediatamente. Será que o Loló tinha algum? O Loló sempre tinha. Mas o Loló tava puto comigo, ele falou que não ia me arrumar mais nada, que eu só filava e nunca tinha nada quando ele precisava. O meu lado judeu. Ele dizia. Não sei por que eu ainda estou vivo. Não sei como é que eu ainda estou vivo. Sim, eu só estou vivo por que a cocaína acabou. A grana acabou e a cocaína acabou. Sim, é só por isso que eu ainda estou vivo. A cocaína comeu toda a minha grana. E metade do septo do meu nariz semissemita. A cocaína e a putaria virtual. O filho da puta saiu pra comprar cigarro e nunca mais voltou, pense. Deixou a mulher com o filho recém-nascido, no caso, eu, e nunca mais voltou. Se bem que... Quer saber? De boa? Ficar sabendo que os Ramones não eram irmãos, aos sete anos de idade, me deixou mais chocado que isso. De boa. Estou com quarenta e não sou nada, não sirvo pra nada, não tenho nada. Não tenho mulher, filhos. Só tem os fãs. Os véio que sobraram.

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carlos maltz

O John morreu aos quarenta.

Obrigado por lembrar.

O Fred Mercury aos 45; Jimmy Hendrix com 28; Cobain aos

27, assim como a Janis, a Amy, Jim Morrisson e o Brian Jones. O Rei tinha 42 e o Renato Russo 36. A Cássia Eller tinha 39, o Cazuza 32. Tal qual o John Bonham e o Keith Moon.

Karaka por que eu encho a minha cabeça com essas mierda?

Se eu morrer aqui nesse quarto de hotel depois do show, é capaz de levar alguns dias até alguém sentir a minha falta. É capaz da minha carne e a minha autoironia já estarem podres quando alguém sentir a minha falta. Ou o cheiro. Até que isso não seria mau negócio. Né? Um fim apropriado pra alguém que nem eu. E um fim legal pra uma biografia de roqueiro punk tupiniquim. Será que alguém leria a biografia de um cara como eu? Podia se chamar: Tupinipunk. Hehehe. Tupinipunk véi, que mierda. A Mel Lee, provavelmente. A Mel Lee sentiria a minha falta, ela seria capaz de ler a minha autobiografia. Acho. Se existe algum amor nesse mundo, a Mel Lee é a personificação deste amor. Mesmo me enfiando a porrada, do jeito que ela faz, ou talvez por isso mesmo. A única pessoa que eu não consegui afastar de mim. Os caras da banda não contam, que eles não têm escolha. Mas a Mel Lee... Tem a minha mãe também, que nunca me abandonou. Bom. Mas. A coitada é tão doida. Tão ocupada com a doidice dela. Tenho quarenta e não tenho nada, não sou nada. Sou o “líder” de uma banda decadente de pseudopunk-rock que fez sucesso há quinze anos e agora vive de recolher as migalhas da fama que ficaram caídas ao redor da mesa do banquete. Que mierda.

Virei pro lado e dormi profundamente. Naquela época eu ain-

da conseguia dormir.

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4. O último dos homofóbicos

Não posso dizer que o show que Belair Bardian assistiu na-

quela noite tenha sido ruim. Na verdade, foi bom pacaraio, um dos melhores que a gente fez em muito tempo. Mas isso não iria fazer a menor diferença. Meu destino, ou como queiram chamar essa coisa, já estava traçado.

O “New-Rolla” era um bar SenSoTemático com espaço para

shows ao vivo que tentava evocar a atmosfera dos anos 1980/90. Os anos de ouro do rock de Brasília. Cheio de fotos e relíquias nas paredes imundas: um óculos Ray-Ban anos 70 que foi do Philippe Seabra; umas fotos super antigas dos Paralamas; um chápeu ridículo e uma craviola Giannini de doze cordas que diziam ter sido do Renato Russo na época em que ele era o “trovador solitário”; um baixo Giannini, imitação de Fender, que diziam ter sido da Blitx 64; Uns flyers de uma casa chamada “Radicaos” onde dizia: “satisfação garantida ou seu dinheiro de vodka”. Os banheiros, que eram mistos, tinham as paredes cobertas por autógráfos/pichações dos caras que tinham passado por lá. A galera da geração de ouro dos 80 estava praticamente toda presente. Além dos óbvios, dava pra ver por lá o nome de gente como Paulinho e Danilo dos “Filhos de Mengele”; Pedrão e Sidney do “Frete 83”; Ameba e Feijão dos “Dentes Kentes”; Toninho Maya do “Esmegma 85”; Bebel e Luciana do “Diamante Cor-de-Rosa”; Henrique Rato do “Antitédio 83”; Mila, Bosco e Cascão do “Detrito Federal”; Wagner

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do “Peter Perfeito”; Rogério e Gastão da “Elite Sofisticada”; Pedro Hiena do “Arte no Escuro”; Marcelo Bonfá, no tempo em que ainda era do “Escola de Escândalo”; Rodrigo do “Finis Africae”e outros caras que pra mim eram parte da vida, da minha história. O nome da casa era uma homenagem ao “Teatro Rolla Pedra Etc. e Tal” que funcionou no começo daquela década e que, segundo reza a lenda, foi o palco do primeiro show da Legião. Minha mãe, que também frequentava o lugar naquela época, dizia que foi lá que ela conheceu o “Punkeka”, que foi e é, pro mal e pro bem, uma pessoa bem importante na minha vida e pras coisas que aconteceram depois.

O Punkeka foi, com toda a doidera dele, o único pai que eu

tive. Vivi com o “Panka” dos meus três aos quinze anos de idade, quando ele e minha mãe se separaram definitivamente. Foi por causa dele que eu resolvi ser músico. Foi ele quem me ensinou a amar o rock. De certo modo, o Panka fez comigo o que de melhor os pais podem fazer pelos filhos: ele me transmitiu o seu sonho. E foi quem me deu a minha primeira guitarra: uma Giannini Stratosonic, amarelo-creme com a placa branca, igual a do Johny Ramone.

Em 1995, quando eu e o negão BBC começamos a tocar jun-

tos, foi o Panka quem nos deu a ideia para o primeiro nome da banda depois dos “Ladrones”: “A Zelite Noiada”, que nós achamos genial, apesar de ser meio “Plebe Rude”. Até tinha existido uma banda em Brasília, a “Elite sofisticada”. Mas já tinha acabado. Adotamos o nome sem nenhuma discussão. Eu já não vivia mais com o Panka nessa época, mas ele era meio que o “mentor intelectual” da banda. O Panka nos fazia ensaiar religiosamente. Tipo o pai do Michael Jackson. Acho que ele foi a pessoa que mais curtiu o sucesso dos “Paralelepípedos”. Foi a glória pra ele. Merecida.

O Panka era alguém muito doido. Minha mãe dizia que era por

causa do álcool. Que ele bebia “que nem gente grande”. Mas era uma pessoa muito boa também. Acho que foi a melhor pessoa que eu já conheci. Quando estava sóbrio.

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o último rei do rock

Quando o Panka estava sóbrio, era muito doce. Aceitava tudo

e todos. Nunca o vi discriminar qualquer pessoa que fosse. Ele não julgava ninguém, apenas aceitava as pessoas do jeito que elas eram. A não ser boiola, que boiolice era uma coisa que ele não tolerava. O que era algo bem estranho, já que naquela época quase ninguém tinha mais esse tipo de preconceito. E no ambiente punk rock menos ainda. Mas o Panka era um cara das antiga. Acho que ele foi a única pessoa que eu conheci que ainda tinha preconceito contra a homossexualidade. Era uma contradição dele: era fã dos New York Dolls e era homofóbico. Tipo, acho que tinha a ver com o fato dele ser meio paraíba, sabe? O pai dele era paraíba. O velho tinha vindo pra construção de Brasília e talz. Acho que o lance do Panka com a homofobia tinha a ver com isso: com o pai paraíba dele. Dai que eu tirei a minha ideia de ser o “último dos homofóbicos”, que bem ou mal era a única coisa que me individualizava um pouco no mundo do rock. Eu não tinha nada a ver com isso, entende? Nada contra os caras. Os homossexuais. Eu tinha um monte de amigos gays. Eu explicava a parada pra eles, que era só um lance de marketing. Eu tô nem aí pro que as pessoas fazem ou deixam de fazer, seja na cama ou onde for. Era só uma jogada de marketing mesmo, entende?

Você é um gênio do marketing.

Apesar da homofobia, o Panka era uma pessoa muito boa. Ele

sempre abria mão de si pelos outros. Inclusive pelos amigos gays. Ele sabia separar as coisas: era contra a homossexualidade, mas tinha um monte de amigos gays, entiende? O Panka foi um pai de verdad pra mim. O único que eu tive. Ele fazia tudo o que a minha mãe mandava ele fazer. Sempre. Bom, sempre não, que, como eu já falei, quando ele bebia, ele se transformava, virava uma fera. Ficava agressivo. Dizia que ia matar todo mundo, essas coisas. Às vezes ele só quebrava os móveis. Em mim ele nunca bateu. Às vezes batia na minha mãe. Mas no outro dia se arrependia amargamente. Ajoelhava, pedia perdão e beijava os pés dela. Os dois choravam rios de lágrimas. Acho

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que aquilo era meio que a religião deles. Assim como perder no jogo era a religião do meu pai argentino. Não tinha como ficar com raiva do Panka, sabe? A gente só sentia medo. Minha mãe chorava de dar dó. Como ela sofria. E aguentou o quanto pode. Não queria abandoná-lo. Ela gostava muito dele, apesar da violência, sabe?

Tem mulher que ama amar esse tipo de cara, não tem?

Tem mesmo. A capacidade do “New Rolla” era de umas 250

pessoas em pé. Tava lotado. Tocamos o “Robôs & Remédios” inteiro, e claro, como não podia deixar de ser, os principais “hits” da banda, quase todos do “Minotauro Miniatura”, de 2004, e do “Piromania Precoce”, de 2007. Fizemos covers de “Anarchy in the U.K.” e “Sheena is a punk rocker” também. A gente sempre abria com uma versão que eu fiz pra “Anarchy”, que se chamava “Anarquia na casa da Dinda”. Foi um puta show. No bis a gente fez um inevitable pout pourri de Legião, Capital e Plebe. A parada rolou como há muito tempo não rolava. O BBC resolveu tocar. Ele não cheirou antes do show. Quando ele resolvia tocar era phoda. O negão era maluco de pedra. Ele tinha uma autoridade. Ele nem era tão bom guitarrista assim, mas quando ele resolvia tocar, tinha uma entrega, uma espécie de empatia com as pessoas que botava todo mundo dentro do show. Era uma parada de autoridade mesmo. Uma parada que só os guitarristas negros têm. Acho que as pessoas percebiam o quanto ele era doido. O quanto ele tava cagando pra tudo. Tipo o Jello Biafra, o Joe Strummer. E a banda toda ficava alucinada. Não existia mais nada além do que tava rolando no palco. Começava com o Ra-Tón. Os dois alucinavam juntos e parecia que a gente crescia. Que a gente parava de pensar e ser mierda.

Merda?

É. A gente virava outra coisa, sabe? Uma coisa muito maior,

mais limpa, a gente virava amor. Ondas de amor puro fluíam pra tudo quanto é lado. E todo mundo se permitia ficar naquele transe junto com a gente. E o show virava uma comunhão, uma celebração. Como nos velhos tempos. Isso era os

Paralelepípedos do Óbvio. 34


o último rei do rock

Era isso que a gente tinha. Mesmo no buraco mais sujo e sórdido, quando a coisa acontecia era phoda. Todo mundo cantava junto, todo mundo pogava junto. Ninguém brigava. A onda da gente era de paz. Era roquenrrou mesmo. Energia pura, sem babaquice de ficar fazendo solo, essas coisas. Era punk rock na veia, como nos velhos tempos. A gente não servia pra muita coisa, mas aquela porra de punk rock antigo a gente sabia fazer direito. O BBC era um cara sério no que ele fazia. Sério que nem o Johny Ramone, ele só palhetava pra baixo, sabe? E pendurava a guitarra na altura da cintura. E era magro. Muito magro. O bicho sabia fazer todas aquelas poses de “guitar hero” que um guitarrista que se preze precisa saber fazer. Era uma figura bonita de se ver, o negão BBC. O cara nasceu pra parada, nasceu pra ser um guitar-hero. O negão BBC com a Les Paul branca.

O Daniel Loló tinha aquela cara de baixista alucinado. Ele era

um cara bonito, tinha aquela beleza dos caras que não pertencem muito a esse mundo. Tipo o Sid Vicious mesmo. Ele era parecido com o Sid em quase tudo. A cara, o cabelo, o fato de não tocar porra nenhuma. Foi por isso que a gente nunca pensou em tirar ele da banda. Não tinha como tirar ele da banda. Se a gente tirasse ele da banda ele ia fazer o que da vida? Ele não prestava pra nada. Mas era gente boa, era quem arrumava os bagulho e, mais importante de tudo, era a cara do Sid Vicious.

El señor Ratón-Tón era um típico baterista de rock. Tosco,

rude. Direto na veia que nem um pico de cocaína pura. Daqueles caras capazes de comer uma barata viva pra ganhar uma aposta. Colombiano, naturalizado. E totalmente tarado sexual. Não existia mulher baranga pro Ratón. Ele pegava todas. E olha que naquela época, só rolava umas fã véinha, feinha, das antiga. Não tinha tempo ruim pro Ratón. Ele amava todas elas. E comia todas elas. Ele tinha umas parada “filosófica”. Tipo: “sabe em donde que todos los hombres se igualam? Em la hora de olhar la mierda em lo papel higiênico después de limpiar el culo. Todo mundo olha pro papel higiênico después de

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carlos maltz

uma cagada pra ver se el cu já está limpio”. Coisas assim. Mas era um cara que tinha uma puta energia no palco, isso era o mais importante. Ele também sabia se entregar pra música. E não usava droga nenhuma. Era uma parada dele mesmo. Ele tinha isso dentro dele. Ninguém ficava parado quando a gente tocava de verdad. Ninguém ficava indiferente aos

Paralelepípedos do Óbvio, quando a

gente não tava indiferente a nós mesmos. Será que era isso que o cara da ManGod andava procurando?

Quando voltamos ao camarim, depois do bis, Belair Bardian já

estava lá, elegantemente sentado, conversando com a Mel Lee que parecia uma abelhinha zunindo de ansiedade por fazer qualquer coisa que deixasse o todo poderoso da

ManGodCorp do Brasil mais à

vontade possível. Mas Bardian não precisava que ninguém se esforçasse pra deixá-lo à vontade. Era o tipo de cara que está à vontade no mundo, seja lá onde estiver. O terno cinza de tweed, os sapatos italianos, o chapéu panamá, a gravata cor-de-rosa o cabelo já grisalho, porém cortado da forma mais “up-to-date” possível. Tinha um computador em cada peça do vestuário. Acho que até as cuecas dele transmitiam informação relevante. Tipo a temperatura do seu saco, ou qualquer coisa que o valha. Quantas batidas o coração estava dando naquele instante, a taxa de açúcar no sangue, esses trem indispensáveis para a sobrevivência de um cristão daqueles dias. O sapato, ao que parecia, estava dando as últimas notícias sobre o estilhaçamento do que havia sobrado do Euro. Eita sapatinho bem informado. A Melzinha estava encantada com a quantidade de dados que a roupa estava processando enquanto ele estava ali conosco fisicamente. O cara não perdia nada. Como Deus, ele estava em todos os lugares ao mesmo tempo. O mercado de ações na Ásia, a parada de sucessos na Índia. Programas imperdíveis de culinária albanesa. Parecia que ele é que era o artista ali. Ele era a atração principal. E não tinha como não ser. Lembrava muito o visual do Andy Warhol. Sim, isso mesmo, um Andy Warhol mais gordinho. E cheio de brinquedinhos.

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o último rei do rock

Será que ele tinha algum computador enfiado no...

Hehe. Quando a gente entrou no camarim, não deu tempo de

acreditar ou não que o cara da

ManGodCorp realmente existia

e realmente estava no nosso camarim. Bardian levantou-se e abraçou cada um de nós. Os caras não estavam entendendo nada, mas em poucos minutos parecia que a gente já trabalhava pra ele. Abraçou-nos demoradamente como velhos amigos que se reencontram depois de um longo tempo de separação. Elogiou a performance da banda. Falou pra cada um exatamente aquilo que cada um estava querendo ouvir. Os caras estavam extasiados. Bardian mostrou índices, tabelas, melhores momentos do show em câmera lenta no visor do seu relógio de pulso, que ele comandava falando com um chip que estava implantado na ponta do seu dedo. Enfim. Um magicode-óz-pós-moderno. Cheio de... Um monte de tralha. E as manha de seduzir todo mundo. Quando chegou a minha vez, ficou me olhando diretamente nos olhos durante alguns segundos que pareceram séculos. Disse alguma coisa boçal como: eu sabia, eu sabia. E me beijou, como um argentino.

A Mel sacou que eu não ia resistir. Que eu ia proferir uma

mierda grande e providencialmente disse algo do tipo:

– Vamos beber alguma coisa?

O Bardian imediatamente tirou uma garrafinha com um veado

no rótulo, do bolso interno do terno.

Esse é o uísque mais velho e caro do mundo. Ele disse.

Essa garrafinha me custou a bagatela de 750 mil reais. De hoje

em diante, vocês só vão beber daquilo que estiver à altura do talento de vocês!

Setecentos e cinquenta paus? O Loló ficou abestalhado.

– Karaka! Um Dalmore Gold Edition! É de verdade?

Hehehe, o Bardian riu. É claro que é de verdad.

– Não acredito cara, um Dalmore Gold de verdade. Um Dalmo-

re Gold! A gente vai beber o uísque mais caro do mundo. O Loló falou.

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carlos maltz

– Sim, senhor Daniel Loló, chegou a hora do mundo reconhe-

cer o talento de vocês e de vocês receberem à altura por isso. E de viverem de acordo com esse talento também.

A tampa da garrafinha do tal uísque tinha um visorzinho que fi-

cava emitindo luz e mudando de cor: azul, amarelo, violeta. Só aquela frescura inútil já devia ter custado uma baba.

Eu não estava conseguindo dizer nada. “Senhor Daniel Loló”.

Que mierda.

Merda?

É, porra. Os caras da banda estavam nocauteados. O uísque

até que era bom. Mas 750 mil? Por uma garrafa? Dava pra comprar um Mini Cooper. Desses que já vem com aura7 de fábrica. O que aquele cara estava querendo com uns manés como nós? Por que ele gastaria 750 mil pra impressionar uns caras como a gente? 750 mil, cara. Tipo. Com 750 mil eu pagava todas as minhas dívidas. E ainda comprava SynCanna pra uns seis meses.

Seis anos?

Sei lá. Pode ser. Nunca manjei muito desses assunto de finan-

ças. Pobre do Loló. Não deu nem pro primeiro round. Ele era tipo lixo de hospício, saca?

Hummm?

Doido varrido.

Hehehe.

O mané caiu na do Bardian em menos de três minutos. Em

menos de dez minutos, Belair Bardian envolveu e seduziu todas as pessoas que estavam no camarim, que erámos nós quatro, a Mel Lee, o Véio Giba, nosso técnico de som e mais umas duas ou três fãs que estavam lá naquele momento. O cidadão realmente tinha as manha. De repente, quando todo mundo já estava em estado de graça pela presença entre nós de tal divindade, um cara quadrado que devia ter uns dois metros de altura e que era “motorista” e sei-lá-mais-o-que entrou e fez um sinal. Bardian levantou-se e disse que precisava ir. Fi-

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o último rei do rock

cou todo mundo com cara de cachorro abandonado, a Mel Lee visivelmente decepcionada. O negão quadrado abriu uma carteira de couro de verdad e tirou uns cartões. Deu um pra cada um, inclusive pras fãs, que ficaram histéricas. O cartão era de algum material plástico imaculadamente branco, que nem o Álbum Branco dos Beatles. Apenas o nome: Belair Bhardian.

Bhardian? Com “H” mesmo?

É. Acho que sim. Não lembro direito. Acho que foi só depois

que eu fiquei sabendo que era com “H”. Estava escrito em letras douradas. E o logotipo da ManGodCorp que parecia com uma estrela de cinco pontas também dourada virada pra baixo, tipo a do logotipo do Slayer. Tipo a que eu tenho tatuado nas minhas costas. Tinha também um número de i-MagePhone. Depois eu vim a descobrir que o cartão também virava um mini i-MagePhone que ligava diretamente com o número do cara. Instintivamente virei o meu cartão. Tinha algo escrito. Algo que imitava letra escrita à mão. Uma letra intencionalmente sofisticada: “Almoçamos amanhã no Mudras? Preciso conversar APENAS com você”. Achei isso escroto. Meio boiolístico. Mas não disse nada pros outros caras. Observei que no verso do cartão deles não tinha nada escrito. Nem o número em dourado. Recebi o cachê e, como seria de se esperar, torrei metade com maconha sintética. Guardei a outra metade pra gastar com a minha nova rainha. Cheguei ao hotel e liguei o SenSoSex. Naquela noite, ela não estava on-line. Não tive vontade de entrar na sala de mais ninguém. Fumei toda a SynCanna e fiquei assistindo imbecilidades na TV até virar um nada. Bodiei. Seria isto que chamam “fidelidade”?

Hã?

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5. Um mágico-de-oz-pós-moderno

Eu tava presa. Tava presa naquele lugar. Um lugar escuro.

Era feio, parecia uma prisão, uma cela. Sei lá. Tinha apenas uma pequena janela na parede de pedra fria. Avistava-se uma paisagem ao longe. Dava pra ver que o lugar era alto. Eu estava nua e sentia frio. Minhas roupas estavam ali sobre uma cadeira. Por que não as vestia? Acho que eu esperava por alguém. Minha respiração estava ofegante. Mistura de medo e desejo. De repente ele chegou. Era um homem feio, antigo. Um homem muito grosseiro e mau. Acho que ele era um padre ou algo assim. Tosco. Ele não era exatamente mau, era indiferente. Totalmente indiferente, inclusive à minha nudez. Deu-me uns comprimidos. Parecia remédio, mas não era remédio, era comida. Era a minha comida. Engoli os comprimidos e fiquei tonta. O homem indiferente jogou-me num colchão e me colocou de quatro. Sem dizer nenhuma palavra, abaixou as calças. O pau dele era enorme e estava duro. Ele vestia uma roupa militar, meio nazista ou algo assim. Não tirou a roupa nem as botas, apenas abaixou as calças. Carcou em mim sem dizer uma palavra. Nem um carinho ou violência. Apenas um gesto mecânico, indiferente. Não disse nada, não me acariciou, nem nada. Nem me agrediu. Apenas meteu aquele troço e ficou pulando mecanicamente em cima de mim feito um doido. Depois que ele gozou, continuou sem dizer nada. Apenas limpou-se nas minhas roupas, fechou as calças e foi embora. Fiquei ali deitada

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carlos maltz

no colchão. Não estava triste nem alegre nem nada. Acho que eram os comprimidos.

Acordei assustado. Que porra de sonho era aquele? Era um

aviso? Do que? Sonhos são avisos? De quem? Karaka será que a Melzinha tinha razão e eu era boiola enrustido mesmo? O i-MagePhone estava tocando.

O relógio indicava: 11h11min.

Coincid...

Pozé. Apertei o botão vermelho, apareceu o rosto irado da

Mel Lee.

– Véio, não acredito que você está dormindo, não acredito,

simplesmente não posso acreditar.

Qualé Mel, quequié?

– Qualé? Qualé? Qual é a tua véi? Tasquispariu. Tipo. O encon-

tro mais importante da tua vida tá te esperando e tu tá ai dormindo? Qual é a tua, véi?

Encontro? O Bardian te falou?

– Mas é claro que falou. Falou. Claro. Bom. Só pra mim, tá? Só

eu, você e ele que sabemos disso. Do almoço de hoje. No Mudras.

Almoço? Karaka. É mesmo. Achei que ele queria falar só comi-

go. Será que o cara é boiola?

– Quéqui tem a vê, Juan? Caraca, que merda véi. Quéqui tem a

vê? É claro que o cara é bi, você não reparou não? Mas e daí, senhor Juan LMK, qual é o problema disso? Quem é que tá preocupado com isso? Eu, por acaso, também não sou? E o senhor, tem certeza absoluta de que também não é? Que saco, cara, fica com essa puta conversa chata pra karaka. Quem é que não é pansexual no showbuzz, Juan? Quem é que tá preocupado com isso? Só você e o seu bando de dinossauros machistas retrógrados.

Dinossauros Machistas Retrógrados. Hehehe. Legal. DMR.

Hehehe. Podia ser o nome de uma banda cover de rockabilly.

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o último rei do rock

– Juan deixe de ser imbecil, cara. Tipo. Um cara que nem o

Bardian transa com quem ele quiser, na hora que ele quiser. Viu só o lance do uísque, véi? 750 paus numa garrafinha daquelas. Só pra impressionar a gente. Tu acha que isso é por que ele tá afins de ti? Um mané acabado que nem tu. Tu viaja demais. Véi. De boa.

Pozé maninha viajo, né? Mas. Se não for isso, o que será?

– E tu não viu, véi? Não viu que ele tá interessado na banda,

tá interessado nos Paralelepípedos. Darling, nós ganhamos a sorte grande. Aconteceu o que a minha intuição estava me dizendo que ia acontecer já tem meses. A minha intuição e aquela véinha egípcia que leu a borra do café pra mim. Chegou a nossa hora bróder. E nós temos que ter a inteligência de saber tirar o maior proveito possível disto. Agora chega dessa conversa mole e levanta já dai.

Interessado. Numa banda brasileira?

– Juan deixa de ser burro, cara, é muito mais fácil vender uma

banda de rock brasileira na China e na Índia do que uma americana ou inglesa. A resistência dos caras é muito menor.

O rosto dela ficou completamente vermelho na telinha redon-

da. Parecia aquelas fotos antigas de bebês que as mina do “Xavascósmica” tinham usado no site delas. Ela disse algo do tipo:

– LEVANTA ESSA BUNDA DAI PORRA! E larga essa merda de

autoironia, pelo menos por hoje.

Em vinte minutos a Mel Lee estava tocando no meu i-Mage-

Door. Eu levei uns quarenta pra acordar completamente. Desci. Ela estava ultraimpaciente e irritada.

– Porra karaka véi, tu é phoda.

Calma Mel, carajo, é só um empresário de mierda, que nem

los outros.

– Que nem os outros? Putasqueospariu Juan, tu é prego de-

mais, véi, tu nem percebe, tu nem merece o que está acontecendo. Tipo. Tu é imbecil demais véi.

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carlos maltz

Calma Mel, tu é que tá entusiasmada demais. Não dá pra gen-

te ir confiando assim em qualquer um que aparece. Esses caras são tudo uns fiadasputa, o sistemão de mierda. Que a gente sempre combateu. Os capetalista. O “governo”.

– Que a gente combateu? Caro senhor Juan LMK: nós somos

uns fudidos. Nós estávamos mortos e acabados. Aos 46 minutos da prorrogação aparece esse cara querendo sei lá o que com a gente, mas seja lá o que for, é a nossa salvação. E o senhor está ai cheio de dúvidas e desconfianças? Porra do caráio véi. Porra do carái.

Trinta minutos. – Trinta minutos o quê Juan?

Trinta minutos. É o tempo da prorrogação, Mel. Trinta.

– Juan, meu querido Juanzinho. Pelo amor de Deus, ou o que

quer que seja sagrado pra você. Sua mãe, o punk rock. Sei lá. Pelo amor de Deus, Juanzinho querido, vamos fazer a coisa certa pelo menos uma vez em nossa vida. Vamos ouvir com calma o que o cara tem pra nos dizer. Vamos ouvir. Com calma, sem pular no pescoço do cara. Sem paranoia, sem maluquice e escândalo, vamos ouvir e ponto. Com calma e respeito pela pessoa dele. Depois a gente vai pra casa com calma e conversa. Primeiro, só nós dois, depois a gente chama a galera. Pelo amor do que for mais sagrado pra você, Juanzinho, promete?

Tá maninha, tá. Não precisa desse drama todo. Eu sei ficar na

minha. Quando eu quero.

– Eu tô querendo tanto acreditar nisso, Juan. Tô querendo tan-

to. Vem, vamos pegar um HT.

HT? Tá maluca, véi? Vai custar uns quinhentinho daqui até o

SHLN.

– Tô ligada, mas eu pago. Recebi o meu cachê de ontem e ain-

da estou com ele aqui. Não dá pra ir de táxi, a gente vai chegar muito atrasado. O engarrafamento tá phoda hoje.

Não véi, não acho justo. Vamo de camelo.

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o último rei do rock

– Não, que camelo, véi. Tá maluco? Com esse calor absurdo

que tá fazendo? A gente vai chegar lá todo suado, o hotel é chique bagarai.

Não sei, maninha. Não acho justo.

– Não acha justo? Porra, então reparte comigo.

Pô maninha, tu é cruel, às vezes.

– Pozé Juan, tu torrou tudo com maconha sintética e aquela

merda daquele videogame pervertido, e eu é que sou cruel? Ó lá, o helitáxi acabou de pousar, vamo nessa véi, vamo correndo que a gente pega. Esse é mais barato. É o 2111, é de lotação. Ele sempre para perto do Mudrão. Bora nessa Juan.

Decolamos.

Eu sempre me encantava de ver o plano “pilouco” do alto. É

claro que com todos os edifícios que foram construídos depois, Brasília não era mais a mesma. Mesmo assim eu ficava abestalhado olhando. As asas, o eixão. De cima, parece um autorama. Karaka, os caras que fizeram essa cidade eram muito doidos. Será que eles fumavam todas quando desenhavam essas coisas? Óia lá o clube do choro. A gente tocou lá uma vez, bem no começo. Tipo um festival do Colégio Marista, uns trem desses. Maneiro, aqui de cima parece o velocímetro do carro novo do Ton-Ton. Ó lá. Cheio de trem redondo, né? Vendo daqui parece um monte de OVNI pousado. Hehehe. Um monte de OVNI. A Rainha da Paz. Parece duas mãos juntas em oração. Hehehe. O cara era muito doido mesmo. Aeroporto de OVNI. Olha, olha só que barato o desenho formado pelos caminhos aleatórios que as pessoas fazem no gramado central do eixão monumental. Não parece aquela parada que tem lá no Peru. Que os caras falam que é aeroporto de OVNI.Tipo... As Linhas de Nazca? Aeroporto de OVNI. Hehehe. Tô te manjando véio maluco. Tô te manjando. Ó lá. A biblioteca, a catedral, o congresso, o senado. Tudo OVNI, tudo OVNI. E aquela parada lá o que é? Ahh, tão construindo um palco ali no final do gramado central. A gente tocou ali. Tinha época que eles nos convidavam. Quando a

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banda tava por cima. Incrível a ousadia daqueles caras, né? Dos caras que construíram essa cidade. Mandaram o maior aeroporto de OVNI e o povo nem se tocou. Hehehe. Assim do alto, tão perto do azulão do céu, Brasília parecia um lugar mágico, uma cidade medieval, desenhada por alguém movido por uma fé muito louca. Um ágora do agora. Uma acrópole de concreto. Ou algum outro lugar, num futuro ainda muito distante.

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6. Roberto Tálamo (meu cérbero me modreu)

Chegamos meia hora atrasados ao Mudra Inn, um hotel india-

no chiquésimo que fora inaugurado no final de 2018. Era o “point” da cidade naquela época. O restaurante “Bollywood Dreams” ficava no 66º andar. O elevador era muito rápido. Esses elevadores rápidos sempre me dão vertigem. Que nem os helitáxis. A Melzinha tava puta comigo. Pra variar. Quando a porta se abriu, já estávamos dentro daquele salão cheio de cores e cheiros exóticos. Não era a primeira vez que eu entrava naquele lugar, mas da outra, estava tão chapado que nem reparei na multidão de elefantinhos cheios de braços, Krishnas sorridentes e meninos andróginos vestidos de verde e rosa pintados por toda a parte. O piso era cheio de estrelas, tipo aquela calçada da fama de Hollywood. Cada estrela tinha a foto dum artista de Bollywood. Os caras não tinham o menor pudor por não serem originais. Aqueles artistas com aquelas caras de santinhos ingênuos e aquela maconha sintética toda que eu tinha fumado na noite anterior misturada com o cheiro doce e onipresente do incenso me davam uma sensação esquisita. Parecia que todas as coisas estavam lutando para se tornar vivas e que de um momento para o outro toda a minha noção de realidade iria pro beleléu. Eu tava quase vomitando.

Logo na entrada, dois painéis ultra high tech gigantes muda-

vam o padrão do desenho em função do tipo de onda mental que

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carlos maltz

fosse emitida pela pessoa que estivesse passando. Pensei: que tipo de padrão um cara com um pensamento podre que nem eu poderia gerar? Fiquei com medo que aparecesse uma bunda gigante no telão, bem na hora em que estivesse passando. Algo assim. Curiosamente, quando passei, a máquina gerou um desenho circular. Um desenho parecido com um que vi na capa de um livro da minha mãe, muitos anos atrás. Uma “mandela”, ou coisa que o valha. Fiquei olhando praquele troço pensando que era algum tipo de sinal que o acaso estava me mandando e aquilo me deixou com um pouco de medo. O “acaso”, por acaso, manda sinais?

Coincidência. O acaso, por acaso...

É, né?

Por que, de uns tempos para cá, eu estava vendo sinais por

toda a parte? Eu sempre achei ridículas essas pessoas que ficam vendo sinais por toda a parte. Será que eu tava ficando doido? Quero dizer doido mesmo. Pra valer. Não tô falando de ficar doidão, lombrado, que isso eu já era há muito tempo. Tô falando dessas pessoas que acham que se não pisarem em todos os quadradinhos ímpares do piso o céu vai cair sobre suas cabeças ou coisas assim.

Eu fumava maconha desde os doze anos de idade. Comecei

com o Panka e a minha mãe, em casa. Também já tinha usado cocaína, ácido, merla, crack, ecstasy, heroína e um tanto de droga sintética que nem tem nome, tipo a CZX ou o JA4. Eu tracei o que pintou. Meu carro nunca teve freio pras drogas. Mas a maconha sintética, a SynCanna, era o meu paraíso. Muito mais forte que a natural. Sempre dava barato, não dependia de safra, honestidade do traficante, essas coisas. Era papo reto. Especialmente depois da liberação. A gente comprava direto do fabricante, na rede. Eu fumava tudo o que tinha. Nunca guardei droga pro dia de amanhã. Isso sempre me pareceu o pior tipo de filhadaputisse possível: guardar droga pra consumir depois. Esse pecado eu não carregava em minhas costas. Acho que eu só não morri de overdose, como os heróis do Cazuza, porque a minha

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o último rei do rock

grana acabou. Mas nunca tinha tido essas noia antes, esses medos. Bom, tinha sim, especialmente quando a gente usava ácido ou chá de cogumelo. Tinha umas noia desse tipo, mas era coisa que dava e passava. Com o ácido, às vezes elas voltavam. Mas era só por algum tempo, depois elas sumiam, até a gente tomar de novo. A galera sempre respeitou muito minha capacidade de aguentar droga. Eu era o cara que aguentava mais.

Aguentar droga era uma parada que os caras da banda respei-

tavam. Era tipo um valor pra nós. Era só alguém começar a questionar a minha autoridade, que a gente ia pruma rodada de pó ou ácido e já ficava claro para todos “who’s the boss”. Todo mundo já tava caído pelos cantos e eu ainda estava ali, firme, de pé, querendo mais. Querendo ver até aonde aquilo ia me levar. Eu me drogava pra ver se podia silenciar as vozes.

Nunca fui muito do álcool, nunca curti muito o barato da birita.

Também tinha o lance do Panka, né? Acho que peguei uma aversão ao cheiro do álcool por causa do Panka, das noites que ele vinha bêbado e enchia a minha mãe de porrada. Mas pra droga eu nunca disse não.

Belair Bardian estava vestido a caráter. Totalmente integrado

ao ambiente. Bata indiana, tamancos, brincos, turbante na cabeça. A presepada toda. E obviamente devia ter uns trinta computadores espalhados pelo seu corpo e sua roupa. Ele nem se surpreendeu muito com a nossa chegada, devia estar monitorando a entrada do hotel. Ou nos monitorando. Naquela época era muito difícil você não estar sendo monitorado. Era muito difícil estar em algum lugar que não escondesse trocentas mil “grain-câmeras”. As hiper-triper-minicâmeras da Paradise, do tamanho de um grão de areia. Os únicos jeitos de não ser monitorado naqueles dias eram: ou você ter grana suficiente e conhecer alguém nos órgãos de informação do governo pra comprar um localizador e destrolizador de grain câmeras, ou ser um cara tipo o meu bróder “Fumabomber”, que inventava e construía ele mesmo as paradas pra localizar e neutralizar as “câmeras-grão”.

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carlos maltz

Bardian era um cidadão do mundo. Um cidadão da nossa era.

Quando chegamos, estava em uma ligação, no i-MagePhone do anel dele. Falava chinês e fez questão de continuar a conversa na nossa frente, pra gente ver que ele sabia falar chinês fluentemente. Ele não precisaria falar chinês, podia falar em português ou inglês que o anel dele traduziria. Falava chinês por pedantismo mesmo.

Quando a ligação terminou, Bardian se levantou e deu em

cada um de nós um longo abraço. Olhou demoradamente a Mel Lee bem nos olhos. Disse que sentia que já a conhecia há muito tempo. Se a baixinha ainda tinha algum pingo de resistência, acabou ali mesmo. Quanto a mim, Bardian também me olhou bem nos olhos, com um sorriso irresistível, sagitariano. E disse apenas um misterioso: eu sabia!

Naquele dia ele era uma pessoa que eu poderia indicar sem

nenhum peso na consciência, para um Gulag, um campo de concentração nazista ou coisa que o valha.

Como as coisas mudam. Pozé. Sentamos. Quando cheguei à cadeira, a telinha sambou.

Virou geleia de Mocotó. Comecei a alucinar. Que hora pruma porra daquelas começar a acontecer. Meu cérebro estava virando pudim de neurônio. A cadeira afundou e eu fiquei minúsculo. Eu estava do tamanho de uma pulga e o Bardian era gigantesco, mais alto que os 66 andares do Hotel Mudras Inn. Eu queria gritar, mas não tinha voz. Ao mesmo tempo, sentia uma vontade irresistível de rir. O gigante virou-se para mim e disse alguma coisa. Sua voz parecia a voz do próprio Deus. Eu estava esmagado. Lembrei-me do sonho, do cara com o pau enorme. De repente, a telinha voltou ao normal. Ele estava me olhando, provavelmente esperando a resposta pro que tinha me perguntado. Eu estava perdido, não tinha a menor noção do que fazer ou dizer. Uma jovem com feições hindus veio nos atender. Bardian fez o seu pedido sem olhar o cardápio. Ele realmente sentia prazer em ser um cidadão do mundo. Pronunciava os nomes indianos dos

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o último rei do rock

pratos pausadamente, saboreando as palavras como se elas fossem as próprias iguarias exóticas que provavelmente queriam dizer. Eu e a Mel Lee ficamos olhando o cardápio. Fomos direto pro prato mais barato, que devia custar uns R$350,00. Não tínhamos nem ideia do que se tratava. Dava até pra clicar com o dedo no nome do prato que aparecia uma imagem do trem, com o cheiro da gororoba, mas não fez a menor diferença. Era uma gosma indecifrável. E do jeito que eu tava, o que eu menos queria fazer naquele momento era comer. E ainda por cima comida indiana. Escolhemos aquela porra mesmo, a mais barata. Se fosse veneno de cobra, a gente tinha comido veneno de cobra. Bardian percebeu nossa aflição, abriu um imenso sorriso papal e disse:

– Meninos deixem-me escolher por vocês, hoje vocês são

meus convidados.

Meninos? Fiadumaputa. Capitalista de mierda. A Mel Lee abriu

um sorriso maior ainda. A situação era insustentável, eu queria sair correndo. Cheguei a olhar algumas vezes para a entrada que levava ao elevador. Mas a Mel Lee me mataria se eu fugisse naquele momento. Talvez eu até a perdesse definitivamente. E eu não podia perder a Mel Lee, eu só tinha ela. Tinha que dizer alguma coisa. Imediatamente. Pra não vomitar.

Senhor Bardian, o senhor é sagitariano?

Karaka, que mierda, eu quis dizer vegetariano. Eu sempre

achei ridículas essas pessoas que ficam adivinhando signos, como a minha mãe. O sorriso no rosto de Bardian conseguiu aumentar ainda mais um pouco. Ele agora parecia um sheik-árabe-boiola, se é que é possível existir tal coisa.

– Sim, meu querido, sim Juan, sou sagitariano como você,

meu querido. Sagitariano, sim. Que nem você. Da elite do mundo. Hehehe.

Como você? O fela sabia isso também. O cara mais poderoso

no Brasil, da corporação mais poderosa do mundo, sabia que eu sou

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sagitariano. Não posso negar que isso me deixou lisonjeado por um lado, mas eu tava muito desconfiado daquela porra toda. Aquilo não cheirava bem mesmo. Ele era um capitalista de mierda, meu inimigo natural, o animal que eu deveria caçar, ou que deveria me caçar. Eu estava completamente mareado. Temia realmente que pudesse vomitar a qualquer momento em cima da mesa, ou da bata floreadinha do boiolão. Sabia por experiências anteriores que qualquer coisa que eu fizesse ou dissesse naquele momento teria consequências desastrosas. Eu só não saí correndo por que estava muito enjoado. E não podia me queimar com a Melzinha. O porco capitalista ainda estava falando:

– Como você não, que você é muito especial, Juan LMK. Você

é um sagitariano muito especial, Juan. Dentre todos os sagitarianos, que já são especiais só por serem sagitarianos, você é mais especial. Hehehe. Sim, todos os sagitarianos são muito especiais, mas você é um especial entre os especiais, meu querido. Ter nascido naquele dia, naquela hora, naquele local. Você nasceu marcado. Você é uma pessoa muito especial. É um escolhido. Um predestinado. Marcado para brilhar. Para ser muito, muito grande. Para realizar o que você sempre sonhou, senhor Juan LMK. Ser maior do que “ele”.

Maior do que ele? FELADAMÃE! Até isso ele sabia também?

Como? Aposto que a Mel Lee tinha entregado pra ele. Feladamãe. Olhei com meu olhar assassino pra Mel. Ela ficou against the wall e disse:

– Senhor Bardian, o Juan não gosta de falar desse assunto. Ele

tem vergonha.

Agora eu seria capaz de matá-la mesmo. Estava me deixando

nu diante do porco capitalista. Mas ela seguiu na mesma toada:

– Eu falo sempre pra ele exatamente a mesma coisa que o

senhor está dizendo: que ele é uma pessoa muito especial, que ele não nasceu naquele dia, naquela hora e naquele local por acaso. Que aquilo não foi só uma coincidência. Digo a ele que ele é uma pessoa

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o último rei do rock

marcada, pela história do rock e da humanidade. Eu sempre soube que ele, um dia, vai ser muito grande, senhor Bardian. Eu sei, ele nasceu pra isso. Que nem os Ramones. O Renato Russo. Eu sempre digo isso a ele.

Belair Bardian fez uma cara parecida com aqueles médicos

velhos de exame de carteira de motorista, que ao mesmo tempo riem e se compadecem quando constatam que nossa acuidade visual é muito menor do que a que afirmamos ter. Ele falou algo mais ou menos assim:

– Ora, ora, vamos dar tempo ao tempo. Nós vamos ter tempo

de mostrar ao Juan que ele está enganado e que é, na verdade, uma pessoa muito abençoada. Aliás, eu não vou precisar convencer você de nada, meu caro. Você mesmo vai ver o que vai acontecer com você. Você mesmo vai ver o tamanho da sua estrela. Está chegando a hora de você mesmo poder compreender o mistério que envolve o seu nascimento. Está chegando a hora de a felicidade chegar a sua vida, meu caro Juan LMK.

Eu queria dar um soco na cara da Mel Lee e sair andando.

Não sabia o que fazer. Alguma coisa excepcional precisava acontecer. Imediatamente. Eu não aguentaria aquela conversa por mais meio segundo. Mas não podia fazer nada. Estava com as mãos amarradas. Se eu abrisse a boca pra falar ia começar a agredir todo mundo, que era o que eu habitualmente faria numa situação daquelas. Olhava furioso pra Mel, mas ela estava segura de si, de alguma forma sabia que daquela vez eu ia ficar calado. O olhar dela tinha mais força do que o meu. O que me deixava mais puto ainda.

A garçonete chegou com sua bata esvoaçante. Colocou uns

pães meio estranhos sobre a mesa, com um monte de pastas coloridas. Eu tinha vontade de estraçalhar tudo. Jogar aqueles troços coloridos na parede e ficar observando o caos escorrer. Lembrei-me de um vídeo do Jackson Pollock, um artista doidão americano dos anos cinquenta do século passado, que eu havia assistido há alguns anos.

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carlos maltz

O cara espalhando tinta e andando feito um louco sobre a tela, que era imensa. Andando feito um deus criando o mundo com um cigarro na boca. Por que a agressão era a única forma de comunicação que eu conhecia? Será que tinha a ver com as coisas que eu vivi na infância? A violência sufocada do Panka, que explodia nas madrugadas alcoólicas, como a lava sulfúrica de um vulcão adormecido? Ou será que era só o meu jeito mesmo, será que eu era doido mesmo? Doido de pedra.

Doidepedra. Poderia ser um bom nome. Pruma banda cover

de...

Não enche. Instintivamente olhei pra baixo, procurei os pés da

menina. Sim, lá estavam eles. Ela estava usando aqueles tamancos e a bata não ia até os pés. Lá estavam eles. Os seus pezinhos delicados. Sim, lá estavam eles, os pezinhos pequenos e levemente acobreados da garçonete. Pezinhos, por favor, me salvem de mim mesmo. Por favor, me salvem da fúria que quer engolir tudo. Venham com sua delicadeza humilde me salvar da minha soberba, da minha vaidade. Venham, por favor, me colocar no meu devido lugar. Eu queria me ajoelhar diante dela. Sempre fui um admirador de pés femininos. Os pés femininos sempre me pareceram a mais fina peça de design existente no universo. Sim, eu sei que isso é uma coisa pervertida. Que um cara normal deve gostar de tetas, bundões, esses trem. Eu gosto também, sim, mas. Os pezinhos delas têm algo, sei lá. Pra mim o diferencial que decide se uma mina é gata ou não são os pés. E não precisa ser pezinho de anjo, não, não é uma questão de tamanho, é uma questão de... Design... Sabe? Nem é uma questão de classe social. O design está acima de tudo. A curva, a curva perfeita. Eu sou um caçador da curva perfeita e a curva perfeita está nos pés das mulheres. Por que Deus, ou como você queira chamar essa coisa que nos criou, escondeu o traço mais fino da sua criação no lugar mais baixo? Eu não sei explicar. A curva perfeita, o arco abobadado perfeito. A estrutura mais perfeita e bela que existe. Por que Deus... Talvez pra que elas

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o último rei do rock

possam desfilar sobre os seus saltos altos e mostrar ao mundo a perfeição que a mão humana nunca será capaz de reproduzir. Tipo... O Alfa-Romeo mais caro, a Ferrari. Porsche. Não chegam nem aos pés... Dos pés... Da funcionária mais humilde da fábrica do Alfa-Romeo, da Ferrari, entende? E elas receberam de graça. De graça. Pela graça de serem mulheres. De serem mulheres. De... Representarem o amor... Para nós. Ou talvez apenas pra nos humilhar mesmo. Pra mostrar a nossa insignificância diante do seu poder.

As unhas dos dedos dos pés da jovem deusa estavam pinta-

das com uma tinta chinesa, nova no mercado, que brilhava muito, emitia luz e até mudava de cor à medida que aquela borboleta se movimentava. Fiquei ali extasiado por alguns segundos. Essas coisas me transformavam num bebezinho de colo. Estava salvo de mim mesmo. Pelo menos por alguns minutos a mais. Bardian disse:

– A vida é mesmo uma dádiva dos céus para os poucos que

podem vivê-la de verdade, e sua hora chegou senhor Juan LMK.

Depois dessa pérola, ele disse umas palavras em hindu ou

coisa que o valha. Devia ser alguma oração de agradecimento. O que pode ser mais pedante e boiolístico do que um cara que não é hindu fazer uma oração de agradecimento pela comida em hindu? Enquanto comíamos, ele nos deu uma aula sobre as pastas coloridas. De que eram feitas, de qual região da Índia tinham vindo, qual o seu significado “espiritual”, a qual divindade estavam devotadas. Ele fazia consultas on-line direto em seus computadores espalhados pelo corpo. A Mel Lee estava muito ansiosa. Ela não se aguentou e mandou na lata:

– Senhor Bardian, por que a ManGodCorp do Brasil está inte-

ressada nos Paralelepípedos do Óbvio?

– Ah, minha cara, você está enganada, você está redondamen-

te enganada.

Os olhos azuis de Bardian (naquela época quase todo mundo

que tinha grana usava olhos azuis) transmitiam uma segurança que, somada ao gosto exótico da pasta amarelo-ocrê que eu estava co-

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mendo e ao mareio que todo aquele ambiente provocava, me deixavam entorpecido. Ele falava a partir de um lugar alto. Eu nunca tinha estado tão próximo de alguém que falava assim, sem nenhum traço de ironia, vacilação ou maledicência na voz. Invejei-o por alguns instantes e entendi imediatamente porque aquele cara estava sentado no topo do mundo. Ele falou lá das alturas:

– Não, minha cara. Não é a ManGodCorp do Brasil que está

interessada em vocês, é a própria ManGodCorp mundial, ela mesma.

No momento em que pronunciou o nome da matriz, Bardian

esboçou um sorriso tão magnânimo no rosto, que eu seria capaz de enfrentar o demônio mais terrível da terra e mandá-lo de volta para o quinto dos infernos. Sim, ele tinha um poder sobrenatural. A expressão facial de BB transmitia paz e grandiosidade. Se ele mandasse a gente ficar de pé naquele momento e cantar Jingle Bells em mandarim ou o hino nacional de Zâmbia, eu teria feito isso sem a menor hesitação. Eu me sentia uma mosca. Não, na verdade, eu invejava as moscas.

– A ManGodCorp ela mesma? – A Melzinha perguntou. – Sim, minha cara, a ManGodCorp, ela mesma.

– Mas o que a ManGodCorp, ela mesma, pode estar querendo

conosco, senhor Bardian?

Eu estava tentando dizer alguma coisa, sentia que precisava di-

zer alguma coisa. Mas tinha certeza que se abrisse a boca, um Zeppelin em chamas sairia voando lá de dentro e se esborracharia contra a parede de otimismo branco dos dentes de Bardian. Achei melhor continuar calado. Fiquei ouvindo a conversa dos dois ao longe e continuei mastigando a gororoba amarela. Minhas mãos suavam. Tinha um imenso telão 5D esférico no centro do salão. Aquilo emitia som de baixa frequência, uma luz colorida, e acho que soltava algum cheiro também. Estava me deixando cada vez mais mareado. Eu estava apto a vomitar a qualquer instante. Olhava a porra do globo 5D no centro do salão e pensava em coisas tipo campeonatos de cuspe a distância

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o último rei do rock

e aqueles caras que arrotam o hino nacional inteiro. Que cagada! Por que eu pensava uma mierda daquelas num momento daqueles? Por que minha mente me fazia pensar naquelas coisas naquele momento? Lembrei-me de um curso de introdução à fisiologia neuronal que eu assistia on-line nas madrugadas, viajando de ônibus depois do show. Eu assistia às aulas pra aprender os termos técnicos e, quem sabe, usar em alguma música. Até usei em “Meu cérbero me modreu”, do Piromania. Eu adorava aqueles nomes de partes do Cérbero, opss. Cérebro: Seria o meu Diencéfalo? O Trato Piramidal? Seria a Medula Espinal? O meu Núcleo Caudado estaria me mandando aqueles pensamentos absurdos? Seria o núcleo lentiforme, o Tálamo? O Córtex Parietal? Tálamo parece nome de centroavante da seleção argentina, né?. Hehehe. Gooooooollll. De Roberto Tálamo. Hehehe. MEU CÉRBERO ME MODREU

(Juan LMK, BBC, Daniel Loló & Ratón-ton). Pane no comando central da medula espinal Colapso no meu bulbo raquiano Eu tô entrando pelo cano

Acho que tô batendo pino sem apelo Deu merda no meu cerebelo Será que é o suspiro final Do córtex parietal? Alguém me mordeu Alguém me mordeu

Algo me diz que fui eu. Meu cérbero Me modreu.

Meu misencéfalo não tá legal

Tô achando que eu não sou muito normal Circunvoluções atômicas 57


carlos maltz

De uma medula oblonga

Pensamento venenoso derruba a ponte do meu corpo caloso.

Alguém me mordeu Alguém me mordeu

Algo me diz que fui eu Meu cérbero Me modreu.

Eu tava ficando cada vez mais maluco, noiado. E não tinha

fumado nada naquela manhã. Voltei minha atenção para a conversa dos adultos. O Bardian estava me olhando e falando:

– Nós vamos lançar um produto no mercado. É algo totalmen-

te novo. Uma revolução! Uma nova era na inteligência artificial. E na história da humanidade sobre este planeta! Um divisor de águas. Talvez maior ainda do que o lançamento do PC. Vamos deixar os chineses a milhares de milhas atrás. Eles já sabem disso, mas não tem nada que possam fazer. Nós estamos na frente deles. E já estamos na reta final. O produto já está pronto, em fase de testes. Bem, quase pronto. Pro mercado. Que vai cair de quatro que nem a “Linha Maginot” na Segunda Guerra Mundial. Dessa vez. Vamos deixar eles longe. Muito. Longe. Eles ficam nos espionando o tempo todo. Seus hackers conseguiram nos passar a perna com o lançamento do SenSoSex. Nós tínhamos um acordo. Que eles desrespeitaram. Mas agora nós vamos dar o troco, e que troco. Nós vamos acabar com eles.

SenSoSex? Olha um assunto que eu conhecia. Falei:

O SenSoSex é incrível, não é? Uma das maiores invenções da

humanidade. Depois da maconha sintética. E do ar condicionado.

O Bardian fez uma cara de Dalai Lama conversando com al-

gum repórter retardado que criticasse o acordo proposto pelos chineses e disse:

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o último rei do rock

– Sim Juan, o SenSoSex é incrível, não é mesmo? Eles nos

roubaram. Não respeitaram os acordos internacionais, mais uma vez. Na verdade, o SenSoSex foi desenvolvido na Rússia. Isso jamais teria nascido na China. Apesar de terem aberto as portas, eles ainda continuam muito moralistas e caretas. Mas eles nos hackearam, se apropriaram da ideia e lançaram antes. Mais uma vez a

ParadiseNowCorp

nos trapaceou e pulou na frente.

Se juntaram com os russos e até com os japoneses, vejam só. Até com os japoneses. Pra nos passar a perna. Mas eles não tardam por esperar. Não, meus queridos. O mal não pode vencer para sempre.

O que vem a ser um cínico? Um homem que conhece o preço

de todas as coisas e o valor de nenhuma delas.

Quem disse isso? Gene Vincent? Não, acho que foi Oscar Wil-

de... A telinha começava a sambar de novo. Minha mente me pregava peças. Roberto Tálamo tava batendo pino. Hehhe. Meu cérbero tava me modrendo. Bardian falava sem parar:

– Sim, senhores. O troco que estamos preparando vai acabar

com eles. E eles já sabem disso. E o melhor, é que não tem nada que eles possam fazer. Não tem nada que eles possam fazer. Sim. Eles bancam milhares de “hackers nacionalistas”, ameaçaram os cientistas, tentaram sequestrar pessoas. Vejam com que tipo de gente nós estamos lidando. Mas... Não tem jeito. A conversa agora é outra. O que vamos lançar no mercado é fruto de anos de pesquisa, com os cientistas mais renomados e caros do mundo no campo da tecnologia nanoneural.

Nanoneural?

Ele fez uma pausa e continuou.

– Sim Juan. O primeiro implante nanoneural para a expansão

e a aceleração da capacidade intelectual do ser humano.

Ahh. Eu disse. Ele seguiu em frente.

– Nós conseguimos criar um esquema de segurança fora da

internet, que eles não conseguiram driblar. Eles até que estão corren-

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carlos maltz

do atrás, mas a gente antecipou em cinco anos o lançamento. Trabalhamos duro e gastamos uma fortuna enquanto eles colhiam os louros do SenSoSex. Eles vão pagar um preço alto pela prepotência e arrogância. A gente jogou de um jeito que eles nem poderiam imaginar. Jogamos tudo e mais um pouco. Fizemos coisas que eles jamais seriam capazes de imaginar que nós faríamos. Gastamos muito. Conseguimos pular etapas. Vamos mostrar a eles com quantos paus se faz uma canoa. Jogamos tudo nesse projeto. Assim caminha a humanidade, meus caros. Vocês vão ter o privilégio de assistir e dar, junto conosco, um grande passo. Este será o maior passo da humanidade desde que Neil Armstrong imprimiu o seu solado de borracha no lado estridente da Lua. Gastamos muito mais do que tínhamos, muito mais até do que poderíamos. Fortunas. Foram cientistas. Horas e horas de pesquisas. Cobaias.

Cobaias?

– Sim, cobaias meu caro, pessoas de bem, como eu e você.

Pessoas de bem, que não estão dispostas a permitir que a estratégia maligna da ParadiseNowCorp seja vencedora. Pessoas do bem. Que participaram do projeto por idealismo.

Ahh.

– E uma boa remuneração também. Claro, por que não?

Nesse momento, Bardian juntou as mãos e olhou para o alto.

Depois de uma pequena pausa, continuou. Ele falava sem parar, como um possuído:

– Embora não seja esse o nosso principal objetivo. Sim, che-

gou a hora de virar o jogo. Uma nova era para a humanidade se aproxima, meus caros, e a ManGodCorp será a padroeira desse novo tempo, deste novo homem que está para nascer. Um homem além do homem. Um homem muito além daquele ser defeituoso que foi fruto do acaso. Nós seremos nossos próprios criadores. E criadores muito mais amorosos e capazes do que aquele que nos criou originalmente: o acaso. A criatura vai superar o seu criador. E nós vamos superar a

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o último rei do rock

ParadiseNowCorp. E foram eles mesmos que nos levaram a isso, o golpe baixo deles nos levou a isso. Agora eles estão cinco anos atrás da gente, e cinco anos nesse mercado é fatal. É claro que quando lançarmos o nosso produto eles vão copiar o que ainda não conseguiram e vão lançar um concorrente mais barato em muito menos de dois anos. Nós sabemos disso, sim. Mas o produto é muito sofisticado, coisa nova mesmo. É a ponta da ponta da ponta da tecnologia. Não é coisa que eles possam copiar facilmente nos seus laboratórios vagabundos na Coreia.

Ele falava como se fosse um profeta, um publicitário, um pu-

blicitário-profeta ou algo dessa magnitude.

Nós somos o novo, somos a inovação. Somos a marcha ine-

xorável do tempo. Somos a ManGodCorp Somos o Homem-Deus se erguendo e tomando conta do que é seu! Somos Leonardo da Vinc (VINCI), Somos Miguel... Angel. Somos Andy Warhol colocando uma lata de sopa Campbells na parede do Metropolitan. Somos Colombo descobrindo a América. Somos Napoleão Bonaparte colocando a aristocracia europeia de joelhos. Somos Beethoven criando a nona sinfonia. Somos a tecnologia!

T-E-C-N-O-L-O-G-I-A! A nova T-E-O-L-O-G-I-A! T-E-C-N-O-L-O-G-I-A! A nova T-E-O-L-O-G-I-A! T-E-C-N-O-L-O-G-I-A! A nova T-E-O-L-O-G-I-A! 61


carlos maltz

– Somos, somos... E com a estratégia de marketing que esta-

mos montando, em dois anos eles estarão tão longe de nós que será impossível virar o jogo. Eles vão quebrar. Definitivamente. E é aqui que vocês entram, meus queridos amigos.

Hapiness is a warm gun, oh yes it is…

A Mel Lee, com a sua tradicional sutileza de um funcionário do

atendimento público do Detran, disse :

– Desculpe-me a sinceridade, senhor Bardian. Eu estou mui-

to emocionada e honrada com o que o senhor está falando, mas... Ainda não consigo imaginar como é que uma banda brasileira de punk rock. Quero dizer... Uma banda que já não está no mainstream. Pode entrar numa... Numa... Quero dizer uma banda que já foi muito grande. De certo modo ainda é, né? Mas... Quero dizer... Num acontecimento dessa grandeza que o senhor está falando. Desculpe-me a sinceridade.

Ela disse isso e me olhou.

Feladamãe. Abriu as perninha. Bardian percebeu, escancarou mais uma vez seu sorriso papal

e disse:

– É. Minha cara, não precisa se desculpar pela sua sincerida-

de. Eu também sou uma pessoa muito sincera, como vocês estão podendo ver. Estou aqui falando algumas coisas, que nem era pra eu estar falando... Mas sinto... Algo me diz que posso confiar em vocês, que vocês também estão do nosso lado, do lado do bem, e que em breve estaremos juntos lutando por essa causa nobre. A sinceridade de vocês é um dos motivos principais. A banda de vocês é de verdade.

A Mel Lee conseguiu dizer então a maior asnice que ela tinha

dito até agora:

– Eu sou descendente de chineses, senhor Bardian, mas estou

do lado do bem. O senhor pode contar comigo. E você, de que lado está Juan?

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o último rei do rock

Hehehe.

Karaka, que mierda! Não acreditei que ela tinha dito aquilo.

Acho que Bardian adivinhou o que estava prestes a acontecer. Ele disse rapidamente:

– É claro que o Juan está do lado certo. E ele será uma peça

fundamental, um soldado glorioso nesse nosso bom combate. Um soldado da liberdade. E ele já nasceu marcado. Marcado para ser um líder, um ícone.

A Mel não se aguentava de ansiedade. Ela estava sentada

com as pernas cruzadas e ficava o tempo todo balançando a perna que estava por cima. O pé ficava girando sem parar. Era uma mania que ela tinha. Ela sempre fazia isso quando estava ansiosa, que era 99,999999999% do tempo. Ela voltou à carga:

– Senhor Bardian, me desculpe, mas. Como eu vinha dizen-

do... Ainda não estou conseguindo entender como alguém tão minúsculo como nós pode ser útil a um gigante como vocês.

Cada vez que ela falava isso, ela olhava pra mim, como se es-

tivesse dizendo: viu eu estou dando a real pro cara.

Bardian disse:

– Nós precisamos de um herói, um ídolo. Um ícone que seja

o símbolo deste novo momento que vamos inaugurar. Precisamos de uma celebridade que entre nos corações e mentes das pessoas, como o porta-voz desse novo tempo. As pessoas precisam... Muito... De uma nova celebridade. Alguém. Em quem possam confiar. Alguém com uma história de vida. Uma história real de superação. Alguém. Real, entendem? Vamos fazer uma campanha de marketing monstruosa, a maior que já existiu. Vocês vão ver. E precisamos de um rosto, um nome, uma história capaz de comover e mobilizar os corações da juventude da Ásia. Do mundo inteiro. Das pessoas do mundo inteiro. Uma. Pessoa real, vocês entendem? Um herói de carne e osso. Como nos velhos tempos.

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carlos maltz

Não aguentei mais. As palavras saíram rodopiando da minha

boca como um daqueles furacões com nome de mulher: cheias de rancor e doidas pra destruir tudo o que encontrassem pela frente:

Mas senhor Bardian. Por que vocês não criam um? Já criaram

tantos. Vocês têm a fórmula, algumas fórmulas. Já inventaram tantos. A cada ano aparece um ídolo novo. Vocês têm heróis ocidentais, japoneses, chineses, latinos, muçulmanos. Ídolos de rock, cantores românticos, cantoras sensuais, tocadores de violino-pop, meninos cantores, sex-simbols de doze anos de idade. Grupos “folclóricos”.

– Pois é, Juan. Você tem razão. Você é um rapaz bem inteligen-

te, não é?

Rapaz? Hihihi.

– A indústria cultural tem todas as fórmulas do sucesso e nós

já usamos todas elas. O braço B2C da

ManGodCorp

tem pelo

menos vinte megaídolos bombando no mundo inteiro nesse momento. Todos eles jovens, sarados e bonitos. Treinados para cantar em diversos idiomas, dançar, atuar e ter opiniões politicamente corretas e espertinhas para atender as expectativas e agradar a todos os públicos de todos os talk-shows hype do mundo inteiro. Todos “trendsetters”. Faturando milhões de dólares todos os anos com ingressos de shows e filmes. Downloads, ring-tones e produtos derivados. Todos “blockbusters”.

Hehehe. Incrível, não é, Mr. Bardian. Incrível. Eu falei com um

nó na garganta. A merda estava dentro de mim. A Mel atravessou mais uma vez:

– Pois então, senhor Bardian, por que não criam mais um, ou

pegam algum desses que já são grandes e o tornam maior ainda?

– Meus caros, meus caríssimos, vocês não estão entendendo.

Mas eu os entendo. Ainda não é possível nem sequer visualizar as coisas que eu estou lhes dizendo que estão para acontecer. Um novo tempo, um novo tempo. Não, vocês não entendem. Ninguém ainda está podendo ver a magnitude dos acontecimentos que estão vindo

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o último rei do rock

pela frente. Estamos vivendo em um momento magistral da história da humanidade. Sim, estamos tendo esse privilégio. Algo magistral. Como... A descoberta da América. Nós estamos vivendo isso. Algo magistral! E vocês... Se a ManGodCorp quisesse produzir mais um ídolo, nós faríamos isso em poucos meses. Mas não é isso. Não é nada disso que queremos. Não. Nós queremos algo novo, algo completamente fora dos padrões. Algo inimaginável, algo que não se vê há muitos anos no cenário musical mainstream. Queremos dar ao público alguém com uma vida real, com uma história real, com uma voz real, com dentes reais, com rugas, uma calvície iniciante, um cara meio feio, ruim de entrevista, capaz de gerar algum incômodo. Um cara capaz de dizer a coisa errada na hora errada e deixar todo mundo com uma sensação desagradável na boca. Hehehe. Do jeito que o Dylan fazia, do jeito que o... “Ele” fazia. Alguém. Que ainda tenha uma pele real. Alguém que ainda não tenha olhos azuis. Que tenha uma barriguinha. Alguém que seja doido o bastante. Olha... Um... Cara capaz de dizer a coisa errada pra pessoa errada na hora errada. Hehehe. É óbvio que eu não estou falando desses rebeldes programados por nós mesmos. Tá? Esses toy-idols que nós construímos, com toda essa “rebeldia programada”. Pra gerar escandalozinhos inofensivos na mídia. Eu estou falando... Enfim: de uma pessoa real. Você é esse cara, Juan LMK. Você é o cara!

– Eu sabia, eu sabia. Sr. Bardian eu sabia. Eu falei pro Juan. Eu

falei que todos esses anos de batalha que a gente passou tipo. Todos esses anos. Mantendo-nos fiéis aos nossos princípios, ao punk rock. Eu falei que isso não ia ser em vão.

Agora ela tinha lágrimas nos olhos. Feladamãe, falando de fi-

delidade ao punk rock agora. Olhei pro cara. Ele parecia uma mistura de guru indiano fake com cantor italiano romântico. Eu disse:

Mr. Bardian, o senhor realmente é um grande profissional no

que faz. O senhor é um puta profissional, um mestre da sedução. Sabe dizer a coisa certa pra pessoa certa, não é mesmo? Na hora

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certa. Sabe dizer exatamente aquilo que a pessoa quer ouvir. Né? Hehehe. Sim, eu sou esse cara. Quarentão, decadente, feio. Feio mesmo. Hehehe. Meio obsceno. Sim, eu peido, tenho futum, bato punheta diariamente, não uso olhos azuis e não fiz nenhuma operação plástica, que eu nunca tive grana pra isso. E mesmo que tivesse, jamais gastaria com uma mierda dessas. Que não ia adiantar muito, né mesmo, senhor Bardian? Hehehe.

Cheguei a pensar em parar. Mas não tinha mais volta.

Sim, eu tenho essa voz estridente, esse agudo absurdo que

me habilita a berrar as letras no meio da zoada caótica que é o som dos Paralelepípedos. Que nem o senhor pôde ver ontem à noite. Sim, senhor Bardian, nós somos uma banda decadente, senhor Bardian. Sim, uma banda decadente. Na verdad, a gente já nasceu decadente, que a gente era uma banda dos anos 1980, tocando nos anos 2000, sabe? A gente já nasceu decadente. Não sei como a gente teve algum sucesso. A gente já nasceu errado, senhor Bardian. Nascemos no tempo errado. A gente devia ter nascido uns vinte anos antes. Devíamos ter feito parte da geração de ouro do rock de Brasília, da geração dos anos 1980 e 1990. É isso o que a gente sempre quis ser e nunca foi. A gente é apenas uma banda cover das bandas daquela época. Totalmente fora do tempo. Totalmente fora de moda. Anticool. Nós somos o “cool do mundo”, senhor Bardian, Hehehe. O cool do mundo.

Cool do mundo? Hehehe. Boa. Podia ser um nome de um dis-

co de uma banda de...

Olhei pra Mel. Os olhinhos dela estavam suplicando. Mas não

tinha mais como eu parar.

Qualquer um de nós daria a vida pra ter tocado naquela épo-

ca. Qualquer um de nós daria a vida pra ter tocado na Legião, no Capital, na Plebe, no Detrito Federal, no Finis, nos Metralhas, no Peter Perfeito, na Elite, enfim. No Aborto, é claro. A gente daria a vida, senhor Bardian. O senhor não faz ideia do que seja isso, senhor Bardian. Fizemos algum sucesso lá por 2005, como o senhor deve saber.

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o último rei do rock

Ganhamos muita grana e torramos tudo com drogas e putaria, como convém a uma banda de rock que se preze. Somos e sempre fomos loosers clássicos, perdedores profissionais. Subprodutos de rock da classe média-média da quatrocentos e oito norte.

Eu estava ficando muito emocionado comigo mesmo, mas mi-

nhas palavras não causaram o menor arranhão no sorriso inoxidável de Bardian. Ele disse:

– Juan, por favor, não se menospreze. Não faça isso com você

mesmo. Nós temos muito respeito por você. Por vocês. Artisticamente. Quero dizer. A ManGodCorp procurou muito por alguém com um timbre... Quero dizer, alguém com uma potência e uma verdade na voz como você tem, meu caro. Você é alguém muito raro, Juan. Bem... É... Vocês são não é mesmo? Quero dizer... E também tem o fato de você ter nascido naquele momento, Juan. Eu sei que este é um assunto delicado pra você e não quero que se sinta ofendido, não, nem um pouco ofendido, na verdade, como já disse, acho que não existe nenhum motivo para você se sentir ofendido ou mesmo pra querer esconder esse fato. Do momento do seu nascimento. Você deveria se orgulhar.

Deveria é?

A coisa começou. Eu ia ofendê-lo. Eu ia começar a ofender

todo mundo. A Mel Lee segurava a faca de maneira ameaçadora, mas nada mais me seguraria. Quando a coisa vinha, a telinha virava moqueca de cérebro e minha racionalidade ia pras cucuias. Eu não queria saber de mais nada. Era terra arrasada. Eu só via caos e destruição na minha frente. Bardian sentiu o que ia acontecer, levantou-se da cadeira, abriu os braços e praticamente me obrigou a abraçá-lo. Senti a sua barriga mole sob a bata. Tinha vontade de estrangulá-lo, ou que ele fizesse isso comigo. Mas ele apenas me abraçava. Ficamos um tempo ali, abraçados. Era uma situação ridícula, parecia começo de luta de sumô, mas, inacreditavelmente, eu estava gostando do abraço. Fiquei com mais raiva ainda. Será que a Mel tinha razão e

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carlos maltz

no fundo eu era boiola enrustido? O Panka nunca me perdoaria. Por muita sorte eu não estava com a faca na mão. Bardian estava usando algum perfume indiano ou coisa que o valha. Aquilo me lembrou de um incenso que minha mãe usava às vezes. Ela dizia que era pra trazer calma e serenidade pro Panka. Aquela lembrança tocou em alguma corda bem escondida em mim. Passada a fúria assassina, sentia agora apenas uma dor profunda. Achei que ia começar a chorar, mas segurei as lágrimas, me desvencilhei de Bardian e sentei novamente. Escondi o rosto entre as mãos, não queria chorar na frente daquele puto. Ele também sentou.

– Juan. Juan, meu caro. Por favor. Não se envergonhe. Sim,

Juan. Você é... É... É exatamente o que eu disse pro pessoal da ManGod. Sim. Você é uma pessoa real, exatamente o que nós estamos procurando. Juan. Sim, um artista de verdade. Uma pessoa sensível, com muita dor em seu coração. Eu sei o que é isso, Juan.

Ai ele, espertamente, mudou o rumo da conversa.

– Vim com meus pais da Armênia para o Brasil quando eu

tinha dez anos. Nós passamos fome. Tínhamos aqui alguns parentes da minha mãe que vieram antes, mas eles enriqueceram e não nos deram conversa. Viraram as costas. E minha irmã tinha apenas dois aninhos na época. Passamos fome. Comemos o pão que o diabo amassou, meu caro. O pão que o diabo amassou. Meu pai foi vender mercadoria na rua e morreu esfaqueado em um assalto, três anos depois. Três facadas no coração. Ficamos apenas eu, minha mãe e minha irmã, Juan. A gente passou fome. Eu tive que ir pra rua vender. Tive que aprender. Pra sobreviver. Tive que aprender a ser um vendedor. Eu tinha que vender. Se quisesse comer. Eu sei o que é sofrimento, meu caro. Eu sei o que é sofrimento. Aprendi a ser um vendedor. E sou. Um puta vendedor. Eu sei o que as pessoas querem. Conheço os corações. Eu... Toco os corações. Sei o que elas querem, sei o que elas precisam. Eu tenho certeza absoluta que você vai ser um estrondo de vendas meu caro.

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o último rei do rock

Aqui ele fez uma pausa e ninguém se atreveu a dizer palavra.

Não tinha nada sendo projetado no lado de dentro dos seus óculos. Será que aquilo era real? Acho que sim. Tenho quase certeza.

– Sim senhor Juan LMK, eu encontrei o que estava procuran-

do. No meio desse cemitério de bonecas barbies malhadas, bombadas, depiladas e photoshopadas. No meio desse deserto de flores de plástico que não morrem, mas também não vivem. Que não fedem nem cheiram, eu encontrei uma planta selvagem. Eu encontrei vida. Sim, amigo Juan. Já posso te chamar de amigo?

Levantei e saí andando. Não tinha mais nada que eu pudesse

dizer ou fazer ali. A Mel Lee ficou sentada com uma cara que eu já tinha visto algumas vezes. Bardian veio atrás de mim.

– Juan. Espera.

Virei-me. Acho que eu ia cuspir na cara dele. Não sei o que

mais eu poderia fazer numa situação daquelas. Mas ele tinha alguma coisa na mão. Um cartão. Parecia um cartão de crédito, mas tinha um logotipo luminoso que eu conhecia bem: SSS.

– Olha Juan, eu sei que você está passando por momentos

difíceis. Eu também já atravessei alguns. Olha. Pega isso aqui pra ti. Eu sei que você gosta. Vai te ajudar a relaxar. É um cartão permanente do SenSoSex. Sem limite de tempo. Vai pega. É sem compromisso, você não me deve nada. Fica pela nossa amizade.

Fiquei parado olhando o cara. Minha mão pegou o cartão.

Cuspi no chão. Saí fora. Entrei mudo no elevador e voltei pra casa andando sozinho naquele calor que fazia com que meus miolos parecessem a gosma que eu e a Melzinha havíamos acabado de comer. O asfalto do eixão fumegava. Eu via os prédios das superquadras através de lentes distorcidas de movimentos de ar quente. O sol indiferente olhava tudo do alto da eternidade azul. A geografia “dalinizouse”. Brasília agora não me parecia nenhuma ágora ou acrópole de concreto. Parecia um antro de ratos.

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7. O diabo ouve Fink Ployd?

Tranquei-me no meu quarto e fumei uma tora. Coloquei um

vinil antigo: Jerry Lee Lewis. Pau duro na hora. “Well, the way is dark. Night is long. I don’t care if I never get home. I’m waitin’ at the end of the road”. Deviam colocar Jerry Lee de trilha sonora nas clínicas pra depressivos. Quem consegue ficar depressivo ouvindo Jerry Lee Lewis? Bão sei lá. Talvez tivesse muita gente se jogando pela janela, né? Dizem que os caras se jogam pela janela quando ficam mais “positivos”. Tasquispariu véi. Como é que um cara como o Jerry Lee conseguiu viver tanto tempo? As pessoas que conviveram com ele, principalmente as mulheres, não aguentaram tanto. Gente afogada em piscina, morta por overdose, cheia de porrada. Essas coisas. Ele chegou a dar um tiro no peito de um baixista da sua banda uma vez. Imagine. E sempre se safava da cadeia. Karaka. As pessoas tinham muito respeito por ele. Medo e respeito. Essas coisas daquela época. Hehehe. “Um artista de verdade”. Quando vão existir artistas de verdad novamente? Quando vai existir qualquer coisa de verdad novamente? Quando vão existir novamente artistas capazes de causar medo e respeito nas pessoas? Um artista de verdad. Hehehe. O Bardian quer um de verdade. Eu? Hehehehe. Eu. Imagine se o Jerry Lee estivesse aqui agora. Ele ia se cagar de tanto rir. Talvez ele atirasse em mim. Talvez fosse a melhor coisa que alguém pudesse fazer por mim. O Jerry Lee não gostava de overdubs, essas coisas. Ele era do tempo

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em que músicos eram caras que tocavam instrumentos musicais. E gostavam de tocar música. Não essa porcaria nojenta que fazem hoje. Essa água virtual com açúcar plastificado. O Bardian devia contratar alguém assim. Hehehe. Alguém como o Jerry Lee. Não. O Jerry Lee teria matado ele ali mesmo, ali mesmo, véio, o Jerry Lee tinha matado o Bardian com as próprias mãos ali mesmo, quando ele veio falar que queria um cara de verdad. Um cara de verdade? Hehehe. O Jerry Lee era de verdad, véio. De verdad, sim, ele vivia exatamente do mesmo jeito que tocava. Daquele jeito mesmo. Uma vez “ele” foi lá no camarim do Jerry Lee depois de um show e beijou os sapatos dele. O Jerry só fez limpar os sapatos, nem tomou conhecimento do John. Hehehe. O Jerry Lee tinha matado o Bardian. Hehehe. O “Killer”. Era phoda. O Jerry Lee sempre fazia mierda, fazia mierda mesmo, merda de verdade. Será que é isso que o Bardian está querendo: merda de verdad? Real shit? Hehehe. Real shit. Um dia o Jerry foi lá na mansão do Elvis, completamente bebum. Completamente bebum com um berro na mão. Hehehe. Queria matar o Elvis. Matar o rei? Por que ele queria matar o Elvis? Sei lá. O cara era maluco. Hehehe. Será que ele achava que o Elvis tinha se vendido? E quando ele tocava, véio. Era phoda. Em 1958, pense. Aquele povo careta. Aquele monte de americano careta até o osso. O cara entrava e quebrava tudo. Era impossível ficar sentado no show do cara. Uma vez ele tacou fogo no piano. Num piano. Tipo. Um piano é um troço tão acima de qualquer suspeita. Tão... Tão... Sagrado. Tipo órgão de igreja barroca. Artista de verdad! Que merda meu. Artista e verdade. Que porra de duas palavras que não nasceram pra andar juntas.

Tava lá pensando no Jerry Lee. Pra ver se eu conseguia fugir

de pensar na Mel Lee. Mas ela vinha pro meu pensamento. A Melzinha. Será que ela era parente do Jerry? Não, com certeza não era. O Lee da Mel não era o mesmo Lee do Jerry. Nem o Mel da Lee, Hehehe. O Lee da Mel na verdade era Li. Do pai dela. Bom, do pai. Mais ou

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o último rei do rock

menos, né? Que o pai mesmo da Mel, o do sangue, era brasileiro e esse ela nunca conheceu.

Os pais da Mel vieram da China pro Brasil no começo dos anos

1980. Não tinham nada, não conheciam ninguém. Acho que vieram fugindo de alguma perseguição. Lembro da Mel ter falado alguma coisa assim. O marido da mãe dela foi vender bugiganga na rua sem falar uma palavra de português. Acabou sendo preso por falta de documentos e falta de grana pra subornar o fiscal. A mãe ficou sozinha no mundo. Teve que se deitar com o cana pra ele soltar o marido dela e eles não morrerem de fome. A mãe dela era tão ingênua que nem sacava nada de camisinha, anticoncepcional, esses trem. A coitada devia ter uns dezessete anos na época. Bem que ela tentou tirar, fazer aborto. Mas não conseguiu e a Mel veio ao mundo. Pra minha sorte grande. A Melzinha veio ao mundo. Filha de mãe chinesa e...

E do acaso.

E do acaso. Pozé. Sejá lá quem ele for. Ou com que cara ele

se apresente. Acaso, coincidência. Sei lá. Azar, sorte. Pra mim, com certeza foi sorte. O que seria da minha vida se a Melzinha não existisse? O psiquiatra dela dizia que essa história toda tinha a ver com a depressão. Sei lá. Ele dizia que era um “trauma pré-natal”, ou coisa que o valha. Tipo aquele lance “In útero”, do Kurt Cobain. O lance dela ter sido... Assim... Da mãe dela ter tentado abortá-la, sabe? Sei lá. O marido da mãe dela assumiu-a como filha, registrou, lhe deu o nome, o Li. Mas parece que o casamento dos dois não durou muito depois dessa história. Que coisa! Tanto sacrifício!

Teve uma coisa que “ele” falou. Naquela última entrevista.

Aquela pra “Playboy”, que ele deu junto com a Yoko. Quando tavam gravando o “Double Fantasy”. Dias antes dele... Bom. Aquela. Ele disse algo sobre noventa e nove por cento da humanidade, inclusive ele mesmo ter sido gerado numa transa banal, num banco de carro banal ou numa cama banal em um motel banal qualquer. Sim, algo assim, de noventa e nove por cento da humanidade ter sido gerada em uma

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carlos maltz

transa escrota, num lugar escroto, com as pessoas tendo sentimentos escrotos, pensamentos escrotos. Algo assim. Eu tava lá, pensando na Melzinha. Que mierda. Karaka, por que eu não entrei no SSS? Eu tava com aquela porra de cartão. Que mierda, por que a gente é tão imbecil? Agora que eu tava com o cartão, por que eu não entrava lá, e esquecia dessa mierda toda? Caralho, depois que eu ganhei o cartão do Bardian a minha vontade de entrar no SSS diminuiu uns oitocentos por cento. Que mierda, agora que eu tinha o cartão eu não entrava. Por que as coisas tinham que ser assim? A humanidade realmente não tinha salvação mesmo. A Mel Lee ia me trucidar. Porra, por que eu não fiz isso, por ela?

Por ela?

É porra, por ela sim, que mierda, por que não? O que eu tinha

a perder? O que eu ia dizer pra ela? Eu tinha sido completamente infantil, impulsivo e imbecil mais uma vez. Como é que ela me aguentava? Como é que ela me aguentou todos aqueles anos? Também... Pra onde é que ela ia correr? Ela só tinha eu e a banda. A banda era a vida dela. Por que eu não fazia isso por ela?

Por ela? HUAHUAHUA.

Caralho. Que risada é essa mermão?

Ela levava aquele lance de banda muito mais a sério do que

eu. Muito mais a sério do que qualquer um de nós. Ela ia me trucidar. Mas também o que ela queria? O que ela quer? Me vender pra esse cara? Ele vai transformar a gente numa papinha pop nojenta. Porra, agora? A essa altura do campeonato? Agora que a gente veio até aqui. A gente vai ser um verbetezinho na Wikipédia. Sim, a gente faz parte da história do rock brasileiro. A gente é uma vírgula, uma bandinha de mierda, mas a gente tem uma história, tem uma estrada. A gente tem a nossa dignidade.

Dignidade? HUAHUAHUA.

Grande bosta. Rock brasileiro, pra que serve isso? Por que eu

não fazia isso? Por ela?

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o último rei do rock

Por ela? HUAHUAHUA.

Karaka. Será que eu tava variando mesmo?

Fumei mais um e mais um e mais um, até acabar toda a Syn-

Canna. Meus neurônios estavam inundados de um vapor de gasolina de nada. Mas eu não conseguia parar de pensar nela. Senti um frio terrível. Eu tremia. Peguei um cobertor, dois, três. Que lombra! Não fazia a menor diferença, era como se o frio viesse de dentro de mim. Era meio-dia de um dia quente e seco. Maio em Brasília. E eu estava com três cobertores e tremia como menino em primeiro dia de aula. Que porra era aquela? Alguma coisa estranha estava acontecendo com a minha casa. Era a mesma casa, mas era como se fosse outra, completamente diferente. Como num sonho, que a gente está na nossa casa, mas a nossa casa é outra casa completamente diferente. Tudo era ameaçador e estranho. Era como se eu não estivesse sozinho. Mas eu tinha certeza que estava sozinho.

Então. Você vai fazer isso por ela?

Quem é você?

E que diferença isso faz?

Mas... Você é uma alucinação minha? Um espírito? Ou outra

coisa pior?

HUAHUAHUA. Nossa! Você está sendo tão científico.

SUMA DAQUI! SUMA JÁ DAQUI!

HUAHUAHUAHUAHUA!

Quem é você, porra?

Sou alguém que você acabaria encontrando um dia. Com toda

a certeza. Todos vão. Mas... Pode me chamar de “Sombra” se quiser. Soa mais científico.

O que você quer. O que você quer de mim?

Eu? Nada. Achei que você é que queria alguma coisa comigo.

Eu? E o que é que eu poderia querer com você?

Uai. O que você sempre quis.

Uai? E desde quando a “sombra” fala uai?

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carlos maltz

E por que não falaria? Em Minas Gerais só tem santo, por acaso?

Só se for santo barroco.

E o que é um santo barroco? Um santo com o diabo dentro.

Hehehe.

Karaka. Você ri. A sombra ri.

E por que não riria? Você é hilário, senhor Juan LMK. Olha o

nome do cara: Juan Leno...

SAI DAQUI, SAI DAQUI DA MINHA CABEÇA!

Huuumm, Que convicção. Você quer mesmo que eu saia?

Quero sim! Não. Quer dizer... Espera aí. O que é que você está

fazendo aí?

Mas... Se eu estou dizendo que foi você mesmo quem me

chamou.

Chamei? Quando? Como? Não me lembro de ter ido a nenhu-

ma encruzilhada.

Meu caro, por favor. Não me decepcione. Não subestime a sua

própria inteligência.

Minha inteligência só é suficiente pra eu saber o tamanho da

minha burrice.

Ora, ora. Temos aqui um rapaz humilde. Um cantor de rock

humilde, um sagitariano humilde, um judeu humilde.

Eu não sou judeu, minha mãe...

Deixe de conversa mole Juan LMK. Eu não tenho tempo a per-

der. E muito menos você.

Entra aqui na minha cabeça e já vai falando grosso.

Olha pra você, meu caro. Olha pra você. O que você é? O que

você fez? Quem é você para desejar aquilo que está desejando? E ainda está pensando se vai aceitar. E ainda está pensando SE vai aceitar. HUAHUAHUA. E ainda tem a cara de pau de dizer que vai aceitar por causa dela.

Tire as suas patas sujas de cima desse assunto. A Mel Lee é

sagrada pra mim.

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o último rei do rock

Sagrada? HUAHUAHUA! Essa foi a melhor que eu ouvi hoje.

Você seria capaz de negá-la trinta vezes antes do galo cantar, meu caro. E nem seria preciso colocar a sua vida sob ameaça. Você faria isso por muito menos. Você faria isso fácil, fácil, pelos seus desejos de poder e fama, meu querido. Aliás. Você fará isso. Muito antes do que imagina. Muito antes de poder pronunciar Pa-ra-le-le-pí-pe-do de trás pra frente.

Do-pe-pí-le-le-ra-pa. Meu querido? Aquilo me lembrava al-

guém. O frio não passava. Na verdade. Parecia que estava ficando cada vez mais frio. Parecia que em vez de três cobertores, eu estava nu, completamente despido. Eu tinha que arrumar um jeito de sair daquela noia. Estava conversando comigo mesmo e não estava achando estranho. Achei que estava ficando doido mesmo. Uma vez o Panka me disse que enquanto eu estivesse achando que estava ficando doido, na verdade eu não estaria. Que doido mesmo nunca acha que está doido. Ele disse que eu devia me preocupar de verdade no dia em que achasse que todo mundo está ficando doido, menos eu. Resolvi continuar com a “conversa” pra ver até aonde ela me levaria:

E se você for apenas uma alucinação minha?

O que você acha que eu sou?

Acho que você é apenas uma alucinação minha.

Então você está ficando doido, meu caro.

Eu nunca acreditei no Diabo.

E faz muito bem. Se falasse a verdade, não seria o Diabo.

Nesse momento ele respirou e tossiu. E me revelou toda a

farsa que minha mente me pregava. Era o mesmo respirar e tossir do Bardian. “Ele” não existia. Agora eu tinha certeza. Era apenas uma criação alucinada de minha mente doentia e noiada. Eu estava conversando com uma criação de minha mente doentia, com algumas características do Bardian. Mesmo assim resolvi continuar com aquela maluquice, pra ver onde ela me levaria.

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carlos maltz

Como você pode saber dos meus desejos mais íntimos?

Digamos. Que eu sou bem informado.

Muito bem informado, né? Sabe de coisas que eu nunca falei

pra ninguém.

E quem pode ser mais bem informado sobre você do que a

própria “Sombra”?

Se você existe mesmo, me diga imediatamente quem é!

Ora, que autoridade! Você nem parece um rapaz inteligente,

Juan LMK. Está me decepcionando. Se eu existo mesmo, só tem um que eu posso ser.

SAIA DAQUI! CARALHO! SAIA JÁ DA MINHA CASA! SAIA JÁ

DA MINHA CABEÇA!

Caralho? Caralho? Hehehehe. O cara só sabe falar caralho.

E tem preconceito contra os homossexuais. Hehehe. Freud explica. Hehehe.

Freud? Caralho, além de filosófico, você é psicanalítico? Só

falta ser lá-cão-niano. Ou seria lá cã-nino? Eu sei muito bem que você não existe. Sei muito bem que o sono da razão produz monstros. Sei muito bem que você não passa de uma produção defeituosa do meu cérbero, digo, cérebro doentio e viciado. Sei que você não passa de algum excesso de noradrenalina ou uma falta de dopamina, ou qualquer coisa que o valha. Sei muito bem que quando os níveis voltarem ao normal daqui a pouco você vai ter sumido do mesmo jeito que apareceu. Você não me assusta. Não passa de algo insosso e fisiológico. Você não passa de um subproduto da minha atividade neuroquímica. VADE RETRO!

Ora, ora, ora, ora. O cara passa a vida toda reclamando da

vida, dizendo que ela é uma merda e que preferia não ter nascido. Tem uma estrela de cinco pontas virada pra baixo imensa tatuada nas costas. Só escuta música falando de morte, destruição, suicídio. É cínico, cético, maledicente, negativo, não acredita em nada nem em ninguém. Engana descaradamente as fãs, se aproveita do sentimento

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o último rei do rock

delas. Já passou até a mão na sua priminha, quando ela tava dormindo. Justo ela, que confiava tanto em você. Esfregou o... Tal do...

CALA ESSA BOCA!

Huumm. Hehehe. Puxa. Olha, ele sente remorso, sente vergo-

nha. Quem diria.

Só eu sei o quanto eu já sofri de arrependimento por essas

coisas. Que eu fiz.

Arrependimento? HUAHUAHUA! Nossa, que coisa mais an-

ticool, fora de moda, que coisa mais... Cristã!!! E você sabe o que é isso, Juan LMK? Não seria capaz de fazer tudo o que fez novamente se aparecer uma oportunidade? Hehehe. Você é um filho-da-puta profissional, meu caro. E quando tem a oportunidade de se encontrar com o patrão, tem ataque histérico, vira uma donzelinha em perigo.

O que você quer de mim, afinal?

Mas eu já disse que foi você quem me chamou. Você é que

está querendo alguma coisa de mim. E eu só vim aqui pra te atender.

Será que você poderia então me esclarecer o que é que eu

estou querendo de você?

O telefone tocou. Era a minha salvação chegando. Atendi. Ti-

nha alguém na linha, mas a pessoa não dizia nada. Só ficava ali respirando em silêncio. Que mierda, será que aquilo era uma alucinação também? A coisa estava ficando cada vez mais sinistra.

Coincidência. Hehehe.

Você continua aí?

Sim, Juan. Sempre estive aqui e sempre estarei com você.

Como uma sombra. Hehehe.

Você está dentro ou fora de mim?

Ahhh. Uma pergunta boa, afinal. Mas... Como um velho ju-

deu, que eu também sou, te respondo com outra: e o que é dentro? Outra: O que é fora? Dentro do quê? Fora do quê? E mais outra ainda: O que é “mim”?

Você é uma alucinação de meu cérebro ou existe realmente?

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carlos maltz

E quem te garante que as alucinações não existem? Ou que

tudo que “existe” não passe de uma alucinação do teu cérebro?

Bom. Sei lá. Que mierda. Um Diablo filosófico. Era só o que

me faltava.

Comecei a lembrar de uma música antiga do Zé Ramalho: “As

borboletas estão invadindo os apartamentos, cinemas e bares”. Algo assim. Ele continuou:

E o que poderia ser mais diabólico do que a Filosofia? Pra que

você acha que serve todo aquele blá-blá-blá, se não for pra confundir o Homem, afastá-lo da simplicidade da Natureza e de Deus?

Deus? El Diablo falando de Deus?

E quem pode ser mais interessado em Deus do que o Diabo?

Será que você poderia pelo menos aumentar um pouco a tem-

peratura aqui, meus ossos estão congelando.

Ah, meu caro. Infelizmente não. O frio é inerente ao meu ser.

Quer dizer então que... O inferno é frio?

Hehehe. Frio? Frio como? Frio como um Shopping Center?

Ou como “arte conceitual”? Hehehe. Ou frio como um gênio pós-moderno do cinema? Hehehe. Ou como os relacionamentos “amorosos” que você teve até hoje, Juan LMK? “Cool”. Hehehe. Ué, diga você mesmo. Não vive dizendo por aí que sua vida tem sido “um inferno” desde que nasceu? Hehehe. Mas vamos abreviar essa nossa conversa, que o tempo escorre, e a tua ampulheta já foi virada.

Ampulheta? Quer dizer que eu… Vendi...

OH-OH-Ora, meu caro. “The sun is the same in a relative way

but you’re older. Shorter of breath and one day closer to death.”

El Diablo escuta Pink Floyd?

Fink Ployd? Ora-ora vai me dizer que você nunca dançou com

o diabo ao som de Fink Ployd? E você acha que El Diablo vai escutar o quê? Esses menininhos vestidos de preto e fazendo caveirinha? Cantando com voz de ogro essas letras infantís falando de ossos e sepulturas? Respeite a minha inteligência.

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o último rei do rock

Você enrolou, mas não respondeu minha pergunta, o que, aliás,

me parece bastante pertinente à sua... É... Pessoa?

Hehehe. Mas que jovem tão inteligente e irônico. Vocês são os

meus prediletos. Você só me seria um filho mais amado, se em vez de cantor de rock, fosse crítico de rock. Esses sim são o suprassumo, o ápice. O ápice do sarcasmo inútil e empoeirado.

Nesse ponto sou obrigado a concordar com você. Senhor Dia-

blo. Uma vez me pediram pra indicar alguns críticos para um grande festival internacional.

É mesmo? E quem foi que você indicou?

Bem. Na verdade... Ninguém. Eu disse a eles que não tinha

nenhum crítico para indicar. A não ser... Pra... Crucificação.

Hahaha. Crucificação. Hahaha. Você é mesmo um filho da

puta, Juan LMK. Profissional. Eu me orgulho tanto de você.

Orgulho? El Diablo sente orgulho?

EU SOU orgulho puro, meu carí$$imo.

Karaka. Parece que eu vou ter que ficar ouvindo essa ladainha

aqui até o fim dos tempos, mesmo, não é?

E você não está gostando Juan?

Se eu pudesse, fazia você sumir da minha cabeça.

Ora, ora, ora. Mas é sempre a mesma conversa. Ladainha, ele

diz. Hehehe. Ladainha. É o que eu venho escutando. Há tanto tempo. As pessoas me dizem uma coisa, mas em seus corações estão quase sempre dizendo outra.

Seja mais claro.

Claro? Claro? Huahuahua. E como é que a sombra poderia ser

clara?

Explique melhor esse lance ai do coração.

Ah, sim, isso é muito fácil. As pessoas fazem exorcismos, an-

dam com um monte de símbolos religiosos pendurados. Fazem tatuagens com símbolos sagrados. HUAHUAHUA. Tatuagens. Aquele monte de manés, um bando de burguesinhos. Caretas até a medu-

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la do osso. Como se aquelas bobagens impregnadas em sua pele fossem protegê-los de mim, protegê-los de si mesmos. Veja como estão as coisas hoje em dia. Veja como as pessoas detestam o silêncio. Veja. O povo. Hehehe. He, ôô, vida de gado. Veja só. O povo. Passam o tempo todo trabalhando como uns condenados. Como os condenados... Tatuados... Hehehe... Que realmente são. Condenados a empurrar a roda do consumo e da insatisfação que gera mais insatisfação e consumo eternamente. Essas tatuagens todas me lembram Auschwitz, me lembram Treblinka. Povo marcado. Hehehe. Prisioneiros do desejo. Marcados pra serem os próximos a serem moídos pelas engrenagens do consumo. Qual é o trabalho que o Diabo tem nesses dias de hoje? É moleza meu caro. Mais mole que empurrar cego ladeira abaixo.

Eu tentava fugir de mim, mas pra onde eu ia, ele tava.

Querem perseguir o “diabo”. Mas o Diabo está dentro de vo-

cês mesmos. Dentro de seus corações sedentos de sangue, emoção, drama, grana, assassinatos, vinganças, estupros. De que adianta se encher de tatuagens e bijuteriazinhas por fora, se minha casa é no coração das pessoas? Hehehe. E eu só entro onde sou convidado, lembra? Gritam: “VADE RETRO”. Mas em seus corações ansiosos, secretamente desejam por mim e pelas minhas benesses mais do que qualquer outra coisa nessa vida. Como alguém doido pelo poder acha que vai se livrar do diabo gritando Vade Retro? Por que as pessoas detestam o silêncio meu caro? Você não sabe não?

Não.

É porque é no silêncio que se encontram consigo. É no silên-

cio que se encontram comigo. Em seus corações. É no silêncio que despem as suas máscaras politicamente corretas e encontram a sua verdadeira realidade mais íntima: o eu. Ou seja: Eu.

Que tipo de “benesses” você está falando?

Ah, meu caro. E você por acaso ainda não sabe? Não sabe

quais são as maravilhas que eu tenho pra oferecer? E quem é que não

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sabe? Quem é que não sabe que os prazeres que se escondem sob a sombra são muito mais saborosos e mais intensos do que os que a luz revela? Você meu caro. Olhe pra você. Você não pensa em outra coisa. Dia após dia, após dia. Todas as horas do dia. Desde que você nasceu. Você nunca pensou em outra coisa.

Fala logo porra, para com essa encheção de linguiça.

Calma senhor sagitariano, calma. Hehehe.

Não vai dizer que é astrólogo também.

“Eu sou astrólogo e conheço a história do princípio ao fim.”

Hehehe. Calma senhor sagitariano. Calma. Eu conheço a sua história do princípio ao fim. Pra dizer a verdade, não vejo dificuldade nenhuma em adivinhar o seu futuro, senhor ansiedade. Nem preciso ser astrólogo pra adivinhar. Hehehe. Aliás, que palavra mais desconhecida de seu vocabulário, não é mesmo Juan? Hehehe. Que palavra exilada deste mundo: Calma. Você meu caro. Você nunca teve calma. Sempre esteve correndo, desesperado, sem saber para onde. Você sempre foi esse sagitário, cavalo rápido, voraz, insaciável. Correndo desesperado sem saber para onde está correndo. Pobres palavras exiladas deste mundo: silêncio e calma.

Acabou?

Não. Calma. Hehehe. Agora. Tem uma outra. Hehehe. Essa

você conhece bem: Fama. Senhor Juan LMK. Fama. Você nunca pensou em outra coisa nessa vida, meu caro. Nunca pensou a não ser em ser maior do que “ele”. Hehehehe. Estou falando alguma novidade? Hehehe. Parece que não, não é mesmo? Não, meu caro. Você nunca se contentou com a sua vida. Não, você nunca se contentou com aquilo que a vida tinha pra você. Nunca se contentou com a sua vidinha, com o tamanho do seu talento e com aquilo que teria que viver. Você nunca se contentou com o seu tamanho, senhor Juan LMK. A inveja, a vaidade e o orgulho sempre foram os motores da sua existência, meu caro.

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o último rei do rock

Ahhh, isso. Que bobagem. Nossa. Há quanto tempo que eu

não estou mais nessa. Você está meio atrasado, senhor “Sombra”. Hehehe. Só uns quinze anos atrasado. Eu não tô mais nessa faz é tempo. Tô cagando presse trem de sucesso. Fama, essas porra. Eu tô nem aí.

Mentira! Você não precisava ir ao encontro com Bhardian. Foi

por que quis. Foi por sua livre e espontânea vontade. Agora está aí se fazendo de difícil. Mas aceitou o “presentinho” de Bhardian. Se vendeu e se vendeu barato, meu caro. E nem tem a dignidade de reconhecer que é um vendido. Você está louco pra se vender inteiro Juan. E vai fazer tudo o que ele mandar você fazer. Se ele te mandar se vestir de mico de circo, você faz isso por uma merrequinha de maconha sintética. Você está na mão dele, Juan. Você me pertence. E o pior de tudo é que você deseja isso, do fundo da sua alma, ou o que sobrou dela, hehehe, isso é o que você mais deseja, meu caro.

CHEGA! CHEGA DESSA PORRA! SAI DAQUI! SAI DAQUI

AGORA!

Lembrei de uma coisa que o Panka me ensinou pra fazer em

situações em que estivesse muito lombrado: Entrei embaixo do chuveiro e abri a torneira da água fria. De roupa e tudo. A água gelada bateu em meu corpo que já estava tremendo de frio como se fosse uma chuva de pequenas agulhas eletrificadas. Eu gritava. De dor. Mas também de prazer. Que prazer maravilhoso que aquela dor estava me causando. Eu estava silenciando a voz. Sim, eu a estava silenciando. Estava descobrindo um jeito de me livrar dela. A dor. Sim, a dor estava me livrando daquela maldita voz da sombra, da minha alma, do diabo ou seja lá o que fosse aquilo. Eu estava livre.

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8. Gente pobre e crianças ainda usavam olhos que não eram azuis

O acaso encontrou um jeito de me fazer cumprir os seus de-

sígnios. A porta bateu, minha mãe chegou. Ainda bem, alguém pra conversar. Ela me chamou gritando:

– Johnny!

Era desse jeito que ela me chamava. Ela nunca me chamou de

Juan. Sua voz estava estranha. Alguma coisa tinha acontecido. Cheguei à sala. Ela nem reclamou do cheiro da maconha. Estranho. Ela chorava. Estava muito assustada.

Que foi, mãe?

– O Panka.

Qué que tem o Panka, mãe?

– O Panka fez uma bobagem. Uma bobagem grande. – Ela disse.

Ela tava de um jeito diferente dessa vez. O Panka já tinha feito

muita bobagem na vida. Minha mãe sempre segurava a onda dele. Eu já a tinha visto sofrer por causa dele muitas vezes. Mas agora era diferente. Senti que la mierda era grande.

Mãe. O Panka sempre faz mierda.

– Não, não. Agora é diferente, eu sei. A gente precisa ir lá,

agora mesmo.

Agora mesmo. Pô mãe. Agora? Daqui até Águas Lindas vai

levar umas três horas.

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– Não, não, você não está entendendo. Precisamos ir lá agora

mesmo, imediatamente. Vamos voando. Agora mesmo.

Voando? Karaka mãe. Vai ser uma grana. Não, mãe, vamos nos

acalmar. Calma mãe. Calma. Palavra exilada desse mundo mãe. Calma. Vamos. Colocar a cabeça no lugar. Você exagera as coisas do Panka às vezes, mãe. Não deve ser isso tudo. Putz, helicóptero de novo.

– Johnny, por favor, por favor, a gente precisa ir agora, agora,

por favor.

Ela estava chorando de um jeito diferente. Eu não sabia o que

dizer nem o que fazer numa situação daquelas. Fiquei calado.

Tá bom, mãe. Vamos então.

Saimos da 408N correndo. A gente corria um pouco e parava

um pouco pra respirar, que era o que eu e minha mãe aguentávamos. O campo de pouso dos helitáxis ficava no final da 416N. Tivemos que pegar dois mototáxis pra chegar até lá. O trânsito estava completamente parado. Chegamos um minuto antes de o helicóptero decolar. O próximo pra Águas Lindas só partiria em duas horas. Decolamos. Do alto, Brasília agora não me parecia uma acrópole de concreto e nem um antro de ratos. Parecia um formigueiro de gente. Como todas as cidades do Brasil. Como todas as cidades do planeta naquele momento. Um formigueiro de pessoas e problemas. Eu olhava os blocos de concreto e encrencas imaginando todo o sofrimento que havia lá embaixo naqueles cubículos de existências. Tantas histórias confusas, malucas. As ruas pareciam artérias entupidas de sangue enferrujado. Toneladas de metal. Carros a dar com pau. Unsustainable. Unsustain. Unsustain. Gente, gente, gente. Tanta gente lutando pra ficar com a cabeça fora d’água. Tanta gente lutando pra continuar respirando e tendo o direito de viver as suas encrencas, sofrimentos e histórias malucas. Quem teria inventado tudo isso? Com qual finalidade? Deus? O acaso? Às vezes eu pensava que esses dois caras deviam ser o mesmo. Com nomes diferentes. Tipo os judeus chamarem a Palestina de Israel, e os palestinos chamarem Israel de Palestina.

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PARANOIA AQUARIANA

(Juan LMK, BBC, Daniel Loló & Ratón-Tón). Minha mente é um cenário De novela mexicana

Os hômi tão na minha cola Paranoia aquariana

Alguma coisa deu errado

O bairro inteiro na minha cama Ziguizira cabulosa véi Paranoia aquariana

Vagaranha importada Piriguéti americana

Tô bolado pacarai véi Paranoia aquariana

Eu vou, eu vou. Eu vou, eu tô Lombradasssssooooo Paranoia aquariana Paranoia aquariana Paranoia aquariana Paranoia aquariana

A mina até que era de boa Mas foi muito imprudente O berro era quente Paranoia aquariana

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A piriga ficou crazy

Com o carro do bacana Deu mole pro otário Paranoia aquariana

A jiripoca vai piar

Sentei o dedo mei demente Um presunto no armário

Shit! Paranoia aquariana Eu vou, eu vou. Eu vou, eu tô Lombradasssssoooo

Paranoia aquariana Paranoia aquariana Paranoia aquariana Paranoia aquariana O sol nasceu quadrado Rodei e tô em cana

Veraneio vascaíno véi É paranoia aquariana.

Descemos na pracinha do pequeno município de Goiás, que

vivia apoiado nas costas do Distrito Federal. O heliporto ficava de frente para uma velha estátua de algum velho santo da velha igreja. Tinha um relógio digital também: 15h15min. Águas Lindas era um dos últimos pequenos municípios satélites aonde a pujança e a abundância da Capital Federal ainda não tinham dado o ar da sua graça. O Panka tinha ganhado um resto de terreno ali. Herança da mãe dele. Acho. Aos trancos e barrancos conseguiu construir uma casinha. Fomos até lá de táxi. As ruas também estavam apinhadas de carros, mas

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eles eram mais velhos. Carros do começo do século. E ali também se viam carros que não eram cinza-metálicos, além de pessoas que não usavam olhos azuis. Mas o calor era pior do que no plano pilouco.

Levamos mais ou menos uma meia hora pra vencer as pou-

cas quadras. Mas não tinha como ir andando, o calor nos esmagaria. Chegamos. A casa do Panka ficava numa pequena passagem que há pouco deixara de ser ruela e fora asfaltada. Era bem no final da rua. Só tinha a casinha dele, e do outro lado, um pé-sujo que devia estar fechado há uns dois anos. O silêncio imperava. Ouviam-se cachorros latindo ao longe e um choro baixinho. Parecia ser o choro de uma criança. A chapação havia passado completamente, mas eu, pra variar, estava com vontade de vomitar. Sempre ficava mareado quando andava naquelas porras de helicópteros grandões. Acho que eles balançavam mais do que os pequenos. Ou então os pilotos desses coletivos não tavam nem aí pros passageiros, como nos helicópteros menores. Eu detestava os helitáxis.

O choro da criança vinha de dentro da casa. Minha mãe tocou

a campainha. Não funcionava. Ela bateu na porta. Nenhuma resposta. O choro da criança ficou mais alto. Acho que ela correu pro lado da porta, pelo lado de dentro, quando ouviu o som das nossas batidas. Minha mãe chamou pelo nome: Carolina! Era a filinha do Panka. A menina começou a berrar. Estava desesperada.

– Carol. Abre. Sou eu, a tia Ana. Abre Carol.

Minha mãe forçou a porta. Dava pra ver que não estava cha-

veada. Era daquelas portas metálicas antigas que trancam para fora, mas só podem ser abertas por dentro. A menina poderia abrir, mas estava muito assustada.

– Abre Carol. É a tia Ana. A que te deu a boneca da chinesinha.

A menina veio até nós. Dava pra ver a silhueta dela através

de um vidro cheio de ondulações que tinha da metade pra cima da porta de ferro fundido. Fazia tempo que eu não via uma porta sem i-MageDoor.

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– Abre Carol. Abre.

Ela abriu. Devia ter uns seis ou sete anos. Eu só a tinha visto

uma vez, há uns quatro anos. Era bem pequenininha, com os cabelos loiros da mãe e os olhos verdes claros e ingênuos do pai. Gente pobre e crianças ainda usavam olhos que não eram azuis. Ela estava muito assustada. Seus olhos, que já eram imensos, pareciam globos prontos pra saltar das órbitas. Havia parado de chorar, mas soluçava de uma maneira capaz de partir o coração de um gerente de banco. Se via que estivera ali chorando sozinha por muitas horas. Quando a porta abriu, ela se agarrou em minha mãe de tal maneira, que poderia ficar ali até o final das eras. Não dizia nada. Apenas soluçava. Ficamos os três parados na porta. Com as duas abraçadas, obviamente eu teria que ser o primeiro a entrar. Entrei. A sala era pequena, cheirava mal e estava totalmente desarrumada. Coisas e pedaços de coisas jogados por toda parte. Era evidente que tinha havido briga. E briga feia. No centro, o que havia sobrado de um televisor antiquado, daqueles de tela plana, tinha se apoiado de modo curioso a uma cadeira que estava de cabeça pra baixo, ao lado de um troço quebrado que talvez, em seus bons tempos, tivesse sido um porta-chapéus. O conjunto formava um quadro curioso, expressivo. Estava me dizendo algo muito sombrio a respeito do que iria acontecer na sequência. Velhos discos de vinil espalhados: Ramones; Pistols; Iggy; Velvet; Dolls; MC5; Damned; Stranglers; Buzzcocks; Clash. A geração de 1977 estava toda ali. Solidariamente presente.

Num canto da sala, o Panka jazia caído com uma garrafa de

Vodka numa mão e o i-magePhone na outra. Achei curiosa aquela presença da tecnologia de ponta no meio daquele depósito de velharia do século passado. Ele dormia profundamente de boca aberta. Sua respiração pesada rasgava o silêncio suburbano como se fosse um velho navio encalhado prestes a afundar definitivamente no abismo escuro do mar. Pensei que talvez estivesse em coma. O cheiro de álcool e tragédia era insuportável. Não segurei mais. Vomitei. Limpei

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a boca com a manga da camisa. Cheguei perto do Panka. Não o via há uns dois anos. Estava magro, muito magro, e mais velho. Muito mais velho. Caído no chão, perto do i-magePhone, tinha também um berro. Um “trezoitão” de cano curto. Aço inoxidável com cabo de plástico cinza. Novinho em folha. Tasquispariu. Eu nem sabia que ele tinha uma porra daquelas. Pra que ele queria aquilo? Como ele conseguiu uma porra daquelas? Aquela arma devia ter custado uma baba. Ele sempre tinha sido uma pessoa violenta quando bêbado, mas uma arma? Karaka. Nunca tinha visto o Panka sequer pensar em ter uma arma. Passei por ele e entrei no quarto. Ainda bem que eu já tinha vomitado. Eu nunca tinha visto uma pessoa morta assim daquele jeito. Tinha visto a minha avó, que morava com a gente quando ela morreu. Mas era uma pessoa de idade, e morreu de morte morrida, no banheiro lá de casa. Mas daquele jeito era diferente. A mulher devia ter uns trinta, no máximo. E seus olhos estavam abertos. Eram azuis. Apesar de ela ser pobre. Tinha gente pobre que se endividava pra também poder ter os seus “olhos de anjo”. O Panka acertou dois tiros nela, bem perto do coração. Pela bebedeira, ele deve ter atirado de perto, pra ter acertado assim. A vermelhidão tomava conta de tudo. E o cheiro da morte. Eu nunca soube que a morte tinha um cheiro. Fiquei parado. O que eu devia fazer? O que eu podia fazer? Lá na sala, o Panka disse alguma coisa ininteligível. Minha mãe e a garotinha continuavam agarradas, chorando. Ouvi minha mãe dizer: “meu Deus do céu, meu Deus do céu”. Não me lembro de ter escutado minha mãe dizer a palavra “Deus” até então. Ela largou a garotinha e começou a chutar o Panka.

– Panka, Panka, acorda seu filho de uma puta! Acorda!

O Panka conseguiu abrir um olho, disse mais alguma coisa

embrulhada e inaudível.

Minha mãe chorava. A garotinha continuava agarrada nela.

– Panka, seu merda, o que é que você fez?

– Acabei com a cadela.

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Ele disse isso com uma voz que parecia alguém que estivesse

com a boca cheia de papel de parede embrulhado.

– Acabei com a raça da vagabunda. Ela era uma garota muito

má, uma garota muito má. O que é que ela tava pensando? O que é que a cadela tava pensando? Que ia me enfiá chifre na cabeça e ia ficar por isso mesmo? Cadela, vagabunda. Agora eu quero ver ela enfiá chifre na cabeça de alguém.

Nunca pensei que coisas óbvias assim poderiam acontecer de

verdad na vida real das pessoas. Aquilo estava acontecendo mesmo.

Vai passar na televisão. Vai passar na televisão.

Porra tinha a letra de Paranoia Aquariana que contava uma

história que a gente tinha escutado, de um mané do lago sul que tinha arrumado uma mina americana que dava pra todo mundo. Um dia o mané pegou ela com um vizinho dentro da casa dele, deu umas porrada na mina e mandou ela embora. Na música a gente radicalizou um pouco e fez o cara dá uns tiro na mina e ir em cana. Mas. Porra, isso era uma letra de música véi. Uma bobagem, uma coisa que a gente tinha inventado. Mas agora... Caralho, aquilo tava acontecendo mesmo. O Panka tinha matado a mulher dele. Caralho. Mais uma porra de uma coincidência do caralho tava acontecendo na minha vida.

Ele tentou levantar. Mas estava muito bêbado. Deu dois pas-

sos, tropeçou numa cadeira caída e deu de cara no chão. A garotinha começou a chorar alto novamente, minha mãe dizia:

– O que é que nós vamos fazer? Meu Deus do céu, o que é que

nós vamos fazer?

Vamos sair daqui agora, mãe. Vamos sair antes que a polícia

ou algum vizinho chegue.

– Não, não. Johnny. Nós não vamos sair, nós vamos é chamar

a polícia.

Mas mãe, se a polícia chegar, o Panka tá no sal.

– No sal? Johnny. O Panka tá fudido. O Panka tá fudido. Dessa

vez foi demais, passou de todos os limites, ele tá fudido, vai em cana,

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vai se fuder. O Panka tá acabado, Johnny. Olha só pra ele. Ai meu Deus do céu.

A menina, que estava agarrada na perna da minha mãe e tre-

mia toda, começou a gritar:

– Minha mãezinha, minha mãezinha!

Uma senhora chegou até a porta. Ela colocou a cabeça pra

dentro, deu um gritinho e ficou dizendo alguma coisa tipo “ai meu Deus do céu” também. A menina largou a minha mãe e correu pras pernas da senhora. Via-se que era alguma pessoa conhecida. Uma vizinha, talvez. Ela segurou a menina pelos braços e ficou dizendo pra ela: “eu sabia que isso ia acontecer, eu sabia”. A senhora soltou a menina e saiu esbaforida porta afora. Em poucos minutos, um homem tosco velho de camiseta cavada e duas garotas negras gordas chegaram. O Panka estava caído, agora seu nariz também sangrava. A menininha voltou a agarrar as pernas da minha mãe. Ela apenas ficava repetindo:

– “Minha mãezinha, minha mãezinha”.

É sangue mesmo, não é mertiolate.

A polícia chegou em quinze minutos. Eram três homens e uma

mulher. Extremamente eficientes e polidos. Pareciam mais uma equipe de pit stop de fórmula 1. Entenderam rapidamente o que estava acontecendo. Cuidaram primeiro do Panka. Algemaram-no cuidadosamente e levaram-no para a “Veraneio Vascaína”. Que no caso, era um “SUV Mitshubishi” azul cobalto 3.6 zerada. Depois os caras foram cuidar da mulher morta, enquanto a policial administrava a situação da garotinha. Fomos todos, eu, minha mãe, a garotinha, o Panka algemado, o vizinho tosco e as meninas negras gordas para a delegacia prestar depoimentos.

Tinham coisas muito estranhas acontecendo por trás daquela

história toda. Mas eu ainda nem era capaz de imaginar o tamanho da encrenca em que estava me metendo.

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9. Será que esses caras tavam comprando seus sorrisos no mesmo fornecedor?

O Panka tava ferrado mesmo e não tinha a quem recorrer. A

gente também não tinha a quem recorrer. A única pessoa a quem eu podia recorrer era Belair Bardian, mas procurar o Bardian naquele momento significava aceitar o seu jogo e eu ainda não estava preparado. Ainda não estava convencido daquela conversa da “Sombra”. Ainda estava resistindo. Ou achava que estava. A filhinha do Panka tinha ido pro Maranhão, com a avó, que também era uma pessoa que não tinha pra quem recorrer. Minha mãe estava recorrendo à Justiça para ficar com a guarda da menina, mas as chances eram poucas.

A Mel Lee tinha resolvido dar um tempo pros Paralell. Ela já

tinha feito isso outras vezes em que a gente se desentendeu feio, mas eu achava que agora ela tinha desistido de nós de verdade. Disseram até que ela estava estudando pra concurso. Eu estava numa situação muito difícil. Não tinha grana nenhuma e o nosso novo “empresário” era um mané completo: um amigo do Loló, mais drogado do que a gente, que não arrumava nada. Eu ia acabar cedendo. Por que eu não cedia logo? Que mierda, por que eu era tão covarde? Eu era covarde até pra me vender. Mas eu não podia entrar naquela sem conversar antes com o Panka. Todos os passos que eu dei na minha “carreira

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artística” foram orientados por ele. Como eu ia fazer uma coisa daquelas sem conversar com ele?

O Panka tava em cana. A gente tava tentando ir lá visitá-lo,

mas era difícil. A gente não era parente dele, minha mãe nunca foi casada com ele, nada. Eu ia acabar tendo que pedir arrego pro Bardian. Agora eu tinha um bom motivo. Ou uma boa desculpa. Tudo bem, o Panka era um porra-louca, um abilolado, bebum de mierda. O filho da mãe tinha matado a pobre coitada da mãe da filha dele. Mas ele era o único pai que eu tive. Eu precisava falar com ele, precisava ver como ele estava. E aquele lance do cano. Era muito estranho. Eu precisava saber como é que o Panka tinha arrumado um cano.

A Mel Lee conhecia um garotão que era advogado. O cara

tinha ficado com ela num show da gente, na época que ele ainda tava na facul. Ele já tinha se formado e tava bombando em Brasília. Advogado de político, esses trem. Liguei pra Melzinha na cara dura. Ela fez corpo mole por uns dez minutos, mas não conseguiu resistir. Era uma pessoa boa demais pra isso. Ela atendeu lá uns desejos meio esquisitos do cara que mexeu os pauzinhos certos e eu consegui.

O Novo Complexo Penitenciário da Papuda. A “New Papu”

era uma velha penitenciária que tinha sido totalmente reformada e recentemente anexada pela PanopticumCorp, a grande megamulti das penitenciárias. Uma potência mundial. Desde o começo do século nos EUA, e depois no resto do mundo, a PanopticumCorp vinha transformando penitenciárias em linhas de montagem nos moldes da indústria chinesa do final do século passado. E os caras estavam realmente conseguindo produção a preço baixíssimo. Ainda mais que, além da isenção total dos impostos, os governos pagavam um valor alto por cada detento interno nos “centros de recuperação solidária” da Panopticum. Um verdadeiro negócio da China. Pra eles, é claro.

O marketing dos caras era violento. As propagandas na te-

levisão eram de arrasar. Imagens belíssimas, efeitos carésimos, os melhores diretores de SenSoMovies. E toneladas de números. Dados

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e mais dados comprovando estatisticamente a eficácia do seu “programa de reabilitação solidária”. Eles passavam mesmo a imagem de uma empresa superética, voltada mais para o bem estar da população do que para o lucro.

Havia muita polêmica, especialmente com os socialistas e tra-

balhistas no mundo todo, mas a realidade é que desde o início do reinado da

PanopticumCorp, não se ouviam mais reclamações

de maus-tratos e condições insalubres nas prisões. O pessoal da “esquerda” dizia que o negócio só era bom pra megamulti, que o governo ou grupos brasileiros podiam fazer o mesmo trabalho de recuperação e reintegração dos presos a um preço muito mais baixo. Sei lá. Eu não tinha uma opinião formada sobre o assunto. Depois que as drogas foram liberadas, a chance de eu virar hóspede do governo diminuiu muito, e eu não tava nem aí pra política e esses trem. Naquela época, se falava muito sobre o fim da era das corporações, empresas éticas, economia verde, dinheiro solidário e coisas do gênero. Mas o que eu via era uma guerra invisível cada vez maior entre as redes de cidadãos de um lado e poucas e cada vez mais imensas megacorporações de outro. Naturalmente, meu coração batia mais forte pelo lado das pessoas, das redes, das comunidades que cada vez mais usavam a internet para adquirir cidadania e controle sobre as ações das megacorporações. Que, por sua vez, cada vez mais acuadas, se reuniam e aumentavam o seu poder de barganha e pressão sobre os governos. Que, por sua vez, cada vez mais pareciam mariscos oprimidos entre o rochedo e o mar.

A PanopticumCorp era uma corporação gigante e extre-

mamente eficiente. Fugas? Uma raridade total. Os caras trabalhavam com um sistema gradativo de níveis de segurança, que iam do um ao cinco e ficavam revezando os presos em função do seu comportamento. Se o cidadão cooperava e se tornava produtivo, ia baixando até o um, que era quase um sistema semiaberto, com direito a ir dormir em casa. Se o cabra era rebelde e dava trabalho, podia ser

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deslocado para o nível cinco, de segurança máxima, onde ficava praticamente o tempo todo em uma solitária sem direito sequer de ir ao pátio receber a luz do sol. O poder judiciário nos países onde a PanopticumCorp operava também trabalhava numa espécie de joint venture com eles e se tornava muito mais rápido e “eficiente”. As populações carcerárias aumentavam exponencialmente, enquanto as ruas das cidades se tornavam cada vez mais “limpas e seguras”. No começo, foi muito combatido, os juristas diziam que era um “escândalo” e coisas que o valham. Porém, foi igual ao caso da legalização das drogas e da legalização da “pedofilia consentida”. O povo esperneou muito no começo, mas acabou aceitando e se acostumando.

Levou muito tempo pros caras conseguirem entrar no Bra-

sil. A guerra megacorporação X comunidade organizada tinha sido sangrenta. Mas desde 2015 eles estavam dando as cartas. E provavelmente dominarão por muito tempo. A população brasileira, como você leitor também deve estar sabendo, votou em massa a favor da permanência da Panopticum no Brasil no plebiscito de 2020.

Não estava sendo fácil conseguir entrar na “New Papu”. O sis-

tema de visitas dos caras era rigoroso, especialmente para presos recém-chegados. Essa situação só começou a melhorar lá por volta de 2027. Naquela época, nos primeiros meses depois do plebiscito, os caras tavam cheios de moral, e as pessoas e a justiça brasileira tinham pouco poder pra pressionar por direitos de presos, essas coisas.

No nosso caso, como havia assassinato e a gente não conhe-

cia ninguém importante, era mais difícil ainda. O Panka tava no nível quatro. Do três pra frente o jogo era duríssimo. Porém, o amigo da Mel, que era o maior caô, era também profissa pacarai. Conhecia as pessoas certas e conseguiu um “black card”, o passaporte para entrar na fortaleza high-tech. Eu e minha mãe quase não acreditamos. A gente tinha direito apenas a uma visita. Fui eu, que era quem estava mais necessitado de conversar com o Panka. Minha mãe ainda estava com muita raiva dele.

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Os caras da Panopticum tinham até um helibus próprio, que

decolava da Ponta Picolé. Saí cedo de casa e fui a pé da 408N até o final do Lago Norte. Às vezes, em determinados dias, em determinados horários, apesar do calor insano, a maneira mais rápida de andar por Brasília era a pé. Não é muito longe. Vencendo quadras e toneladas de carros coreanos cinzentos, devo ter gastado no máximo uma hora e meia. Cheguei uma meia hora antes do horário marcado. Não estava a fins de perder essa oportunidade por causa do engarrafamento.

Visto do alto, o “Centro de reabilitação solidária Panopticum

-Papuda”, o “New Papu” parecia mais um cenário de videogame do que algum lugar no planeta Terra. Eram quatro construções maciças com duas torres. O primeiro bloco, maior, em forma de pentágono, abrigava a recepção, a administração central, as oficinas de trabalho e as celas do primeiro nível de segurança. Bem no centro da construção havia uma torre altíssima que parecia uma mistura de torre de observação de aeroporto com esses novos edifícios chineses de duzentos andares, que terminam em torres abobadadas. A parte superior era toda de vidro. E era rotatória. Mais ao fundo, alinhados com as arestas da parte triangular do pentágono, outros dois blocos de forma retangular. Do lado esquerdo estava o nível dois, e do lado direito um volume com as mesmas dimensões abrigava os níveis três e quatro. Ao fundo, perfeitamente alinhado com o centro geométrico de toda a construção e com a torre de observação, um pequeno forte com uma torre central de base quadrada abrigava as solitárias e a guarda especial da prisão de segurança máxima, o nível cinco. O conjunto todo também formava outro pentágono. Todos os prédios eram revestidos de algum material que eu não conhecia. Algo como uma borracha preta aluminizada ou coisa assim. Eu já tinha visto o complexo de longe, em outras vezes que andei de helicóptero, mas assim de perto, era impressionante. Surpreendeu-me o fato de a área externa não ser cercada com arame farpado nem nada dessas coisas que a gente espera encontrar em uma penitenciária. Tinha umas

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torres bem fininhas que emitiam uma luz vermelha que gerava uma espécie de “campo” ou algo assim. Os caras eram high-tech mesmo.

Descemos num heliporto que ficava dentro de um desses

“campos”. Fomos recebidos por uma loira fodástica vestida num macacão preto e botas. Ela nos tratou superbem, parecia um espécime daqueles que casam com lutadores de UFC ou que habitam os boxes da fórmula 1. Aquele lugar parecia qualquer coisa menos uma penitenciária. Pense em um lugar clean. Aquele lugar era clean.

De perto, os blocos eram ainda mais impressionantes. Tudo

preto aluminizado. Sem janelas. E aquela torre que se elevava muitos metros acima da muralha que já era superalta. Não consigo nem imaginar como alguém poderia sequer pensar em fugir de um lugar como aquele.

Entramos no blocão pentagonal. Tinha um hall, não muito

grande, e pouca gente circulando. Todos os funcionários vestiam aqueles macacões: amarelos, azuis, vermelhos verdes e pretos. Acho que os macacões indicavam o setor que a pessoa trabalhava. O silêncio reinava. As pessoas andavam de maneira calma e discreta. Parecia uma estação espacial. Com certeza devia ter umas trocentas câmeras por ali, as pessoas nem piscavam. Eu estava com um grupo de mais ou menos dez pessoas, todos visitantes. A loira fodástica nos levou a uma sala pequena que ficava no segundo andar. Sentamos em cadeiras superconfortáveis, que tinham auriculares acoplados. Ela nos pediu pra acomodar os auriculares e começou a falar bem baixinho num micromicrofone que ficava em frente a sua boca vermelha maravilhosa. Sua voz era como maná do céu. Eu concordaria com cada palavra dita por ela, antes mesmo de ser dita. Ela mandava superbem. Deveria existir alguma corte internacional que proibisse uma mulher daquelas de trabalhar numa penitenciária. Aquilo criava uma artificialidade insuportável. Era cruel demais. Você pensar que tinham caras que estavam lá dentro e nem podiam ver a luz do sol a poucos metros de distância de uma bomba sexual daquelas. Estava

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tão abestalhado que nem lembro exatamente das palavras que ela disse. Talvez algo assim:

– Nós da PanopticumCorp estamos muito felizes com a sua

visita. Os entes queridos que vocês vieram visitar são internos do “Centro de Reabilitação Solidária Panopticum-Papuda”. Um dos complexos penitenciários mais modernos do mundo. Aqui, além de alimentação balanceada, eles estão recebendo programas de reabilitação social de última geração, como treinamento físico, correção psicofarmacológica, terapia cognitivo-comportamental e programação neurolinguística.

Correção psicofarmacológica? Tipo. Laranja Mecânica?

– Acima de tudo isso, seus entes queridos estão tendo a opor-

tunidade de reaprender a ser integrantes positivos e produtivos da nossa sociedade, tendo o direito de pagar pelos seus programas reabilitadores através do trabalho. A PanopticumCorp é uma corporação econômica e ecologicamente sustentável. Somos um modelo mundial de sustentabilidade. Seus entes queridos sairão da sua estadia em nosso complexo muito mais saudáveis e preparados para a vida do que quando entraram. Todos nós que trabalhamos no “complexo Panopticum-Papuda” somos muito felizes e nos sentimos muito orgulhosos por pertencer a esta corporação. Mas não recomendamos ninguém a cometer um crime apenas para poder se hospedar em um de nossos complexos. Hehehe.

Risos amarelos.

– Brincadeirinha, gente, tá?

Eu também ri. Uma mulher daquelas tem o direito de dizer

qualquer asnice, que todo mundo encontra a graça.

– Agora vamos ter o privilégio de ouvir algumas palavras do

nosso diretor mundial, o senhor Oliver Leverkünd.

Subitamente a parede que estava atrás dela transformou-se

num imenso telão 3D. Mr. Oliver apareceu na nossa frente como se

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estivesse ali na sala. As luzes foram diminuindo suavemente até desaparecerem. Ficou um breu. Apenas a figura holográfica de Leverkünd brilhava diante de nossos olhos. Ele falava em inglês, mas a gente já ouvia a tradução instantânea sincronizada. Parecia que ele realmente falava em português. Eu nunca tinha visto um sistema de tradução instantânea tão bom até então.

Oliver Leverkünd era um americano típico, apesar do nome

germânico. Com certeza ele mantinha aquele nome por razões políticas. Aquilo devia abrir algumas portas pra ele na “Mittleuropa”.

Meio alto, meio malhado, meio-oeste. Cabelos meio grisalhos,

terno cinza impecável, botas cowboy-chique e uns olhos azuis muito brilhantes que lembravam os de Bardian.

Será que esses caras estavam comprando seus olhos no mes-

mo fornecedor?

Seu tom de voz, a confiança e a “positividade” também lem-

bravam o homem da ManGodCorp. Ele olhou pra todos nós sorrindo. Se eu tivesse entrado na sala naquele momento, ia jurar que ele estava lá de verdade. O holograma começou a falar:

– Senhores e senhoras sejam bem-vindos ao nosso complexo

de reabilitação solidária Panopticum Papuda. Este é um dos centros de reabilitação solidária mais modernos e eficientes do mundo. Tenho certeza que a nossa adorável Lizbella já fez as honras da casa, não é mesmo, Bella?

Lizbella. Que porra de nome era aquele, véi?

E deu uma piscadinha de olho exatamente na direção onde a

fodástica estava sentada. Ele continuou:

– Senhores e senhoras, chegamos a um momento estupendo

na história da humanidade. Vivemos praticamente em um paraíso tecnológico na terra. Somos uma sociedade de consumidores felizes. E quem aqui nessa sala não fica feliz quando está consumindo? Levante a mão, quem fica feliz quando está consumindo.

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o último rei do rock

Rumores de aprovação pela sala. As pessoas levantavam a

mão e Leverkünd olhava sincronicamente pro lado onde a pessoa que levantou a mão estava. Como os caras faziam aquilo?

O sorriso meio de lado era irresistível, como o de Bardian.

Será que esses caras estavam comprando seus sorrisos no

mesmo fornecedor?

Ele continuou:

– Infelizmente alguns de nós ainda não estão aptos a viver

neste paraíso que estamos construindo. Infelizmente alguns de nós ainda não estão aptos a se tornarem membros vitoriosos e produtivos desta sociedade limpa e positiva. Infelizmente, alguns de nós, por falta de educação, medicação e condicionamento psicológico adequado ainda cometem erros. Alguns de nós, infelizmente, ainda não estão prontos para viver no paraíso que estamos construindo.

A cada pausa, as pessoas aplaudiam. Mr. Oliver agradecia

“humildemente”.

Eu mesmo, apesar de ter resistido um pouco no começo, logo

também estava aplaudindo. E era tão bom estar ali ouvindo mister Oliver falar, aplaudindo-o ao final de cada frase de efeito. Que droga podia produzir uma sensação de perfeição tão perfeita quanto aquela? O ar condicionado fodão, o cheiro de jasmim sintético, a presença daquela deusa no mesmo espaço físico. Eu podia ficar ouvindo aquela palestra por cinco, seis horas, sei lá. O holograma do bonitão esperava os aplausos cessarem para seguir falando:

– Nós não vamos deixar os nossos irmãos para trás, não é

mesmo?

Aplausos.

– Nós não vamos abandoná-los.

Mais aplausos.

– Não, meus irmãos, nós não vamos abandonar essas pessoas

queridas que ainda não estão preparadas para o paraíso que estamos construindo. Nós vamos lhes dar mais uma chance, vamos lhes dar

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mais uma oportunidade. Vamos dar a eles as ferramentas que precisam para serem também jogadores aptos ao grande jogo da vida, o grande jogo do mercado. Vamos dar a eles também uma oportunidade de serem pessoas vitoriosas e felizes no paraíso que estamos construindo, a oportunidade de voltarem a ser cidadãos, de voltarem a ser consumidores vitoriosos e felizes.

Aplausos frenéticos. Eu também aplaudia freneticamente.

Naquele momento a imagem de Leverkünd congelou no sor-

riso meio que lembrando o jogador de football ou baseball que ele devia ter sido na juventude e foi desaparecendo à medida que um videoclipe começou a rolar na parede do fundo que havia se transformado em um telão. Era um trabalho de som e imagem primoroso. Em alguns momentos cheguei a ficar com lágrimas nos olhos. Os caras eram uma multinacional enorme. Centenas de complexos como a Papuda espalhados por todo o mundo. Mais de cinco milhões de internos passavam por ano pelas prisões e linhas de montagem da Panopticum. Um negócio gigantesco que gerava milhares de empregos diretos e indiretos. Milhares de dólares em produção. Esta palavra era a que mais aparecia no vídeo: PRODUÇÃO! Esta e as palavras FATOS E DADOS! Era todo o tempo:

– FATOS, DADOS, PRODUÇÃO! – FATOS, DADOS, PRODUÇÃO! – FATOS, DADOS, PRODUÇÃO!

Se eu fosse o Jello Biafra, com certeza teria usado isso num

refrão de alguma música.

Tipo:

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Fatosdadosprodução Fatosdadosprodução Eles enchem tua cabeça de novidade e alienação. Fatosdadosprodução Fatosdadosprodução Enquanto você está aí sorrindo, eles congelam o teu cérebro. Enfartam o teu rabo e fodem o teu coração.

Sei lá, algo assim.

Pensar em Jello Biafra naquele momento me fez lembrar de

ser eu mesmo novamente e me tirou um pouco daquele estupor deliciosamente alienado em que me encontrava ao sabor das imagens narcotizantes de Mr. Leverkünd e Lizbella.

O ser humano realmente não vale muita coisa. O “sombra”

tinha razão. Eu trocaria toda a verve revolucionária que houvesse em mim por cinco minuto a sós com a fodástica no banheiro imaculado da Panopticum-Papuda.

Pelo que eu entendi, o lance dos caras era ter desenvolvido

uma maneira de fazer os internos “cooperarem” e aprenderem atividades que baixavam violentamente o custo de mão de obra em setores que ainda não estavam automatizados, e custavam muito caro, agora que os ex “comunas” do oriente tinham abolido definitivamente a escravatura.

Mas tinha alguma coisa que não me agradava naquela histó-

ria toda. Tinha algo de podre naquele paraíso. Aquilo era muito Al107


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dous Huxley, muito “Admirável Mundo Novo” pro meu gosto. E me cheirava a Belair Bardian, embora naquele momento eu ainda não soubesse explicar o porquê. Algo me dizia que eu tinha que tirar o Panka daquela gaiola de ouro o quanto antes. Que se eu não o tirasse o quanto antes, eu jamais iria vê-lo novamente. O Panka ia morrer remando naquelas galés politicamente corretas, ele ia desaparecer na engrenagem e ninguém iria jamais saber sequer o que aconteceu. E eu não podia deixar isso acontecer com ele. Não. Tudo bem, ele era um porra louca, mas foi o único pai que eu tive, e era uma pessoa boa. Tudo bem, uma pessoa boa e completamente maluca, mas uma pessoa boa. Eu era um filhadamãe egoísta “to the bone”, mas não podia deixar aquilo acontecer com o Panka. Mas como? Como é que um zémané que nem eu ia ter qualquer poder de fogo pra mover a engrenagem? Meu peito estava doendo. Eu ia ter que apertar a mão do Bardian. Eu não tinha outra saída. Fiquei esperando a porra da “Sombra” vir falar dentro da minha cabeça que eu estava inventando aquilo pra poder me vender e ficar tranquilo. Mas eu não estava. Aquilo estava acontecendo mesmo, na real. Na realidade. O Panka estava preso, ele matou a mulher dele, matou a mãe da filha dele. Ele tava fudido. Essa era a realidade. Isso tudo era real, o cheiro do sangue dela ainda impregnava meus sonhos. Isso era real, sim. Isso tudo tinha acontecido na realidade. O sangue dela era real. O choro da menina também era. O Panka tava preso. Isso era real. E eu tinha que tirar ele daquele lugar, tinha que fazer alguma coisa, e a única coisa que eu podia fazer era apertar a mão do Bardian. Essa era a realidade.

A fodástica Lizbella estava falando novamente. Ela disse que

a gente teria que aguardar só mais um pouquinho pra encontrar os nossos entes queridos, que os internos estavam concluindo alguma atividade. Estavam sendo voluntários em algum projeto científico “pioneiro”.

Projeto científico pioneiro? Lembrei dos cobaias de Bardian.

“Cobaias de Bardian” podia ser o nome de uma banda.

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o último rei do rock

Ficamos aguardando uns quinze minutos. Dava pra ouvir ao

longe algum aparelho emitindo frequências sonoras. Elas vinham dos 60Hz e subiam até aproximadamente 2000Hz, que é mais ou menos o espectro de frequências emitidas pela voz humana masculina. Elas subiam e desciam numa velocidade constante, mas se demoravam mais detalhadamente por volta dos 1.200Hz.

Fiquei ali glissando bem baixinho, só pra eu ouvir, acompa-

nhando o vai e vem das frequências ao longe. Eu subia e descia com elas. Sim, elas se demoravam mais perto dos 1.000Hz.

Essa era uma frequência que eu conhecia bem, porque era

uma característica do som da minha voz. Eu tinha orgulho disso. E isso era fundamental pra furar a muralha sonora caótica dos Paralelepípedos do Óbvio. Pouquíssimos cantores do sexo masculino eram capazes de emitir aquela frequência. A galera em geral não passa dos 500 Hz. Só as mulheres. Mas eu conseguia chegar e passar aos 1.000Hz.

Será que isso era mais uma prova da tua boiolagem enrustida?

A fodástica voltou. Ela disse algo mais ou menos assim:

– Agora os senhores me acompanhem, por favor, chegou a

hora de encontrarem os seus entes queridos.

Lembrei daqueles filmes antigos. Em que as pessoas iam vi-

sitar seus parentes na cadeia. Daquela salas com um vidro dividindo o espaço. Às vezes as pessoas ficavam se beijando com o vidro entre seus lábios desesperados. Mas a sala para onde fomos não tinha nada a ver com aquela imagem. Tinha mais a ver com um lounge do começo do século. Tudo em cores frias. Som ambiente e talz. Musiquinha instrumental xarope pra acalmar. Uns reggaes pasteurizados também. Tipo os que eu sempre odiei com todas as minhas forças. Mas curiosamente, ali, naquele contexto, eu tava achando até bom. Sentei em um sofá superconfortável e fiquei esperando o Panka.

O véio Punkeka apareceu. Tava sozinho. Não tinha nenhum

guarda com ele. Levantei pra abraçar o véio, mas ele nem parecia

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o mesmo mané que eu conhecia há trocentos anos. Tava com uma aparência muito melhor do que naquele dia na casa dele, que fora a última vez que eu o vi. Cumprimentou-me meio frio, perguntou se eu estava gostando da “casa”, essas coisas. Pensei que o lugar devia estar apinhado de câmeras escondidas. O Panka devia estar jogando pra torcida. Nunca tinha visto o véio tão bem e tão estranho em toda a minha vida. E olha que eu já tinha visto o véio Panka de uns jeitos bem estranhos. Fiz uns sinais com os olhos, pro Panka sacar que eu estava sacando que ele estava sendo observado, mas ele não pareceu ter percebido. Ou simplesmente não entrou na minha onda. Karaka, a onda dos caras era muito poderosa mesmo. O Panka tava do lado deles. Começou a falar que estava sóbrio desde que chegou. Uns três meses, e que este era o seu recorde na vida. Disse que estava sob tratamento psiquiátrico, “terapia cognitivo-comportamental” e “Programação Neuro-alguma-coisa” intensiva. Era bem estranho o jeito que ele falava. Tinha alguma coisa da “positividade” do Bardian e do Dr. Leverkünd. Será que fizeram lavagem cerebral no Panka? Tipo laranja mecânica mesmo? Ele não falou nada sobre o assassinato da mulher e nem perguntou pela menina. Eu também não falei nada sobre esses assuntos. Ele contou da alimentação, que ela era balanceada e muito saborosa. Disse que lembrava até um restaurante que a gente costumava ir com a minha mãe, bem no comecinho da Asa Norte. Perguntei se rolava um “remedinho” com a galera, ele disse que nem pensar. Que esse tipo de coisa não tinha a menor chance nos complexos de reabilitação solidária da PanopticumCorp e que ele estava caminhando com passos largos rumo a sua libertação de todos os vícios de antes de entrar ali. Falou que o ambiente em que ele vivia agora era “totalmente livre” de álcool e drogas. Falei alguma coisa do tipo: Ah, entendo, beleza. Ele falou que no momento ele e outros internos estavam sendo “colaboradores voluntários” de uma série de projetos em andamento.

Colaboradores voluntários?

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Sim, ele disse. Ele mesmo estava trabalhando na fábrica de

tecido reciclado, e por ter um ouvido mais apurado, estava sendo útil também em um experimento com um novo equipamento de ponta que seria lançado no mercado em breve. Perguntei se era o som que eu ouvira antes de encontrá-lo e ele disse sim. Mas não sabia muito mais do que isso para me informar do que se tratava. Que o grosso das experiências estava sendo feito com os caras do nível cinco. Ele falou que participar dos novos projetos como “colaborador voluntário” era um adianto legal pro cara diminuir a sua pena. E que, seguindo assim, em pouco mais de cinco anos ele poderia chegar ao nível um, o semiaberto.

Que bom, Panka.

Os quarenta minutos passaram voando. Ficamos naquela con-

versa mole politicamente correta. Nem toquei nos assuntos que me levaram até ali. Uma mulher se aproximou. Devia ter uns quarenta anos e não era fodástica como a loira. Quase se poderia dizer que era meio jabucréia. E o macacão não era preto. Acho que era verde. Ela era uma pessoa bem mais tosca, mas também fazia um esforço danado de grande para ser gentil e educada comigo. Ela disse:

– Agora o senhor Luis Eduardo precisa repousar.

Luís Eduardo? Karaka. Eu nem lembrava que o Panka tinha

esse nome.

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10. Between heaven and hell

Cheguei em casa, fumei um sinth-base e coloquei um velho vi-

nil dos Buzzcocks na agulha. Das antigas. Esse eu ouvia com o Panka quando eu tinha uns cinco anos de idade.

“They say the best things in life are free. But I’m not so sure… Something has crowled right in my mind… And opened up the door.”

Minha mãe conheceu o Punkeka em 1983. Ela voltou de Nova

York com uma mão na frente, outra atrás e um filho (eu) embaixo do braço. Ela tinha ido pra lá em 1978 pra tentar a sorte como cantora de blues. Até que ela cantava direitinho e fazia sucesso em algumas festas e barzinhos de Brasília. Mas ser uma cantora de blues na terra do blues era outra conversa.

O plano A não vingou e ela foi trabalhar como garçonete pra

juntar uma grana e voltar ao Brasil.

Meu pai, um judeu argentino autoexilado chamado Néstor Tra-

cjgtemberg, viveu com ela por uns seis meses em 1979. Foi o tempo que eles conseguiram se suportar. Em Dezembronovembro de 1980, quando eu nasci, ele ainda estava nos EUA. Foi ele quem me deu o nome que carrego, que, ao que parecia, naquele momento, estava sendo um dos atrativos principais que voltaram os olhos de Mr. Belair Bardian sobre minha esdrúxula pessoa.

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Eu não sabia muito mais do que isso sobre o meu pai naquela

época. Nunca o tinha visto até então. Ele nunca me procurou. E nem eu a ele. Naquela época eu nem sabia se ele ainda estava vivo. Eu só vim saber depois, como vou contar mais adiante. E eu também não estava nem aí pra ele. Parece que tinha amigos que pertenciam ao grupo paramilitar peronista “Montoneros”. Dai o M do meu nome. Minha mãe disse que quando o regime militar argentino começou a perseguir e “desaparecer” os Montoneros, meu pai, que não pertencia ao grupo, mas era meio paranoico, resolveu se autoexilar em Nova York. Ele também não tinha muito o que fazer da vida. Era uma espécie de “poeta maldito frustrado”. O pai dele, meu avô, tinha muita grana. E muito desprezo pelo filho inútil. Parece que eles tiveram outro filho, mais velho que meu pai, que era o orgulho do meu avô, tipo o cara que ia herdar as joalherias e talz. Mas parece que o cara morreu de uma doença rara. Meu pai conseguiu convencer a minha avó, que segundo a minha mãe era uma senhora muito boa, de que era perigoso ele continuar em Buenos Aires e que ele precisava “fugir” pra Nova York. Meu avô caiu nessa. Ou apenas pagou a passagem pra se livrar do meu pai, que era um traste mesmo. Ele conheceu a minha mãe num show do Lou Reed em 1979.

Minha mãe voltou pra casa em 1982. Além das mãos abanan-

do e do filho, ela trazia o cabelo roxo e um monte de discos de punk rock na mala. A galera do rock de Brasília estava na ponta da agulha. O “Aborto Elétrico” tinha acabado, mas deu à luz as duas bandas que colocariam o nome da nossa cidade na história do rock brasileiro: Legião Urbana e Capital Inicial. Algumas bandas, principalmente o Capital e a Plebe Rude, estavam começando a tocar no Rio e em São Paulo, e a megaexplosão da Legião estava fermentando.

Não eram muitas as meninas-punk naquela época, e minha

mãe logo se tornou figurinha carimbada na turma que se reunia num bar chamado “Cafofo”, na comercial da 408N. Coincidentemente, a 408N era a superquadra onde ficava o apartamento dos meus avós.

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Mais precisamente, no bloco J, bem pertinho da comercial. O pecado morava literalmente ao lado. O Cafofo era um lugar onde rolavam shows e ensaios das bandas, e foi lá que ela conheceu o Punkeka.

O Panka era meio baixista e meio roadie. Conhecia todo mun-

do da turma. Tocou com todo mundo, e foi roadie de todo mundo. Foi baixista de uma banda cover dos Sex Pistols. Ele era o cover do Sid, oia. Cortava o cabelo daquele jeito de espanador molhado depenado. Era bróder do Loro Jones e chegou a ir com a galera do Capital pra São Paulo em 1984. Mas não durou muito tempo por lá. Minha mãe dizia que era por causa dela, da história deles, do love. Que ele tinha voltado por causa dela. Mas eu tenho minhas dúvidas. O Panka sempre foi um cara super de boa, mas sempre teve essa história dele beber e ficar violento. Acho que os caras da banda não aguentaram ele lá por muito tempo.

Minhas lembranças mais antigas são de quando eu tinha uns

cinco ou seis. O Legião estava estourando no Brasil inteiro. Era “Geração Coca-Cola” e “Será” de manhã até a noite no rádio. O Panka era baixista duma banda de reggae chamada “Brasilônia by Bus” e roadiava pra todo mundo. Nessa época, ele já me levava junto em shows, ensaios. A gente vivia no “Radiocenter”, que era onde as bandas ensaiavam. O povo não deixava de fumar todas por causa da minha presença. Eu era considerado meio que “móveis e utensílios” da turma. Vivia imerso na nuvem. O Panka dizia que a “Ganja” era sagrada, e só podia me fazer bem, que ia abrir os meus pensamentos e talz. Mas ele só me deixou começar a fumar maconha por minha conta, lá pelos meus doze. O Punkeka foi um verdadeiro pai para mim. O único que eu tive.

Os Buzzcocks continuavam:

“Now and then it seems so strange. It leaves you insecure… And everything you thought you knew. Is different from before. Something stuck in my mind between. Heaven and Hell.”

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Karaka, a música tava falando comigo. Que porra de uma coin-

cidência mais sinistra. Será que aquilo era outro sinal do acaso?

O que eu ia fazer, por que não aceitava logo a proposta do

cara, o que eu tinha a perder?

Minha dignidade?

Qual?

Minha integridade punk?

E desde quando isso existe?

O que poderia ser mais punk do que trair o próprio punk?

Desejei que a Sombra aparecesse de novo pra me seduzir.

Mas ela não apareceu.

Porra. Eu só precisava apertar uma tecla.

Apertei.

O sorriso inabalável de Bardian apareceu na telinha.

– Eu sabia, eu sabia. Foi só o que ele disse.

Eu mesmo não disse nada.

Ele veio com aquela balela toda de que um grande passo na

história do rock e da humanidade estava sendo dado etc., etc. Disse pra eu estar no escritório dele na manhã seguinte. Fiquei esperando algum sonho, não veio nenhum. A decisão era minha, eu não tinha pra onde correr, estava sozinho na parada.

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11. Instant karma gonna get you

O escritório de Bardian, que na verdade, se chamava Bhar-

dian, obviamente ficava na cobertura do prédio mais alto de Brasília na época, o “Octavian”, e parecia um Playmobil de uma pirâmide egípcia. Um Playmobil hyper-high-tech. As cores dominantes eram o amarelo– ouro (e devia ter muita coisa ali que era de ouro mesmo) e o azul (verde?) água. Hieróglifos, caras com cara de cachorro e aquelas aves com patas bem compridas pra todo lado. Bem atrás da mesa dele, que era hipertriper mudernosa, tinha um olho imenso, aquele egípcio clássico cheio de voltinhas com uma sobrancelha estilizada bem grossa. O olhão, que ficava se movendo pra lá e pra cá, na verdade era uma câmera que ficava ligada 24 horas na sala da segurança. Ao lado da mesa, como não poderia deixar de ser, um sarcófago todo dourado. As cadeiras também eram douradas e tinham voltinhas que lembravam o olho estilizado. Tinham também alguns desenhos assinados por Oscar Niemeyer, provavelmente projetos originais dos prédios históricos do plano piloto. Fotos de pirâmides ao lado de fotos dos prédios históricos de Brasília. O conjunto todo era. Vamos dizer assim. Tétrico. A primeira coisa que ele disse foi:

– Sim, meu caro. Sim. A história do rock está sendo escrita

aqui nesta sala hoje.

Como a minha cara de bunda provavelmente não se alterou

ele mandou:

117


carlos maltz

– Você sabia que o John e a Yoko também tinham uma múmia

egípcia em casa?

Era coisa dela, eu disse. Ficava no escritório dela.

– Hehehe. Você é bem informado, Juan.

Senhor Bardian. Se for possível, eu gostaria que a gente pu-

desse ir direto ao que realmente nos interessa.

– Ora, ora. Vamos com calma, amigo, vamos com calma. Que

sagitariano mais afobado. Hehehe. Que sagitariano mais afobadinho. Hehehe. Daqui pra frente nós vamos passar muito tempo juntos, amigo. Agora já posso te chamar de amigo, né Juan? Hehehe. Vamos ter tempo pra nos conhecermos melhor. Hehehe. Vamos com calma, senhor sagitariano.

Karaka. Que mierda. Aquele conversa. A mesma conversa.

Ouvir aquilo era o pior de tudo.

E você estava fazendo um sacrifício tão grande, não é?

Senhor Bardian. Antes de qualquer coisa quero dizer que a

decisão de vir aqui foi exclusivamente minha e que os outros integrantes da banda ainda não foram consultados e eu não posso tomar nenhuma decisão definitiva sem...

Ele levantou-se rindo e me pediu para acompanhá-lo.

Andamos alguns metros por um corredor escuro e ultrarre-

frigerado, que mantinha o mesmo padrão “egípcio” da sala dele e chegamos à outra sala maior e mais sóbria, que tinha uma imensa mesa de reunião com uns trinta lugares mais ou menos. Eu nunca tinha estado em algum lugar com ar condicionado tão poderoso. Pelo menos até então. As poltronas eram vermelho-escuro, se não me falha a memória. Tinha aquela estrela de cabeça pra baixo dourada em tudo quanto é canto da sala. Aquela mesma do cartão que Bardian, ou melhor, Bhardian, me deu no dia do show. Na parede que ficava atrás da poltrona à cabeceira da mesa tinha uma daquelas estrelas viradas. Enorme.

118


o último rei do rock

Tive que segurar o queixo. O BBC, o Daniel Loló, o Ratón-tón

e a Melzinha estavam todos lá, bem sentadinhos, com MindStations e garrafinhas de água. Na frente do Loló, tinha uma garrafinha de uísque igual àquela que o Bardian levou ao nosso camarim naquela noite do show. Aquela carésima do veado. Tinha outras pessoas também, alguns asiáticos. Eram diretores da ManGodCorp internacional, como vim a saber depois.

Os chinas não eram os rivais deles?

Pozé. Deviam ser, né? Fiquei lá parado com cara de otário. Que

mais eu podia fazer? Bardian, ou melhor, Bhardian, era a encarnação da felicidade. Os asiáticos também estavam rindo. Os caras da banda pareciam aquelas meninas estreantes do SenSoSex, meio putinhas, meio tímidas. Bardian, ou melhor, Bhardian, que estava com uma camiseta do Rubber Soul autografada com dedicatória do Paul, embaixo do casaco do terno, começou a falar:

– Meus caríssimos. Finalmente. O destino deu as cartas. E ele

sempre dá as cartas certas, não é mesmo? Hehehe.

Ele tava rindo até de injeção na testa. Continuou:

– Nesta sala, hoje, estamos dando um grande passo na histó-

ria do rock’n’roll.

O boiolão gostava mesmo das grandiosidades. Devia estar

tendo um orgasmo SenSoMind.

– O Universo conspirou e nós estamos aqui agora reunidos

nesse momento importantíssimo assinando um contrato que vai mudar a história do show-business.

O Ra-tón nem conseguia olhar na minha cara, o Loló já tava

mais pra lá do que prá cá. A Melzinha parecia um balão inflado pronto pra decolar e o BBC estava com a mesma cara de nada de sempre.

A Melzinha não tava brigada com a banda?

Pozé. Tava. Mas. Voltou mais uma vez. Não sei quanto tempo

se passou e quanto blá-blá-blá foi jogado fora. Eu já não estava mais ali. Como sempre, em situações tensas e difíceis, minha mente criava

119


carlos maltz

asas e me levava de volta para algum lugar do passado que eu sempre recriava.

Nizinha. Era uma vizinha nossa. Tinha uns dezessete anos. Eu,

uns doze. Ela ficava lá tomando conta de mim, às vezes. Ela tirava os tênis e me pedia pra fazer massagem nos pezinhos dela. Eles eram bem pequeninhos e branquinhos. Ela pintava as unhas de rosa-choque. Era lindo demais. Depois, ela me mandava cheirar os pezinhos dela. Eu me fazia de enojado, mas adorava cheirar aqueles pezinhos. A gente passava horas assim. Ela que me ensinou a gostar de pezinhos femininos. Era tão doce. Primeiro ela me deixava um tempão só cheirando os pezinhos dela, que eram tão suaves. Depois ela me mandava beijá-los. E eu adorava beijá-los. Depois ela fazia um suspense. Eu nunca sabia se ela ia me fazer gozar ou não. Às vezes ela fazia, às vezes não. E eu não podia pedir. Se eu pedisse ela se fazia de ofendida e colocava os pezinhos deliciosos de volta nos tênis e saía fora. Eu nunca contei nada disso pra ninguém, porque não queria que ela parasse de ir na minha casa. Se eu não pedisse e aguentasse calado, ela vinha descendo com os pezinhos pelo meu peito impúbere e esfregava-os no meu pinto, que ficava mais duro do que aço. Então ela abria o zíper da minha calça, colocava o meu pintinho duro pra fora e ficava esfregando os pezinhos nele até que eu não podia suportar mais aquela tortura deliciosa e explodia nos dedinhos do pezinho dela. Eu não podia ajudar com a mão, tinha que gozar sozinho, só com os pezinhos dela.

Quando voltei pra realidade, os asiáticos ainda estavam rindo

e as luzes se apagaram. Na parede do fundo da sala, que virou um telão, um vídeo começou a rolar. Era um vídeo fodástico também, lembrava aquele lá da Papuda. Hiperqualidade de som e imagem, aqueles trem todos. Curiosamente, o vídeo era sobre a minha pessoa. Só que melhorado. Supermelhorado. Na verdade, eu levei até um tempo para descobrir que era de mim que eles estavam falando. Começava

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o último rei do rock

com aquelas mesmas cenas manjadas, do assassinato do John. Uma trilha sonora com um pot-pourri dos Beatles. Depois entrava uma voz solene, tipo daqueles noticiários antigos dizendo algo do tipo:

– DIA 8 DE DEZEMBRO DE 1980. NOVA YORK. 23 HORAS E QUARENTA E CINCO MINUTOS. NO HOSPITAL ST LUKES ROSEVELT, NO NÚMERO 1000 DA 10ª AVENIDA, JOHN LENNON, O MAIOR ÍDOLO DO ROCK DOS ANOS 60 E UM DOS MAIORES ÍCONES CULTURAIS DE TODOS OS TEMPOS FOI CONSIDERADO MORTO. FOI ASSASSINADO FRIAMENTE POR JAMAIS TER ABANDONADO OS SEUS IDEAIS LIBERTÁRIOS.

Huuummm?

– NAQUELE MESMO HOSPITAL, NAQUELE MESMO DIA, NAQUELA MESMA HORA, UM MILAGRE ESTAVA ACONTECENDO. UM MENINO ESTAVA NASCENDO. SUA MÃE, UMA CANTORA DE BLUES BRASILEIRA ESTAVA VIVENDO E FAZENDO SUCESSO NOS BARES UNDERGROUND DO VILLAGE, EM NOVA YORK.

Cantora de blues? Fazendo sucesso?

Agora a trilha era Janis Joplin. Karaka, como os caras podiam

ter tanta grana e ter feito algo tão imbecil e óbvio?

– SEU PAI ERA UM HERÓI EM SEU PAÍS. LUTOU CONTRA A TIRANIA ARGENTINA E TEVE QUE SE REFUGIAR NOS EUA.

Karaka, que mierda. Herói? Huahuahua. E eles tinham até

aquela foto do meu pai, a única que a minha mãe guardou. Nós três, eu bem bebezinho, no Central Park, cheios de casacos e cachecóis.

Na trilha rolava samba, tango, música folclórica latino-ameri-

cana. Uma das coisas mais amadoras que eu já havia visto na vida até então. Era surpreendente a diferença entre a qualidade técnica, som,

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carlos maltz

imagem, esses trem, e o conteúdo, que além de mentiroso e picareta, era de uma mediocridade revoltante. Os caras tavam cagando pro conteúdo mesmo.

– UM MENINO QUE JÁ NASCEU ESCOLHIDO PARA MARCAR A HISTÓRIA DO ROCK. SEU NOME, INESQUECÍVEL, DADO PELO PAI: JUAN LENO MONTONERO KEMPES. OU COMO FICOU CONHECIDO: JUAN LMK.

Aqui a trilha mudou. Entrou Instant Karma, do John. Karaka.

Naquele momento pensei que meu pai só tinha existido na minha vida pra me dar aquele nome imbecil.

“Instant Karma gonna get you. Gonna knock you right on the

head”…

– JUAN LENO EM HOMENAGEM AO ÍDOLO QUE MORRIA. MONTONERO, EM HOMENAGEM AO GRUPO LIBERTÁRIO AO LADO DO QUAL ELE HAVIA LUTADO BRAVAMENTE CONTRA A OPRESSÃO POLÍTICA EM SEU PAÍS. E KEMPES EM HOMENAGEM AO JOGADOR MÁRIO KEMPES, ARTILHEIRO E HERÓI DA SELEÇÃO ARGENTINA NA COPA DE 1978. MAS OS VENTOS DO DESTINO SOPRARAM E OS PAIS DE JUAN NÃO PUDERAM PERMANECER JUNTOS APESAR DO GRANDE AMOR QUE SENTIAM UM PELO OUTRO.

Os caras tinham o talento pra escrever de um roteirista de no-

vela mexicana viciado em necrofilia.

– QUIS A VIDA QUE A MÃE DE JUAN VOLTASSE PARA BRASÍLIA, QUE NA ÉPOCA ERA O BERÇO DO MAIS IMPORTANTE MOVIMENTO MUSICAL ACONTECIDO NO BRASIL NO SÉCULO XX: O ROCK DE BRASÍLIA.

Karaka. Era um roteirista de novela mexicana viciado em ne-

crofilia depois de um porre escatológico de Tequila.

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o último rei do rock

Entrou Geração Coca-Cola. Depois Psicopata. Essa até que era

bem apropriada para a ocasião.

“Sempre assisto a Rede Globo com uma arma na mão.”

– JUAN CRESCEU ENTRE OS MÚSICOS GENIAIS DAQUELA GERAÇÃO. SEU DNA MUSICAL ESTÁ IMPREGNADO DO SOM DO LEGIÃO URBANA E DO CAPITAL INICIAL, AS MAIORES BANDAS DO ROCK BRASILEIRO DE TODOS OS TEMPOS.

Eu queria ser um homem bomba ou qualquer coisa assim,

mas naquela altura do campeonato, eu já era um homem morto. Os chineses, que escutavam tudo em tradução simultânea nos seus i-magePhones, continuavam rindo. Dizer que o sorriso deles era amarelo seria perpetrar um paralelepípedo do óbvio imperdoável. Mas a verdade é que “amarelo” era a melhor definição para aquele sorriso triste, enfadonho, calculado. Do que aqueles comunas de mierda disfarçados de capitalistas de mierda estavam rindo? Só podia ser da minha cara de panaca. Ou então aquela era a única cara que eles tinham para ocasiões como aquela. Acho que eles não compravam os seus sorrisos no mesmo fornecedor que o Bhardian e o Dr. Oliver Leverkünd. Deviam comprá-los na feira do Paraguai.

– JUAN CRESCEU ASSISTIDO DE PERTO PELA MÃE E A DISTÂNCIA PELO PAI, QUE APESAR DO SOFRIMENTO POR TER DE ABANDONAR A FAMÍLIA, TIVERA QUE RESPONDER AO CHAMADO E VOLTAR PARA O BOM COMBATE EM SUA PÁTRIA. DESDE MUITO JOVEM, JUAN TOCOU E FOI FUNDADOR DE DIVERSOS GRUPOS QUE SE DESTACARAM NO CENÁRIO MUSICAL EXTREMAMENTE COMPETITIVO DO ROCK DE BRASÍLIA.

Entrou Robôs &Remédios:

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carlos maltz

Ele cansou de lutar contra o tédio. Se afogou no vidro do remédio. Como eles conseguiriam transformar aquela sandice em algo

“construtivo e positivo” pra vender na China?

– EM 2001, JUNTAMENTE COM ALGUNS COLABORADORES, JUAN LMK FUNDOU OS “PARALELEPÍPEDOS DO ÓBVIO”, UM DOS GRUPOS MAIS IMPORTANTES DE SUA GERAÇÃO.

Foi em 2000. Colaboradores?

Olhei pra cara dos caras da banda, mas eles estavam com-

pletamente absortos pelo videozinho sem vergonha. Parecia que era outra banda. Parecia que não estavam falando sobre a gente. Entrou a batera da introdução de Minotauro Miniatura. O som estava incrível, os caras remixaram a nossa gravação e fizeram uma nova masterização phoda. Dava vontade de levantar da cadeira e pogar imediatamente.

Tutum tutátutum tutá tutátátum tu tá.

Tua mente explode Ninguém mais te atura O galope é violento Minotauro miniatura Teu país explode Ninguém mais atura Golpe no pensamento Violência pura Minotauro miniatura Minotauro miniatura. 124


o último rei do rock

– COM ESTRONDOSOS SUCESSOS COMO: RESÓLVER, DE 2002; MORFINALMENTE, DE 2003; MINOTAURO MINIATURA, DE 2004; PIROMANIA PRECOCE, DE 2007 E PARANOIA AQUARIANA, DE 2010, OS PARALELEPÍPEDOS DO ÓBVIO DE JUAN LMK ESCREVERAM DEFINITIVAMENTE O SEU NOME NO GRANITO DO ROCK BRASILEIRO COMO UMA DAS MAIORES BANDAS DE TODOS OS TEMPOS. GRANITO. KARAKA.

De repente, algo muito estranho aconteceu: O locutor do ví-

deo apareceu falando ao meu lado, na sala. Que porra era aquela? Mais um truquezinho tecnológico?

– HOJE JUAN LMK E OS MÚSICOS DE SUA BANDA ESTÃO AQUI NA SEDE DA MANGODCORP EM BRASÍLIA, NO BRASIL, ASSINANDO O CONTRATO QUE VAI FAZER JUSTIÇA E LEVAR O SEU INCRÍVEL TALENTO PARA TODO O MUNDO.

Um zilhão de holofotes se acendeu e flashes pipocaram por

todos os lados. Sim, o locutor estava do meu lado mesmo. Nós estávamos on-line ao vivo e a cores nas principais redes e meios de comunicação do mundo inteiro. Todos levantaram imediatamente, a sala estava cheia de gente, repórteres, gente do vídeo, da internet, advogados. Os chineses continuavam rindo. Quando eu vi, já estava com uma caneta na mão, uma gostosa fodástica a tiracolo e o contrato na minha frente, Bardian, ou melhor, Bhardian de um lado, um chinês de outro, e aquele monte de holofotes. Cadê os caras da banda? Sumiram. Eu só via os chineses, que continuavam rindo. Todos olhavam pra mim, esperando o momento da assinatura pra iniciar o massacre de mídia que Bhardian havia prometido.

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12. A mesma cara de idiota que eu sempre tive

Depois de todas as festividades, descemos. Os cinco. Os cin-

co não, que o Ra-tón tinha sumido na festa. Alguém o viu saindo fora com a fodástica gostosona que tava dando mole pra todo mundo. Fomos prum pé sujo que ficava na esquina do Conic, e que hoje não existe mais. A gente ia sempre naquele bar. Sentei eu, a Mel, o Dani, que já tava muito mais pra lá do que pra cá, e o BBC. Ninguém ousou dizer nada. Depois duns dez minutos que pareceram dez mil anos, o BBC falou:

– Preciso consertar o meu amp.

Agora tu vai poder escolher o que tu quiser, véi. Eu disse.

Foi só isso mesmo. Ficamos mais uns minutos em silêncio e o

BBC disse que ia levar o Daniel em casa, que ele não tava legal.

Belê.

Ficamos eu e a Melzinha. Eu disse:

É. Tu conseguiu, né maninha?

– Eu consegui? Karaka Juan, que cara de pau tua, véi, tu que

foi traíra. Porra. Tu fez tudo sozinho.

Eu? Eu fui lá pra falar com o cara e vocês já tavam lá.

– A gente já tava lá por que ele me ligou e disse pra gente ir,

que já tava tudo certo contigo.

Karaka, que mierda. 127


carlos maltz

– Que merda o quê, Juan, por acaso não foi isso mesmo? Tu

não correu por fora? Tu não ligou pro cara sem a gente saber?

Não maninha, eu juro.

– Porra, não jura, cara. Para com essa merda de ficar jurando.

Mas eu juro, eu juro que eu não ia. Quer dizer. Eu fui só pra

conversar com o cara, depois eu ia falar com vocês, eu juro.

– Putasquispariu, Juan.

Eu juro maninha, eu juro. Esse filho da puta armou pra cima

da gente e a gente caiu tudo que nem uns mané. Prego véi, prego demais, véi.

– Mas tu não ligou pra ele, Juan, tu não tava afins da parada?

Não. Eu... Tava. Não, Não. Era por causa do Panka, do lance da

cadeia.

– Porra deixa de conversa cara. Vai dizer que tu armou com o

Bhardian por causa do lance do Panka?

Vou, vou dizer sim, e foi isso mesmo, foi por isso mesmo, foi

por causa do lance do Panka sim.

– Só do lance do Panka, Juan?

Bom, só? É sim. Só, sim. É por causa do lance do Panka, sim.

Ela se levantou e saiu. Não acreditei que ela tinha feito aquilo.

Não acreditei que aquilo estava acontecendo. Eu estava sozinho. Sim. Sozinho mesmo. O que eu ia fazer? O que eu podia fazer? O que iria acontecer agora? Eu ia virar um super-hyper-mega star. Sim, tudo o que eu sempre sonhei a vida inteira estava pra acontecer. Por que eu não estava feliz? Agora não tinha mais volta. Não, ainda tinha volta sim. Eu ia falar com os caras, explicar tudo. A gente ia fazer a coisa do jeito certo, a gente ia conversar, eu ia perguntar pra eles se eles queriam. Não, a gente não ia entrar no jogo do Bardian, ou melhor, Bhardian. Só por que ele... Por que eu não estava soltando foguetes? Do que eu tinha medo? O que eu tinha a perder? E agora... O que eu devia fazer? Eu ia virar uma celebridade, véio. Que nem “ele”. Não, a gente ia ser maior que eles.

128


o último rei do rock

Não era o que você sempre quis?

Era. Claro. A gente ia ser maior, a gente ia bombar na China,

pense. Bombar na China e na Índia. Nem eles fizeram isso, e a gente ia fazer. Dois, três, quatro, cinco bilhões de downloads das nossas músicas em semanas, pense. Que mierda, cara, que mierda. Por que aquilo teve que acontecer daquela maneira? Como eu pude ser tão imbecil.

Mas você ligou pra ele porque quis.

Eu sei. Voltei pra casa. Minha mãe já devia estar sabendo. Todo

mundo já devia estar sabendo. A notícia devia estar bombando nas redes. Nossas músicas iam começar a tocar em todos os lugares, nossos vídeos no YouTube. O poder de fogo da ManGodCorp era phoda. Os caras realmente não dormiam no ponto. Eu ia virar uma celebridade mundial em poucos dias e estava ali parado na frente do Conjunto Nacional com uma cara de idiota. A mesma cara de idiota que eu sempre tive. E ia continuar tendo. Sendo o que eu fosse. E sendo o que eu sou. Fui andando pra casa. Era a última vez que eu via a velha Asa Norte antes de virar uma celebridade mundial. Mas eu ainda não tinha a menor ideia do que isso significava naquele momento.

Quando entrei em casa, minha mãe veio correndo e me

abraçou profundamente. Ela estava chorando. Soluçava. Estava em êxtase. Não conseguia dizer nada, só me abraçava e chorava. Os computadores e os i-magePhones não paravam de tocar. Era incrível a velocidade que aquela informação tinha alcançado. Corri para o quarto e tranquei a porta. Pedi pra minha mãe dizer pras pessoas que eu não estava. Ela concordou docilmente. Já estava me tratando diferente. Já estava me tratando como a uma celebridade. Será que a minha rainha já sabia que eu era a nova sensação mundial da música pop? Fumei um, peguei o cartão que ganhei do Bhardian e entrei no SenSoSex.

Ela estava on-line. Estava vestida. Calça jeans e uma camiseta

branca. Tudo muito simples, básico, como o cenário que ela usava,

129


carlos maltz

que ao contrário das outras, não tinha nada de exótico. Era, provavelmente, o quarto dela. Uma cama de solteira (a maioria tinha cama king size) e uns quadros bem chavãozão na parede: uma Marylin pop, uma imagem da Torre Eiffel, um quadrinho com a caixinha antiga do “Chiclettes” e uma imagem dos Beatles no começo.

Uma imagem dos Beatles no começo?

É. O único item que a gente poderia chamar de sexy eram os

sapatos de salto alto, que ela não dispensava nunca, mas também, ao contrário das outras, não era exagerado. Ela não usava roupa de vagaba. Um scarpin preto, clássico. Só.

Será que ela já sabia quem eu era? Liguei o tradutor simultâneo.

– Olá Juan LMK.

Putz. Já. Oi. Eu disse.

Fiquei esperando que ela dissesse alguma coisa imbecil tipo

nosssaaa, eu vi sua reportagem na TV. Mas ela não disse nada.

Você viu minha reportagem na TV?

– Sim.

O que você achou?

– Nada.

Nada?

– Nada. Desculpa. É que eu sou meio doida.

Você é meio doida?

– Sim.

Por que você acha que é meio doida?

– Bom, eu... Eu mesma não acho. Nada. Mas é o que todo

mundo me diz, todo o tempo. Que eu sou meio doida. Você deve estar bem feliz, né?

Eu? Ahh, sim, sim, claro, claro que estou. Muito.

– Não parece.

Não pareço feliz?

– Não.

130


o último rei do rock

Não?

– Não.

De repente, lembrei de uma parada muito antiga. Eu e minha

mãe. Ela tava muito mais jovem. Nós dois numa prainha que tinha no Lago Norte. Eu devia ter uns dez, onze anos. Dia de semana, pouca gente. Só nós dois. Eu tinha ela só pra mim. Eu era o homem, ela a mulher. Eu o príncipe valente, ela, a princesinha em perigo. Minha mãe sempre foi uma princesinha em perigo. Ela também era uma menininha doidinha. A tarde ia caindo. Ia ficando frio. Minha garotinha doidinha me abraçava e a gente ficava lá, abraçadinhos. Só nós dois, eu e minha mãe, bem quietinhos pra não sermos descobertos pela fome de carne humana da cidade, que rugia vorazmente a nossa volta. Nós éramos mesmo dois manés. Dois manés ineptos para a big thing. Nós dois não teríamos a menor chance de sobreviver ao massacre que estava se aproximando. Nós íamos ser triturados pela roda. Nós éramos mesmo dois manés. Que sabiam ser felizes com pouca coisa.

Como eu rezava praquelas tardes no lago não acabarem nun-

ca. Mas elas sempre acabavam.

Então minha princesinha de scarpins pretos disse:

– Posso fazer uma pergunta?

Pode, claro.

– Você está feliz de verdade?

Claro. Feliz? Karaka. Claro que estou. Puxa. É o meu sonho.

Que vai se tornar realidade. Pense quantas pessoas queriam estar no meu lugar agora.

– Hehehe.

Do que você está rindo?

– Ah, nada, não, me desculpe, eu não estou rindo de você.

É que você sempre responde às minhas perguntas rapidinho, sem pensar. É como. Se você tivesse usando uma couraça. Uma couraça preta. Antiga, muito antiga. O “cavaleiro da couraça negra”.

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carlos maltz

Engraçado.

– O que é engraçado, Juan LMK?

Essa conversa. Parece que já aconteceu antes ou eu li isso em

algum lugar.

– Ahhh, sim, isto se chama “Dejá vu”, ela disse.

A situação estava ficando perigosa, eu tinha que mudar aque-

le jogo rápido, se não era eu que ia ficar nu.

Resolvi sexualizar a conversa pra escapar da intimidade. Puxa, adorei os seus sapatos.

Ela sacou o meu golpe baixo. Mas era obrigada a jogar o jogo.

Ela estava lá pra isso. Estava sendo paga pra isso.

– É? Você quer que eu coloque mais perto da câmera pra você

poder ver melhor?

Sim. Sim. Coloque sim.

– E quanto você vai me pagar pra eu fazer isso?

Quanto? Bom.

Cliquei em 300 Sexies, que era o valor habitual.

– 300? Ela disse. Só 300? Pô, o cara é a “next big thing of the

world” e vai pagar só 300 sexies pra ver o meu pezinho?

Ahh, bom. É que. Você não tinha dito que ia mostrar o pezinho.

Cliquei em 1500.

Ela riu e tirou lentamente o scarpin preto do pé esquerdo. Vi

o seu pé grande, branco, delicioso e chic novamente. Ela devia calçar uns 37, 38. Mas o pé, apesar de grande, era superdelicado e sexy. Os dedos compridos, bem fininhos. As unhas estavam pintadas de preto como da primeira vez. Deliciosas. Ela deitou de um modo que o arco abobadado românico perfeito do seu pezinho ficou bem próximo da câmera.

– E então? Gostou, Juan?

Você é um anjo.

Ela ficou séria. Tirou o pé rapidamente e colocou o sapato de

volta.

132


o último rei do rock

– Não, não sou não. Nunca me chame dessa maneira.

Desculpa. Eu não... De que maneira?

– Dessa maneira aí essa palavra que você usou.

Anjo? Mas eu quis dizer que você.

– Não, nunca use essa palavra, nunca mais use essa palavra,

não, eu não sou nenhum anjo não, Juan LMK eu não sou nenhum anjo não.

Tá desculpa. Eu não.

Agora ela estava séria, tinha ficado muito brava com aquilo.

Como é que eu ia adivinhar? Ela também tinha a couraça dela.

Acho que você é doida mesmo.

– Eu falei. Eu falei que sou doida. Acho melhor a gente parar

por aqui senhor Juan LMK. Vou clicar pra mandar o seu dinheiro de volta.

Não, espera, não precisa.

Ela clicou o meu dinheiro virtual de volta.

– Tchau.

Tchau.

Caralho véi, que cagada. E agora? Eu tava lá sozinho. Doidão.

Todo meu tesão tinha passado.

É claro que eu estou feliz. Por que eu não estaria? O que mais

eu poderia querer da vida? Eu ia realizar o meu sonho. Ia realizar tudo. E mais um pouco. Eu ia chegar onde quase ninguém chegou. Ia ser grande, muito grande. Talvez até maior do que “ele”. Maior. Bom, claro que a gente ia ser massacrado pela crítica de todos os tipos, do mundo todo. A não ser as que fossem pagas pelo Bhardian. A gente ia ser trucidado. Mas quem se importava com isso, quem se importava com a crítica? A gente sempre foi trucidado, os caras nunca nos levaram a sério mesmo. Quem se importa com a crítica, quando suas músicas estão sendo ouvidas por bilhões de pessoas? Quem se importa com a crítica quando você vendeu tanto que seu nome está impresso para sempre no panteão dos grandes? No granito do rock mundial? Quem

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carlos maltz

se importa com esses manés quando você entrou para a história? É claro que eu estava feliz. Que porra de pergunta. Fechei a cortina e apaguei a luz. Eu estava muito estressado, precisava dormir um pouco. Quem precisa ser feliz? Nem sei se essa porra de felicidade existe mesmo. Fechei os olhos. Os olhos dela estavam lá. Estavam lá na parede. Imensos, azuis. Acho que os dela eram naturais, azuis mesmo. Espelhos. Como ela podia saber exatamente como eu estava me sentindo? Como ela fez aquilo? Por que ela tinha que entrar naquele assunto? Não era pra isso que ela estava lá. Não era pra isso que ela era paga. Quanto tempo ela levou pra me sacar? Dois, três minutos? Nunca ninguém tinha olhado tão profundamente pra mim daquela maneira. Nem a minha mãe, nem eu mesmo. Eu precisava mais. Eu precisava dela mais, agora mesmo. Acendi a luz. Entrei no SenSoSex. Ela não estava mais on-line. Tasquispariu, véi. Nessa época eu já tava começando a ter dificuldade pra conseguir dormir sem remédio. E já estava começando a ficar paranoico. Eu não era mais um mané qualquer. Eu era Juan LMK. Onde quer que eu estivesse, dali por diante, estaria sendo observado e gravado em vídeo 24 horas.

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13. Diacetilmorfina hidroclorida

Fiquei um tempão sem vê-la. Acho que eu fiquei com medo

dela. E fiquei com medo de me expor no SSS. Sei lá de que maneira aquilo poderia ser usado contra mim. Algumas vezes até entrei no SSS, mas procurava outras garotas. Cheguei até a entrar na sala dela, mas ficava só quieto olhando. Eu estava fugindo e fugindo de mim o mais rápido que eu podia. Lembrei-me das palavras do Sombra. Aquelas. De o povo passar o tempo todo ou trabalhando, ou bêbado, ou dormindo. A última coisa que eu queria era falar com ela. As coisas estavam mudando muito rápido na minha vida. Tudo estava começando a acontecer muito rapidamente. Era outro tempo. Embora os dias fossem os mesmos.

A primeira baixa foi o Loló. É óbvio que ia ser ele. O Loló era

um mané total. Arame liso. Um peganinguém. Do jeito que ele já se detonava sendo duro, imagine o que aconteceu quando a gente botou a mão na grana. E não foi pouca grana. Bhardian deu a cada um de nós uma “pequena quantidade” pra gente começar a brincadeira. E bancou todo mundo no “Celestial Cage”, o melhor apart-tech-hotel de Brasília na época.

A gente até já conhecia heroína, mas nunca tivemos grana pra

bancar aquele trem. Agora a gente tinha. Os traficantes caíram em cima de nós que nem formiga no açúcar. A galera já nos conhecia, mas a gente era uns manezinho consumidores de maconha sintéti-

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carlos maltz

ca, pó, essas coisas miúdas. Agora a gente era “os cara” da cidade, e a rotação aumentou uns mil por cento. A gente se injetava junto. Combinamos que íamos estar sempre juntos naquela parada, que a gente só ia fazer quando estivessem os três juntos. Os três éramos eu, o BBC e o Loló, que o Ra-tón não entrou na parada. No começo até que a gente conseguiu manter o pacto. Eram duas sessões de “acupuntura” por semana, no máximo. Mas em menos de um mês a gente já tava se picando várias vezes por dia. Passamos uns seis meses trancados num estúdio em Brasília ensaiando e preparando o show. Obviamente mergulhamos fundo. A gente não tinha muito o que fazer, e Bhardian nos proibia de sair do hotel. A gente tinha que deixar de ser tão acessíveis, ele dizia. A gente tinha que ser inacessível. Isso aumentava o “mistério”, a “aura artística” que ele queria pra nós. Segundo o que ele mesmo dizia, éramos prisioneiros em uma “gaiola celestial”. Nossas músicas não estavam tocando em lugar nenhum, mas Bhardian dizia que era assim mesmo, que era a estratégia dele, que a gente ia ter que ter calma, saber esperar a hora certa para atacar, como os aliados na Normandia. Que a gente tinha que desaparecer completamente pra depois ressurgir como algo novo, absolutamente novo. “Um herói que nasceu ninguém sabe de onde, pra tomar de assalto os corações do mundo inteiro.” Uma “Blitzkrieg”.

Hei, ho, lets go. Hei, ho, lets go. Hei, ho, lets go.

E... Ele dizia que aquilo era só o começo, que ele queria criar

uma expectativa gigante e preparar um megashow. Pra gente voltar arrasando quando do lançamento do produto novo da ManGodCorp. A gente ensaiava a noite inteira e dormia de dia. Paramos de fazer

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o último rei do rock

shows. Éramos uns zumbis comendo na mão do Bhardian. Éramos uns zumbis comendo diacetilmorfina hidroclorida na mão do Bhardian, mas isso eu ainda não sabia também.

O Loló foi a primeira baixa. Não que ele fosse o mais doido.

Esse, como eu já estive explicando, era eu. Mas ele era o mais fraco. Desde sempre. Ele também era filho de mãe, e de vó. Assim como eu. E como “ele”. E, assim como eu, também nunca conheceu o pai. A diferença é que a mãe dele nunca deu muita atenção pra ele, ao contrário da minha, que sempre foi uma pessoa muito próxima e ligada a mim. A mãe do Loló tinha sempre um monte de namorados e nunca tinha muito tempo pra ele. Acho que isso fez diferença no caso dele. Acho que a ausência dela tinha a ver com a fragilidade dele. Pra ele ter descido a ladeira tão depressa. Pelo menos foi o que o psiquiatra falou depois que as coisas aconteceram. Todos nós tínhamos os nossos vazios, as nossas dores. E eu acho que de alguma maneira todos nós usávamos as drogas pra fugir dessas dores, desse vazio. O Ratón não se detonava muito. O lance dele era o sexo. A droga dele era o sexo. Ele usava as meninas como se elas fossem uma droga, pra ele fugir dele mesmo, pra fugir do vazio dele. Mas o Loló usava a parada de um jeito diferente. O desespero dele era diferente. Era muito mais desesperado. Ele era o que aguentava ficar menos tempo nesse mundo aqui. Era o que precisava mais desesperadamente fugir. Desde sempre ele foi assim, desde o começo. O apelido Loló já vinha dos tempos da escola, das primeiras bandas que ele tocou lá no começo dos anos 1990. Ele já trazia as paradas pra galera. Com quatorze anos, o Loló já trazia as paradas pra galera.

A gente até tentou criar um regulamento. Sabíamos que se

meter com o “sal” não era brincadeira e que era diferente de tudo o que a gente já tinha feito até então. E que a gente tava correndo risco de se fuder totalmente. Mas isso só fazia aumentar o desejo. Só fazia aumentar a fissura. E acho que de alguma forma aquelas “sessões” coletivas estavam criando um elo entre nós, uma parceria que a gente

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sabia que ia precisar pra enfrentar as coisas que viriam pela frente, embora naquela época a gente não fazia nem ideia do que ainda estava por vir. O fato de a gente ter passado aqueles meses trancados dentro do hotel e do estúdio também contribuiu pro que aconteceu.

Será que o Bhardian sabia o que ia acontecer? Será que ele foi

tão maquiavélico assim? Naquela época eu jamais poderia pensar em alguma coisa dessa natureza, mas hoje, olhando pra trás, olhando o que aconteceu depois, sou capaz de apostar que sim, que foi tudo calculado e planejado. Agora tenho praticamente certeza absoluta. Também não precisava o cara ser nenhum gênio da matemática pra adivinhar o que ia acontecer com uns manés como nós cheios de grana e trancados em um apart-hotel de luxo às margens do lago Paranoá.

Um dia o Loló deu uma porrada com o Lamborghini amare-

lo zero bala que ele havia acabado de comprar. Ele tava dirigindo bêbado e, além de perder a carteira e pegar uma multa medonha, deslocou o braço e passou a sentir muita dor. Nós autorizamos ele a se injetar pra aliviar a dor por fora das “sessões oficiais”. Esse foi o nosso erro maior. Em pouco tempo ele estava completamente viciado e noiado. Se picava três, quatro vezes por dia. A heroína é provavelmente a maneira mais poderosa de escapar da realidade. É a droga que te leva pra mais longe da realidade, da maneira mais “doce”. Mas é também, como não poderia deixar de ser, a que te cobra um preço mais alto pra estar de volta. A dor da abstinência é terrível e só ela mesma, a tua “heroína”, é capaz de aliviá-la. No caso do Loló, o que realmente me surpreendeu foi a velocidade com que as coisas aconteceram. Em três meses ele já estava praticamente vivendo só pela e para a droga. Não saía mais do quarto. Só para os ensaios. A gente o levava quase arrastado. Bardhian sabia de tudo, mas se limitava a dizer coisas como:

– Vocês precisam ter cuidado, precisamos ajudar esse garoto.

E só entre nós dois, dizia coisas do tipo:

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o último rei do rock

– Eu sei que é duro ter que dizer isso, mas se ele não der

conta, Juan, pode ficar sossegado que eu tenho outras pessoas que dariam a vida para estar no lugar dele na sua banda.

Ele sempre se referiu aos paralells como a “minha banda”. Se

isso me irritava por um lado, por outro me deixava lisonjeado.

Hehehe. Mais lisonjeado que irritado, né?

É. Embora eu ainda não fosse capaz de admitir isso e nem de

imaginar o quão maquiavélico era o seu plano, eu sabia de alguma maneira que Bhardian estava me bajulando para ter um controle absoluto sobre a banda. O cara era realmente profissional, com um pós-doutorado em vaidade humana. Mas, naquela altura do campeonato, minha alma estava muito fraca para que eu pudesse esboçar qualquer tipo de reação. A Sombra tinha razão, eu era movido à vaidade e desejos de fama e glória sem fim. E a heroína só estava deixando os meus “demônios” mais à solta ainda.

Chegou um momento em que o Loló foi ficando realmente

ruinzinho. Ele se trancava no quarto e não abria a porta pra ninguém. A gente tinha que ir buscar uma chave reserva ou ameaçar de arrombar pra ele abrir. Quando a gente entrava, ele estava escondido atrás da cama e ficava dizendo pra gente sair, que a gente era “o inimigo”, ou invasores alienígenas, ou coisas assim. Praticamente não tomava mais banho e foi ficando com um aspecto esquelético de tão magro. Tivemos que aceitar o sub do Bhardian, que era um baixista de estúdio de Brasília que a gente já conhecia. O cara nem era do rock. Era tipo esses caras técnicos e frios, que tocam qualquer coisa. E ainda por cima era careca. Eu dizia pro Bhardian que o cara não tinha nada a ver, que o visual e a onda dele não tinham nada a ver com a banda, mas ele não tava nem aí. É óbvio que não tava nem aí. Mas naquele momento eu ainda não tava entendendo nada. Olhando pra trás, é incrível perceber como eu pude me enganar a tal ponto. Na verdade, acho que eu queria me enganar, a Sombra tinha razão, na verdade, em minha ambição eu sabia o tempo todo que o plano maquiavélico

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de Bhardian era só pra mim. Mas eu não estava suficientemente “indignado” com isso pra lutar contra.

O lance da arma foi uma surpresa também. Como o Loló a

comprou? De quem? Pra quê? Pra se defender dos “invasores alienígenas”? Quem viu ele primeiro foi o Ra-Tón. Foi numa madrugada. O coitado do Loló devia estar assolado pelos demônios, pelas “vozes” dele. Encostou o cano na têmpora direita e disse adeus definitivamente a esse mundo pelo qual ele nunca tivera muito apreço. Era incrível como esse assunto de arma tinha entrado na minha vida desde que eu vira Belair Bhardian pela primeira vez. Tudo bem, eu sempre tive uma atração e talz. Mas era tipo uma brincadeira, uma parada que a gente achava cool, tipo música do Clash. Especialmente pra ver de longe. Mas, de uns tempos para cá, a parada estava chegando cada vez mais perto de mim. E o mais incrível é que era a mesma arma, o mesmo tipo de arma: o mesmo 38 de cano curto, com cabo de plástico cinzento. Será que isso era um sinal também? Coincidência? Mas também, sei lá, eu não entendia nada de arma. Não tinha condição, naquele momento, de eu saber que era muita coincidência as duas paradas terem acontecido com o mesmo tipo de arma. Naquela época eu nem sabia que tinham vários tipos de revólver calibre 38.

Coincidência?

Não sei. Quero dizer, aquela era uma arma relativamente co-

mum. Sim. Mas... Agora, depois do que aconteceu comigo lá no hospital, eu tenho a certeza de que não foi uma coincidência.

Tem certeza mesmo?

Praticamente. De certo modo, ninguém ficou muito chocado

com a morte do Daniel Loló. De certo modo, foi “crônica de uma morte anunciada”. A única pessoa triste mesmo no enterro era a vó dele. A mãe, acompanhada pelo quinquagésimo nono namorado desde que eu a conheci, estava tão doidona que nem se pode dizer se ela estava alegre ou triste. Os caras da banda, incluindo eu mesmo,

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o último rei do rock

também estávamos todos muito chapados pra estar podendo sentir alguma coisa. A Melzinha ficou o tempo todo do meu lado.

– Phoda cara.

Phoda.

– Vocês tem que parar com essa porra de heroína, Juan, se

não, não vai sobrar ninguém.

Maninha. Eu falei que a gente não devia ter entrado nessa

merda do Bhardian.

– Não vem com essa Juan. Mais uma vez tu tá tirando o teu da

reta.

Mas eu não falei mesmo?

– Juan. E eu por acaso falei que vocês tinham que entrar nessa

merda de heroína? Eu por caso entrei? Eu sou a que tá ganhando menos grana com essa parada e sou a que tá juntando mais. Enquanto vocês tão torrando com esse monte de merda de carro, de puta e de droga, eu tô juntando uma grana. Quando essa história terminar, eu vou arrumar um futuro pra mim, bróder.

Futuro? Hehehe. Futuro. Tu acha que a gente vai ter algum

futuro. Depois que a gente sair dessa? Se é que a gente vai sair dessa.

Eu falava isso, mas no fundo eu não acreditava nisso. Eu acha-

va mesmo que os Paralelepípedos do Óbvio iam bombar em escala mundial. Em minha ingenuidade, e na megalomania aditivada em que me encontrava, eu não percebia ainda o tamanho da arapuca em que tinha entrado. Eu ainda acreditava, naquele momento, que poderia usar Belair Bhardian e a ManGodCorp pra bombar os Paralells. De repente, não sei por que cargas d’água, me deu uma vontade irresistível de rir. Eu tava no enterro do Daniel Loló, o cara tinha se matado, e eu tava doido pra rir. A Melzinha percebeu a situação e me tirou dali.

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14. Tipo aqueles Adidas do século passado

O baixo astral que se seguiu à morte do Loló nos ajudou a

segurar um pouco a onda. Se bem que, por outro lado, o sofrimento aumentava o desejo de fugir pela mão da dona herô. Tava phoda. O “sal” era a droga mais fudida que eu já tinha experimentado. Era muito difícil de segurar a onda, de usar “moderadamente”. Era tipo: tudo virou um inferno. Tudo era um inferno. E quando a gente injetava era o céu. Era isso. Só tinha céu e inferno. Quando a gente tava sob o efeito do “dope” era o céu, quando não tava, era o inferno. A fissura é violenta. O cara é capaz de fazer qualquer mierda por um pico. E tinha mais todas as outras drogas que a gente continuava usando junto com o “diesel”. Era muito raro a gente estar de cara. Estar de cara pra mim naquela época era estar só sob o efeito da SynCanna.

A segunda baixa foi o BBC. Foi numa segunda-feira de manhã.

A gente tinha passado o fim de semana no hotel se detonando e fazendo umas “festinha” com umas vagaba. O BBC tava muito mal. Ele nem conseguiu transar com a mina que ficou pra ele, que era uma loiraça supergata. Naquela época, a gente só tava pegando as mina mais cara de Brasília, e a dele naquele domingo era uma loiraça phoda, que todo mundo era a fins. Ele falou umas coisas estranhas sobre o amor que ele sentia pela gente e talz. O BBC não era de falar muito, a gente até estranhava quando ele falava. Na segunda de manhã, eu tava dormin-

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do quando o Ra-Tón veio no meu quarto com o bilhete do BBC. Ele tava boladasso, com os olhos cheios de lágrimas. Eu nunca tinha visto o Rá-Ton chorando. Acho que foi a primeira vez na vida que eu vi a letra do BBC. A primeira e a última. Eu ainda tenho essa carta comigo:

Amigos. Sinto ter que deixá-los nesse momento. Vocês são as pessoas mais importantes da minha vida. A gente foi uma banda legal pacarai. Não tô dando conta das parada aí véi. Essa parada aí não é pra mim não. Vou sair fora. Vou sair fora da parada toda. Vou sair fora da parada do rock, que pra mim não tem sentido estar em alguma banda que não seja os Paralell seja com que nome for. Acho que os Paralelepípedos do Óbvio nem existem mais. Não tem como eu continuar na parada depois do que aconteceu com o Loló. Mas acho que vocês devem seguir em frente, acho que vocês têm que seguir e ver onde essa parada vai dar. Acho que vocês dois vão chegar ao topo mesmo véio, e acho que vocês dão conta de segurar. Mas eu não dou não. Se eu não sair fora agora, vou seguir na mesma estrada que levou o Loló. Eu não dou conta de usar essa parada aí, véio. Eu vou me detonar até ficar completamente louco, como ele. Na real, eu já tô ficando. Eu vou sair fora véi. Vou sair fora dessa cidade. Tenho uns parentes lá no interior do Mato Grosso do Sul. Vou morar lá com a galera. Vou largar a parada toda. É uma galera simples, eles têm um pedacinho de terra e plantam soja. Vou ficar lá morando com eles. Vou deixar meu equipamento todo pro Ra-Tón. Podem fazer o que quiser com ele. Se quiserem vender, podem vender, se quiserem dar pra alguém, podem dar. Sei que eu tô fazendo uma parada muito radical véi, mas não tô vendo outro jeito. Se eu não fizer isso, eu não vou durar muito tempo. Eu vou sair fora e não vou voltar mais pra essa vida do rock, véi. É o único jeito. Espero que entendam e que não me procurem mais. A gente não vai mais se ver.

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Nunca mais. Eu vou mudar completamente a minha vida. Vou virar um manezão, arrumar uma mina lá do interior, casar, arrumar uns filho, um emprego. É o único jeito que eu tô vendo. Espero que possam entender isso. Desejo sinceramente de todo coração que vocês cheguem onde estão querendo chegar, e eu vou ficar muito orgulhoso de ver vocês na televisão bombando na China, bombando na Ásia inteira, bombando no mundo inteiro. Eu vou ficar muito orgulhoso de vocês. Té mais vê véi. Billy Bom Cabelo.

Ficamos os dois sentados na cama com cara de prego.

Que mané. Eu falei.

– Tasquispariu véi.

É maninho. Sobramos só eu e tu.

– Eu, tu e a Melzinha – ele falou.

Pozé. Eu, tu e a Melzinha. Vamos ligar pra ela.

Ligamos. Ela veio. Demos o bilhete pra ela.

– Tasquispariu véi.

Pozé maninha.

– Sobramos só nós três – o Ra-Tón falou.

– Só vai sobrar eu se vocês não pararem com essa merda – ela

disse.

– Eu tô fora, o Ra-Tón falou. É só o Juan agora.

Eu guento droga, gente. Não vou ficar abilolado como esses

manés. Eu falei.

Só que, nesse momento, uma coisa muito estranha estava

acontecendo: eu e o Ra-Tón estávamos sentados na cama e a Melzinha estava numa poltrona que ficava encostada na porta da varandinha, que estava aberta. Do lado de fora, na varandinha, tinha uma cadeira de plástico encostada na parede. Quando eu olhei naquela

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direção, vi um pé, um pé que usava um tênis. Era um tênis antigo, tipo aqueles Adidas do século passado. Levantei os olhos e “ele” estava lá. O John estava lá sentado na cadeira me olhando. Karaka. Olhei de novo e ele tinha sumido. Fiquei muito transtornado. Os dois perceberam.

– Que foi, Juan? – O Ra-Tón perguntou.

Que foi? Nada. Nada não véi. Tudo beleza.

– Beleza nada. Tu tá branco. Karaka Juan. Quéqui tá te aconte-

cendo véi. Tu tá bem? Tá tendo um troço? Fala véi, fala.

Nã. Não. Nada.

Olhei de novo, ele tava lá sentado, com aquela cara de John

Lennon me olhando. Tava até com os óculos redondinhos e aquela camiseta branca com as letras N,Y,C. Putasquipariu, tava começando. Eu tava ficando doido também. Será que eu ia endoidar completamente? Será que ia pular pela janela,ou estourar os meus miolos que nem o Loló? Será que eu queria endoidar de vez? Tentei manter a pose de normal, mas eu estava muito assustado. Queria sair correndo daquele quarto, mas estava sem força nenhuma em minhas pernas. Olhei de novo, ele não tava. Ufa! Olhei de novo, ele tava. Não tava. Tava. Não tava. Tava. Que merda véi, que mierda. Eu tava ficando biruta. Tava ficando doido. Eu tinha que parar com aquela mierda de heroína imediatamente, se não ia ficar completamente maluco. Eu ia me fuder, ia pular pela janela. Eu ia endoidar, perder a razão.

Não, não, eu não posso.

– Não pode o quê, Juan? – A Mel falou.

Não, eu não posso ficar doido, eu não posso, não agora.

– Não Juan, sim, é isso, não, você não pode, você não vai.

Você não vai ficar doido, Juan, nós vamos sair dessa juntos, nós já saímos de várias outras maninho. Não Juan, você tem que parar com essa merda agora mesmo, Juan, se não você vai ficar doido também maninho.

Não, não, ele não tá lá. Ele tá lá? Não, não tá não.

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– Ele quem, Juan? – O Ra-Tón perguntou.

Agora o Loló tava lá também. Parado. Encostado na mureta da

varanda. Ele também não tava dizendo nada. Só ficava me olhando. Levantei correndo, fui até o banheiro e me joguei debaixo do chuveiro frio, de roupa e tudo. As agulhas geladas da água batendo no meu corpo me trouxeram de volta, mas por quanto tempo ainda elas me trariam? Resolvi contar tudo pros caras. Será que eu devia contar tudo pros caras? E se eles contassem pro Bhardian? Será que eu devia contar pro Bhardian? E se ele resolvesse me internar? Será que eu devia me internar? A dor começou a ficar insuportável. A fissura pra me picar estava irresistível. Eu faria qualquer coisa por um pico naquele momento. Fui correndo até o quarto pra pegar a seringa e o “sal”. Eu ia pegar as parada, me trancar no banheiro e me picar. Os caras viram. Eles vieram atrás de mim.

– Não Juan, para, para cara. – O Ra-Tón falou.

Eu ouvi. Eu vi que eles estavam realmente preocupados comi-

go. Podia sentir o amor deles por mim. Sentia ondas de amor fluindo por todos os lados. Sentia o medo também, sentia o pânico da Melzinha, o desespero dela. Mas acima de tudo sentia a minha dor e a minha fissura pra me picar novamente. Nada e nem ninguém seria capaz de me segurar naquele momento. O Ra-Tón viu o que eu estava querendo fazer. Ele veio correndo e me agarrou. Eu lutei com ele pra me desvencilhar. O bicho era forte. Rolamos pelo chão do quarto. Eu tava alucinado, estava tomado pelo ódio, mas estava muito enfraquecido. O Ra-Tón estava decidido a me parar. A Melzinha tava encolhida num canto chorando desesperada. Peguei uma garrafa metálica que estava vazia no chão. Acho que era de água. Eu ia bater nele com a garrafa mesmo. O Ra-Tón segurou a minha mão e me tomou a garrafa. Ele me deu uma porrada muito forte com a garrafa do lado da cabeça. A garrafa rasgou o meu couro cabeludo e o sangue escorreu. Lembrei do cheiro do sangue da mulher do Panka e apaguei.

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15. Alto paraíso

Desde os anos 1970 do século passado, Alto Paraíso de Goiás

era uma das mais importantes mecas de hipongas, naturebas, místicos e passageiros de OVNIs perdidos que buscavam uma vida mais tranquila, longe do stress e da violência dos grandes centros urbanos. A clínica Prime ficava em uma espécie de chácara a uns trinta quilômetros da cidade. Tudo era extremamente limpo e moderno. Clean chique, se é que me entendem. Um refúgio para endinheirados deprimidos e viciados. Vinha gente do Brasil inteiro. Enquanto o povão se amontoava nos depósitos para depressivos das periferias, os endinheirados vinham para esse tipo de oásis. Quantos negócios milionários devem ter sido fechados ali entre um inibidor da MAO e outro. Quantos casamentos neurossinápticos? Quantas trepadas noradrenérgicas?

O responsável pela clínica, Doutor Phillippe Arnaldo Maxwell

Andrade Filho, um psiquiatra paulista que viera para o planalto central em 2015 não era exatamente o que se pode chamar de “uma pessoa carinhosa”. Mas era hiper super triper diplomado no exterior. Estava fazendo jorrar rios do vil metal no cerrado com suas duas alas: a dos depressivos, que era a maior, e a minha, a dos doidões adictos, que era menor e ficava num local um pouco mais afastado, no alto de uma elevação do terreno que tinha poucas árvores e dois olhos d’água. A clínica devia ter capacidade para uns trezentos pacientes, entre as duas alas. E estava sempre lotada. A três paus por cabeça/

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dia, faz as contas aí da grana que aqueles caras tavam ganhando. Até dava pra fugir dali, mas eu não tava em condições. Não tava nem pensando no assunto. Passava a maior parte do tempo dopado na cama assistindo televisão. O tratamento para desintoxicação de heroína não é brincadeira. Eles usam um negócio chamado “Metadona” que eu não sei dizer exatamente o que é, mas posso garantir que é uma dona que não dá o mesmo barato do “sal”, mas te alivia um pouco a dor. Que eu sentia dor até embaixo das unhas.

Quando abri os olhos pela primeira vez depois da pancada

do Ra-Tón, não sabia nada do que tinha acontecido até eu chegar ali, nem onde eu estava e nem quantos dias tinha passado desacordado. Depois fiquei sabendo que foram uns dois. Demorou pra eu receber visita. O doutor Maxwell dizia que no começo seria melhor eu não receber mesmo. A dor era insuportável. A fissura era mortal. Teve alguns momentos que foi preciso os caras colocarem em mim uma espécie de jaquetinha bem justinha, que pra dizer a verdade, era uma camisa de força mesmo. Os dias se passavam. Dez, vinte, cinquenta. Fui melhorando. Aquilo devia estar custando uma baba, e é óbvio que o Bhardian é que estava pagando. No segundo mês, comecei a melhorar rapidamente. Para minha sorte ou azar, sempre fui forte que nem um jumento, o que me permitia usar droga numa quantidade que os outros caras não tinham a menor chance de acompanhar. E me recuperava relativamente rápido também.

O doutor Maxwell vinha a cada dois dias. Um homem rígido,

magro e alto, na casa dos seus cinquenta e poucos. Bem-sucedido, limpo. Um cara que ganharia qualquer eleição pra síndico. O sonho de qualquer sogra. Era evidente que ele me desprezava, que não gostava de mim. Falava pouco, só o mínimo necessário, e de vez em quando fazia comentários ácidos sobre o quanto lastimava não poder atender pacientes que não podiam pagar. “Pessoas simples que sucumbiram ao fardo de suas existências cruéis”, como ele dizia. Era uma maneira indireta de ele dizer que eu, aquele lixo humano, aquela escória,

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estava lá sendo pago por uma hiper-mega-multi, enquanto pessoas simples que não aguentaram o fardo de suas existências cruéis não podiam ser atendidas porque não tinham condições financeiras.

Porra, o que é que eu tinha a ver com aquilo? Por que eu tinha que ouvir aquela balela? Se ele se importava

tanto assim com as “pobres pessoas simples que não aguentavam o fardo”, etc., por que não as atendia de graça? E eu também não era alguém que tinha sucumbido ao fardo da minha existência cruel?

Mas um cara que nem ele nunca poderia entender um cara

como eu. Ele era hiperligado em grana e poder. Era fodão da sociedade brasileira de psiquiatria. Já tinha sido presidente, esses trem. Era todo atlético, equilibrado, “positivo”. A única coisa que eu não conseguia entender é o que havia levado um cara daqueles a se meter com gente doente das ideia. Deve ter sido a grana, que o mercado de doido naqueles tempos era um dos mais promissores e expansivos. O mané andava sempre com um livrinho vermelho no bolso do jaleco. Era meio que a bíblia dele, o seu “Mein Kampf”. De vez em quando, parado ao lado da minha cama, ele lia em voz alta algumas frases “edificantes” que despencavam do alto dos seus quase um e noventa como blocos de concreto de um prédio em construção:

– A época em que vivemos será verdadeiramente conhecida como a era das multidões. – O fundo hereditário dos sentimentos de uma raça é o seu elemento mais estável. – Hoje as multidões já não querem mais os deuses que seus

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antigos mestres renegaram e contribuíram para destruir. – A história ensina que no momento em que as forças morais, base de uma sociedade, perdem seu vigor, a dissolução final é efetuada pelas multidões inconscientes e brutais, adequadamente qualificadas como bárbaras. – Quando o edifício de uma civilização está carcomido, as multidões levam-no ao desmoronamento. É quando o seu papel aparece. – A força cega da quantidade torna-se por um instante a única filosofia da história.

Coisas assim.

Não faço a menor ideia do que ele queria dizer com essas coi-

sas, ou por que ele as dizia pra mim. Desconfio que tinha a ver com o fato de eu ser um cantor de rock, um pré-pop-star bancado por uma multi. Mas é só até aí que minha capacidade de interpretação alcança. Os dias naquele calvário passavam lentamente sob a medicação e a doutrina do Dr. Maxwell, até eu conhecer um cara chamado Kovakcis. Era um interno doidão que nem eu. Conseguia passar SynCanna pra dentro da clínica. O quarto dele ficava no segundo andar, uns três depois do meu. À tarde, a gente saía pra dar umas voltas e

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fumar um. Era uma peça raríssima. Foi a minha salvação da lavoura. Literalmente. E uma peça fundamental nos acontecimentos que vieram depois. Inteligentíssimo. E um verdadeiro bróder como poucos que eu tive. Se não fosse por ele eu não estaria aqui agora contando essa história.

O cara era professor de engenharia eletrônica na universidade

de Belo Horizonte. Um polacão alto, de cabelo ruivo como o Nando Reis. A galera o chamava de “Fumabomber”, por causa de um outro professor universitário. Um americano doidão, que era meio geniozinho e meio terrorista e que, de 1978 até 1995, mandou cartas -bombas pra cientistas eminentes, chegando a matar três deles e ferir mais de vinte em nome de um suposto movimento antitecnologia. O nosso geniozinho doidão não mandava bombas pra ninguém, ele fumava todas elas. E não tinha nada contra a tecnologia. Na verdade, ele era meio geniozinho da tecnologia. O mago da invisibilidade. O cara manjava tudo sobre as grain-câmeras. Sabia como construí-las e como neutralizá-las. Este era um conhecimento que valia ouro naqueles dias em que a palavra privacidade valia menos do que o falecido Euro. E o “Bomber” sabia de tudo o que se passava na nossa tão pasteurizada e rigorosa clínica Primus, como eu vim a saber logo em seguida.

A mulher do Dr. Maxwell, dona Patrícia não-sei-das-quantas

de Andrade, era a administradora financeira da bagaça. Mulher na casa dos seus quarenta que nem eu, só que muito mais bem conservada. Uma balzaca morena de pele bem clara e olhos inevitavelmente azuis. Acho que os originais deviam ser verde-claros, que lhe cairiam muito melhor. Gostosa, fria e inacessível. Filha da mais requintada elite paulistana. O sobrenome tradicional, que os associava à grana, sobriedade e fina flor de nossa poesia moderna, era patrimônio dela, que ele adotou sem dificuldade. Ele era um típico e pragmático macho brasileiro pós-moderno. Ela era a alma do negócio. Quando passava, a gente sentia o cheiro da grana no ar. Chiquérrima. Andava pelos

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caminhos esburacados da chácara exalando poder e sexo, como se estivesse desfilando seus stilettos pela margem direita do Sena. Toc, toc, toc, toc lá vinha ela.

Dona Patrícia tinha o dom de nos deixar com vergonha de

existir quando passava. Era óbvio o quanto nos desprezava por sermos pessoas tão fracas e imbecis. Sem dirigir a palavra a nós, os pacientes, ela conseguia ser ainda mais arrogante que o marido. Diante daquelas pessoas eu me sentia um bosta completo. Será que aquilo também fazia parte do tratamento? Eu sabia que não merecia estar naquele lugar tão chique e procurava não chamar muito a atenção. Eu jamais passaria nem da porta de uma clínica daquelas nas minhas condições normais de temperatura e pressão. Só estava lá por causa de Belair Bhardian e os nobres bandeirantes não me deixavam esquecer este fato nem um minuto sequer. Não eram exatamente pessoas generosas. Mas deviam ser grandes no que faziam, ou eram pessoas extremamente bem relacionadas. Ou ambos. A clínica estava sempre cheia. Cada um deles tinha a sua própria casa na chácara. Coisa de gente bacana.

Um dia o Fumabomber bateu na minha porta de um jeito meio

diferente. Eram umas cinco da tarde, hora em que os pacientes podiam dar as suas voltas pela chácara. Geralmente era a hora que a gente se metia nos matos pra fumar o bagulho sintético. Quando eu abri a porta, ele colocou o dedo na boca e disse:

– Fica quietinho e vem comigo que eu vou te mostrar uma

coisa.

Entramos no quarto dele no maior silêncio, na ponta dos pés.

Num canto, no chão, tinha uma tela de cristal líquido estendida, dessas que dá pra dobrar. O Fumabomber encheu de panos em volta da tela, era uma espécie de cabana que nos mantinha na escuridão do resto do quarto. Continuava fazendo sinal pra eu ficar em silêncio, disse bem baixinho que aquele esquema todo era pra escapar das minicâmeras escondidas que tinham pelo quarto. Ele usava umas tralhas

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que ele mesmo construiu pra rastrear o quarto, encontrar as “graincâmeras” e neutralizá-las. Entramos na cabana e ficamos agachados em volta da tela. Colocamos uns fones-pastilha nos ouvidos. Na tela, a imagem de uma cama, um quarto. Era um lugar muito chique, todo em preto e branco. Parecia o estilo de se vestir da dona Patrícia. Era a casa dela? O quarto dela? O Fumabomber só me mandava ficar em silêncio. Olha, ouve e fica quieto, ele dizia. Se nos descobrirem aqui, a gente tá fudido. De repente a dona do quarto apareceu. Era ela mesma. Dona Patrícia. Estava toda de preto, como habitualmente, com seus stilettos de 12 centímetros, vestido de seda, meias de nylon, etc. Tinha uma mulher com ela. Eu logo a reconheci. Era uma paciente da ala dos depressivos. Uma mulher mais jovem, na faixa dos seus trinta e poucos, meio gordinha, calça jeans dessas de gente chique. Uma camisa branca e saltos altos também. Se não me engano, os sapatos eram dourados, desses carésimos. Pra que essas pessoas andavam tão bem vestidas num lugar como aquele? Parece que era uma empresária fodona de São Paulo, do ramo de material de construção, ou coisa que o valha.

Como você conseguiu?

– Pssss. Cala a boca e olha.

A Dona Patrícia devia ter certeza absoluta que o quarto dela

era câmera-free. Como o Bomber entrou lá e plantou as “grain” dele, que escapavam de rastreamento? Eu nunca fiquei sabendo. O Bomber era bom mesmo nessa parada de câmeras.

As duas sentaram na cama e ficaram conversando. Não dava

pra ouvir o que elas estavam dizendo, falavam muito baixo. De repente, a dona Patrícia colocou a mão na mão da outra. A mulher estava bem deprimida, ela só ficava olhando pro chão. Como essas pessoas tão ricas podiam ficar tão deprimidas? Depois a dona Patrícia pegou a mão da mulher e ficou passando na coxa dela, na meia de nylon dela. A mulher estava visivelmente envergonhada e excitada ao mesmo tempo. A qualidade da imagem da tela do Fumabomber era incrível, parecia

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que a gente tava dentro do quarto com elas. A dona Patrícia começou a esfregar bem forte a mão da mulher na sua perna e de repente colocou-a bem no meio das suas pernas. A mulher fez de conta que queria tirar, mas a dona Patrícia fez de conta que não ia deixar. Depois a dona Patrícia tirou a mão da mulher do meio das suas pernas e fez ela cheirar os seus dedos. A mulher estava ficando muito, muito excitada. A dona Patrícia mandou então ela se ajoelhar na frente dela e abriu as pernas. A mulher obedeceu sem a menor resistência. A dona Patrícia colocou a mão por trás da cabeça da mulher e empurrou ela bem para dentro das suas pernas. A mulher ficou ali, com a cabeça bem no meio das pernas da dona Patrícia. Ela apertava a cabeça da mulher. De repente, ela se levantou e mandou a mulher colocar a cabeça encostada na cama. A mulher obedecia e ainda dizia “muito obrigado”, “muito obrigado”.

Então a dona Patrícia veio e sentou em cima da mulher. Sentou

bem em cima da cara dela. Ela ficava ali sufocando a pobre coitada da mulher até que ela começava a se debater e se sacudia toda. Ai a dona Patrícia levantava um pouco e deixava-a respirar. A mulher dizia “muito obrigada”, ou então coisas como “me coloca no meu lugar”, por favor “Lady Mildred” me coloca no meu lugar. “Muito obrigado, Lady Mildred”.

Lady Mildred?

– Psssss. Fica quieto!

Rapá, eu já tinha visto tudo quanto é tipo de maluquice sexual.

Eu mesmo era um pervertido profissional. Nem sei se naquela época ainda existia alguém no mundo que não fosse. Mas aquilo era engraçado demais. Que trem doido véi.

Lady Mildred?

– Shhhhhhhh. Cala a boca e olha…

Então a Lady Mildred de costas levantou o vestido e começou

a esfregar a sua calcinha preta na cara da mulher. Ela puxou a calcinha pro lado e mandou a pobre coitada lambê-la bem naquele lugar. Ela bem que tinha uma bundinha bem branquinha e gostosinha. Ficava

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dizendo pra mulher que ela era uma menina má, que não sabia se comportar. Que era um lixo e que precisava aprender qual era o seu devido lugar. A mulher dizia: “sim, sim Lady Mildred”, por favor, me ensina qual é o meu devido lugar, eu preciso muito aprender. Então a nossa dama de preto levantou de cima da pobre coitada, que já estava bem roxa àquela altura do campeonato, e mandou ela baixar as calças e ficar com a bunda de fora. A mulher obedeceu e deitou em cima da cama com o bundão pra cima. Lady Mildred pegou um troço parecido com um relho desses de bater em cavalo e começou a descascar a pancada. Ela batia com vontade mesmo, não eram batidas “simbólicas”. A mulher chorava. Ela pedia desculpas e implorava pra Lady Mildred dar a ela o que ela merecia que ela era uma menina muito má e que precisava ser castigada. Parece que quanto mais a mulher se humilhava, mais a “Mildred” se excitava. A mulher sangrava e implorava por mais. A nossa Marquesa de Sade do Itanháem estava alucinada, fora de si. Ela tava batendo com toda a força. Parecia que tinha raiva, muita raiva guardada dentro dela e tava jogando tudo ali, no traseiro da gordinha depressiva. A bundona da mulher já não era mais branca. Ela chorava e pedia mais. Acho que “Mildred” se assustou um pouco e parou. As duas ofegavam. A mulher chorava e tremia. A “Mildred” estava superagressiva, gritava coisas tipo: sua cadela, você está pensando que é o quê? Não sabe o seu lugar? Seu lugar é no tanque. Seu lugar é junto dos seus filhos, vai varrer a tua casa vagabunda. A Mulher dizia: Sim, sim, Lady Mildred, por favor, me perdoa, por favor perdoa a minha insolência. Eu sou uma mulherzinha, eu sou uma mulherzinha, eu só quero ser uma mulherzinha, por favor, Lady Mildred, faz o que quiser comigo, me usa, me domina, deixa eu te servir, prometo que vou ser uma boa menina novamente, eu quero ser a sua escrava. Coisas desse tipo. Tipo video de S&M mesmo, “Bondage”. Trem doido mesmo, véi. Eu e o Fumabomber batemos uma bronha. Cada um a sua, que fique bem claro. Depois as duas se lavaram, se vestiram e saíram.

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16. A queda d’água

Eu tinha me jogado do alto. Eu tava no alto. Era uma que-

da d’água. Uma queda d’água muito alta, um volume de água muito grande. Como as cataratas do Iguaçu ou algo assim.

Então eu estava lá no alto e alguém me dizia que eu podia sal-

tar que eu dava conta. Eu nem pensei muito e pulei. A sensação era incrivelmente real, eu estava lá realmente, como num desses óculos de realidade aumentada, só que muito mais real. Eu sentia o meu corpo caindo. Tinha a sensação corporal da altura. Eu podia perceber o quanto era alto, o quanto eu era frágil diante daquela altura toda, de todo aquele volume de água. Podia perceber a cagada que eu tinha feito ao pular, e que as chances de eu sair inteiro daquela parada eram mínimas. Ficou claro como o dia, enquanto eu estava no ar, o quanto aquilo era demais para mim. Como eu podia ter sido tão imbecil ao pular? Tão arrogante? Era óbvio que aquela altura era muito mais do que eu daria conta. Era muita areia pro meu caminhãozinho. Mas aí eu já estava no meio do pulo e aquele era um caminho sem volta. Como eu pude ser tão cego, tão prepotente?

Acordei. Lavei o rosto, deixei o sonho pra trás rapidamente e

fui em frente. Lá pelo quadragésimo quinto dia, o Bhardian apareceu. Ele e a Melzinha. Estavam cheios de dedos e me tratavam como se eu fosse uma pessoa doente, um retardado mental, ou algo assim. No começo até que eu achei bom ser tratado com tanta atenção, mas

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depois pensei que se quisesse sair daquela espelunca de luxo, eu precisava dar a entender a eles que já estava curado e não ia mergulhar novamente na heroína tão cedo.

Comecei a falar de música, mercado musical, essas coisas.

O Bhardian se entusiasmou. Ele sempre se entusiasmava com esse assunto. O cara podia ser um vassalo do esquema corporativo capitalista mais podre do mundo, mas uma coisa é certa: ele adorava o que fazia. Adorava a perspectiva do sucesso que ele acreditava que eu iria fazer e do dinheiro que ele achava que iria ganhar comigo. Ele acreditava naquilo tudo muito mais do que eu. Ele tinha as manha, sabia entusiasmar as pessoas. Era tão bom ficar ouvindo-o falar. A gente se sentia forte. Poderoso. Capaz de fazer qualquer coisa. Eu seria capaz de sair de uma conversa com o Bhardian e ir andando até a Lua, se ele me fizesse crer que isto era possível. Caras como ele são fundamentais para a sobrevivência da espécie humana. Eu não trocaria um Belair Bhardian por 333 Stephen Hawkins ou 33 Stephen Kings. Ou vice-versa. E pra ser sincero, eu já estava gostando daquela conversa, embora não entendesse ainda o que ele vira em mim.

Ah, tava gostando é?

É. Tava. Depois eu entendi tudo, entendi o porquê da sua cer-

teza no meu sucesso. Mas naquele momento eu ainda não podia entender porque ele acreditava tanto. Lá pelas tantas perguntei pelo RaTón. O Bhardian fez uma cara de padre compassivo e me disse que eu ficasse tranquilo, que ele iria responder pelo que fez, e que tudo já estava encaminhado.

Responder pelo que fez? Encaminhado? Como assim? Eu per-

guntei.

– Bom, pela agressão. Pela agressão com a garrafa. Ele disse.

Agressão? Mas aquilo não foi agressão, ele estava querendo

me parar. Eu disse ainda.

– Juan. Sim, meu caro, claro. Entendo. Sim. Claro. Você é uma

pessoa muito generosa, meu caro. Mas a realidade é que ele vai ter

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que responder pelo que fez. Sim. Nós não podemos acobertar. É melhor pra ele assim. É o melhor.

Acobertar? Mas. Véi. Mel. Diz pra ele, Melzinha, não é nada

disso, não, senhor Bhardian, o senhor está enganado, não é nada disso. O Ra-Tón não me agrediu, ele fez aquilo pro meu bem, pra me deter. Pra não me deixar fazer a mierda que eu estava querendo fazer. Mel, fala pra ele.

Olhei pra ela, mas ela olhou pro chão.

– Bom, Juan. Eu. Não vi direito. Não vi direito o que ele fez.

Naquele dia, no seu quarto. Tava uma confusão muito grande. O senhor Bhardian disse que...

Mel. Melzinha. Minha maninha. Eu não tô acreditando no que

eu tô ouvindo aqui. Isso tudo é um absurdo completo. Onde é que está o Ra-Tón?

– Ele está bem Juan, ele está bem, o Bhardian disse. Ele está

bem. Fique tranquilo, que já está tudo encaminhado. Vai ser melhor assim, vai ser melhor pra ele, vai ser melhor pra você. Já está tudo encaminhado. Agora você precisa se acalmar Juan, precisa se acalmar, você está num tratamento médico.

Senti que se eu não abaixasse a minha bola imediatamente,

não ia sair dali tão cedo.

Ah, compreensível.

Sim, senhor Bhardian. Acho que deve ser melhor assim. Eu

disse olhando pro chão.

Fiquei mais uns vinte dias na Clínica Prime. Não fiz muita coisa

além de fumar maconha sintética e punhetear com o Fumabomber espiando o “tratamento” que a nossa Lady Mildred aplicava nas suas pacientes poderosas e infelizes. A vontade de voltar a usar o “Diesel” aumentou absurdamente depois que eu fiquei sabendo da parada do Ra-Tón, mas não tinha como arrumar o “sal”. O jeito era fumar a SynCanna mesmo. E eu queria sair daquela armadilha o quanto antes. Se a mulher descobrisse que a gente tinha colocado as grain-câmeras

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invisíveis pra espiar o teatrinho dela, talvez a coisa ficasse pesada pro meu lado. Eu não tava a fins de arrumar encrenca com aqueles caras cheios de grana, poder, esses trem.

E a merda acabou acontecendo mesmo. Mas pra minha sorte,

só depois que eu já tinha saído da clínica. Foi com o Bomber. A mulher descobriu as grain-câmeras e ele ficou numa situação difícil. Os caras tavam querendo fuder com ele mesmo. Eu acabei intervindo junto ao Bhardian que conseguiu contornar a situação. O Fumabomber ficou muito grato. A gente ficou bróder de verdade, o que foi fundamental pros acontecimentos que vieram depois, como vocês vão ver mais à frente. Mas isso foi depois.

Mas o lance do Ra-Tón me torturava. Era só não estar pensan-

do em nada, que eu já tava pensando na parada. Parecia que tinha uma tonelada de chumbo no meu coração. Primeiro o Loló, depois o BBC, agora o Ra-Tón. Eu me sentia culpado.

Culpado. HUAHUAHUA.

Culpado. Porra, e a Melzinha. Qualera a dela? Ela sabia que o

cara tinha feito aquilo pra me ajudar. Tudo bem, o lance do Loló não era culpa minha.

Não era mesmo?

Não, não era. Porra o bicho era doido véi, sempre foi. Ele se

detonou por conta dele mesmo. Ukéko eu podia fazer? Ele também aceitou a parada com o Bhardian. Ele usou a grana dele do jeito que ele quis. Porra véi. Mas o lance do Ra-Tón. Eu dizia pra mim mesmo que aquilo não ia ficar assim, que eu não ia engolir aquela de boa, que quando eu saísse dali a primeira coisa que eu ia fazer era procurar o Ra-Tón, esclarecer toda a verdade e colocar as coisas em seus devidos lugares. Era certo pra mim, como a claridade do dia, que eu não ia permitir que fizessem uma injustiça daquelas com o meu bróder.

Comovente.

No dia da minha saída, deparei com um fato estranho, que já

deveria ter me alertado para o que viria depois, se eu não estivesse

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tão alienado de tudo o que estava acontecendo na minha vida naquela época.

Quando cheguei ao hall principal da clínica, uns vinte jorna-

listas caíram em cima de mim. Choviam fotos, perguntas. Sobre a minha pessoa, a minha história de vida, o dia do meu nascimento, a minha “luta contra o vício”. De onde eles saíram? O que eles estavam fazendo ali? É óbvio que era coisa do Bhardian. E é óbvio que eu não estava achando ruim.

Paralelepípedos do Óbvio, meu caro.

Sim. Embora estivesse achando que estava achando. Ou tal-

vez estivesse apenas fingindo pra mim mesmo que estava achando. O casal 20 da psiquiatria brasileira, as estrelas da depressão tupiniquim também estavam lá. Abraçadinhos, só sorrisos. Os homens da mídia fizeram mil perguntas pra mim, pro doutor Maxwell, e até pra dona Patrícia, que se comportou como uma verdadeira “Lady”.

Os dois tinham mudado completamente a forma de me olhar

e de se dirigir a minha pessoa. Agora parecia que eu era alguém que eles conheciam há muito tempo e de quem gostavam muito. Teve um momento até em que eu, o doutor e Bhardian nos sentamos num sofá branco que ficava bem no centro da sala da recepção e demos uma entrevista juntos para as redes de televisão. Na hora da despedida, me deram longos abraços como uma mãe que abraça o filho querido que vai para o campo de batalha defender a honra da família. Pelo que pude entender, Bhardian estava vendendo a minha história para a mídia. Pelo que pude entender também, o meu vício e a minha “luta pela libertação”, o internamento, a morte do Loló e a prisão do Ra-Tón (como vim a saber depois), tudo isso estava sendo usado por ele para a construção do personagem que ele esperava que eu viesse a ser. E eu estava correspondendo maravilhosamente bem às expectativas dele. Na verdade, eu estava me saindo muito melhor do que as expectativas dele. A gente nem tinha começado a gravar nada, a gente não tinha feito nenhum show, eu já era o que ele queria que eu fosse:

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uma pessoa real sendo triturada no moedor de carne da mídia. Um “artista de verdade” se fudendo de verdad diante das câmeras. Um “bad boy” como nos velhos tempos. Uma fonte viva de escândalos reais que a “escola de escândalo” dele jamais conseguira reproduzir com fidelidade. O Bhardian tinha razão, eu tinha talento pra coisa. Tinha talento para ser uma celebridade instantânea, talento para ser um carneiro sacrificial real time, um bode expiatório para uma humanidade entediada até o osso que precisava da sua dose diária de carne e sangue para alimentar a ilusão de ser real.

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17. MYZ enera X ion

Depois que saí da clínica, eu nasci para uma “nova vida”. Voltei

para o apart-hotel de luxo, mas agora o andar era todo nosso. Nosso quer dizer meu, da Melzinha e dos caras da segurança que o Bhardian colocou para me vigiar 24 horas. O Ra-Tón tava passando uns tempos na New Papu. Mas ele tava de boa, no nível 1 e não ia passar muito tempo por lá. O Bhardian conseguiu me explicar a parada do mesmo jeito que ele tinha explicado pra Mel. Eu vi que a explicação dele fazia sentido mesmo. E ele falou que o Ra-Tón não ia ficar muito tempo por lá. Um ano no máximo. Parece que não foi só o lance da agressão, parece que o Ra-Tón tava envolvido com tráfico de drogas também. O cara não usava, mas tava arrumando mais grana passando heroína. Feladamãe. Pra que ele precisava daquilo? A gente já tava ganhando rios de dinheiro e ainda iria ganhar muito mais quando as músicas começassem a tocar no mundo todo. Pra que ele foi se meter naquele trem? E o filhadamãe nem era usuário. Fui obrigado a concordar com o Bhardian, o cara mereceu ir em cana mesmo.

É. Foi obrigado. Mesmo. Você chegou a checar a informação?

Checar? Eu... Não. Eu... Eu nem fui visitar ele na New Papu.

O Bhardian achou melhor. Ele achou que isso não ia ajudar muito na publicidade e eu concordei com ele.

Hehehe. Eu também concordo.

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Era tão bom conversar com o Bhardian, tudo ficava tão claro,

tão fácil. Das coisas daquela época, conversar com Belair Bhardian é das que eu mais sinto falta. Mesmo depois de tudo o que eu descobri. Ah, sim. Foi naquela época também que o Bhardian me convenceu de que a gente devia mudar o nome da banda. Ele achava que esse negócio de Paralelepípedos do Óbvio tinha sido bom até ali. Mas que daqui pra frente a gente tinha que mudar, tinha que partir pra alguma coisa mais internacional, mais ampla, mais positiva. Algo que ia servir para todo o nosso público, que era simplesmente todo mundo. Ele mesmo sugeriu:

– mYZeneraXion.

Eu topei.

É claro.

mYZeneraXion por causa das gerações: a X, a Y e a Z. A ban-

da atingiria todas elas, segundo o Bhardian. Brilhante.

É. A minha história caiu na mídia que nem uma bomba atômi-

ca sobre uma cidade japonesa dos anos 1940. Ou como o rock’n’roll sobre a juventude urbana dos 1950. Ou como um tiro de escopeta de longa distância sobre o crânio de um presidente americano dos 1960. O Bhardian tinha razão. O fela tinha intuição pra coisa mesmo. Bão, tinha toda a grana do jabá da ManGodCorp empurrando a história goela abaixo do público também, né? E naquela época era tão fácil empurrar qualquer história goela abaixo do público. Descia feito Coca-Cola. As pessoas estavam comprando qualquer coisa que tivesse algum cheiro de realidade. E as pessoas estavam tão alienadas de qualquer coisa que tivesse acontecido há mais de três meses que era muito fácil inventar ou re-inventar a história. Josef Stalin, Juán Perón, Mao Tsé Tung, Himmler, Goering e todos aqueles padres queimadores de gente da idade média eram escoteiros perto do Belair Bhardian em termos de manipulação da opinião pública. O cara era um gênio mesmo. Da estirpe de um Napoleão Bonaparte ou um Brian Epstein.

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Só que Bhardian tinha um poder na mão, que Epstein nem sonhava que fosse possível existir. Epstein só tinha os Beatles.

Só, né?

É. Mas aqueles eram outros tempos. Manipular a opinião pú-

blica em 2020, com os meios tecnológicos disponíveis era mais fácil que tomar o doce de um menino de cinco anos. A verdade é que o cara sabia o que estava fazendo. Ele tinha o feeling, sabia que o mundo estava pronto pra consumir um cara que nem eu, uma história que nem a minha. E ele era aquele tipo de cara que tem um carisma. Um. Sei lá o quê, sabe? Um entusiasmo. Sei lá. Quando o cara falava parecia que as palavras vinham direto do céu, ou do inferno, sei lá. Qualquer lugar que não fosse convencional, careta. Qualquer lugar que não fosse banal e medíocre. O cara era “bigger than life”, e ele tinha as manha de nos deixar sentindo assim. E a verdade, também, é que eu não estava incomodado o bastante para reclamar de qualquer coisa. A história ia mudando, ia ficando mais heroica. A versão definitiva, cheia de exageros e mentiras descaradas, que estava nos releases que o Bhardian mandava para os quatro cantos era mais ou menos a seguinte:

NOVA YORK. DIA 08 DE DEZEMBRO DE 1980. 23:23 MINUTOS. RUA 10 NÚMERO 1000. HOSPITAL ROOSEVELT. JOHN LENNON, O MAIOR ÍDOLO DO ROCK MUNDIAL DE TODOS OS TEMPOS, ERA DADO COMO MORTO. ASSASSINADO POR FORÇAS RETRÓGRADAS, MACHISTAS E RACISTAS QUE NÃO SUPORTAVAM A SUA OUSADIA E REBELDIA.* NO MESMO INSTANTE, NO MESMO HOSPITAL, UM MENINO ESTAVA NASCENDO. FILHO DE UMA FAMOSA CANTORA BRASILEIRA GAY** QUE ESTAVA FAZENDO UM GRANDE SUCESSO

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EM NOVA YORK, E DE UM BREVE RELACIONAMENTO COM UM HERÓI*** EXILADO DA RESISTÊNCIA ARGENTINA, NASCEU JUAN LENO MONTONERO KEMPES. O JUAN LMK. DEVIDO AOS MUITOS COMPROMISSOS PROFISSIONAIS, SUA MÃE TEVE QUE VOLTAR AO BRASIL. MAS DEPOIS DE POUCO TEMPO, LARGOU A VITORIOSA CARREIRA ARTÍSTICA PARA SE DEDICAR QUASE QUE EXCLUSIVAMENTE AO FILHO,**** QUE DESDE MUITO CEDO JÁ DEMONSTRAVA O SEU GRANDE TALENTO COMO CANTOR E BAND LEADER DAS BANDAS MAIS FAMOSAS DA SUA CIDADE, BRASÍLIA, A CAPITAL BRASILEIRA E A CAPITAL DO ROCK BRASILEIRO. COM APENAS QUINZE ANOS, JUAN LMK JÁ ESTAVA FAZENDO SUCESSO NAS PARADAS BRASILEIRAS ACOMPANHADO DE SUA BANDA: MYZENERAXION, QUE TEVE MUITAS FORMAÇÕES MAS SEMPRE A SUA LIDERANÇA.***** DEPOIS DE MUITOS ANOS DE SUCESSO NO BRASIL, JUAN LMK PASSOU POR DIVERSOS SOFRIMENTOS DEVIDO A PROBLEMAS OCORRIDOS COM OS COMPANHEIROS DE BANDA. A MORTE DO BAIXISTA, OS PROBLEMAS MENTAIS DO GUITARRISTA E A PRISÃO POR TRÁFICO DE DROGAS DO BATERISTA LEVARAM JUAN A UM PROFUNDO ESTADO DE DEPRESSÃO QUE LHE CUSTOU O TERRÍVEL VÍCIO DA HEROÍNA, UM DOS MAIORES MALES QUE ASSOLAM A NOSSA JUVENTUDE ATUALMENTE.*******

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MUITOS ACREDITAVAM QUE AQUELE SERIA O FIM DE JUAN LMK E DA SUA BANDA, O MYZENERAXION. MAS A ESTRELA DE JUAN ERA MAIS FORTE, E ELE, TAL COMO FÊNIX RENASCIDA, CONSEGUIU VENCER A DOR E O VÍCIO COM O AUXÍLIO DO FAMOSO PSIQUIATRA BRASILEIRO, O DR.MAXWELL DE ANDRADE E RECOMEÇOU TUDO NOVAMENTE. ****** COM NOVOS PARCEIROS E O APOIO DA MANGODCORP, JUAN VOLTOU PARA SALVAR A SUA BANDA E SER O “FRONTMAN” DA CAMPANHA DE LANÇAMENTO DO TÃO ESPERADO NTZSCH-01, O PRIMEIRO EXPANSOR DE CONSCIÊNCIA POR IMPLANTE NANONEURAL À VENDA NO MERCADO. O MARCO DA CHEGADA DO “NOVO HOMEM” DA MANGODCORP. Observações: *John Lennon foi assassinado por um cara chamado Mark Chapman. Um pirado, que ao que consta era fã do John e o matou porque achava que a vida do seu ídolo não era coerente com as coisas que ele cantava e dizia nas entrevistas. (Se essa moda pega, não sobra ninguém no showbuzz.) Ao que consta, o cara era doido mesmo, e fez isso por conta própria. É óbvio que existem mil possibilidades e teorias conspiratórias afirmando que Chapman teria sido uma espécie de pau mandado de setores da direita americana que nunca engoliram o véio John. Sim, isso é bem possível, especialmente se a gente observar a peleja que foram pro John os anos 1970 naquele país. Os mala do governo não davam folga pra ele. Agora, afirmar assim, diretão no release que as coisas aconteceram dessa maneira como se isso fosse um fato conhecido e consumado, já foi ir longe demais. O que esses caras tavam pensando que eles eram? Quem são eles? Quem

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eles pensam que são? Os donos do mundo? Sim, algo dessa natureza, com certeza. E naqueles dias, como eu já disse antes, manipular a opinião pública era muito, mas muito fácil mesmo. As pessoas não corriam atrás, não checavam informação. Sim, claro, algumas pessoas faziam isso, mas era um número imensamente pequeno diante das multidões anestesiadas que apenas recebiam a informação passivamente. A grande maioria engolia sem mastigar qualquer coisa que aparecesse nas redes ou na televisão. O simples fato de algo existir no mundo virtual já era uma prova para as pessoas da sua existência no mundo real. Aliás, cada vez mais era difícil dizer qual dos dois era o real. Qual dos dois era mais real. A realidade virtual já era uma realidade mais do que real. Engraçado, eu sempre ouvi que a chegada da internet tinha sido um grande passo no sentido da liberdade do ser humano. O mesmo papo que eles estavam usando naquele momento, pra falar do bananateknopop. O NTZSCH-01. O mesmo papo. Diziam que a internet, ao contrário da televisão, ia permitir um controle muito maior por parte da população, dos meios de comunicação de massa, o que em tese era verdade. Sim, a possibilidade de checar uma informação estava lá ao alcance de todos, mas as pessoas estavam cada vez mais preguiçosas. Cada vez mais alienadas, passivas. As pessoas não checavam nada. Era muito mais fácil ser apenas um consumidor de informação pré-mastigada do que partir para construir a sua noção da realidade a partir de uma busca pessoal corajosa e arriscada a colocá-lo numa posição de confronto diante da verdade gerada pelas megacorporações da informação e digeridas bovinamente pela multidão de “consumidores felizes”. Então com uma máquina publicitária do tamanho da ManGodCorp na mão, como Belair Bhardian, e principalmente, o seu mestre: Narcissus Von Faiq, um cidadão daqueles, naqueles dias poderia se considerar mais poderoso do que um César romano.

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**Minha mãe era uma cantora fracassada e não era gay. Não que isso fizesse alguma diferença. Ela devia até ter os casinhos dela, né? Em 2020, quem não os tinha? Mas deram esse destaque todo no release porque naquela época pegava mal alguém ser do showbuzz e não ser homossexual. A preocupação do Bhardian era que eu desse com a língua nos dentes e abrisse o jogo sobre a minha homofobia, que eu achava que era estilo, tipo aquela história do: “último roqueiro homofóbico”. Mas, segundo ele, um “detalhe” desses poderia acabar com a minha carreira. Duas coisas eram inaceitáveis para um artista em 2020: não ser homossexual e não ter olhos azuis. Minha mãe não se importou com esses assuntos que pra ela eram bobagens. Ela já nem ligava mais pra nada. Estava era feliz da vida com a Range Rover vermelha zero bala e a mansão de cinco suítes que eu comprei pra ela na QL 12 do Lago Norte. Eu apenas estou contando esses detalhes aqui por que quero que esse meu relato seja o mais fiel possível aos fatos como aconteceram. ***Meu pai, Néstor Tracjgtemberg, como todos já sabem, não foi herói de nada. Ele tinha alguns conhecidos no grupo paramilitar revolucionário argentino “Montoneros”, de onde veio o meu segundo nome. Pelo que minha mãe me contou, nem sei se podemos dizer que ele era um simpatizante da causa. Era uma pessoa leviana demais para isso. Acho que ele era muito mais alguém a fins de uma causa qualquer para dar algum sentido a sua vida, que não fazia sentido nenhum. Como, aliás, a vida da maioria de nós, incluindo a minha. Acho que talvez possamos dizer que meu pai era, no máximo, um Monto -pop. Alguém para quem o que realmente importava era o símbolo e não o sentido da coisa. Se você prestar atenção no meu nome, vai ver que tenho alguma razão nisso. Mas... Até que tive sorte. Em vez de Montonero ele poderia ter colocado Che Guevara no meu nome. Ou Maradona. Hehehe.

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****Essa é a pior de todas. Não que a minha mãe fosse uma mãe negligente, dessas que esquecem bebês no banco de trás do carro. Ela até que era uma mãe bem legal, dentro das possibilidades da maluquice dela. Mas ela jamais teria largado uma carreira de sucesso na música pra cuidar de mim se ela tivesse tido uma. E também, convenhamos, né? A mulher larga uma carreira de sucesso na música pra cuidar exclusivamente do filho. Beleza. Mas... E os dois viveriam do quê? Da herança dela? Da pensão que o pai mandava? Francamente. *****Não sei se posso dizer que a banda tinha a minha liderança. Tudo bem, eu era o crooner. E o povo se liga mesmo é em quem está cantando, né? Mas a banda jamais teria existido sem os caras, principalmente sem o BBC. Ele sim é que era a alma da banda. A nossa música nascia no BBC e depois pegava fogo com o Ra-Tón. Eu e o Loló íamos muito mais na onda dos caras, na vibe deles. A doidera nascia daqueles dois. Mas o povo não entende muito dessas parada de energia de banda, né? Cada vez tá entendendo menos. E cada vez tá menos interessado nisso. Banda de rock é uma parada do passado. Digo banda assim, onde a personalidade das pessoas fazia diferença. Não essas de agora, que são tudo fabricada no laboratório do Bhardian de acordo com os algoritmos de preferência. E tem o lance do nome também, né? Os caras nem se deram ao trabalho de ter um pingo de consideração pela banda. Os outros integrantes, sua história, os fãs, esses trem. Nem se deram ao trabalho. Nem levaram em conta que existiu uma banda chamada “Os Paralelepípedos do Óbvio”. Banda era uma coisa do passado. Quanto mais a música tá ficando coisificada, menos o povo tá se importando com essas coisas, né? Tipo: pessoas. A energia, a onda do artista. Hoje em dia eles pegam um mané qualquer que seja bonitinho, colocam nele um nome qualquer de qualquer artista do passado que ninguém mais se lembra quem é, um nome que tenha uma sonoridade legal, tipo Tony Curtys (o original era Curtis), tascam um repertório popinho estuda-

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do minunciosamente em função das preferências de um determinado público em cima do cara, faturam bilhões e depois de uns cinco ou seis anos sucateiam o mané que já tá podre de rico, inchado de tanta bomba e droga, e arrumam outro. Mas isso são coisas que eu também, naquela época, não estava dando a mínima. Eu tava mais é a fins de viver aquilo tudo, de realizar o meu sonho de ter o meu nome cover mais conhecido do que o do original. Essas minhas reflexões são de agora, depois de todos esses anos, e depois de tudo o que aconteceu. ******Bão, aqui faltou dizer que eu já fumava maconha desde os 12. Se não fica parecendo que eu fui uma pobre ovelhinha que caiu nas garras do lobo mau heroína. Tô fora dessa. Posso ser um fiadaputa e tô contando a história aqui pra vocês sem aliviar pro meu lado. Mas não fui vítima de nada, tudo aconteceu por escolhas que eu fiz (e pra cima de mim não cola essa história de que o meu cérebro que decidiu por mim). E tô aqui agora me fudendo sozinho pra pagar as cagada que eu fiz. E não vou ser cínico o bastante pra dizer que eu me arrependo. *******Imagine a grana que os caras pagaram por esse pequeno jabazinho? E eu preocupado com o custo da minha estadia na espelunca de luxo deles. Eu era muito mané mesmo. Na verdade, ainda sou, mesmo depois de tudo o que aconteceu comigo e com os caras da minha banda. O feladamãe do Bhardian era mesmo um gênio do marketing. Seja lá o que isso quer dizer nos dias de hoje.

As fotos da “banda” mostravam apenas a minha figura magér-

rima. Totalmente photoshopado, cheio de computadores pelo corpo todo, vestido de pirata high-tech ou coisa que o valha. Olhos azuis, of course. Atrás de mim (bem atrás), uns caras vestidos de preto como uma massa disforme e anônima de pessoas quaisquer. O slogan di-

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zia: “Deixe tudo pra trás. Você é um novo homem”. O lance era esse: o tal do “Novo Homem”, o “Homem Trans-Humano”. E eu era o cara. Àquela altura eu já tinha feito umas três operações plásticas. Operações plásticas naquela época eram mais comuns do que implantes dentários. Que eu também tinha feito. Uns oito. Os caras vendiam uns pacotes. Pros homens: instalação de olhos azuis; uma lipoaspiração básica; e um enxerto de massa pra aumentar e gerar mais tônus nos braços, no peito e um helpizinho básico pra aumentar o tamanho e o diâmetro do pinto, ficava por menos de $3.000. As mulheres extraiam o útero, ovário, seios, etc. Colocavam olhos azuis, of course, novas nádegas, mais proeminentes, peitões plásticos e faziam também uma liposinha básica por uma bagatela de $5.000.

Mas... Você não era o cara que era legal por que era real? Você

não fez questão de garantir que eles não iam obrigar você a fazer essa “presepada toda” na hora da assinatura do contrato?

Pois é. E eu cheguei a acreditar que seria assim. Já estavam

pintando no mercado os primeiros pacotes que incluíam o bananateknopop, o NTZSCH-01, mas esses eram bem mais caros. Eu tomava umas bombas também, que modelavam os meus músculos mesmo sem eu fazer ginástica real. Eu tomava as bombas e ficava fazendo “exercícios virtuais” num troço que ficava acoplado a uns óculos que o Bhardian me deu. Eu parecia um garoto de vinte anos com um rosto parecido com o do Keith Richards na década de 1960. Só que saradinho. Saca um ícone, desses jogos que os jogadores são “roqueiros”? Mais ou menos isso. O mYZeneraXion era eu. O meu nome e o nome da banda passaram a ser sinônimos. Bhardian me convenceu (e isso foi mais fácil do que roubar o doce de um menino de três anos) de que isso era perfeitamente justo e real. Eu não tinha mais a menor dúvida disso. A Melzinha também. Na verdade, ela dizia que sempre achou isso, mas não tinha coragem de dizer.

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Naquele momento eu era uma celebridade mundial. E as pes-

soas estavam doidas pra pegar a onda que o entusiasmo de Bhardian e os milhões da publicidade da ManGodCorp conseguiam gerar. As pessoas estavam doidas pra pegar qualquer onda que estivesse passando, contanto que fosse suficientemente grande e barulhenta. E o Bhardian sabia como ninguém criar uma onda grande e barulhenta. Uma celebridade fake? E quem ainda se lembrava da diferença? E quem ainda se importava?

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18. A era dos peixes de água rasa

Às vezes, a consciência ou como queiram chamar essa coisa

me acochava. Mas eram bem poucas vezes. Na verdade, uma das coisas que mais me incomodava naqueles dias em que eu estava começando a virar um ultra-mega-star era o fato de eu já não me incomodar muito com nada. Como era possível eu estar ficando tão insensível, tão fiadaputa? Mas era fácil ser insensível e fiadaputa vivendo aquela vida.

Eu vivia em uma bolha. Nada me atingia, eu estava voando

a milhas e milhas de qualquer lugar real, longe das pessoas reais e seus problemas reais. Era eu e meu umbigo o tempo inteiro. Eu ficava escrevendo canções, imaginando videoclipes, treinando a minha assinatura para os milhões de autógrafos que teria que dar quando a música começasse a tocar. E gente à minha volta me servindo, muita gente à minha volta me servindo. Aquilo era surreal demais, mas era viciante demais pra eu esboçar qualquer tipo de descontentamento. Quanto tempo ia durar? Amigo, eu não pensava nisso nem por um segundo sequer. Era só o pensamento aparecer no meu campo mental, que eu varria ele pra longe com algum outro mais “positivo”, uma técnica de exercício mental que o Bhardian estava me ensinando. Às vezes eu queria sofrer, queria me incomodar. Bom. Um pouco pelo menos, né? Como qualquer pessoa normal.

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Hehehe. Bem pouco, né? Se for uma pessoa “normal” mesmo.

É. Mas eram tão poucas vezes em que realmente eu olhava

pra trás. Eu via, às vezes, a figura do Daniel Loló parado me olhando. Ele nunca falava nada. Só ficava lá me olhando. O John, desde aquela vez da garrafada do Ra-Tón, eu nunca mais vi. Eu nunca falei nada sobre esse assunto das vozes pra ninguém. Eu tinha medo que as pessoas pensassem que eu era um despirocado total e me internassem naquele inferno chic de novo, ou então em algum hospital psiquiátrico de verdade, ou coisa pior. Ou então que me proibissem de fumar maconha, o que seria a pior de todas as alternativas. Eu ficava quieto. Seguia as instruções de Bhardian que dizia que o meu silêncio aumentaria a minha “aura artística”. Quanto mais distante e misterioso eu me tornasse, maior a minha aura artística, era o que ele dizia. Os pensamentos e a fissura da herô até que vinham, às vezes, mas com a quantidade de SynCanna que eu fumava, essas imagens ficavam apenas flutuando no meu campo visual como se fossem restos de espantalhos destroçados por um tsunami de emoções.

A velocidade e o volume das coisas que estavam acontecendo

eram avassaladores. Isso me ajudava a ficar longe das drogas mais pesadas. Eu e minha fiel escudeira Mel Lee não tínhamos tempo para reflexões, depressões e coisas que o valham. A nossa vida se passava dentro de aviões e hotéis de luxo. Era impressionante o que a máquina de produzir celebridade do Bhardian juntamente com a minha história de vida tinham gerado. A gente já não tinha mais controle nenhum sobre nossas vidas. Controle nenhum sobre nada. Multidões de pessoas queriam chegar perto, tocar em mim, arrumar um autógrafo, um pedaço da roupa, qualquer coisa. Os caras vendiam de tudo. Vendiam até um saquinho fechado com o ar que eu supostamente teria expirado. Só não vendiam o meu peido. Acho. Uma beatlemania doida elevada à décima potência. Só que sem a música e o carisma dos Beatles. Uma beatlemania sem os Beatles. E sem a inteligência, o sarcasmo e a ironia do velho John. Imaginem o tama-

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nho que o meu ego, ou como queiram chamar isso, ficou. Eu estava inflado, abestalhado, inebriado de mim mesmo.

É. Uma pessoa normal mesmo. Hehehe.

Eu podia comer quem eu quisesse. As atrizes, modelos, can-

toras, milionárias à toa e congêneres faziam fila pra sair comigo e terem seus nomes citados nas colunas culturais, sociais, etecetera e tais. E eu não me fiz de rogado. Se bem que estava tão chapado naqueles dias, que não foi nem uma nem duas que eu tive que dispensar por não dar conta do recado. Eu já tinha uma vocação forte pra ser um cara arrogante e metido, imaginem o que aquele sucesso todo me causou.

Sucesso? Do quê? De quem? Isso não fazia a menor diferença.

Era xavasca e maconha sintética 24 horas. O fenômeno era mundial, total. E agora com a abertura da China para o ocidente, eles estavam vivendo tudo aquilo que não tinham vivido. Aquele comunismo rígido e moralista tinha se transformado no sistema mais corrupto e materialista que havia sobre a face da terra. As chinesinhas davam sem dizer nada, sem perguntar nada. Elas simplesmente entravam no meu quarto, iam tirando a roupa e se deitando na minha cama. Não sei exatamente o que elas esperavam daquelas trepadas com o pop star mais famoso da internet. Talvez elas mesmas não soubessem isso. Mas elas vinham. Como quem estivesse fazendo uma pós-graduação ou uma especialização no exterior. Eu chegava a ir com umas três ou quatro ao mesmo tempo pra cama. Elas faziam aquilo com estoicismo e cara de quem está cumprindo o seu dever.

Às vezes eu tava tão chapado que não dava conta de comer

ninguém. Ficava só lá deitadão com aquele monte de chinesinhas na cama assistindo aquelas bosta de televisão chinesa. E eu não tinha feito nada, não tinha gravado nada. A minha fama era devida unicamente a minha fama. Era uma espécie de motoperpétuo. A cobra mordendo o próprio rabo. Aquelas multidões me idolatravam sem ter nem ideia de quem eu era, o que eu fazia de bom ou pra que eu

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servia. Mas ninguém questionava nada disso naquela época. Bastava você ficar famoso que a sua fama começava a crescer exponencialmente. Eu cheguei a ter mais de vinte milhões de seguidores no turnmeon.com. Mas eu nunca entrava no turn, no Face, no Com-unnity ou em qualquer outra rede social. Não tinha a menor condição. Tinha toda uma equipe de “Juans” que fazia isso por mim. Era inacreditável o que estava acontecendo. Era a junção da fome com a vontade de comer. A fome de frenesi pop deles, com a vontade de comer o mundo, e principalmente a China, da ManGodCorp. O povo tava alucinando mesmo com o lance do implante nanoneural e as maravilhas que a mídia dizia que viriam em questão de poucos dias.

Eu tinha conseguido: era maior do que John Lennon. Bom,

pelo menos em quantidade de pessoas que conheciam o meu nome. Eu cheguei a ser a pessoa que teve o maior número de seguidores e amigos nas redes sociais ao mesmo tempo. Eram milhões de pessoas. O John não disse em 1966 que os Beatles eram mais conhecidos do que Jesus Cristo? Bão, agora, eu era mais conhecido do que o John. Essa história de ter nascido no mesmo dia, hora e local em que ele morreu. Essa história que o Bhardian achava uma benção e que ele e o Narcissus Von Faiq estavam vendendo praquele povo desesperado e sedento, como algum tipo “de sinal místico” ou sei lá que papagaiada, pra mim sempre fora uma maldição.

Eu sempre vivi à sombra dessa árvore. E como é que se vive

sob a sombra de uma árvore dessas? Eu amei e odiei aquele cidadão de óculos redondinho durante todos os dias da minha vida. De certo modo todas aquelas coisas que estavam acontecendo comigo, por mais absurdas e surpreendentes que fossem, não estavam me surpreendendo tanto assim. Sei lá, é como se a semente daquilo tudo sempre tivesse existido dentro de mim.

O que poderia ser mais absurdo do que eu ter realmente nas-

cido naquele dia, hora e local? E isso tinha acontecido mesmo, na realidade. Como é que pode? Como é que o acaso, Deus, ou como vocês

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queiram chamar isso, pode fazer uma coisa dessas com alguém? Com qual finalidade? Pra eu estar vivendo toda essa maluquice agora? Pra quê? Por que eu fui o “escolhido”? Fui mesmo escolhido? Escolhido por quem? Escolhido para quê? Ou isso tudo aconteceu por acaso? Acaso? E o que é acaso?

Coincidência.

Pois é. E o pior é que era tudo real. Não era uma invenção do

Bhardian. Bão, uma das poucas coisas que não eram invenção do Bhardian. John Lennon. Que filho da mãe, cara. Que filho da mãe genial. Com certeza o maior gênio que o roquenrrou já produziu. Ele, o Johnny Ramone e o Jerry Lee. Mas o Johnny era um tosco completo, um autista e o Jerry Lee era uma fera, um animal selvagem. O John também tinha a selvageria dentro dele, mas era um fiadamãe inteligente pacaraio. O John enxergava miles and miles and miles na frente dos outros. Ele ainda está na frente. Mais de setenta anos depois da morte prematura, como aliás é perfeitamente adequado a um gênio do porte dele, ele ainda está na frente. Por isso que o Nixon e a direita americana não descansaram enquanto ele não foi despachado dessas bandas terráqueas. O John era o cara, meu. Era o cara. Compare só com o Paul. O Paul é um músico genial. Um cara superdotado musicalmente, muito mais dotado musicalmente que o próprio John, mas o John. Sei lá, é difícil até de definir, não é? Qualé a porra que o John tinha? E que ninguém mais tem tanto quanto ele teve. O Bono tinha alguma, né? Mas o Bono. É tão... Bono. Né? Tão boninho. Tão politicamente correto. O John tinha aquele dom. Que talvez alguns poucos artistas do passado como Baudelaire, Dylan, o Dylan tinha também, Oscar Wilde, Salvador Dalí, e outros poucos tiveram. O Bob Marley, o Bob Marley também tinha. O Johny Rotten só tinha isso. Olha só como eles foram perseguidos. O dom de abalar as estruturas.

Que inveja que eu tinha desses caras. Que dom que esses

caras tinham para ser um símbolo, para ser um símbolo de toda uma época, de toda uma era. Que nem os caras do Clash. Bão eles não

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tinham tanto, né? Não tinham tanto quanto o Johnny. Mas tinham um pouco, ainda. Olha que maravilha, a primeira excursão dos Pistols pela Inglaterra foi praticamente toda cancelada em cima da hora. A polícia, os prefeitos, as autoridades locais proibiam os shows dos caras. Olha. Que maravilha uma banda de rock causar algo dessa natureza. Que maravilha um artista qualquer ainda ter esse poder de fogo! Nos anos 1980, já era impossível ter tanto quanto nos 1960 e 1970. Mas depois disso acabou. Ninguém mais teve. Tanto. O mundo já não tinha mais aquela ingenuidade capaz de ser tão confrontada, tão perturbada pela personalidade de uma pessoa. De um artista. Eu cresci dentro de uma geração de músicos punk na Brasília dos anos 1980 e 1990. Era meio moda da galera da época falar mal do John, menosprezar os Beatles. Aquele lance do Clash: “All that phony beatlemania has bitten the dust”… Dizem até que a briga do Renato Russo com o Fê Lemos, que acabou com o Aborto Elétrico, aconteceu por causa de uma discussão dos dois a respeito do dito cujo, no dia que ele morreu. E que eu nasci. Que dia. Que dia. Que porra de dia. O John tinha sido rei de uma era que durou aproximadamente dez anos. Eu também era um rei da minha própria era: a era dos peixes de água rasa. O que esta era iria produzir? O que ela iria deixar pras gerações futuras? Quanto tempo ela iria durar? Será que ela ia conseguir durar dez meses?

Bom. Ela iria nos deixar Juan Leno. Hehehehe.

Engraçadinho. Se eu pensava nessas coisas naqueles dias?

Pouco. Isso veio vindo devagar. Fazer sucesso, seja que sucesso for e seja qual for o tamanho desse sucesso, não é muito diferente de comprar aquela guitarra que você sempre sonhou. Ou o carro que você sempre sonhou. Ou o apartamento. É como você conseguir comer aquela mina. Que você sempre sonhou. Cara eu comi as minas mais gatas do mundo entre 2020 e 2022, que foi o tempo que o meu reinado, a minha era durou. Eu comi todas elas. Pense numa aí, numa qualquer daquela época. A Michelle? A St. Patrick? A Leilinha, a Pat

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oncinha? Todas elas. E dispensei muitas outras. As coroa cheia da grana me ofereciam grana, muita grana. Como é que pode? Como é que pode alguém chegar a oferecer grana pra transar com um mané que nem eu? Em seis meses eu deixei de ser um lixo total pra me tornar um objeto irresistível de desejo. E não eram só as coroas não, os coroas também. Cheio de empresários, donos de empresas, respeitáveis pais de família. Os caras ofereciam um monte de grana, véio. Gente bacana. Tudo cheio da grana, tudo gente de olho azul. Mas é phoda. Chega uma hora que é tudo igual. A beleza vira um veneno letal. Uma opressão monstruosa. Eu entendo por que a maioria desses supercomedores tudo vira viado. Eu entendo sim. Eu quase virei. Só não virei pelo respeito que eu tenho pelo Panka. O único pai que eu tive. Se eu experimentei? Claro que não. Se eu tivesse experimentado, não sei onde eu ia parar. Eu ia acabar gostando. E do jeito que eu sou detonado. Do jeito que eu mergulho até o fundo. Do jeito que eu sou viciado em qualquer merda. Eu ia virar uma espécie de Freddie Mercury, alguma coisa assim. Não existia nada parecido com limites em mim naqueles dias. Eu tive foi muita sorte de sair vivo. Acho. Ou azar. Sei lá. Ou os dois.

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19. NTZSCH-01

Naquela época eu tinha uma leve noção do que seria um “im-

plante nanoneural para expansão da consciência”. Basicamente, os caras estavam começando a vender um microtroço (nanotroço) que seria instalado com uma micro (nano?) cirurgia muito fácil e rápida atrás da orelha do cidadão. Por que alguém iria instalar um treco desses na cabeça? Segundo o marketing da ManGodCorp, o nanotroço recebeu o simpático nome de NTZSCH-01 em homenagem ao filósofo e visionário alemão Fiedrich Nietzsche, que em pleno século XIX anteviu a chegada do novo “super-homem”. Rapidamente, foi apelidado carinhosamente pelo povo de “bananateknopop”. A nanocoisa, na verdade um nanochip, em tese iria aumentar a velocidade do raciocínio da pessoa de três a cinco vezes, dependendo do caso, e, principalmente, aumentar a sua capacidade de armazenamento de dados em aproximadamente quinze vezes. Naquela época, ninguém estava muito a fim de questionar a tal coisa. Não existiam ainda os serviços estatais ou privados de regulamentação dessas nanotralhas que existem agora. As regulamentações e proibições que existem hoje só vieram depois dos acontecimentos que eu estou contando aqui, e muito em função deles terem acontecido.

Naquela época, os caras da ManGod estavam na ponta da

ponta da tecnologia. Quem é que ia regulamentá-los? E os políticos? Os intelectuais, os artistas? Onde é que andavam? Tudo na fila pra im-

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plantar a bagaça. Apenas meia dúzia de religiosos fanáticos se opôs ao novo “produto”. E olhe lá. E eu não boto a mão no fogo por nenhum deles. Quem é que me garante que não estavam falando contra e instalando o nanotreco atrás da orelha por baixo dos panos? A realidade é que as pessoas estavam alucinadas. Estavam completamente alucinadas com a possibilidade de a tecnologia transformar um ser humano normal em um super-homem assim, de uma hora pra outra e sem esforço nenhum. Quem é que ia querer ficar de fora de um mamão com açúcar daqueles?

As listas de espera pra instalar a nanogeringonça eram mons-

truosas. As pessoas pagavam qualquer dinheiro. Usavam seu poder de influência para serem as primeiras. Se aquilo fosse realidade mesmo, as pessoas que não estivessem “aditivadas” em três anos ou menos que isso, estariam simplesmente excluídas de qualquer chance no mercado de trabalho dali pra frente. E quem é que ia querer pagar pra ver? Se você ficasse de fora, quando resolvesse entrar, as pessoas aditivadas já estariam muito longe de você no desenvolvimento da nova inteligência plus. E não ia ter como você alcançá-las mais. Pelo menos é o que o “marketing invisível” da ManGodCorp estava plantando nas redes. E naquela época, como eu já falei, bastava alguma coisa começar a ser repetida e retuitada pelas redes, que passava a ser uma verdade acima de qualquer suspeita.

É óbvio que o lance gerou mil protestos, debates, o povo das

esquerdas pulou que nem gato na água. Diziam, com razão, que o nanonegócio ia aumentar ainda mais a diferença entre as classes e que com o tempo a gente ia caminhar pruma parada bem “Admirável Mundo Novo” mesmo, com as pessoas já nascendo separadas por castas. Não as castas “espirituais” da Índia, mas as “castas” geradas pelo fato da pessoa ser ou não ser descendente de pessoas com o cérbero aditivado. Tinham altas discussões na TV sobre os impactos ambientais, biológicos, teológicos, etecetera e tais. Sustentabilidade disso, sustentabilidade daquilo. Discussões sobre pontos de vista da

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ética (ou da falta dela) de se aditivar o pensamento de algumas pessoas e não de todas. Debates na TV levavam cinco, seis horas sem chegar à conclusão nenhuma. A coisa era minúscula, mas a sua repercussão mundial foi estrondosa. Um “nanotsunami”. Não se falava de outra coisa nas redes.

Basicamente tínhamos duas posições. O povo contra, que se

dividia entre a galera da esquerda, que achava que o trabuco ia aumentar o abismo social, como eu falei, e os religiosos mais fanáticos, que defendiam a sua tese de sempre de que aquilo era intromissão da “mão humana” em assuntos que são atributos divinos, e que só poderia dar merda. E tínhamos a posição do povo a favor, que era ampla maioria, e que usava o argumento racional de que o NTZSCH-01 era apenas mais uma ferramenta tecnológica a serviço da evolução humana em busca de um mundo mais feliz, assim como o computador, o automóvel, os avanços da medicina robótica, etc.

A ManGodCorp tinha altos cientistas, filósofos e talz que de-

fendiam o seu ponto de vista, que era mais ou menos esse aí que eu falei antes, e que eles eram uma corporação voltada para a economia de mercado que obviamente visavam o lucro em suas ações, mas que a perspectiva da empresa, a médio e longo prazo, era reduzir drasticamente o custo da paradinha, pra que chegasse ao ponto dela estar facilmente acessível a todos. Olhando pra trás é difícil acreditar no que estava acontecendo naquele momento. O que acontece com o senso crítico das pessoas numa hora dessas? Como é possível? Mas quem é que pode barrar uma boiada que corre alucinada pra frente? O que acontece com a racionalidade humana numa hora dessas? Bem, talvez devêssemos nos perguntar o que acontece com a racionalidade de trinta hindus que, na grande maioria do seu tempo, são pessoas pacíficas e um dia resolvem estuprar até a morte uma mulher por ela estar vestida à moda ocidental? É incrível, não é? É só juntar um monte de gente que as pessoas passam imediatamente a se comportar como boiada. Lembram daquelas multidões alucinadas

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gritando “Heil”? Ou pagando alegremente o dízimo de sangue ao “Reverendo Stálin?

O Reverendo Roger Waters é que gostava dessas coisas.

Hehehe.

Pozé. “Fink Ployd”. O fato é que, naquele momento, o mundo

inteiro era uma multidão alucinada pela ideia de instalar um treco na cabeça e, de uma hora pra outra, sem esforço nenhum, ver a sua inteligência e capacidade de memória expandir exponencialmente.

E o fato é também que eu, por circunstâncias que naquele

momento me pareciam muito misteriosas, era o garoto propaganda daquele trem. Acho que o fato de eu ter “renascido” das drogas também servia ao propósito do Bhardian. O cara era realmente um gênio do marketing. Sei lá. O fato é que a coisa colou. Eu era a pessoa certa no lugar e na hora certa. Segundo o misticismo new age do cabeça pensante do marketing da ManGodCorp, eu tinha nascido pra ser a pessoa certa na hora certa daquele momento. O mYZeneraXion, que naquela época estava reduzido a mim e outros três manés que o Bhardian trouxe de Los Angeles, seguia ensaiando regularmente no estúdio “Rádio Center”, que pertencia a um bróder do Panka, que nessa altura do campeonato, com a mãozinha do Bhardian, já estava no nível 1 da New Papu. O nome era uma homenagem ao “Centro Comercial Brasília Radio Center”, que nos anos 1980 era o sol ao redor do qual todas as bandas de Brasília orbitavam. O estúdio ficava na QI27 do Lago Sul, e o centro comercial, infelizmente, não existe mais.

O lançamento mundial do “Banana-Treco-Pop” estava previsto

para o dia 14 de Julho. Essa data não era acidental, era intenção do Bhardian e do pessoal da ManGodCorp associar o seu “produto revolucionário” com a data da “Queda da Bastilha” na França, data que marca o fim do “velho regime”. Bhardian em sua genialidade havia voado alto e poeticamente estava associando o lançamento mundial do primeiro implante nanoneural com o marco da libertação da humanidade de uma era de “trevas do antigo regime”. Segundo Bhar-

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dian, sua humildade sagitariana e seu time milionário de publicitários, o implante nanoneural, para a expansão da capacidade cerebral das pessoas, correspondia aos maiores avanços já acontecidos em toda a história da humanidade. Uma verdadeira libertação, um marco de um novo tempo. A data da Queda da Bastilha foi escolhida como uma espécie de símbolo, ou algo assim.

A gente tava terminando de gravar a muzga. Bhardian preferiu

deixar pra trás o repertório antigo e começar tudo do zero. Tinha tudo a ver com a campanha e o produto, ele dizia. Eu compus algumas muzga, mas ele já veio com o primeiro single pronto. Eu só tinha que gravar. Não posso dizer que eu tenha gostado, mas naquela época esse era um detalhe insignificante. Na verdade, era uma musiquinha vagabunda de mierda. Uma mistura das porcarias pop que estavam fazendo mais sucesso naquele momento, especialmente na Ásia.

Lembra da TaYmmYnnY? Aquela chinesinha que gravou comi-

go? Pozé. Tentaram armar um romance do ídolo pop do ocidente com a rainha da Ásia. Uma obviedade calhorda dessas. Eu só não entrei por que não dei conta. Tava chapado demais. E a mina era horrorosa. Seca de tão magra. Devia ter umas trinta plásticas em cima dela pra ela ficar tão lisa. Ela era mais esticada do que gato em tamborim. A coitada não podia nem rir. Se ela risse, ela peidava. De tão esticada que ela era. E na TV ela parecia linda. Ela veio até com a namorada dela. Queria que eu traçasse as duas. Mas eu não tive estômago. Pense uma pessoa que só pensava em grana. Acho que ela era aditivada até a medula do osso. Não dei conta, não. Ela devia ter uns vinte e um no máximo naquela época. Obviamente gravamos em inglês. Na verdade, inglês, espanhol, português, mandarim, japonês e mais umas outras línguas asiáticas que pra mim é tudo a mesma coisa. A música era imbecil de tão óbvia, ruinzinha, mas colava no ouvido.

O paralelepípedo mais óbvio.

Isso. Sei que muitos que estão lendo essas palavras se lem-

bram e sei que têm outros que nem eram nascidos naquela época.

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A baboseira contava do namoro de uma garota chinesa com um cara ocidental e se chamava “Liberta-me”. Naquele momento, eu era quase um zumbi. Estava embevecido demais comigo mesmo e com tudo o que estava acontecendo à minha volta. O pior era o refrão da bagaça, que tinha uma subida de tom totalmente artificial e exagerada que fazia com que eu e a TaYmmYnnY detonássemos lá pelos 1.200 Hz, a frequência altíssima para um cantor do sexo masculino que a minha voz conseguia alcançar, como eu já expliquei. Ou seja: uma bosta completa e ridícula do ponto de vista artístico. Confesso que ali eu balancei. Eu duvidei da capacidade profissional do Bhardian ou da sanidade mental dele. Eu tinha certeza absoluta que a música ia decolar que nem um Zeppelin de chumbo e se esborrachar nas paradas de sucesso do mundo inteiro. Mas, mais uma vez, eu não contava com a astúcia de Belair Bhardian.

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20. A queda da Bastilha

E o 14 de Julho chegou. Foi uma coisa nunca antes vista. Pense

o Brasil ganhando a copa de três a zero contra a Argentina em Buenos Aires. Algo mais ou menos assim, só que no mundo inteiro. Deu briga nas filas, gente ferida, gente morta, esses negócios todos. Cobertura on-line real-time desde três dias antes nas principais cidades do mundo. Foi uma coisa nunca antes vista mesmo. Acho que vocês devem se lembrar, não faz tanto tempo assim. Em Brasília chovia canivete. Não é comum chover desse jeito em Brasília em julho. E a música bombando no mundo inteiro. No começo foi o jabá multimilionário da ManGodCorp, mas depois começaram os pedidos. “Liberta-me” bombou geral. Era incrível ficar vendo os números das execuções nas lentes dos óculos de realidade expandida que eu ganhei do Bhardian. Vendas de mídia de todos os tipos, produtos secundários. Era incrível, cara. Nem os Beatles viveram algo parecido. Eram milhões de adolescentes no mundo inteiro, bilhões, sei lá. Só na Ásia. Eu só via era gente com a camiseta, boné, caneta, ipods, ipads i-não-sei-mais-o-quês. Bonequinhos do Juan LMK e da TaYmmYnnY juntos.

E vou dizer uma coisa, eu também, naquele momento, estava

ouvindo a música de outra maneira. Na verdade, toda vez que a ouvia tocando, seja lá onde fosse, eu sentia um prazer quase sexual. E uma vontade incrível de ouvir de novo. Parecia a herô. Aquele Bhar-

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dian sabia das coisas mesmo. Porra, antes eu achava a música uma mierda, me dava nojo cada vez que eu ouvia, agora, parecia a melhor coisa que eu já tinha escutado na vida. Era amor puro. Dava vontade de chorar quando eu e a TaYmmYnnY detonávamos juntos lá naquele agudo absurdo do refrão. Eu nunca deixei de achar aquilo meio exagerado musicalmente. Mas por outro lado, entendia tudo, sentia a emoção da mina chinesa com o seu “herói” ocidental ensinando a ela a ser “livre”.

Se eu instalei a parada também? O nanotreco? Mas é claro,

eu é que não ia ficar de fora de uma dessas, bota que a parada fosse quente mesmo. Na real, no começo eu não senti diferença nenhuma. O povo da ManGod já tinha avisado que ia demorar de três a seis meses pras pessoas sentirem realmente os efeitos da “expansão”, dependendo do caso. No meu caso, de tão lombrado que eu era, com certeza ia demorar mais. Todo mundo que eu conhecia implantou. Bão, quase todo mundo, né? Que a parada custava meio carinho. Na faixa dos R$30.000,00 a primeira versão. Eu mesmo comprei mais de trinta trecos pra distribuir pra galera de Brasília.

TrintaTrecos podia ser o nome de uma banda cover do Pato Fu.

Banda cover do Pato Fu. Karaka. Viajô véi.

Dinheiro pra mim, naquele momento, realmente não era um

problema. Embora o meu percentual fosse mínimo em relação ao da ManGod, 0,001% de cada dólar faturado naquele “negócio da China” era grana que não acabava mais. Eu não tinha nem ideia de quanto estava ganhando. Quem sabia desses trem era a Mel Lee, que naquela altura do campeonato também tava de namorada nova, uma modelo morena mó gata de Brasília, e só andava vestida de branco com um chapéu chiquésimo que ela comprou em Balize. Berlize. Sei lá.

Começamos a viajar. Eu, a TaYmmYnnY, a nossa “banda de

apoio”, e uma banda que fazia um show de abertura. Obviamente era

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uma armação do Bhardian, e se chamava “AQuArian FLy”. Era uma banda de médio porte, pra vender principalmente na Ásia. Um baterista coreano baixinho e todo saradinho, uma baixista indiana linda e um guitarrista inglês meio véio e careca, fã do Robert Fripp. A cantora era uma canadense que morava em Boston. Gente boa, pedaçuda e lésbica. Ela cantava vestida de freira. Tinha, obviamente, olhos azuis. Até que era uma bandinha mais ou menos, embora eu não entendesse direito ainda como é que aqueles caras tinham conseguido entrar numa gig daquele tamanho. Nossas entourages deveriam comportar umas oitenta pessoas fora as namoradas da TaYmmYnnY, que mudavam a cada sessenta dias mais ou menos. Era o tempo que as pobre coitadas aguentavam ela. Ela era insuportável. Superestressada e irritada. Parece que a mina tinha um treco chamado “transtorno borderline”, uma parada assim. Era um trem chique de se ter naqueles dias. Bem mais chique do que depressão, que era uma parada muito comum e não dava status nenhum. Tinha até um psiquiatra que viajava junto com a gente por causa dela. Isso saía toda hora na mídia, dava um ibope legal. Além do mais, os caras tinham medo que ela fizesse uma mierda grande e ferrasse com aquela máquina de ganhar dinheiro. Acho que o Kurt Cobain tinha um treco desses também, ou era bipolar, ou coisa que o valha. Será que a TaYmmYnnY também ia estourar os miolos? Até que não seria má ideia. Será que ela ia usar um calibre 38 preto de cabo cinza também? O Kurt não usou um revólver, ele usou uma espingarda calibre 20. Não sei qual era a cor.

Os primeiros seis meses da tournée foram esfuziantes. A gente

tocava praticamente todos os dias. Bom, tocava é modo de dizer, né? Quem tocava mesmo eram os caras da “Mosca Aquariana”. Até que eles não eram tão ruins. Um Techno-punkizinho light bem feitinho. Lembrava muito de longe alguma coisa de Dolls, só que muito mais rápido, e mais popinho, é claro. Eles até tocavam Bad Girl no show. A mina era boa no palco. Ficava lá vestida de freira abrindo as pernas e

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fazendo cara de puta e talz. Mas. Sei lá, sinceramente? Trem xarope, sem alma. Ainda era um mistério pra mim por que o Bhardian tinha escolhido logo aquela banda, entre as trocentas mil que eles deviam ter no catálogo. Uma bandinha razoável. Parecida com tudo e com cara de nada. Que nem os punks japoneses. Que mierda, e os caras tocavam pra caralho. Tudo certinho, as roupas, os cabelos, as caras e bocas. Os solos curtos e agressivos. Os instrumentos. Todos Fender originais, antigos, americanos de verdade. Tudo certinho. Tudo previsível. Tinha até uma hora que o baixista quebrava o baixo igualzinho à capa do London Calling. Mas naquela hora o roadie discretamente trocava o Fender americano antigo por uma cópia coreana fajuta. Até a hora que a mina se abaixava e mostrava a xoxota era a mesma todas as noites. O repertório era legal. De bom gosto. Cool. Os caras até armavam alguns escandalozinhos de vez em quando. Transavam com adolescentes menores de idade, essas coisas. Fumavam SynCanna. Tudo certo. Devem ter se formado em rock’n’roll na universidade de Pequim, Nova Déli, sei lá. Tudo certinho. Tudo o que uma banda de rock deveria ser. Porra eu nem sei por que eu tô detonando os cara. Eles pelo menos tocavam, né? O nosso show é que era phoda, era muito pior. Uma vergonha. Me dói só de lembrar que eu já fiz uma mierda dessas na vida. Eu e a TaY. Playbackão brabo. Play-back semvergonha mesmo. A banda ficava lá fingindo que tocava, a gente entrava, fingia que cantava a música, fazia uma encenação vagabunda que o Bhardian e o coreográfo francês carésimo que ele contratou inventaram, a galera chorava, tinha orgasmos, ataques histéricos. Era isso. Uma música e só. Pensa um “Shea Stadium” elevado à décima potência. Mais ou menos isso. Apesar dos fones de ouvido de última, a gente não conseguia ouvir nada, por isso o playback. O incrível é que eu também ficava louco de tesão tocando aquela porra de música. É claro que agora, sabendo de tudo, eu entendo. Mas naquela época, nos primeiros meses, eu não tava entendendo é nada. Os dias

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voavam. A gente fazia show praticamente todos os dias. Tinha dia que tinha até mais de um. Eu e a Melzinha nos falávamos pouco. Ela tava lá superentretida com as parada dela. Acho que aqueles dias foram o auge, o apogeu da vida profissional da Mel Lee, e isso era uma coisa muito importante pra ela. Quando as coisas ruins aconteceram com ela, ela já tava num outro momento, mas isso foi depois.

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21. O carro do sol

Existia um rei que era o próprio Sol. O Rei Sol tinha um carro,

o seu carro, o “Carro do Sol”. Todos os dias o Rei saía e pilotava o seu carro através da abóboda celeste. Ele ia iluminando a Terra. Iluminava a todos. Sem excluir a ninguém. Até os presos que estavam na cadeia tinham direito de sair e receber por alguns minutos a gloriosa luz do Rei Sol. Todos os dias. Dia após dia. Os presos, as prostitutas, os devedores, os mal pagadores, bandidos, tarados sexuais, pervertidos, as donas de casa, crianças, os doentes, que naquele tempo se curavam muitas vezes apenas com a luz do Sol. Os homens que trabalhavam na terra, os animais selvagens, a vegetação, todos sem exceção. Até os corintianos. E os argentinos. Todos os dias. E o Rei tinha que pilotar o seu carro com muito cuidado, por que ele era muito poderoso. Saca esses carro com 350 HP? Fichinha perto do carro do Rei Sol. Os cavalos do Rei eram muito menos de 350, na verdade eram quatro, ou seis, não me lembro desse detalhe. Mas eram cavalos mágicos, muito, muito poderosos. Os cavalos da aurora. O Rei tinha que cavalgar com muito cuidado, com muito respeito e amor pelos seus cavalos. O próprio Rei tinha muito respeito pelo poder dos seus cavalos. E eles, os cavalos, também tinham muito respeito e amor pelo Rei Sol e seu pulso firme. Havia uma harmonia entre o Rei e os seus cavalos. Mas o Rei tinha um filho. E o filho do Rei se sentia abandonado por que o pai não tinha muito tempo pra cuidar dele. Então o filho ia fazer aniversário e

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o Rei, pra compensar a culpa que sentia por estar tão distante, disse que ele podia pedir o que quisesse de presente de aniversário que ele, o Rei, ia dar um jeito de arrumar. O filho, que era jovem e impetuoso, pediu então ao Rei que o deixasse dirigir o carro do Sol. O Rei chorou muito com o pedido do filho, pois sabia o que ia acontecer. Mas não podia voltar atrás, pois já tinha dado a sua palavra ao filho e palavra de Rei não tinha volta. No outro dia, o filho do Rei se apresentou bem cedo pra pilotar o carro do Sol. No começo da subida já dava pra ver a mierda que ia rolar. Os cavalos eram muito poderosos mesmo e, não sentindo firmeza na condução do mané, começaram a ficar doidos com a sua própria força. Quando o carro chegou lá no alto da abóboda, os cavalos desgovernaram e saíram correndo em disparada pelo céu. Foi o caos na Terra. Plantações pegando fogo, cidades sendo destruídas. Ondas gigantes se levantando do leito do oceano. O caos. O povo não sabia mais o que era dia e o que era noite. Não sabiam mais nada, nem pra que lado correr. O próprio planeta perdeu o seu “spin”, o sentido da sua rotação. As pessoas não sabiam quem eram, não sabiam mais o seu nome, idade, se eram homem, mulher, pai, filho, nada. O caos. Gente pulando dos edifícios igual a jaca caindo de árvore. Estupro em público de mulheres e crianças. Assassinatos em cada esquina, o povo saqueando as lojas, parecia que o mundo ia acabar mesmo. Tipo o Apocalipse da Bíblia, tipo aquela profecia de 2012. De repente o céu se fechou. Nuvens apareceram do nada e cobriram geral. Era raio pra tudo quanto é lado. Não dava pra ver direito, mas eu vi quando um raio atingiu em cheio o filho do Sol. O jovem audacioso e sem noção despencou lá do alto e se esborrachou no chão. O Rei Sol, apesar de todo o seu sofrimento de pai pela tragédia que aconteceu ao filho, teve que pegar de novo as rédeas e voltar a conduzir o seu carro pra que as coisas voltassem a ser como eram antes e pudesse seguir existindo vida na Terra.

Acordei com uma dor terrível por todo o corpo como se eu

mesmo tivesse caído lá daquelas alturas.

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22. A queda

Como foi que eu não pensei nisso antes? Bão, a gente é sem-

pre o último a saber, não é mesmo? Por quê?

Simples: porque a gente não quer ver. O maior ópio é a miopia.

Pozé. Sim, é claro que olhando desde hoje pra trás, me parece

um absurdo completo que nem eu nem outras pessoas tenhamos percebido que devia ter alguma coisa errada com aquele sucesso todo de “Liberta-me” além do trocadilho idiota com “Liberta a TaYmmY”. Mas o fato é que, naqueles dias, nem eu nem ninguém pensamos nisso. A gente só queria viver e “curtir” ao máximo aquele momento de glória. Inconsciência e felicidade eram as nossas bandeiras.

Lembro de alguns detalhes idiotas do dia em que eu fiquei

sabendo da parada toda. Eu tava no meu quarto. A gente tava excursionando pelo interior do Japão. Acho que o nome do lugar era Latoya ou Mar-joya. Algo assim. Acho que tenho certeza de que era no Japão, porque eu me lembro da gente no aeroporto andando no meio daquela multidão de pessoas mais baixas do que eu. E todas com a mesma cara. Parecia “Terra de Gigantes”, aquele filme. E tinha aquela bandeira com a bola vermelha pra tudo quanto é lado. E teve aquele lance depois, o encontro com o Narcissus Von Faiq, que foi em Tóquio. Sim, tenho certeza de que foi em Tóquio. No Hotel Imperial. Eu lembro. Teve show do RedNoise na noite anterior. O hotel em

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que nos encontrávamos naquele dia fatídico era de trocentas estrelas, como sempre.

Era por volta de uma e meia da manhã. A Melzinha ligou e

pediu pra eu ir até o quarto dela. Eu pedi pra ela vir até o meu, que eu não ia muito com a cara da namorada dela. Não tava a fins de ter nenhum tipo de intimidade com ela. Mas a Mel falou que não tava podendo sair do quarto. Ela tava com aquela voz de “walking-dead” que ela ficava quando tava deprimida. Fazia tempo que ela não tinha aquela porra, desde que tinha começado aquele auê todo. Desde que ela tinha arrumado a namorada nova. Senti o cheiro da mierda no ar. Fui até lá.

Oi Maninha.

– Oi – A Mel falou.

– Oi Juan – A jararacreia falou.

Oi.

Era visível que a Melzinha tava arrasada. Ela tava cozóio cheio

de lágrimas.

Que foi Mel. Não vai dizê que tu brigou com essa jarara... – Juan, por favor, por favor não briga com a Jade. Não agora.

Por favor.

Jade. O caralho.

A Mel começou a chorar baixinho. A pilantrinha se ajoelhou ao

lado dela no chão e ficou segurando a mão dela. Era uma cena ridícula, coisa mais forçada, teatral. Dava pra dar uma bicuda bem do lado da oreia da “do mal”, mas eu fiquei na minha. A Mel ficou um tempo chorando desconsolada. Eu não tava entendendo nada. Achei que a mãe dela tinha morrido. Tinha um espelho atrás da cama. Ela tava de lado na cama, o lençol não cobria ela direito, dava pra ver que ela tava sem calcinha. Aquela bundona gorda, desajeitada. E a outra toda magrinha, gostosinha, num roupão do hotel. Elas tinham transado. Me deu uma peninha da Mel.

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O que foi Mel, por favor, fala alguma coisa maninha. Eu disse.

– Tá tudo acabado Juan, tudo.

Tudo o que maninha? Com essa vagaranha ai.

– Não, Juan. Não, não é nada disso, deixa a Jade em paz.

Jade é o caralh...

– POR FAVOR, JUAN! POR FAVOR – Ela disse isso gritando e

eu fechei o bico.

– Aconteceu uma coisa. Uma coisa muito grave. Ela conti-

nuou.

Porra maninha desembucha logo, que porra de mania que tu

tem de ficá enrolando as coisa, de ficá fazendo a conversa rendê.

– Hoje eu jantei com o Bhardian – ela falou.

Jantou é? Eu fiz de conta que não sabia.

– É. Jantei. E uma coisa terrível aconteceu. Uma coisa terrível,

Juan. Na hora de sair eu peguei os óculos de realidade aumentada dele, igual ao que ele me deu. Peguei o dele por engano. E quando eu cheguei no quarto eu coloquei pra assistir um filme.

E aí tu viu um monte de viado transando né? Grande bosta. Vai

dizê que ficou chocada? Só mulher que pode é? Hehehe.

– Porra Juan, cala essa boca véi, cala essa boca. Que merda.

Nós tamu fudido véi. Fudido.

– É Juan, é uma situação muito grave – a policreia falou.

Não falei nada. Nem olhei pra ela. A Mel chorava copiosa-

mente. Coisa de dar dó. Comecei a achar que a encrenca era grossa mesmo e fiquei na minha. Tinha um cheiro adocicado no quarto. Acho que era o perfume chinês metido a chique que a piriguetezinha comprou e jogou nas suas roupas como se fosse água benta. A Mel começou a desembuchar:

– Vai desmoronar tudo, Juan. Vai desmoronar tudo, a gente

vai cair que nem uma jaca madura. Vai cair tudo, Juan. Eu vi cara. Eu vi nos óculos do Bhardian. É tudo... Tudo uma armação. Juan. Tudo uma armação, véi.

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Ah, maninha. É isso. Armação? Porra grande novidade, né

Mel, grande novidade. Essa presepada toda que a gente tá fazendo, o show, o playback.

– Não, Juan, não é isso véi, não é isso não, é uma parada mui-

to grave, é um crime. É um crime o que os caras tão fazendo.

– É um crime –, a Jade falou.

Crime? Que crime?

– A parada, Juan, o nanotreco.

O banana?

– É.

O que é que tem?

– Eu vi um vídeo. De uma conversa gravada do Bhardian com

o cara aquele. O Mr. Narcissus.

Narcissus Von Faiq?

– É.

Que conversa?

– O Bhardian tava perguntando pro cara como estavam os re-

sultados do treco.

E aí?

– Bom. O cara primeiro ficou falando das vendas, que estavam

excelentes, não sei o quê, que estavam vendendo milhões. Na real é muito mais do que eles estão nos falando, os cara tão nos roubando na carocha. Ela disse.

Bão maninha. Isso aí a gente já mais ou menos imaginava que

podia rolar, né?

– É, mas isso é o de menos.

Desembucha logo maninha. Que mania de enrolar as coisas.

Porra.

– Depois do lance dos números eles começaram a falar sobre

o resultado científico do negócio, da parada da expansão da inteligência e talz.

E daí?

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– Daí que os caras não têm a menor ideia se o treco vai funcio-

nar mesmo ou não.

Como assim, maninha?

– Assim mesmo, Juan. Eles não têm a menor ideia. Eles tive-

ram muito pouco tempo pra experimentar a bagaça. Foi uma corrida doida pra lançar na frente da Paradise, na frente dos chineses.

Karaka. Eu disse.

– É. Bom. A gente até já tinha falado sobre isso naquela noite

lá em Nova York, lembra? Foi bem no começo da turnê. Você mesmo falou Juan, que de repente os caras nem sabiam direito se a parada ia funcionar mesmo.

É eu sei maninha, e você, como sempre, disse que eu sou pa-

ranoico e talz. Que não tinha nada a ver, que uns caras do tamanho da ManGodCorp não iam dar um mole desses.

– É, eu sei. Mas isso ainda não é o pior. Ela falou.

Como assim?

– Isso aí até que não afeta tanto a gente, a gente não tem muito

a ver com isso. Isso eles vão ter que explicar pros trocentos milhões de consumidores que tão comprando a parada, se bem que o cara lá, o tal do Narcissus, que é muito mais liso do que o Bhardian, falou que tem uma vírgula ou sei lá o que no contrato. Essas parada aí de advogado, que livra o deles no caso da “nova tecnologia” não apresentar o resultado esperado. Parece que a coisa se enquadra numa legislação internacional nova, que foi criada especialmente pra esses bagulho tecnológico que tem interface homem-máquina que eles tão começando a lançar agora. Sei lá, esses rolo de advogado.

Bom, menos mal, né?

– É por aí é, só que depois o cara falou que o lance da fre-

quência era a única coisa que eles tinham certeza absoluta que tava funcionando do jeito que eles imaginaram que ia funcionar.

Que lance da frequência? Eu disse.

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– Bom, é que a parada de expandir a memória e a inteligên-

cia é um lance muito complexo, que eles ainda estavam estudando quando receberam a ordem da presidenta mundial da ManGodCorp de lançar no mercado. Parece que eles não tiveram muita escolha. Mas o lance da frequência, o lance da música, eles já tinham muito mais testes com cobaias, eles já tinham praticamente certeza que ia funcionar, além de ser uma parada tecnicamente muito mais simples do que aumentar a inteligência e a capacidade de memória de uma pessoa.

Que... Que lance da música?

– É que a parada, o bananateknopop, produz uma espécie de

estímulo em alguma região do cérebro que está ligada ao prazer. É quando vocês cantam juntos lá no refrão da música. Sei lá como é que os caras fizeram isso, o cara até explicou um pouco, mas eu não entendi nada. Eu sei que é uma região do cérebro que está ligada ao prazer sexual. Que a parada produz tipo um orgasmo quando a pessoa escuta o refrão da porra da música. Parece que os cara usaram umas parada de magia antiga. Magia sexual, sei lá, um trem desses. O cara falou algo tipo: magia sexual tecnológica para as massas. Como se eles estivessem popularizando através da tecnologia um trem de magia sexual. De usar a energia sexual das pessoas. Sei lá véi um trem doido desses. Eu sei é que eles tão ganhando mais dinheiro do que mina de ouro a céu aberto.

Caralho.

– Pozé.

Caralho, Caralho.

– Pozé véio.

FIADASPUTA!!!!! Então é por isso.

– Por isso o quê, Juan?

Por isso que a gente quase chega ao orgasmo quando escuta

a música?

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– É isso, isso, exatamente isso que eu tô falando, véi. Na real,

tem uma frequência exata: o cara disse: 1.191Hz. É quando vocês batem juntos nessa frequência aí, nos 1.191Hz, que o nanotreco estimula a tal da região do cérebro e a pessoa quase tem um orgasmo.

CARALHO! CARALHO! Que mierda véi. Que mierda. Como é

que a gente pôde ser tão imbecil, como é que a gente pôde entrar nessa? Como é que a gente não sacou isso logo. Como é que ninguém descobriu a picaretagem deles ainda? Os fiadasputa tão manipulando, tão manipulando as pessoas. É roubo véi. Tão roubado no jogo. Tão entrando dentro das cabeça das pessoas e dizendo a elas do que é que elas devem gostar. PUTASQUISPARIU VÉI PUTASQUISPARIU. E eu é que sou a porra do fiadaputa que tá servindo de cobaia pressa merda. Caralho é por isso que eles me escolheram. Por isso que eles queriam só eu. Por causa do lance da frequência da minha voz. Como é que eu... Como é que eu... Ninguém descobriu ainda?

As meninas estavam chorando. A Mel falou:

– Acho que vão acabar descobrindo. Juan. O cara falou. Os ca-

ras meio que esperam por isso. Só que até provar que focinho de porco não é tomada, eles já faturaram zilhões de dólares. É uma tecnologia nova, só os caras da ponta que sabem. Tipo a parada da magia sexual não é nova, mas produzir isso através de um treco implantado na cabeça das pessoas e acionado por frequências emitidas por uma música, pra multidões em todo o planeta é que é. Nova. Magia sexual véi. Tipo. O cara falou um nome. Um nome que eu já ouvi tu falando. Tem a ver com aquele cara que era guru dos cara do Led Zeppelin.

Aleister Crowley?

– Isso, isso aí.

Crowley. Caralho.

– Que tem? Quem foi o cara, Juan?

Aleister Crowley foi um ocultista. Talvez o mais famoso de to-

dos. Nasceu na Inglaterra no final do século XIX e viveu até metade do XX.

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– Ocultista? Tipo magia negra, essas paradas?

Sim, maninha, isso mesmo. O cara ficou famoso. Influenciou

um monte de gente além do Jimmy Page. O Raul Seixas e o Paulo Coelho. O próprio véio John. Além do Ozzy, os caras do Iron. O Marylin Manson.

– Karaka.

Pozé. Era um libertário. Segundo os jornais da época, um liber-

tino perverso também. Defendia o “faze o que queres que é da lei”.

– Faze o que queres? Porra. Os cara da ManGod tão fazendo.

Pozé maninha. O cara foi fundador de diversas ordens ocultis-

tas. Uma figura muito controversa na época dele. Ele foi praticante da tal da “magia sexual”.

– E que porra é essa afinal?

Eu não manjo muito esse trem. Pelo que eu sei, parece que os

caras manipulavam a energia produzida pelo orgasmo humano pra influenciar as pessoas, sei lá, conseguir poder, esses trem.

– Karaka, Juan, que sinistro! Então é isso o que os caras da

ManGodCorp fizeram. Os caras pegaram o conhecimento do cara e transformaram numa maquininha pra vender a porcaria da música. Pro mundo inteiro. Tipo isso. Magia sexual para as massas. Só os caras da ponta que têm tecnologia pra saber. Deve ter um monte de gente desconfiada. Mas. Até provar, véi. Só o povo da ParadiseNowCorp pode descobrir e revelar o golpe deles agora, se é que já não sabem. Mas eles têm meio que um pacto entre eles, né? Eles se protegem mutuamente. E disputam entre si.

Caralho, que mierda véi. Que mierda. É véi. Tamu. Fudido.

Tentei chorar, mas não consegui.

– É Juan. Eu sei.

A Melzinha não tinha dificuldade pra chorar. Ela tava se aca-

bando.

O que é que a gente vai fazer? O que é que a gente vai fazer?

Tamu fudido véio. Maninha. Quando as pessoas descobrirem, o que

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é que vai ser da gente? A gente vai ser execrado. Crucificados. Todo mundo vai virar as costas pra gente. O Panka, minha mãe. O Panka nunca vai me perdoar por isso. Ele preferiria mil vezes que eu fosse boiola. Caralho.

“Juan LMK, o maior traidor do rock de todos os tempos.”

Karaka véio, eu não acredito. PUTA QUE PARIU!

– Que foi, Juan?

Karaka véi que parada sinistra.

– O quê?

Quando eu fui na penitenciária visitar o Panka.

– Que é que tem?

Os caras tavam fazendo um teste de frequência. PUTASQUI-

PARIU véi. Não acredito véi, que coincidência, que coincidência sinistra de merda.

Coincidência?

Coincidência.

Bem naquele dia. Tavam testando a porra na cabeça dos pre-

sos da New Papu. A porra da frequência.

A Melzinha só chorava. A Jade tava chorando compulsivamen-

te também, as duas estavam abraçadas. Eu não conseguia sentir mais raiva nenhuma da menina. Ver as duas ali assustadas e abraçadinhas que nem as duas menininhas órfãs que no fundo é o que elas eram, arrasou meu coração muito mais do que o impacto da notícia-bomba. Eu consegui chorar. Um pouco. Fiquei olhando as duas e sentindo vontade de ficar abraçado com elas também. Sem nenhuma sacanagem no meu coração. Eu tremia de frio ou de medo, sei lá. Eu tava fudido. Aquilo era algo que eu nunca tinha enfrentado antes. Nada parecido. Não tinha a menor ideia do que ia fazer. Do que ia acontecer com a gente. Eu tava acabado. Não ia sobrar nada. Talvez as pessoas quisessem me matar. Comecei a pensar no Kurt Cobain e no trezoitão de cabo cinzento. Deu vontade de ligar prum traficante, prum travesti, sei lá. De repente minha mente deu um pulo.

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Será que ele já sabe?

– Já sabe o quê, Juan? Ele quem?

Que vocês trocaram os óculos. O Bhardian.

– Sei lá. Não. Quer dizer. Não sei. Talvez não. Acho.

A gente tem que ir lá e destrocar. Agora. Tem uma chance dele

não ter descoberto ainda. Se ele souber que a gente sabe, a gente tá morto.

– Ir lá? Destrocar? Tu viajô véi. Tu tá maluco?

Tô não maninha. A gente precisa fazer isso. Agora. É a nossa

única chance.

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23. Between a rock and a hard place

Subimos os três. Deviam ser umas duas e pouco. O Hotel es-

tava deserto. Será que o Bhardian já tava lá? Será que ele tava dormindo? O quarto tava em silêncio total. Decidimos que eu é que ia entrar.

Of course, my horse.

“Scouse”? Caralho. Esse sotaque, essa voz. Caralho. Agora

não véi. Quem foi que... Não... Não vai variar agora não, véi. Porra, não vai ficar doido agora.

Tinha uma manha que eu descobri de abrir a porta imitando

o timbre de voz do hóspede do quarto. O i-sound-door identificava o timbre da voz, e eu era bom em imitar timbres de voz. Abri a porta, entrei, colei no chão e fechei a porta por dentro de novo. Fiquei grudado no carpete, apenas respirando. Será que tinha algum alarme, algum infravermelho? Aparentemente não. Finalmente eu encontrei um lado positivo para toda aquela arrogância do Bhardian: ele se sentia, de alguma forma, “protegido” pelo universo. Não tinha guardas no corredor nem alarmes de campo infravermelho ligados. Nada. Pelo menos, aparentemente. Fiquei parado por alguns minutos no escuro do quarto, apenas urubisselvando. Pra me acostumar com o quarto e o quarto se acostumar comigo. Coloquei os meus i-Glasses pra

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carlos maltz

enxergar na escuridão. Eles também me indicariam a presença de alarmes, câmeras, etc. Não tinha nada ligado. Sorte.

Sorte?

É, claro. Sorte. O apartamento tinha uma sala, minicozinha e

a suíte. Os óculos da Mel deviam estar lá no quarto, em algum lugar. Fui me arrastando tipo filme de guerra ou de espionagem. Eu tava me cagando de medo. E se o cara tivesse uma arma e atirasse antes de ver que era eu? Ou se ele estivesse lá só me esperando, sabendo que eu ia tentar destrocar os óculos? Ou se tocasse a porra de um alarme e os seguranças entrassem atirando? Que merda, acho que nunca passei por um trem tão perigoso assim na vida. Meus pensamentos estavam me matando. Tentei pensar nos meus heróis, nos meus deuses. Não tinha muitos. Eles não eram lá grandes coisa. Joe Strummer, você não serve pra muita coisa numa hora dessas, man. Lembrei do general Maximus. O único herói que me veio na cabeça naquele momento. Força e honra. Força e honra. Vamos.

Força e honra. Hehehe.

Vá se fuder seu filhadaputa. Pensei em voltar diversas vezes,

mas por outro lado, eu sentia um desejo louco de entrar, de conseguir. Era como se toda a minha vida dependesse de eu seguir em frente. Eu era um homem morto, destruído. Talvez se não desistisse no meio daquela “missão”, eu pudesse me olhar no espelho novamente e encontrar alguma saída.

So are you half the man you used to be? Hehehe…

O quê? O mesmo sotaque… Eu conheço essa voz… Karaka.

Agora?

Me arrastei até a cama. Tinha uma espécie de criado mudo ao

lado da cama. O treco devia estar lá, em alguma gaveta. Abri a primeira. Não tava. Só tinha uma bíblia do hotel. Na segunda tinha uma cueca usada e um troço que no escuro parecia ser um vibrador.

EEECCCAAAAA.

Abri a terceira. Lá estava ele.

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o último rei do rock

NÃO ACREDITO, NÃO ACREDITO! Lá estava ele! Que sorte

véi, que cagada! Lá estava ele, bem belo dentro do estojinho marrom claro, igual ao que a Melzinha levou por engano. Era igualzinho mesmo. Karaka, que sorte. Destroquei rapidinho e me virei na direção da porta do quarto, que dava pra salinha e dali pra porta de saída. Mas minha sorte mudou. Ouvi um barulho na porta. Bhardian estava voltando. E não estava sozinho. Tinha uma voz junto com a voz dele. Uma voz que eu conhecia. Quem era? Putasquispariu. E agora? Os dois pararam na salinha pra beber alguma coisa. Agora eu reconhecia a voz, era do “Pol-Pot”, o baterista do “Aquarian Fly”. Tava explicado como é que aqueles caras conseguiram a boquinha pra abrir o show. O que eu ia fazer? Não tinha pra onde correr. O único jeito era entrar no armário e ficar quieto lá dentro rezando pro Bhardian não abrir a porta. Karaka, que mierda, não acredito que isso tá acontecendo mesmo comigo véi! Isso é real, tá acontecendo comigo. Se o cara me pega aqui eu tô morto. Entrei, tinha algum espaço na parte onde se guardam as calças. Por sorte era uma supersuíte de um super-hotel, o armário até que não era daqueles minúsculos. Passados uns três minutos os caras entraram no quarto. Ouvi o barulho dos corpos caindo na cama e depois silêncio. Dava pra ouvir alguns sons, tipo do colchão e de gente se beijando com muito tesão, essas coisas. De repente o Pol-Pot falou:

– Você conseguiu?

– Consegui sim – Bhardian disse.

Conseguiu o quê? – Eu pensei. Colei o ouvido na porta, podia

ser alguma coisa ligada aos óculos. Será que o Pol-Pot já sabia? Será que ele era capanga do Bhardian?

Sem nenhuma chance de eu me defender, a porta de correr

do armário se abriu de supetão e uma mão invadiu o espaço interno. Passou a uns cinco centímetros do meu nariz e ficou remexendo nas roupas, procurando alguma coisa. Eu quase tive uma parada cardía-

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carlos maltz

ca, mas o cara não me viu. A mão encontrou o que estava procurando e fechou a porta. Eu tinha sobrevivido.

– Está aqui, olha que graça, o Bhardian falou.

– Acho que vai ficar super em você. O Pol-Pot falou. Coloca pra

gente ver.

– Eu fico um pouco envergonhado. Ouvi o Bhardian dizendo.

– Que nada, você está superbem, supergato. Olha. Ficou per-

feito. Ela vendeu pra você?

– Vendeu, eu paguei uma grana preta, a mulher nem pensou

duas vezes. Hehehe.

– Hehehehe.

– E ela ainda me disse: Mas doutor, pra que o senhor quer

uma roupa de camareira? Hehehe.

– Hehehe. Olha. Ficou superbem em você. – Você achou?

– Achei, vira pra eu ver atrás. – Huuummm.

Depois disso, eles não falaram mais nada, pelo menos nada

que fosse inteligível. Eram só os sons habituais. Gemidos murmúrios, essas coisas. Parece que o Bhardian tinha uma tara especial por “crossdressing” com roupas de empregadas, tipo camareiras, cozinheiras, esses trem. Vejam só. Durante o dia o cara era o fodão, enrrabava o mundo inteiro, e na madruga, a onda dele era ser entubado com roupinha de camareira. Eu hein. Bão, cada um com a sua tara, não é mesmo?

Tem cara que sente tesão em pé de mulher.

Pozé. Tem né? A brincadeira deles levou umas duas horas.

Ouvi quando o baterista coreano saiu do quarto e o barulho do corpo do Bhardian rolando na cama. Fiquei quieto. Devia estar amanhecendo. Que saudade do sol. Eu ainda teria que ficar ali por mais uma hora pelo menos pra que ele pegasse firme no sono e eu não corresse o risco de colocar tudo a perder no último minuto do jogo. Que situa-

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o último rei do rock

ção. Eu mal podia respirar. Meu corpo estava todo dobrado. Sentia dor em tudo quanto é junta. Esperei mais ou menos uma hora. Tava tudo em silêncio. Abri a porta, Bhardian roncava. Karaka, ele tava roncando alto demais, parecia a “Serra do Roncador”. Será que ele tava fingindo? Eu tinha que sair dali imediatamente. Saí me arrastando feito cobra pelo chão. Cheguei facilmente à salinha e depois à porta de entrada do apartamento. Abri também com facilidade. Quando tava na porta quase tive um treco: o Bhardian soltou um peidaço lá dentro. Não tinha ninguém no corredor. Me mandei com os óculos da Melzinha. Mel e Jade tinham vazado do corredor. Desci até o quarto da Mel Lee. Dei duas batidas rápidas na porta, a Jade abriu pra mim e me abraçou. Eu já tinha saído do estado de choque e já tinha voltado a sentir raiva dela, mas fiquei na minha. Entrei. Sentei na cama. Aquele cheiro nojento de perfume chinês doce empestava o quarto. Tinha um monte de roupa de mulher jogada pra tudo quanto é canto. Era coisa da mocreiazinha, a Mel não era de fazer bagunça. Minha única amiga nesse mundo tava deitada, acabadinha de tanto chorar. Ela falou:

– Juan! Tu conseguiu?

Consegui maninha. Taqui teus óculos ó.

– Karaka, não acredito véi.

Pozé. Eu é que não acredito o que eu tive que passar pra con-

seguir trocar.

– E agora o que é que nós vamos fazer, Juan? Nós tamu no sal.

Confabulamos um pouco e chegamos à conclusão de que o

melhor seria descer até o salão do café da manhã, que estaria vazio àquela hora, e comermos alguma coisa pra pensar melhor. Estávamos de alguma forma, felizes. Tem hora que só de estar vivo a gente já tá achando bom, né?

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24. Narcissus Von Faiq

O salão do café da manhã estava praticamente vazio. Uma

única exceção: uma mesa na qual se encontravam confortavelmente instalados Belair Bhardian e o negão quadrado que o acompanhava nas missões perigosas. Minha intuição sagitariana me dizia que ele já sabia de tudo. A gente tava fudido. Que mierda! Então o Bhardian tava realmente fingindo quando eu saí do quarto. Ele sabia de tudo, a gente tava fudido!

Será que ele sabia de tudo mesmo?

Acho que sim. Quando Bhardian nos viu, abriu seu tradicio-

nal sorriso papal e nos acenou. Parecia que ele sabia que a gente ia descer e estava ali nos esperando. Como podia ser? Ele tava fingindo sim. Sabia todo tempo que eu tava dentro do armário. Parecia que minha vida tinha se transformado em alguma espécie de filme classe C. Um filme vagabundo que eu já sabia como ia terminar. Será que isso estava realmente acontecendo ou será que minha mente, mais uma vez, me pregava peças? Eu, Mel e a Jade nos olhamos. Aquilo estava realmente acontecendo. Caminhamos até a mesa de Bhardian como vacas que andam mansamente para o abatedouro.

Por que você simplesmente não saiu correndo?

Sem chance, o negão quadrado me pegava em três minutos.

Chegamos à mesa dos caras. Éramos todos sorrisos. Cinco

pessoas sorrindo e se abraçando ao mesmo tempo. Todos de olhos

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carlos maltz

azuis. Todos armados de desconfianças até os dentes. Será que ele sabia mesmo? Bhardian começou:

– Ora, ora, mas é muita sorte, não é mesmo? Que coincidência

vocês terem descido tão cedo.

Coincidência?

– É, Juan. Eu e o Marlow estamos indo pro aeroporto agora e

vocês podem vir com a gente.

Coincidência?

– Podemos? A Melzinha perguntou.

– Claro. Essa é uma oportunidade única. Sim, minha cara Mel

Lee, uma oportunidade única para vocês conhecerem pessoalmente Mr. Narcissus Von Faiq, ele está em Tóquio e está querendo conhecer vocês.

– Está querendo nos conhecer? Ela perguntou com um fio de

voz.

Sim, minha estimada, a fama de vocês está crescendo expo-

nencialmente. Mr. Faiq não é muito de sair do seu esconderijo na Suíça, mas ele está fazendo questão de encontrar pessoalmente com vocês.

Ah, sim, senhor Bhardian – Eu falei – É uma honra pra nós,

mas é que a gente tinha outros planos pra hoje. Sabe. A gente tava pensando...

– Não pense demais, Juan, não pense demais. Hehehe. Meu

caro senhor Juan LMK eu imagino que o senhor tenha outros planos, mas tenho certeza que esses outros planos podem esperar um pouco, tenho certeza de que o senhor não vai fazer essa desfeita com o nosso tão amado mr. Narcissus Von Faiq, que faz questão de se encontrar pessoalmente com o senhor, não é mesmo? Não é mesmo? Hehehe. Tenho certeza que o senhor não vai perder essa oportunidade, não é mesmo?

É claro.

Chegamos a Tóquio por volta das 14 horas de um dia cinzento

e frio. Fomos direto pro heliporto do Hotel Imperial. Pra quem detesta

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o último rei do rock

andar de helicóptero, como é o meu caso, andar nas nuvens naqueles dias tinha sempre um ingrediente a mais de ansiedade. Ferrava o meu dia todo. Eu passava o resto do tempo meio que mareado com vontade de vomitar. E aquela viagem... Que eu só soube que não acabaria em um acidente na hora em que a gente pousou, foi provavelmente a mais tensa de toda a minha vida.

Descemos para um auditório no terceiro andar do hotel, se

não me engano, onde o cabeça pensante do projeto NTZSCH-01 estava dando uma entrevista coletiva à imprensa japonesa. Havia grande agitação e ansiedade no ar. Entrei em um banheiro pra fumar um synth-beq, mas o alarme anti-incêndio pipocou. Vieram uns seguranças me encher o saco. Fiquei puto, mas tudo o que pude fazer foi voltar para o auditório. Meu pensamento alternava entre coisas do tipo: tô fudido completamente, e outros momentos em que parecia que nada daquilo estava acontecendo, tudo ia voltar a ser como era antes de eu saber o que eu sabia, e eu era apenas outro expectador qualquer da palestra “interessantíssima” de mr. Faiq. De vez em quando passavam outros pensamentos pela minha cabeça, tipo: os scarpins pretos da Poly, ou a letra de uma música antiga de uma banda chamada “Blitz” que dizia algo mais ou menos assim:

Never surrender, never give in. Never let the enemy win. Never say why, never say die. Its always worth another try.

O cabeça pensante do NTZSCH-01 estava respondendo a um

jornalista algo relativo aos resultados obtidos até então com o implante nanoneural. O “ba-nana”. Sentei em uma poltrona ultraconfortável de um veludo azul-mar que me lembrou uma vez que fui visitar o Senado, em Brasília.

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carlos maltz

Faiq era um cara magro, cabelos grisalhos desalinhados. Usa-

va calça jeans, uma camisa meio nada e uns óculos cafonérrimos. Muito mais seco e direto que o Bhardian. Não tinha nada da parada boiolo-mística do armênio. Era um cara duro, sem graça, “científico”. Tinha um tique nervoso que o fazia tremer a cabeça a cada cinco ou dez minutos, dependendo do seu nível de agitação. Vou tentar reproduzir mais ou menos o que ele tava dizendo quando chegamos. Era o final da coletiva:

– SIM SENHORES UMA NOVA ERA, ISSO MESMO. E EU SEI MUITO BEM QUE TEM GENTE DIZENDO QUE NÓS ESTAMOS EXAGERANDO, QUE NÃO TEMOS CERTEZA DOS RESULTADOS, MAS O FATO É QUE O PROJETO ESTÁ INDO DE VENTO EM POPA. JÁ FIZEMOS MILHARES DE IMPLANTES NO MUNDO INTEIRO E MILHÕES DE PESSOAS AGUARDAM IMPACIENTEMENTE NAS FILAS PARA FAZÊ-LO. É CLARO QUE AINDA É MUITO CEDO PARA AFIRMARMOS QUE O PROJETO É UM SUCESSO TOTAL E É CLARO QUE NÓS E OS SENHORES SABEMOS QUE, EM FUNÇÃO DO GRANDE AVANÇO CIENTÍFICO QUE ELE REPRESENTA, TEREMOS QUE ESPERAR AINDA ALGUM TEMPO PARA PODERMOS CONSTATAR OS RESULTADOS MAIS CONSISTENTES. ESTAMOS DANDO UM GRANDE PASSO, E OS GRANDES PASSOS PRECISAM SER DADOS COM FIRMEZA. SIM, SENHORES, ESTAMOS DANDO UM GRANDE PASSO. A ESPÉCIE HUMANA ESTÁ CAMINHANDO PARA UMA REVOLUÇÃO NUNCA ANTES SEQUER IMAGINADA. SENHORES, ESTAMOS COMEÇANDO A NOS TRANSFORMAR EM UMA ESPÉCIE DIFERENTE DAQUELA QUE A ALEATORIEDADE E A CRUELDADE DA

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o último rei do rock

EVOLUÇÃO DAS ESPÉCIES PRODUZIRAM. JUNTAMENTE COM A TECNOLOGIA COMPUTACIONAL QUE CRIAMOS, ESTAMOS NOS CAPACITANDO PARA ENCONTRAR A SOLUÇÃO PARA MUITOS PROBLEMAS QUE NOSSOS ANTEPASSADOS CONSIDERAVAM INSOLÚVEIS. SÓCRATES, PLATÃO, GOETHE, MARX, FREUD E O PRÓPRIO PAI ESPIRITUAL DESSE PROJETO, NIETZSCHE, SERÃO VISTOS EM UM FUTURO BREVE COMO CRIATURAS PRIMITIVAS DIANTE DO NOVO HOMEM QUE ESTÁ NASCENDO. SENHORES É CHEGADA A HORA DO HOMEM PÓS-HUMANO. COM O AUXÍLIO DA TECNOLOGIA QUE NÓS MESMOS CRIAMOS, EM POUCOS ANOS, CADA UM DE NÓS SERÁ UM SUPER-HOMEM NIETZSCHIANO. ESTAMOS NOS RECRIANDO. MUITO MELHORES DO QUE A NATUREZA FEZ, E PELAS NOSSAS PRÓPRIAS MÃOS. É CHEGADA A ERA DO HOMEM MAIS QUE HUMANO, DO HOMEM PÓS-BIOLÓGICO. SERÁ QUE ESTAMOS PREPARADOS PARA A PLENITUDE E A FELICIDADE QUE NOS ESPERAM? PROVAVELMENTE NÃO. MAS ISSO TAMBÉM PODERÁ SER MUDADO. PELA PRÓPRIA MÃO DA TECNOLOGIA. PORÉM, PRECISAMOS TER UM POUCO DE CALMA E PACIÊNCIA. ESTAMOS DANDO OS PRIMEIROS PASSOS. É COMO EU ESTAVA FALANDO ANTERIORMENTE, AS PESSOAS ESTÃO MUITO ANSIOSAS COM A SUA EXPECTATIVA E NÓS DA MANGODCORP ESTAMOS RECEBENDO COM TRANQUILIDADE ESSA ANSIEDADE DAS PESSOAS. NÓS COMPREENDEMOS ESSA ANSIEDADE, AFINAL, NÃO É TODO DIA QUE A HUMANIDADE DÁ UM PASSO DA MAGNITUDE DO PROJETO NTZSCH-01. MAS,

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É COMO EU VINHA DIZENDO, SENHORES. TEMOS QUE TER CALMA PORQUE A MANGODCORP É UMA CORPORAÇÃO SÓLIDA E DÁ PASSOS SÓLIDOS. O NÚMERO DE PESSOAS QUE ESTÃO RECLAMANDO É INFINITAMENTE MENOR DO QUE AS QUE ESTÃO NOS ENVIANDO MENSAGENS DE JÚBILO, ALEGRIA E GRATIDÃO.

Algo mais ou menos desse jeito. Teve até um cara, um jor-

nalista japonês que tentou fazer uma pergunta sobre denúncias de casos de surtos psicóticos em pessoas que haviam feito o implante, ou algo assim. Faiq disse que essas pessoas não tinham respeitado as exigências de exames psiquiátricos feitas pela ManGod, blá, blá, blá. Uma pequena discussão se instalou, mas rapidamente o fundo do palco se transformou em um imenso telão onde começaram a passar entrevistas com pessoas elogiando o implante e agradecendo a

ManGodCorp. Como sempre, a qualidade técnica do audiovi-

sual era avassaladora. Todo mundo calava a boca e ficava babando. E apareceu um monte de gente falando, sendo entrevistada. Gente do mundo inteiro.

Fiquei lá abestalhado olhando. Estava quase totalmente es-

quecido da situação em que me encontrava e das coisas que eu estava sabendo quando dei de cara com uma velha conhecida. Sim, lá estava ela, bela e faceira: a fodástica louraça Lizbella, a da New Papu, lembram? Sim, lá estava ela, ela mesma, não tenho a menor dúvida. Eu reconheceria aquela deusa no meio de um milhão de pessoas. Tenho praticamente certeza absoluta. Lá estava ela dando um depoimento toda emocionada sobre os benefícios do NTZSCH-01 na vida dela.

Cai na real em segundos. A entrevista acabou com o povo

ovacionando o cara e o NTZSCH-01, o bananateknopop. Na sequência teve um coquetel cheio de bebidas carésimas e os sushimans mais

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o último rei do rock

badalados de Tóquio. Modelos japonesas supergatas de microssaias também. Mas elas não davam mole que nem as chinesas. Ficavam lá na delas se beijando e se exibindo. Tinha um cara que fazia o sushi e depois jogava pó de ouro por cima.

Pó de ouro?

É. Pó de ouro. Depois do coquetel nós fomos conduzidos para

uma sala onde íamos ter o privilégio de poder conversar pessoalmente com mr. Narcissus Von Faiq. A sala era ultrachique. Tudo preto e branco, e tinha uma vista incrível da cidade. Era final de tarde. As luzes amarelas anunciavam a chegada da noite. Em breve elas estariam iluminando o que o dia cinzento não conseguira esconder. O estilo do hotel misturava arquitetura japonesa tradicional com equipamento tecnológico de última geração. Estávamos: eu, a Mel, a Jade, o Bhardian e o Marlow na sala. Ninguém falava nada. Eu já não tinha quase nenhuma dúvida de que Bhardian e, consequentemente, Faiq sabiam que a gente tinha trocado os óculos e sabia das coisas que estavam gravadas naquela conversa deles. Se não soubessem, o que o Marlow estaria fazendo ali? Porra eu tinha quase esquecido a parada toda quando tava na palestra e no coquetel, agora tudo tinha voltado. Meu pensamento dava voltas e me torturava. Como é que o Faiq ia abordar o assunto? Por onde ele iria entrar na conversa? O que o Bhardian faria? O que ele diria? O que ia ser da gente? Será que eles iam nos matar? Não, se fossem nos matar, já teriam nos matado. Era só ter acontecido um “pequeno acidente” com o helicóptero na viagem, por exemplo. Não, aqueles caras não iam nos matar, eles ainda podiam ganhar muita grana comigo. E eles provavelmente ainda esperavam ganhar muita grana. Mas o que é que eles iam fazer com a gente?

Faiq chegou. Seco, apressado. Não tinha nada a ver com

aquela Babilônia de prazer e opulência que o nome ManGodCorp significava pra mim. Lembrava um pouco esses caras que são podres de ricos, mas não ficam dando mole. Sentou-se e disse algo que tinha a pretensão de ser engraçado, mas soou como um saco de cimento

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caindo do décimo andar e se estatelando no chão de uma construção abandonada. Não me lembro exatamente das palavras. Ele não era um homem de jogar conversa fora. Foi direto ao assunto. Acho que ele estava pensando que Bhardian já havia entrado no assunto com a gente. Ou então era apenas o jeito seco dele mesmo. E tinha a porra daquele tique nervoso. Aquilo me deixava ainda mais ansioso. Ele virava praticamente toda a cabeça pro lado e isso fazia com que a boca abrisse levemente, de uma maneira tensa. Via-se que ele lutava pra se controlar, mas o troço era mais forte que ele. E quanto mais tenso ele ficava, mais a frequência da coisa aumentava.

– Senhores. Fui informado do pequeno acidente da troca dos

óculos e que os senhores ficaram sabendo de algumas... É... Informações. Antes do momento adequado.

Antes do momento adequado?

– Sim, senhor Juan LMK. Antes do momento adequado, claro.

Por que é óbvio que vocês iam ficar sabendo de todos os passos e todas as etapas do projeto. Quando chegasse o momento. (Tique nervoso).

Senhor Von Faiq. O senhor me desculpe a ignorança. Mas. Por

que esse momento ainda não havia chegado? Eu perguntei.

– Meu caro Juan, veja. Não, você não é uma pessoa ignorante,

na verdade, eu o considero uma pessoa muito inteligente.

Muito grato. Eu...

– Não precisa agradecer, essa é a realidade. Meu caro. Veja.

Bem. Como vocês puderam presenciar na entrevista coletiva, o projeto NTZSCH-01 é uma realidade, e é uma realidade revolucionária, talvez a maior revolução científica da humanidade desde a invenção da roda.

Sim. Talvez.

(Tique nervoso).

– E como vocês também já sabem, nós temos inimigos, inimi-

gos poderosos que estão dispostos a fazer qualquer coisa para impe-

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o último rei do rock

dir que este passo seja dado. Bom. Que este passo seja dado por nós, antes deles.

Sim senhor. Já sabemos.

– Pois é. Eles estão dispostos a tudo, mas não tem jeito, já

demos o primeiro passo e não vai ter como eles nos roubarem essa façanha histórica.

Como o primeiro passo do homem na Lua ser uma façanha

norte-americana?

– Sim, exatamente Juan, exatamente, como o primeiro ho-

mem na Lua ter sido uma façanha norte-americana.

Mesmo que nunca tenha existido o segundo. Eu disse.

(Tique nervoso).

– O segundo? Sim, bem. Aí já é outro assunto, não é mesmo...

Questões políticas e econômicas que estão acima da sua compreensão neste momento. Meu caro.

Claro, compreendo.

– Sim, eu sei que você compreende, eu disse que você é um

rapaz inteligente, Juan. Hehehe.

Grato. Eu disse.

– Não precisa agradecer. Bom. Como eu vinha dizendo, vocês,

infelizmente ficaram sabendo antes do momento apropriado de alguns detalhes técnicos do programa NTZSCH-01.

Detalhes técnicos?

Sim, detalhes técnicos especialmente ligados à questão da

etapa artística do projeto, a parte mais ligada diretamente à participação de vocês.

– Etapa artística? – A Melzinha perguntou desafiadoramente.

Narcissus Von Faiq olhou pra ela como o chinelo olha pra barata:

(Tique nervoso).

– Sim, minha cara, a etapa artística.

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carlos maltz

A Melzinha estava transtornada. Não sei por que aquela histó-

ria da manipulação das frequências tinha mexido tanto com ela. Até aqui ela era uma superentusiasta de tudo o que se referia ao “projeto”, mas aquele trem tinha tirado ela do sério. Até aqui o contestador era eu, e ela era quase um braço direito de Bhardian. Mas a baixinha se mordeu com aquela história. Aquela coisa de interferir com a “liberdade” das pessoas. Naquele momento nem dava ainda pra eu saber o quanto. Ela não tinha as manhas de esconder o jogo. Era muito direta nos assuntos, e naquele momento era extremamente perigoso ser direto no assunto em questão. Ela disse:

– Senhor Von Faiq, com todo o respeito que lhe devo, eu es-

tou profundamente chocada com as coisas que eu vi e ouvi naquela gravação.

Putasquispariu maninha. Fica de boca fechada. Eu pensei.

– Senhor Von Faiq, isso que os senhores estão fazendo pode

até ser uma revolução tecnológica e talz, e é mesmo, por isso que desde o começo eu fui uma fã entusiasmada. Não é mesmo, senhor Bhardian?

Bhardian abriu o seu tradicional sorrisão papal. Ria, mas tava

com o cu na mão. A Mel continuou metralhando:

– Mas o lance da música. Isso. Isso é manipulação. Sim, mani-

pulação. Vocês estão usando a tecnologia pra manipular as pessoas. Sim, estão manipulando. Não estão dando chance às pessoas de elas escolherem se gostam da música ou não. Estão manipulando, controlando as pessoas. Controlando suas mentes. Onde está a liberdade das pessoas?

Narcissus Von Faiq deu uma gargalhada sonora e se sacudiu

todo dentro do seu corpo magro. Teve um tique nervoso triplo e disse:

– Liberdade? Hahahaha. Minha cara. Veja. Qual liberdade? O

que esta palavra quer dizer em 2020? Hahahaha. Veja. Nunca tivemos tanta opção no mundo e nunca as pessoas foram tão iguais. Nem

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nos tempos em que a Igreja era incontestável, como na Idade Média, tivemos tanto controle dos corações e mentes como temos hoje. A internet está aí, ao alcance de todos. Sim. As pessoas podem escolher o que quiserem, são livres. Hahahaha. Mas nunca foram tão iguais, nunca foram tão manipuláveis. E você sabe... Minha cara. Por quê?

(Tique nervoso).

– Bom, eu não sei. Não acho... (Tique nervoso).

– Por que elas querem ser manipuladas, minha cara, as pes-

soas querem ser manipuladas, elas querem que nós escolhamos por elas, elas querem que nós as libertemos da angústia que é a tal da “liberdade”. E qual o problema disso? Qual o problema disso? Vejam, há mais de dez anos que o cinema, a literatura, a gastronomia, a moda, a publicidade e a música pop de todo o mundo são dominados pelos artistas da ManGodCorp. Nós somos profissionais, minha cara, nós sabemos o que estamos fazendo. Nossos pesquisadores passam dias e noites estudando tendências, desenhando gráficos de preferências. Estudamos tudo. Centenas de critérios diferentes, meus caros. Para que possamos dar às pessoas exatamente aquilo que elas estão querendo e ainda nem sabem. E qual o problema disso? Qual o problema? Nós sabemos o que elas querem antes mesmo delas saberem. Nós sabemos tudo sobre a média da média da média do gosto médio do cidadão médio comum, que é o que 999.999,999% da humanidade quer ser nesse momento. Meus caros, meus caríssimos, ninguém quer ficar de fora da curva, ninguém quer ficar de fora da grande comunidade global, esta grande mãe que nos consola com o seu cálido abraço. Ninguém quer ficar de fora da média. Todos querem o aconchego de pertencer a... Todo mundo tá comprando os mais vendidos, todo mundo tá curtindo os mais curtidos. Sim. E qual o problema disso? Todos queremos ser felizes. Felizes, consumindo

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o que todos estão consumindo, e que só pode ser o bom. Se todos estão “curtindo”, como poderia ser ruim? E qual o problema disso? Quer ver um exemplo? Diga-me um filme que você assistiu recentemente e que você tenha gostado muito.

– “Pandora”. – A Mel respondeu direta e desafiadoramente.

Era um romance “alternativo” meio cult, que se passava em algum lugar da Ásia. Duas meninas que se conhecem por causa de uma música que ambas compartilharam por acaso num site de música se apaixonam e resolvem viver juntas em meio a uma sociedade tradicional e homofóbica.

– É um belo filme, Faiq disse. E se sacudiu de um modo muito

mais angustiado do que tinha feito até agora. A boca aberta cheia de dentes parecia a de um cachorro prestes a morder a sua vítima.

– Um belo filme, um estrondo de bilheteria no mundo inteiro.

Bem acima de nossas expectativas iniciais. Até mesmo Índia, que não costuma se render tão facilmente a filmes românticos homoeróticos ocidentais. Bom, não costumava, não é? Hehehehe. (tique rápido).

– Um belo filme. Criado, dirigido, divulgado e distribuído por

estúdios “independentes” de Hollywood. Um filme “independente” minha cara. Feito por encomenda. Por encomenda. Veja. Temos pretensões “artísticas” com nossos filmes, sim. Principalmente com nossos filmes “independentes”. Sim. Mas... Este é um negócio muito sério, minha cara. O negócio mais sério do mundo.

– Pandora também é da ManGod? – Ela perguntou estupefacta.

– Sim, sim, claro. Bem. Não diretamente. Quer dizer. Veja. A

indústria cultural é hoje no mundo o que a indústria bélica foi no passado. O domínio político do planeta não se decide mais na queda do braço militarizado. O palco do poder hoje é a consciência das pessoas. Um negócio muito sério. O “soft power”. Não temos mais espaço para espontaneidades amadorísticas, minha cara. Não temos nem tempo nem dinheiro a perder com experimentalismos de diretores egocêntri-

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cos em “viagens estéticas pessoais” que não interessam a ninguém. Não temos mais tempo a perder. Veja. Antes de o dinheiro chegar ao nosso tronco cinematográfico “indie”, nossos “cientistas do gosto” já haviam feito estudos de curvas de tendências no mundo inteiro. Eles passaram dias e noites mastigando dados de downloads de filmes realizados nos últimos seis meses. Dados relativos a critérios como: enredo, grau de exigência intelectual, nuance emocional, protagonismo feminino, protagonismos masculino, reviravoltas surpreendentes, dificuldade de acompanhar o enredo, nível de compreensão da “mensagem”, nível de comoção, escapismo cômico, perseguições, conteúdo romântico, utilização de armas, tolerância para cenas de sexo explícito, tolerância para cenas de sexo explícito com menores de idade, tolerância para cenas de sexo homoerótico, tolerância para cenas de sexo explícito com animais, situações perigosas e desfecho. Sim, o desfecho. O desfecho de um filme como “Pandora” é hoje uma questão de segurança pública. É uma questão que interessa muitíssimo aos governos mundiais. Horas e horas de reuniões são necessárias, às vezes, para que se chegue a um desfecho que seja aceitável por todos.

(Tique curto e rápido).

No caso de Pandora, pra que a Suzy e a Terena pudessem ficar

juntas no final, foram horas e horas de negociação extenuante com o governo hindu. Você nem pode imaginar. Uma grande vitória, minha cara. Uma grande vitória da nossa civilização. De nossos valores. De qual liberdade você estava falando mesmo?

Mas a baixinha não se convenceu:

Senhor Faiq, me desculpe, mas eu acho que uma coisa é a

ManGod dominar os mercados pela sua competência. Sim, vocês são excelência em quase tudo. Quase imbatíveis em quase tudo. Ainda bem. Pois assim os nossos valores estão se espalhando e varrendo do mundo a ignorança, a homofobia e os preconceitos religiosos es-

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túpidos do passado. Como o senhor falou. Sim. E isso é maravilhoso. É claro. Mas... Ainda assim... Estão no mercado, estão oferecendo os seus produtos no mercado. Estão competindo. Com muita competência, sim, vocês dominam o mercado, mas... Ainda estão competindo. Ainda estão sujeitos ao julgamento do público, vocês ainda precisam saber o que as pessoas querem, para dar a elas o que elas querem, não é mesmo? Com todos os gráficos e curvas e pesquisas real-time-on-line, sim. Mas. Estão sujeitos, né? Estão sujeitos a que apareça alguém que os supere, alguém que lance uma nova moda. Alguém que venha rompendo os padrões, inovando, ampliando a compreensão das pessoas. Enfim. Aquilo que sempre foi o trabalho dos verdadeiros artistas. Um novo grito na cultura mundial. Isso é uma coisa, sim, mas...

(Enquanto ela falava Faiq teve uma sucessão de aproximada-

mente três tiques longos, dois curtinhos e um mais longo no final).

– Dominar os mercados? Verdadeiros artistas? Hehehehehe.

Minha cara. Nós já passamos da fase de dominar os mercados. Isto já é uma etapa superada na história da humanidade. (Tique, tique, tique).

– Coisa do século XX. O século XIX e o século XX foram os

séculos das disputas territoriais pelos mercados. E veja no que isso deu, veja ao que nos levou. Guerras, guerras sangrentas. (Aqui um tique que merece destaque: Faiq ficou mais tempo na fase final, quando a boca já está aberta e os dentes arreganhados se mostraram mais demoradamente sem nenhum tipo de pudor ao interlocutor).

– Sofrimento, mortes. Famílias destroçadas, economias arrui-

nadas. Pessoas passando fome. Ódio. Ódio por toda parte, ódio nacionalista, ódio racista, ódio machista, ódio feminista. Ódio de todos por todos. Isto já é uma etapa superada da história da humanidade. Minha cara. Entramos no século XXI com uma nova perspectiva. Grandiosa, monumental. O homem pós-humano, liberto da sua

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própria inferioridade pela mão magnífica da ciência que ele mesmo criou. O homem recriando-se, liberto da violência cega, da estupidez animal e da ignorância. O homem-deus. Liberto da crueldade do acaso e da natureza. Liberto da maldita ilusão da “liberdade”. Que não passa e que nunca passou de uma farsa inventada pelos donos das religiões do passado. A tal da “liberdade” nunca passou de um mito, minha cara. Isso já está provado pela neurociência. Apenas um mito. Nós não decidimos nada. Nós nunca decidimos nada.

(Um tique bem longo que terminou numa balançada frenética

da cabeça).

– Nosso cérebro, nossos neurônios e nossos genes, esses

sim são os nossos verdadeiros “deuses”, esse sim são os senhores do nosso “destino”. Não existem e nunca existiram decisões livres e conscientes. O “eu” é uma farsa. Nós todos somos e sempre fomos “issos”. E qual é o problema disso? Qual é o problema disso? (Um tique diferenciado com uma balançada tripla da cabeça).

– Está chegando a hora de nos livrarmos dessa maldita fanta-

sia que tanto sofrimento e atraso já nos causou. A fantasia de que temos uma “consciência”, ou seja lá o que for isso, que esteja além dos nossos neurônios e genes. Nossos cérebros sempre decidiram por nós. Aliás, nossos cérebros somos “nós”. Nossas decisões são programadas, determinadas automaticamente a partir do que trazemos em nossa carga genética e nossas experiências de vida. Sim, senhores, uma nova era se aproxima para a humanidade. Um novo homem. Liberto de “deus” e da maldita religião. “Imagine.” Imagine there’s no heaven, and no religion too”. Lembram? Pois muito bem. Chegou a hora de a gente parar de apenas imaginar e começar a fazer as coisas acontecerem. Alguém tem que dar o primeiro passo, alguém tem que vencer a barreira da ignorância. Sempre foi assim e sempre será.

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(Tique, tique, tique).

– Todos os avanços da humanidade foram recebidos com des-

confiança. Até hoje, até hoje ainda tem gente que não acredita que Neil Armstrog realmente pisou na face da Lua. O que é natural, pois o ser humano é conservador por natureza. Por natureza. Sim. Precisamos mudar isso também. Conservador por natureza, sim. Mas precisamos avançar precisamos ter a coragem para nos superarmos. A ManGodCorp gabaritou-se para isso, meus caros. Nós dominamos os mercados, levamos vinte anos fazendo isso. Mas agora chegou a hora de darmos o grande salto pra frente e nós estamos fazendo exatamente isso.

– Mas senhor Faiq. – Ela disse. – Aqui é que está o problema.

Dominar os mercados é uma coisa. Agora, dominar a cabeça das pessoas? Dominar os seus pensamentos, o seu prazer. Determinar ao seu cérebro o que sentir?

(Faiq começa a tentar dominar os tiques segurando a cabeça).

– Mas qual é a diferença? Qual é a diferença do que já esta-

mos fazendo? E qual o problema disso? Qual o problema disso? Sim, minha cara, exatamente isso, um pequeno passo, um pequeno passo de onde já chegamos, mas um passo fundamental. O maior de todos os passos em direção a um mundo realmente mais feliz. Exatamente isso, esse é o ponto: dominar os seus pensamentos e, principalmente, dominar o seu prazer. Quem tiver esse domínio estará gabaritado para dar o grande salto pra frente. Entendem a magnitude do que estamos fazendo? Este é o ponto, este sempre foi o ponto. Todos os governos, todos os ideólogos revolucionários, todos os artistas, escritores, filósofos, religiosos, todos os cantores de rock de todos os tempos sempre tiveram esse desejo: dominar os pensamentos e, principalmente, o prazer das pessoas.

(Tique, tique, tique).

– E nós, amparados pela maior revolução tecnológica de to-

dos os tempos, estamos conseguindo realizar o grande salto pra fren-

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te. Nós somos a história da pós-humanidade dando os seus primeiros passos, nós somos a evolução acontecendo aqui e agora, minha cara. Vamos ser capazes de entrar nos pensamentos das pessoas, em seus cérebros e determinar que elas sejam felizes. Vamos eliminar o mal, a maledicência, o mal-humor, a negatividade, a patologia, a neurose, a esquizofrenia, a psicopatia, a autodestrutividade. Enfim. Todas essas coisas que você chama de “liberdade”. E que não passam, nunca passaram, de “ruído”.

(Tique, tique, tique, tique).

– Nós vamos colocar em prática o que os grandes escritores

de ficção científica sonharam. A única diferença é que agora isso vai dar certo, não teremos reveses e “pequenos detalhes que não funcionam”. Agora nós vamos...

– Mas senhor Faiq, desculpe interromper, mas... Se isso é as-

sim da maneira como o senhor está falando mesmo, por que então a ManGodCorp escondeu das pessoas? Por que não estão jogando aberto?

– Ora, ora minha cara, não seja tão ingênua assim. (Tique rápido).

– Nós estamos dando os primeiros passos ainda. O implante

nanoneural para a ampliação da inteligência humana é um recém-nascido dando os seus primeiros passos. Nós somos Cristóvão Colombo descobrindo a América, minha cara. Não podemos ainda abrir todas as nossas portas para o mundo. Ainda não. Como vocês devem saber, nós temos inimigos, e inimigos que não prezam pela lealdade.

– Mas senhor Faiq. Não sei. Quando as pessoas souberem.

Não sei. Acho. Isso vai ser uma merda muito grande. Acho, não sei. As pessoas ainda não estão preparadas pra isso. Eu mesma, não sei. Estou ouvindo o que o senhor está dizendo, isso faz sentido mesmo, mas não sei. Isso pode ser uma merda. Muito grande mesmo. Isso da

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gente não ter escolha. Não sei. Então. Não existem o bem e o mal? Não sei. Não senhor, não pode ser. Isso sempre existiu. (Um tique longo daqueles de mostrar os dentes).

– Apego, minha cara, apego ao passado, nada mais do que

isso. Veja você mesma. Se nós estivéssemos na Idade Média você iria parar numa fogueira apenas por que tem uma preferência sexual diferente daquela que os senhores poderosos da religião determinavam como a única possível para uma mulher. Fogueira. Deus, o bem e o mal são apenas criações humanas. Uma criação de gente muito esperta. E muito poderosa. E que está perdendo o seu poder à medida que a humanidade vai saindo da escuridão da caverna. O bem e o mal são relativos. O deus de uma época é o diabo da seguinte. O que hoje você chama de amor, na Idade Média seria chamado de pecado, e você ia virar churrasco.

– Bom. Isso até que é mesmo. – A Mel disse.

– Apego, minha cara. Apego ao que é contrário a você mes-

ma, a sua verdadeira natureza. Contrário a nossa verdadeira realidade. E qual é o problema de sermos seres determinados por nossos genes e neurônios lutando para sobreviver e sermos felizes? Você por acaso escolheu ser gay? Qual o problema disso? Qual o problema? Pra que precisamos de uma “alma”? Pra quê precisamos de um paraíso fora da Terra se podemos construir um aqui mesmo? Pra que precisamos de um papai no céu nos dizendo o que é certo e o que é errado, e nos fazendo pagar dízimos aos seus “representantes” aqui na Terra? Por que precisamos ser “livres” para fazer escolhas erradas, se podemos sempre fazer a escolha certa e sermos felizes sempre? Minha cara. Nós estamos livrando a humanidade das suas maiores angústias: a solidão e a dúvida. Estamos dando às pessoas o que elas mais querem: pertencer a uma grande comunidade de pessoas felizes. Pessoas felizes e livres do seu maior flagelo: a liberdade. Que não passa e nunca passou de uma farsa criada pelas religiões do passado para poder atormentar as pessoas e lhes cobrar

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o último rei do rock

o dízimo pela “salvação”. Salvação do quê? Da própria liberdade que elas mesmas inventaram? Isto sim é a liberdade.

(Um tique longo seguido de uma respiração prolongada).

– Apego às religiões mortas do passado. Uma ilusão, minha

cara. Apenas uma ilusão. Como outras do passado. Como a de que a terra era o centro do universo ou a de que fomos criados do nada ou do barro, se você preferir, por um deus bondoso que cuida de nós. Apenas uma ilusão ingênua que gerou muito poder e prestígio para algumas poucas pessoas no passado. Uma ilusão que nos custou séculos e séculos de atraso na humanidade.

Bhardian, que tinha amaciante na língua, mas que estava quie-

to até agora, falou:

– É apenas uma questão de tempo, querida. Veja, nós enten-

demos a sua aflição, entendemos, claro. Ela faz todo o sentido. Como o senhor Von Faiq esteve dizendo, nós estamos falando de algo novo aqui. Algo que não existia até então. E sempre que algo novo aparece, nós temos que nos reciclar completamente. Temos que reciclar a nossa compreensão das coisas. A própria noção de liberdade que você está usando. Ela vai sofrer uma metamorfose total nos próximos anos, a partir do lançamento do NTZSCH-01. A própria expansão da inteligência que o implante já está causando na humanidade está proporcionando uma mutação. Em dez anos nossa inteligência vai avançar mais do que avançou nos últimos dez, dez mil ou dez milhões de anos. Os conceitos que temos hoje do que seja liberdade ou felicidade serão motivos de piada num futuro próximo. Neste exato momento, cientistas de todo o mundo estão reunidos em Genebra estudando as possibilidades futuras que a nossa maquininha já está causando na humanidade. Se existem vozes dissonantes? É claro. Imagine a reação das pessoas quando Galileu Galilei demonstrou que era a Terra que se movia ao redor do Sol. Mas elas são uma minoria insignificante diante do deslumbramento que a esmagadora maioria

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carlos maltz

dos cientistas sérios do mundo inteiro está demonstrando. Os homens mais importantes das universidades mais importantes e dos laboratórios mais importantes estão se curvando diante dos resultados experimentais obtidos até agora com o implante. Estamos dando o passo, amigos, não tem mais volta. Sim, está chegando o momento de nós aprendermos a sermos mais positivos, aprendermos a sermos mais felizes. Aprendermos a não sermos mais tão ranzinzas, tão “do contra”. Está chegando a hora de todos nós nos darmos as mãos e caminharmos juntos para um mundo feliz, estável, tranquilo. Onde a felicidade esteja ao alcance de todos. A felicidade, o orgulho, a oportunidade e o prazer. Pra sempre.

Eu tava de bico fechado, mas não tive como não falar:

Mas senhor Bhardian, senhores. Me desculpem a ignorância

mais uma vez. Isso aí que vocês estão falando é exatamente o que Aldous Huxley descreveu no “Admirável Mundo Novo”. Exatamente isso aí. Não é não? Qual é a diferença?

– A diferença é que Huxley escrevia ficção científica e agora

isto é possível, Faiq continuou:

– A diferença é que nós dispomos de uma tecnologia que nem

o Huxley e nenhum dos outros autores de ficção científica poderia sonhar que um dia seria real. Ninguém seria capaz de imaginar o passo que estamos nos preparando para dar. Esse grande passo da humanidade. E qual o problema disso? Qual é o problema? Nós temos todos os motivos para estarmos comemorando. (Dois tiques curtos e um longo).

A Melzinha fechou o bico. Naquele momento eu não sabia se

ela tinha concordado com o cara ou apenas cansou de apanhar na discussão. Como eu pude ver na sequência dos acontecimentos, a segunda opção era a correta.

Faiq voltou à carga após um tique que deixou o seu canino es-

querdo à mostra enquanto o lábio superior sacudia como se estivesse ligado na tomada. Ele continuou:

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o último rei do rock

– Na verdade, toda essa nossa conversa aqui é dispensável,

estamos explicando tudo isso a vocês por que temos um apreço muito grande pelos nossos artistas e queremos sempre que a ManGod Corp e todos que trabalham pra ela de alguma maneira sejamos uma família feliz. Mas a conversa é dispensável. Vejam, se toda essa baboseira de livre arbítrio e liberdade fosse real mesmo, vocês estariam agora num grande dilema: contaremos ao mundo ou ficaremos calados diante dos segredos que descobrimos? Mas na verdade não há dilema nenhum, pois a sobrevivência de vocês está diretamente ligada ao silêncio de vocês sobre esse assunto. Os neurônios de vocês já decidiram: vocês não vão dizer nada. Hehehe. Pelo menos por enquanto. Se vocês disserem, serão execrados, imediatamente transmutados de ouro em chumbo. Dos heróis da mídia que são hoje, passarão a ser os seus piores vilões. Você, Juan, será considerado o maior traidor do rock de todos os tempos. E pra que precisamos de tudo isso aqui? Qual é a necessidade disso? A

ManGodCorp

sofrerá um pequeno arranhão, é certo, mas nosso poder de fogo é muito grande. Em pouco tempo nossos advogados e nossos milhões investidos na mídia limpam a nossa imagem, como as companhias de petróleo limpam o oceano onde ocorre um grande vazamento e seguem faturando seus bilhões de dólares. Mas e vocês? Vocês serão crucificados, eliminados do cenário do showbusiness para sempre. Sua reputação será reduzida a zero. Serão varridos do mapa e dos corações dos que hoje os adoram. Talvez sejam agredidos, assassinados. E nós não queremos isso, é claro, nem nós nem vocês. Muito menos vocês, muito menos vocês, não é mesmo? Você, Juan. Você não poderia nem mais sair na rua. Em nenhum lugar do planeta Terra. E as multidões adoram odiar a quem elas amavam tanto há pouco tempo atrás, não é mesmo? Adoram “a lágrima doída do ídolo caído”, não é mesmo? Hehehe.

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carlos maltz

(Tique triplo seguido de suspiro prolongado).

– As multidões adoram ter um deus a quem possam adorar.

E nós damos isso a elas. Essa é a nossa especialidade. Mas as multidões também adoram um Judas. Um Judas em quem se possa espelhar tudo de sombrio que existe em cada um de nós. E depois despejar toda a nossa raiva. De nós mesmos. Por sermos ainda tão imperfeitos. E pra que é que nós queremos uma coisa dessas, um desastre desses aqui na ManGodCorp? Nós somos criadores de deuses, não de Judas. Dentro de pouco tempo a humanidade já estará pronta para saber a verdade, e aí sim será a hora de nós contarmos tudo. Aí sim será a hora apropriada. E vocês vão entrar pra história como heróis. Paciência, calma, meus amigos, essas são as características dos grandes líderes, dos vencedores. Agir impulsiva e infantilmente é uma característica de perdedores sentimentaloides, que não têm a fibra necessária para ser um líder. E esse, eu tenho certeza, não é o caso de vocês. Os neurônios de vocês já decidiram: vocês serão vitoriosos!

(Tique, tique, tique, tique).

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25. Pausa pra respirar

Acho que a conversa com Narcissus Von Faiq me tranquilizou.

Mas tenho quase certeza absoluta que não resolveu em nada o dilema ético-moral da minha irmãzinha. Pra mim era muito mais fácil, eu nem sabia direito, naquela época, o que é um dilema ético-moral. Depois daquele dia voltamos pra tourne que estava pegando fogo. Mas a Mel já não era mais a mesma. Eu já sabia, já conhecia o jeito dela quando ela começava a ficar deprê. Ela ia ficando cada vez mais tempo no quarto dela. Praticamente não saía mais. Até as refeições ela fazia no quarto, junto com a Jade, que surpreendentemente, pelo menos pra mim e meus preconceitos, estava se mostrando uma pessoa bem leal e companheira na hora da dificuldade. A Melzinha começou a emagrecer e ficar com um tom de pele cinzento. Eu dizia pra ela pegar um pouco de sol, mas ela fugia da luz do dia como o diabo foge da cruz. A gente tava na Tailândia quando tudo aconteceu. Foi numa noite depois do show. Todo mundo voltou pro hotel e a gente ia sair pra jantar. Ela não quis vir, a Jade queria ficar junto, mas a Mel insistiu pra ela vir com a gente. Ela veio. A Melzinha jurou de pé junto que tava legal, e só não tava a fins de estar com tantas pessoas naquele momento. Ela garantiu pra mim e pra Jade que ia comer alguma coisa do room service e ia ficar assistindo um filme na televisão. A gente acreditou. Se bem que eu não saberia dizer com certeza se naquele momento ela mesma sabia o que ia acontecer nas horas seguintes.

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carlos maltz

Fomos a um restaurante muito massa que ficava numa praia

cheia de coqueiros e turistas. Lembro de ter ficado impressionado com a quantidade de mulheres incrivelmente belas e dos carros carésimos que estavam no estacionamento: só dava Ferrari’s, BMW’s, Porsche’s e coisas que o valham. Nessa época, quando eu chegava em algum lugar público, mesmo que tivesse todo um esquema de segurança como tinha naquele restaurante naquela noite, era um tumulto. Logo eu já começava a receber bilhetinhos das gatas e dos fruta que queriam tirar uma casquinha do “maior ídolo do rock” de 2020. Eu adorava aquilo tudo. E detestava aquilo tudo. Não lembro muito dos detalhes daquela noite, eu devia estar chapadasso pra variar. Acho que lembro de ter estado com uma gata tai maravilhosa no banheiro. Ela tava usando uma calcinha que eu nunca tinha visto, um tecido diferente, que colava no corpo como se fosse uma segunda pele. Parada diferente mesmo. E bem elástica. Dava pra transar sem tirar a calcinha. Ela virava uma espécie de camisinha. Trem novo mesmo. Eu nunca tinha visto. Agora é manjado. Acho que a vagaba era meio garota de programa de luxo e meio apresentadora de um programa sobre sexo na tevê a cabo local. Algo assim. É o que eu me lembro.

Memória seletiva.

Hum. Não, é sequelada mesmo. Quando voltamos pro hotel,

eu desabei na cama e comecei a dormir imediatamente. Devo ter dormido quinze minutos no máximo quando recebi a ligação da Jade. Eu já tinha visto ela desesperada naquele dia da troca dos óculos, mas dessa vez foi diferente. Ela só conseguia chorar. Senti a mierda grande mais uma vez no ar.

Mais uma tragédia.

É. Desci voando as escadas até o quarto delas, eu não teria

sangue frio pra esperar o elevador. Quando cheguei, a cena não dei-

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o último rei do rock

xou dúvida do que vinha pela frente. A porta já estava aberta. A Melzinha deitada na cama, estatelada, com os braços abertos e a pele do seu rosto bem roxa. Ela estava tendo uns espasmos e os pés ficavam se sacudindo que nem ataque epilético. Parecia um pouco os treco do Faiq, só que era óbvio até prum mané como eu que a parada era grave. A Jade só chorava. Ela segurava os braços da Mel e gritava coisas tipo “eu sabia”, “eu devia ter ficado aqui” e outras coisas desse tipo que a gente costuma dizer quando a mierda já tá feita e não tem nada mais que a gente possa fazer a não ser se culpar. Eu perguntei o que tinha acontecido. A Jade apontou para a cozinha americana. Fui até lá. A Melzinha tinha pegado todos os remédios dela, que eram uns dez ou doze, abriu todos os envelopes, jogou todos os comprimidos numa panelinha, colocou água, cozinhou e bebeu. Pela quantidade de veneno que tinha ali, pensei que a chance dela sair viva era mínima. Fiquei parado sem a menor ideia do que fazer. A Jade me perguntou o que a gente devia fazer. Eu não tinha a menor ideia. Disse pra ela chamar alguém. Ela disse que não ia conseguir e pediu pra eu ligar. Eu não sabia nem qual número ligar. Não sabia nem qual era o número da portaria. E a gente tava há três dias naquele hotel. Aqueles três minutos que transcorreram até a chegada do socorro foram, talvez, os mais reais da minha vida até então.

Não é incrível? Três dias podem passar em três segundos,

e três minutos em três séculos. Além da morte eminente da única pessoa com quem eu podia contar de verdade nesse mundo, eu me vi confrontado com a minha incompetência total pra tudo. Eu não sabia fazer nada. Nada que prestasse. Não tinha nada que eu conseguia pensar em fazer pra auxiliar de alguma forma. Eu não sabia fazer nada, não servia pra nada numa situação daquelas. As únicas coisas em que eu conseguia pensar eram piadas. Putasquispariu véi. Piadas. A única coisa que eu conseguia pensar. E nos scarpins pretos da Poly. Fiquei olhando o desespero da Jade e morri de inveja. Como eu queria estar sofrendo naquele momento. Mas não tava. Nada.

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carlos maltz

Nenhum sofrimento, nada. Eu ia me fuder, ficar sem a minha Melzinha. Tava fudido. Eu não ia conseguir dar um passo sem ela, e nem isso era suficiente pra me fazer sofrer. Comecei a pensar em heroína, pico, essas coisas. Será que isso também era uma forma de sofrer? Será que era a única forma de sofrer a qual eu estava apto? Os caras do socorro chegaram. Entubaram a minha amiga, embalaram a minha amiga e embalsamaram a minha amiga. Saíram correndo. A Jade foi junto. Eu não sabia o que fazer. Fiquei parado. Eles foram. Eu fiquei sozinho no quarto. Nem isso eu fui capaz de fazer, nem ir junto com elas eu fui capaz. Fiquei lá. A tevê tava ligada. Fiquei assistindo um programa sobre maquiagem apresentado por uma garota tailandesa que parecia uma puta e não devia ter mais que quatorze anos de idade. Fiquei ali parado. Não movi um dedo. Pra nada. Bati uma punheta e dormi. A última coisa que eu me lembro: o relógio digital da TV marcava 06h06min.

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26. Coice de porco

Eu fiquei especulando como seria a reação do Bhardian, tipo:

por onde ele viria com o seu papo positivo e motivador. Mas ele sempre me surpreendia. Ele era capaz disso. Sim ele sempre era capaz de me surpreender. Veio com a tese do “coice de porco”. Ele disse:

– A vida às vezes nos dá um coice de porco, que é um coice

curto e seco. Pra nos acordar.

Segundo ele e seu misticismo de resultados, o quase suicídio

da Melzinha foi um coice de porco que a vida estava nos dando, e se nós fossemos capazes de encontrar um sentido, um recado da vida nas entrelinhas do “pequeno acidente”, nós poderíamos superá-lo com facilidade. Talvez nós até pudéssemos aprender alguma coisa com aquilo tudo e sair mais fortalecidos em nossos propósitos. Quem sabe até, ele dizia, a nossa onda de pensamento positivo gerasse uma ressonância que fosse capaz de tirar a nossa amiga daquele transe em que ela se encontrava. Ele acreditava mesmo que isso era possível, e que poderia acontecer a qualquer momento.

Os médicos disseram que ela teve morte cerebral ou algo as-

sim. Segundo eles, se a gente quisesse manter a nossa amiga viva artificialmente, a gente poderia, mas a chance dela voltar à consciência, segundo eles, era praticamente nula. Você teria coragem de mandar desligar as máquinas? Eu não tive. E o Bhardian, com seu positivismo inquebrantável, ficava contando casos que ele pesquisava nos seus

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carlos maltz

superóculos, de pessoas que estavam “condenadas” pela medicina, mas que se levantaram milagrosamente e voltaram à vida. A Jade voltou pro Brasil e o show, como vocês sabem, não pode parar. Eu e ela acabamos ficando amigos no meio daquela situação toda. A mina era mó gente fina. Eu era um puta de um mané preconceituoso mesmo. Mas ela teve que voltar ao Brasil. E eu tive que continuar na minha Via Crucis dourada. Eu só tinha que subir lá e fazer de conta que estava cantando. Os números de vendas aumentavam ainda mais, vertiginosamente. “Liberta-me” já tinha batido quase todos os recordes de todas as categorias de todos os tempos. Eu já era muito maior do que o John. E estava só. Completamente só. Só como um quadro de Van Gogh diante do olhar imbecil dos turistas.

Karaka. Essa foi phoda, é tua?

Não. Do Kundera.

Há. Logo vi que era boa demais pra ser tua.

Grato. Eu não tinha coragem ou vontade de falar com nin-

guém. Nem com a Poly. Muito menos com a Poly. Passava chapado todo tempo, emendava uma chapação na outra. Acordava de manhã e já fumava uma tora. Pensava o tempo inteiro em heroína. Quando a minha irmãzinha vinha pro meu pensamento, eu pensava em herô, ou fumava um. Comecei a ficar muito irritado, comecei a ouvir as vozes de um jeito que nunca tinha acontecido antes. Tinham vozes que me mandavam pular pela janela. Ficava o tempo inteiro chapado e me masturbando. Ou tentando me masturbar, que às vezes nem isso eu conseguia mais, o que me assustava muito, porque era uma coisa que nunca tinha falhado antes. Eu estava ficando com muito medo de endoidar completamente. Acho que também comecei a desejar que isso acontecesse. Não ia demorar muito, eu sabia. Eu não ia durar muito tempo do jeito que as coisas estavam caminhando. Eu sabia. Sabia que eu era um condenado andando pelo corredor da morte, sabia que meus dias estavam contados. Por que eu não endoidava logo? Que mierda ser forte numa hora daquelas. Eu ansiava

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o último rei do rock

por endoidar de vez e poder fugir daquele inferno que eram os meus pensamentos. Comecei a pensar seriamente em pular da janela do hotel. Mas eu não teria coragem para isso. E Bhardian, que não era otário, já estava me sacando e aumentou a vigilância em cima de mim. Meu quarto era um formigueiro de grain-câmeras. Eu só ficava no quarto. Ia lá, fazia os shows e voltava. Não tinha mais nada que me interessava nesse mundo. Às vezes, eu fumava uma vela e ficava deitado na cama por horas e horas. Perdi a noção do tempo. Não sabia mais quando era dia e quando era noite. Ficava sempre com a cortina fechada e as luzes todas acesas. Dormia, acordava, voltava a dormir. Tomava banho a cada três ou quatro dias, só quando o meu cheiro ficava insuportável até pra mim mesmo. Às vezes esquecia de comer. Acordava no meio da noite com uma fome medonha, comia pratos e pratos de macarrão à bolonhesa, praticamente só ingeria macarrão à bolonhesa, batata frita e Coca-cola. A música bombava e bombava. Estádios lotados, um após o outro. Eu era muito maior do que o John. Essa era a minha vida. Apesar dos remédios, eu não conseguia dormir mais do que duas ou três horas seguidas. Não comia mais ninguém. Brochei umas três vezes seguidas e depois comecei a ficar com medo de brochar em todas. Não tinha nem ideia mais de onde eu estava. Em que país? Em que cidade? Os hotéis eram todos iguais, os aeroportos. Os jatinhos. A comida, as pessoas sempre querendo alguma coisa minha. Ficava sozinho. Comecei a ter medo das pessoas. Tinha delírios, estava ficando paranoico. Achava que soldados “inimigos” estavam prontos pra invadir o meu quarto a qualquer momento. Ficava em estado de alerta. Noiadasso. Às vezes, acordava com a sensação de que algum bicho escroto, tipo uma aranha gigante ou uma cobra, estava dentro do meu quarto e tinha caminhado sobre o meu corpo. Uma vez cheguei a sonhar que estava beijando uma cobra na boca. Beijo de língua. Mas não falava pra ninguém. Não contei pra ninguém o que estava acontecendo comigo. O Bhardian sabia, é claro, mas ele se fazia de morto.

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carlos maltz

Minha mãe me ligava às vezes, mas ela estava tão deslumbrada

com a nova vida de mãe de popstar milionário, que eu não tinha coragem de contar a ela a situação em que me encontrava. Comecei a enxergar um olho, um olho imenso que me olhava na escuridão. Não era um olho azul, era meio cinzento, sei lá. Apenas um olho, que me olhava na escuridão. Eu fechava os meus olhos e lá estava ele. Às vezes, via-o até de olhos abertos. Acho que eu estava começando a sentir culpa. O que me deixava feliz, por um lado. Isso era uma prova de que eu não era um psicopata. Mas, por outro, a culpa era terrível, não tinha medida. Eu era o culpado por tudo, tudo de ruim que tinha acontecido com o Loló, com o BBC, com Ra-Tón, com a Mel, a culpa era toda minha. Eu era culpado de tudo que tinha acontecido de ruim no mundo, desde a arca de Noé. Eu com a minha maldita vaidade e a maldita ambição de ser maior que o John. A culpa era terrível, eu queria morrer, mas tinha medo que o olho não desaparecesse com a minha morte. Acho que isso me impediu de me jogar pela janela. Já pensou se a eternidade fosse ficar flutuando no espaço pra sempre com aquele olhão me olhando sem parar? Um dia eu estava meio dormindo, meio acordado e ouvi uma voz que me chamava. Uma voz anasalada. Aguda. Era ele, eu não tinha a menor dúvida. Bom. Acho, né?

Juan!

John? Sim, sou eu.

É você mesmo?

Como assim, se sou eu mesmo?

É você mesmo, quero dizer. O que... Ou quem é você?

E você não sabe quem eu sou?

Sim, sim. Quero dizer, não. Quero dizer. Você é o espírito de

John ou você é uma alucinação minha? Ou o meu sonho?

E isso faz tanta diferença assim?

Não, não. Quer dizer. Sim. Faz sim. Nós estamos falando em

português.

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o último rei do rock

Mas nós estamos no seu sonho.

Então é o meu sonho. Sonho tem tradução simultânea?

Sim. Pode ter. O seu sonho. Sim.

E eu posso saber o que você está fazendo aqui no meu sonho?

Você não gostou de me ver aqui?

O quê? Não, não. Quero dizer. Sim, não. Eu gostei, sim. Claro.

Não parece.

Não parece? Bom. Sim. Claro. Quer dizer. Não. Eu nunca pen-

sei que estaria falando assim diretamente com você um dia, não sei bem o que dizer. O que você está fazendo no meu sonho?

Eu vim te trazer um recado.

Um recado? Ah, sim, um recado. Um recado? De quem?

Um recado de você mesmo.

Um recado de mim mesmo? Ah, sim, John Lennon, ou o espí-

rito de John Lennon, ou alguma alucinação minha com a cara do John Lennon aparece no meu sonho...

Eu sou ele, e você é ele, e você sou eu.

E nós estamos todos juntos?

Sim, e nós estamos todos juntos.

E você veio me dar um recado de mim mesmo?

Sim, um recado de você mesmo.

E eu posso saber que recado é esse?

O recado é que você tem que cair fora, você tem que cair fora

agora mesmo, se não você não vai conseguir sobreviver, e você tem que sobreviver.

Cair fora do quê? Por que eu tenho que sobreviver?

Cara. Cair fora dessa merda toda, cair fora desse esquema de

merda. Sabe? Desse inferno. Você precisa cair fora pra poder sobreviver, porque você é um sobrevivente. Sabe? You know.

Eu preciso sobreviver por que sou um sobrevivente? Bom,

isso é meio redundante, pleonasmo, sei lá. Não é? Não esperava isso de você.

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carlos maltz

Deixe de conversa mole, deixe de bobagem, man você sabe

muito bem do que eu estou falando, você tem que cair fora dessa merda toda, você tem que salvar o seu pescoço. Você tem que sobreviver e contar ao mundo o que está acontecendo.

Contar ao mundo? Você está maluco.

Sim, contar ao mundo, você precisa cair fora dessa merda

toda e contar ao mundo. Cara.

Por que eu faria isso?

Pra salvar a sua alma.

Salvar a minha alma? HUAHUAHUA. John Lennon, ou o espí-

rito de John Lennon, ou uma alucinação minha com a cara do John Lennon aparece no meu sonho e me diz que eu tenho que salvar a minha alma? HUAHUAHUA.

Do que você está rindo?

Uai. De você. Falando de alma, de salvação de alma.

E você esperava que eu estivesse falando de quê? De Campos

de Morango pra sempre?

Bom, sei lá. Não sei. Não esperava nada. Não esperava nada

de você. Eu nunca esperei nada de você. Nunca fui seu fã. Ou daquela porra de beatlemania de mierda. Eu sou punk, cara. Sou fã do Joe Strummer. E do Johny Ramone. Eu apenas nasci naquela porra de dia. Por acaso. Por acaso eu nasci naquela porra de dia, naquela porra de hospital. Naquela porra de cidade. Minha mãe tava lá. Por acaso. Naquela porra de dia, naquela porra de lugar. E toda a minha vida ficou marcada. Toda a minha vida. Mas porra... Inferno? Francamente.

Bom. Se não fosse por esse acaso a gente não taria aqui agora

conversando, não é mesmo, não teria acontecido nada disso. Sim, inferno. Mas. Não do jeito que você tá pensando. Sabe?

Sim, nada disso, nada disso. Inferno? No hell below us, man.

Esqueceu?

Mas aconteceu. Juan. Inferno. Yes man. No hell below us, eu

sei. Mas estou falando de outra coisa, outro inferno. Hell inside us.

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o último rei do rock

Aconteceu. E eu tô fudido cara, fudido. Eu tô no... Infer...

De repente eu comecei a chorar. Eu chorava que nem um be-

bezinho de colo. Chorava sem parar. Rolava pelo chão de tanto chorar. Parecia que eu era o próprio choro, que eu nunca mais ia conseguir parar de chorar. Passaram-se horas, meses, sei lá. E eu ali chorando sem parar. De repente: parei. Fiquei parado. Flutuando no espaço. O “John” tava rindo. Ele disse:

Jai Guru Deva.

Não senti vontade de dizer nada irônico ou cínico, não senti

vontade de dizer nada. Nem de mandar ele tomar no cu. Achei estranho.

Não diga nada então.

Você está lendo o meu pensamento?

Eu sou o seu pensamento.

Sim, é verdade. E veio aqui me dizer que eu preciso “salvar a

minha alma”. Do Inferno.

Sim. Exatamente.

Posso fazer uma pergunta Jai Guru?

Faça.

O que é o inferno?

Inferno? Juan. Não é bem um lugar... Mas. Pode ter certeza de

uma coisa: é mais perto do que você imagina. Tem uma frase de um cara. De um irlandês...

O Bono? Não, que Bono. Man. Bono... Fuck off man.

Hehehehe. Karaka. O cara teve mais ou menos quase tipo um

troço. Achei que os mortos tavam livres de inveja e vaidade. Achei que você já era um iluminado.

Espertinho. Quem vê você assim tão espertinho nem imagina

que é o mesmo babaca que gravou aquele lixo do “Liberta-me”. Não, o irlandês não é o Bono, é o George Bernard Shaw.

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carlos maltz

Hehehe. Não precisa ofender, tá? Karaka. O cara vem me

transmitir uma mensagem ou sei lá o quê e continua o mesmo animal agressivo que sempre foi. Eu hein. Deviam ter arrumado um mensageiro melhor. Um cara mais evoluído espiritualmente. Tipo. O George. Hehehe. Hum... Bernard Cohen? O Cantor? Achei que ele fosse americano.

Bernard Shaw! Bernard Shaw! Bernard Shaw foi um grande

dramaturgo. Um grande pensador. Não me surpreende que você não o conheça. George Bernard Shaw, seu asshole.

É o John mesmo! Hehehe. E eu posso saber o que esse irlan-

dês falou sobre o inferno?

Bernard Shaw disse: “O inferno é a pátria do irreal. E dos bus-

cadores da felicidade. É um refúgio para os que fogem do céu, que é a pátria dos senhores da realidade. E para os que fogem da terra, que é a pátria dos escravos da realidade”.

Karaka véi.

O que foi?

Pátria do irreal?

Isso mesmo.

Mas então John. Então eu tô...

Fudido? Sim, isso mesmo. Você está fudido, meu chapa, tá na

lona, no sal. É isso que eu estou tantando lhe dizer.

Mas, senhor fantasma, ou senhor alucinação, sei lá. Por que o

inferno é a pátria dos buscadores da felicidade?

Tem coisa mais irreal do que viver correndo atrás da tal da

felicidade?

Como assim, não entendi essa.

A inteligência realmente não é o seu forte Juan. Shit. Man.

Que missão que arrumaram pra mim. Convencer um asshole que nem você da sua. You know.

Karaka. Cada vez mais eu tô convencido de que você deve ser

o John mesmo. E não uma alucinação minha. Cara tosco, véi. Só a

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o último rei do rock

japonesa mesmo pra te aguentar. Mas você não explicou a parada da felicidade.

A felicidade não é algo que se deva buscar. É... Um estado.

De. Espírito a que se pode chegar. Quando pacificamos nossa ansiedade e nosso desejo. Inclusive por felicidade, principalmente por felicidade.

Quer dizer que. Quanto mais a gente corre atrás da felicidade,

mais infeliz a gente fica?

Huuummm até que você não é tããããooooo burro.

E isso é o inferno?

Bingo! Stupid asshole pop singer.Yeah…Bingo!

Acho que o Diabo já tinha me dito isso... Ringo? Hehehehe. O

tradutor automático deu pau…

Não, Hehehehe. Ringo. Boa. No. No Ringo, BINGO! Boa. Isso

não tem tradução mesmo.

Mas. E todas essas pessoas. Toda a nossa civilização ociden-

tal, que agora cobre praticamente todo o globo. Todas essas pessoas buscando justamente isso: a felicidade. Nós somos todos “buscadores da felicidade”. Somos a civilização dos “buscadores da felicidade”. O Faiq falou em Tóquio... Que...

Exatamente. E você acha que esses milhões de pessoas jo-

gadas nos depósitos de depressivos estavam correndo atrás do quê quando acordaram um belo dia e se deram conta de que suas vidas eram castelos de areia sem raízes em nada que fosse real pra elas mesmas e que o vento estava soprando mais forte? Acordaram um belo dia e se deram conta de que eram cavalos velozes correndo pra beira do precipício.

Karaka putasquispariu véi.

“Hapiness is a warm gun”, man. Nesse exato momento quase

trinta por cento da população do planeta Terra está sobrevivendo à base de psicofármacos. Esses são os buscadores da felicidade, man.

Mas. Quem está por trás disso.

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carlos maltz

Bem. Você pode chamar de “sistema capitalista pós-indus-

trial”, se você quiser. As grandes corporações.

Mas o que esses caras querem?

E você ainda não sabe? Pergunte pro Bhardian. Vender. Man.

Empurrar as engrenagens pra frente. Money, man. New car, caviar, five star daydream. Poder, vaidade. Qual a novidade?

Simples assim?

Sim. Simples assim. E quem consome mais, quem compra

mais tralhas, quem se entope de drogas legais e ilegais? Pessoas “felizes” ou “infelizes”?

Infelizes, é claro.

Você está melhorando.

Getting better all the time, man… Influência sua.

Of course my horse.

Of course my horse? Putz… Então era… Você. Naquela noite.

Era? E você sabe qual é a maneira mais fácil de deixar as pes-

soas infelizes, Juan?

Não.

Venda a elas a ideia de que elas devem ser felizes sempre.

Venda a elas a ideia de que é possível alguém ser feliz sempre. E de que ela é doente ou alguma espécie de pária social se ela não “é” feliz. Venda a elas a ideia de que com o novo “aura7”, ou com o carro coreano do ano, ou com um pau maior ou com peitos maiores elas serão felizes sempre para sempre, e elas farão qualquer coisa. Man. Elas venderão a sua alma na esquina. E ficarão cada vez mais infelizes, cada vez mais ansiosas, cada vez mais depressivas. Cada vez consumindo mais coisas inúteis de que não precisam. Com o dinheiro que não tem. E que ficarão devendo. Cada vez mais insatisfeitas. Cada vez mais viciadas no “next big thing”. Cada vez mais distantes do aqui e agora, cada vez mais escravas do desejo do que não podem ter.

Karaka. Acho que você realmente não é uma alucinação minha.

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o último rei do rock

Yeah, você é burro demais pra ter uma alucinação tão inteli-

gente.

Não tinha pensado nisso.

Of course, my horse.

Tudo bem. Se bem que eu também nunca bati em mulher

como algumas pessoas muito inteligentes que eu conheço. Mas. Me diga ó grande sábio, como é que eu posso fazer isso? Como é que eu ainda posso “salvar a minha alma”, seja lá o que isso quer dizer, depois de tudo o que aconteceu, depois de toda a mierda. Eu tô fudido, cara. Eu não tenho mais salvação. Eu tô fudido, cara, eu tô vendido. Eu nem sei se eu quero ter alguma salvação. Eu nem sei se eu sei o que é isso. Salvação. Salvação do quê? Da mierda toda? Como é que eu vou me salvar se isso tá dentro de mim? Eu quero é sofrer. Quero sofrer cara. Eu não sei nem sofrer, eu não sirvo nem pra isso, nem pra sofrer. Nem pra me arrepender dessa mierda toda.

E você se arrepende?

Pois é. Eu não...

E por que você deveria se arrepender, Juan?

Por que deveria? Karaka meu. Olha o que aconteceu. Toda

essa tragédia.

Mas não era exatamente isso que você queria, Juan? Life big-

ger than life?

A tragédia? Não. O que eu queria. Era ser...

Maior que o John.

Sim.

E você conseguiu. O que você não contava é que a tragédia

estava incluída no pacote. De ser... Maior que o John.

Incluída no pacote. É. Karaka, meu. Eu nunca pensei. Tragédia?

Instant karma, man. Hehehe. Sim, eu sei, você nunca pensou

nisso dessa maneira, não é mesmo? Nenhum de vocês pensou onde estava se metendo. Não é mesmo? Vocês só estavam vendo um lado

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carlos maltz

da moeda. Só estavam vendo o lado da moeda. Só estavam vendo o brilho do neon. Só estavam querendo ser. “Felizes”.

Neon. Sim. Eu… Tô… Você está “down” cara, você está no fundo. E ninguém vai

tirá-lo daí. Ninguém. Nem eu.

Você só veio me dar o recado.

Sim, eu só vim dar o recado, você vai ter que fazer o serviço

sozinho. Man. You know. Você vai ter que se tirar daí sozinho. Você vai ter que fazer a sua escolha, man. Sozinho.

E o jeito de eu me tirar desse buraco é contar tudo pro mundo.

Sim, você deve contar tudo.

E você, teria contado?

O que é que você acha?

Bom. Sim. Acho. Sim, sim. Com certeza. Acho. Não, tenho

certeza, você teria contado sim. Com certeza. Você não perderia uma oportunidade dessas de ver a cara de bunda das pessoas. Você não perderia uma oportunidade dessas de chocar o mundo. Sim. Mas... Você é... O John, né? Você é um herói, o grande herói do rock. Você nasceu com a porra do dom de chocar as pessoas. Você que nasceu com essa agressividade, essa inteligência estética e essa arrogância que fizeram de você o gênio insuportável e adorável que foi. Foi você quem teve a ousadia de dizer que os Beatles eram maiores que Jesus Cristo. Depois... Largou tudo, largou os Beatles pra casar com uma japonesa maluca. Gravou aqueles discos horrorosos com a “Plastic Ono Band”. Saiu por aí pelado com a japonesa dentro de um saco plástico. Sim. Você é um herói cara. Um “rock’n’roll hero”. Mandou tudo às favas, mandou Paul McCartney às favas. Mandou a rainha da Inglaterra e suas medalhas às favas. Você é um herói cara. Tipo. Você era um canalha também, sim. Violento, arrogante, egocêntrico. Sim. Essa merda toda, sim. Mas... Porra. Você era phoda, eu tenho que admitir. Você falava cada coisa, meu. Você era mais inteligente que todos os outros juntos. Comparado com você os outros caras do rock

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o último rei do rock

parecem todos uns políticos de mierda fazendo média e jogando pra mídia. Comparado com você o Johnny Rotten é um escoteiro bem intencionado. E você não fazia força pra ser daquele jeito. Você não ficava posando de decadente que nem ele. Você. Simplesmente era assim. Mas eu... Sou um fudido. Eu sou nada. Sou uma farsa. Cara.

Mas... Você não queria ser maior que o John? Não era exata-

mente isso que você queria?

Maior que o John? HUAHUAHUA. Só você mesmo cara. Só

você pra vir com essa agora. Maior que o John. Que merda, cara. Que mierda. Por que eu fui nascer naquele dia? Por quê? Se existe um deus ou alguma coisa assim, como pode ter pensado alguma coisa assim pra alguém? Como pode ter permitido que acontecesse alguma coisa assim pra alguém? Como alguém pode viver à sombra de um cara como John Lennon?

Isso pode ter sido apenas uma coincidência. Mas... Bem...

Mas... Você não é maior que o John agora? Você não conseguiu o que queria?

Coincidência? Putasquispariu véi. Maior que o John? Eu sou

um fudido cara, o maior mierda de todos os tempos da história do rock. Eu sou o maior traidor do rock de todos os tempos. Se as pessoas souberem de toda a verdade eu vou ter que morrer, eu vou ter que me matar.

E por que você não fez isso ainda?

Por quê? Por que eu não acabei com essa porra de vida mise-

rável ainda?

É. Por quê?

Por quê? Por quê? Por quê. Porque eu não tenho coragem,

cara. Só por isso. Só porque eu não tenho coragem. Eu sou um bosta total, nem pra isso eu sirvo. Nem pra acabar com essa bosta de vida eu sirvo, nem pra isso. No fundo eu tenho é medo de me matar e a bosta não acabar.

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carlos maltz

E não acaba mesmo. Como poderia? Aquiagora sempre. É.

Mas... Não, Juan, isso não é verdade. No fundo do seu coração você sabe muito bem que tem um serviço a fazer. Você sabe. Essa é a sua redenção, a sua salvação. Você tem que fazer o serviço. É muito importante. Você precisa fazer o seu trabalho, você precisa cumprir com a sua missão. Man. You know.

Missão? Missão? HUAHUAHUA. Missão. Vai dizer que eu te-

nho uma missão. Que eu tenho que contar. Colocar o meu pescoço na lâmina, o meu cu na reta e que essa é a minha. Missão? HUAHUAHUA.

Sim, senhor Juan LMK. Exatamente isso. Essa é a sua missão:

contar pro mundo toda essa farsa.

Eu não estou acreditando. Não estou acreditando. O espírito

do John Lennon, ou uma alucinação do meu cérebro doentio com a cara do John Lennon, aparece aqui e me diz que eu tenho que “salvar a minha alma”, que eu tenho uma “missão”, e que essa missão é contar toda essa presepada pro mundo, que minha missão é me tornar o maior pária da história do rock de todos os tempos.

Well. Man. Isso... De certo modo... Você já é.

Já sou? Sim. Bom. É. Sim, isso mesmo. Sim, já sou. Porra

cara, você precisa dizer as coisas assim, na cara das pessoas? Dizem que as pessoas ficam mais suaves depois de mortas, que os seus espíritos ficam mais... Espiritualizados. Sei lá. Karaka meu. Porra. Você não mudou nada. Acho que você piorou. Yeah. Man. Você preferia que eu mentisse na sua cara como todo mundo está fazendo?

Mentisse? Bom...

O que é que você tem a perder Juan? O que é que você tem a

perder cara? Você já está fudido mesmo. Salve a sua alma. Man.

Salve a sua alma. Salve a sua alma. E vossa excelência pode

me dizer por que é que eu salvaria a minha alma se eu contasse pro mundo toda essa farsa? Por acaso papai do céu vai me dar um pirulito se eu for um bom menino e contar a verdade pras pessoas? Achei

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o último rei do rock

que você fosse um cara durão, pesado, roqueiro, mulherengo. Cara. Francamente. Você falando de salvar a minha alma? Porra, meu. Depois de dizer “imagine there’s no heaven, and no religion too”?

Man. You Know. Meu karma. Caralho. Não acredito que eu ain-

da estou tendo que explicar essas coisas em 2020. Vamos lá. Isso não tem nada a ver, man. Pouca gente entendeu essa parada aí. Pouquíssima gente. Essa música não é um hino ateu, não é nenhuma porra de apologia do ceticismo. Eu... Eu sempre fui um cara religioso. O que pode ser mais religioso do que desejar um mundo em paz com todas as pessoas fazendo parte de uma única irmandade? Eu tava falando é dessa babaquice de “meu deus é maior que o seu”, essa babaquice que é a mãe de todas as batalhas. Sim, essa porra de “minha religião é maior que a sua”, ou da babaquice das babaquices, a pretensão de que a minha religião é a única que presta e que isso me dá o direito de sair por ai metralhado e jogando na fogueira as pessoas que seguem outra religião, ou torcem pra outro time, ou nasceram em uma porra de outro país, ou qualquer merda desse tipo. Man. Durão? Caralho. Eu já tinha deixado de ser antes de... Daquela noite... Todos aqueles anos no Dakota, cuidando do meu filho e da casa.

Cuidando da casa? Cuidando da casa? HUAHUAHUA com o

cu cheio de cocaína e com quinze empregados, no mínimo. Ah não, cara, não me venha com esse papo de ser humano, não me venha com essa conversa de ser uma pessoa melhor. Esse papo hiponga de mierda, eu não tô nessa, eu não tô nem aí, eu quero é que se foda. Eu não quero ser uma pessoa melhor. Não quero um mundo melhor. No future, no future for me, no future for you, Sir John Lennon ou seja lá que espécie de alucinação você for. i don’t care. Meu chapa. I DON’T CARE. Vade retro John Lennon. Nevermind the bollocks… Nevermind, nevermind. Não ligue pros otários, não dê a mínima pros otários. Adivinhe quem eram os otários que os caras estavam falando, meu chapa… Tu ainda não sabe não, porra? Adivinhe quem é o otário aqui, ô meu chapa.

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carlos maltz

Juan. Ouça...

I don’t care. Idon’t care. I don’t care. About this world. I don’t

care… Entendeu?

Mentira.

Mentira o quê?

É mentira que você não se importa. Você está mais pra I’m in

the high-fidelity firstclass travelling set and I think I need a Lear jet…

Mentira que eu. E quem é você? Quem é você. Sir John Len-

non. Você. Você. Você também escuta Fink Ployd? Caralho. Deve ser a trilha sonora do inferno.

Não, fuck you man. Fuck. A trilha sonora do inferno é... Funk.

Eu sou... O sir que você sempre quis ser.

O sir. Que eu... Vá se... Sir, Sir.

Sim, o sir que você sempre quis ser. Sim, eu fiz um monte de

merda. Vivi o meu lado sombrio até não poder mais. O lado negro da força. Sim. Eu era um doido alucinado cheio da grana. Comi todas as gostosas “in” da “Swinging London”. De Paris, New York. Fui um cara violento.

Dormia dentro de um caixão.

Sim, dormia dentro de um caixão, enfiei porrada em minhas

mulheres. Na minha mulher. Rasguei dinheiro. Toneladas. De dinheiro. Você invejou isso também, Juan, você desejou isso também. E conseguiu encontrar. Mas... É mentira que você não se importa. Você se importa sim, Juan. E muito. Você não é esse filho da puta insensível e durão que está querendo parecer. Você se importa sim.

Vá se...

E comecei a chorar novamente. Dessa vez não chorei tanto

como da outra, mas estava muito puto por estar chorando. Eu queria ser um filho da puta, mas era um bebezinho de colo.

Viu?

Viu o quê?

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o último rei do rock

Viu como você se importa? Viu como o seu coração está feri-

do? Pra ter um coração ferido, o cara tem que se importar, o cara tem que ter um... Coração. You Know.

Grande bosta, bem que eu preferia não ter nenhum.

Eu sei, Juan, eu também tentei fazer de tudo pra me livrar do

meu, eu fiz de tudo. Quase consegui. Acabar comigo. Acabar com tudo. Eu fiz de tudo.

E tu conseguiu?

Olhe pra história da minha vida e decida você mesmo. Eu sofri

pra caralho Juan. Eu sofri pra caralho. Não queira nem saber o que é isso. Você abrir o seu coração completamente. Pra uma pessoa. E depois ter que se separar dessa pessoa. A Yoko fez um bom trabalho, ela sabia o que estava fazendo. Estava me fazendo ver o valor das coisas. Que realmente tem valor.

Porra e depois ainda aparece um bossal e atira uma bomba na

embaixada. Acho que é por isso que eu nunca abri pra ninguém.

Faz parte do Karma. Nunca abriu seu coração pra nin-

guém? Sim, você e a torcida do Flamengo, man. Você e os outros 99,999999999% da humanidade que se cagam de medo de abrir os seus corações pro amor. Mas espere. Até você ter o seu filho.

Filho? Tô fora véi.

Quem sabe?

Não, dessa eu tô fora mesmo. Sem chance. Eu nunca vou ter

um filho num mundo calhorda desses... Mas. Você sabia o que ia acontecer quando disse: “Christ you know it aint easy. You know how hard it can be. The way things are going, they gonna crucify me”? Isso foi uma espécie de autoprofecia? Uma espécie de “crônica de uma morte anunciada”? Você sabia o que ia acontecer? Você queria morrer?

“Hapiness is a warm gun, oh yes it is”, you know. Tudo faz

parte do karma… Vem chegar a hora de você entender essas coisas. Você continua querendo ser maior do que o John?

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carlos maltz

Fugiu do assunto legal, né? Tudo bem. Deixa pra lá. Se eu

continuo querendo? Acho... Acho que não. Mas. Depois do que aconteceu? Depois que o amor daquele filhadamãe o levou a te matar pra ficar famoso por ser o cara que te matou, você continua acreditando naquela bobagem hiponga de que o amor é o remédio pra tudo?

Não entra nessa de julgar as pessoas, man, você não conhece

nem metade do que realmente aconteceu. Mas... Amor... Sem dúvida nenhuma, sim. Cada vez mais. Só o amor pode ser. Só o amor. Ninguém mata por amor. As pessoas matam. Pela falta dele. Pela sede. De... Poder.

E por que a humanidade não aprende isso de uma vez?

Fear. Medo. Man… You know.

Medo? Temos medo do amor?

Sim, as pessoas morrem de medo do

zem de tudo pra fugir do

Amor. As pessoas fa-

Amor. Veja todas esssas crianças enlou-

quecendo no mundo. Todas essas crianças abandonadas por que os seus pais preferem colocar a sua atenção e o seu Amor em qualquer bobagem, menos nelas, que são os seus bens mais preciosos. Veja quantas pessoas estão desistindo de ter filhos. Por que não querem fazer nenhum sacrifício em nome do Amor. Por que não tem tempo pra perder com os outros, em sua busca desenfreada pela... Felicidade. Quantas mulheres arrancando os seus úteros, os seus peitos. Quantas mulheres se automutilando. Veja. Atualmente. Uma mulher amamentando. Precisa se esconder, que nem um judeu na Alemanha Nazista. Nós só toleramos peitos em filmes pornôs. As mulheres estão morrendo de medo de ser... Mulheres, de serem mães. Elas precisam ser. “Livres”. Livres do seu sentimento, do seu Amor. Para poderem ser, assim como os homens, escravas perfeitas e totalmente disponíveis para as corporações. “Escravos da felicidade”. As pessoas morrem de medo do nós não mandamos no

Amor.

Por que sabem. You know. Que

Amor. Ele não se curva. Man. Ante a nossa

estupidez. E os nossos desejos de poder e controle.

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o último rei do rock

Tá bom, pastor João Limão. Karaka, véi. Que mierda. O cara

morre, vira candidato a santo, e eu tenho que ficar aqui ouvindo sermão. Imagine (imagine?) quanto tempo você ia suportar uma conversa dessas no tempo em que era... Era... É? John Lennon?

Mas o caminho é esse Juan. O caminho é o

outro jeito. É o único caminho. Só o Amor é real.

Amor, não tem

Ah cara, beleza, tá bom. Eu tô fudido demais pra discutir qual-

quer coisa. Sim, você queria ter vivido a minha vida Juan, milhares de pessoas gostariam de ter vivido a minha vida, ou pelo menos acham que gostariam de ter vivido a minha vida, porque elas só se lembram do neon, só se lembram do meu nome em letras garrafais nas capas dos jornais. Elas pensam no meu nome em letras garrafais. Mas será que elas aguentariam o tranco de ser John Lennon? Será que elas aguentariam. O karma? A dor? Será que essas pessoas todas suportariam o sofrimento que eu passei por ter sido quem eu fui? Pense. Quantas pessoas agora gostariam de estar no teu lugar, quantas pessoas gostariam de ser Juan LMK?

Se elas soubessem.

Sim, se elas soubessem. Se você soubesse Juan, se você sou-

besse tudo o que a sua vida ainda guarda, tudo o que tem dentro dela, todo o potencial que tem em sua vida, Juan LMK.

E qual é o potencial que tem em minha vida, senhor John Len-

non ou senhor alucinação do meu cérebro? Qual é o potencial?

O potencial de se libertar. O potencial de conhecer a verda-

deira liberdade, que é a liberdade de escolher o que você quer ser. A liberdade de ser o dono de sua vida. Você quer continuar sendo o rei da ilusão, ou quer ser uma pessoa real, Juan Leno Montonero Kempes? Quer conhecer o potencial de libertar, de salvar a sua alma, de ser fiel a você mesmo, de ser fiel ao seu coração, o potencial de reverter essa merda toda, o potencial de escrever um belo capítulo na história do rock, um belo capítulo na história do ser humano, um belo capítulo na história da humanidade sobre esse planeta. You know.

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carlos maltz

Sim, Juan LMK pegue a sua vida, agarre a sua vida, ela é sua, ela te pertence, você pode mudar ela toda se tiver a coragem de desistir dessa merda em nome da sua alma. Quando eu falo de salvar a sua alma não estou falando daquela bobagem da religião, daquela bobagem formal, de fachada. Não estou falando das pessoas que pagam aos sacerdotes de todas as religiões decadentes do mundo pra que seu dinheiro compre pra eles um “lugar no céu”, que isso não existe. Ninguém vai entrar no “paraíso” com um cartão de crédito ou dando uma de bom moço. Man.

Paraíso. Huuummm. Quem te viu e quem te vê, hein, senhor

Lennon. Ou senhor alucinação. “Imagine theres no heaven”.

Mas não é disso que eu estou falando. Juan. Eu já expliquei.

Presta a atenção man. You know. Não estou falando dessa bobagem de obedecer aos padres, ou obedecer a quem quer que seja pra ir pra algum lugar paradisíaco depois que você morrer. Obedecer passivamente, sem raciocinar por conta própria. Eu estou falando é do aqui e agora. Estou falando de você transformar esse inferno em que se encontra sua vida agora num paraíso, num paraíso aqui e agora, Juan.

E se eu contar tudo eu vou estar me libertando desse infer-

no?

Exatamente.Você vai tirar esse chumbo do seu coração.

Mas. Só isso?

Só isso? Só isso? Não, meu caro não é só isso, que isso não é

só. Isso. Desistir dessa merda toda, abrir mão desse império de mentira, desse paraíso de ilusão, que na verdade é o próprio inferno, não é só isso. Quantas pessoas que você conhece fariam isso? Quantas pessoas abririam mão de uma migalha qualquer de poder, mesmo que seja um poder corrompido, que só serve para transformar a sua alma em chumbo, fariam isso? Quantas pessoas você conhece que fariam isso? You know, man. Desistir do poder, abrir mão do poder é das coisas mais caras que existem, meu caro. Você não queria ser

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o último rei do rock

“maior que o John”? Pois chegou a sua oportunidade, Juan, pois isso foi o que o John fez de maior. O John desistiu, ele abriu mão de ser o John, pra poder se transformar no John, no verdadeiro John. Desistiu de ser um personagem chamado John, pra ser uma pessoa real chamada John.

Não sei. Não sei cara. Não sei se eu acredito nisso. Pode ser

que você tenha desejado morrer. Desejado ser assassinado. Sim. Você mesmo disse uma vez que o assassinato era uma espécie de crucificação. Morrer assassinado, morrer jovem. Como um semideus, como o messias do rock que você queria ser. E realmente se tornou. Karaka. E eu. Eu. Eu nem sei se existe um “verdadeiro Juan”. Eu fui cover a vida inteira. Minha vida toda é um cover mal feito. E o pior é que essa mierda é o que eu tenho de melhor. É a única coisa que eu tenho. O que vai ser de mim se eu deixar de ser o “Juan”? Será que existe algum Juan além desse? Será que existe uma pessoa além desse personagem que foi tudo o que eu sempre quis ser?

E como você vai saber se não arriscar?

E se eu decobrir que não tem?

E o que você tem a perder? When you got nothing, you got

nothing to lose, com o perdão do chavãozão…

Não sei…

Tá vendo como é? Tá vendo como é o apego? O cara tá fudido,

tá morrendo, tá num buraco de merda. Mas não larga o osso. Não larga a porra do osso. You know.

Não sei se a conversa continuou ou se ela acabou ali. Não

me lembro. Infelizmente. Ou felizmente. Lembro que dormi profundamente depois. Dormi por horas e horas. Muitas horas. Não lembro se eu sonhei ou não. Acho que não. Eu estava exausto. Estava exausto daquela “conversa” e estava exausto de tudo. Estava exausto da minha vida toda. Estava exausto da mierda toda.

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27. Mas nada tanto assim

Acordei no outro dia de manhã e fiz o que qualquer pessoa

normal faria no meu lugar: nada. Não fiz nada, joguei aquela “conversa” maluca na lixeira da minha memória, me fiz de morto e toquei pra frente, que a música tava bombando cada vez mais. “Liberta-me” já era o maior sucesso comercial da música pop de todos os tempos em todas as categorias. Na verdade, aquele encontro com o espírito do John, ou com alguma alucinação do meu cérebro com a cara do John Lennon, tinha me feito bem. Eu saí do buraco em que me encontrava, pelo menos por algum tempo. Voltei a frequentar as festas das altas rodas sociais internacionais para as quais era sempre convidado. Voltei até a ir pra cama com algumas socialites, cantoras, modelos e atrizes que estavam bombando no momento. E consegui, com o auxílio luxuoso de alguns comprimidinhos, comê-las. Comecei e me sentir poderoso novamente, muito poderoso. Entrei numas que aquele sucesso todo era algo que eu “merecia”, sei lá por que razão. Comecei a ver o lance do meu nascimento de outra forma. Comecei a pensar que eu era realmente um predestinado com uma missão, como o “John” tinha me revelado, mas não a missão que ele tinha me revelado, e sim outra, muito maior, a missão de ser o que ele sempre quis ser: um messias, um profeta do rock. Sim, era essa a minha verdadeira missão, que ele não me disse porque ficou com inveja do meu sucesso. Sim, ficou com inveja do tamanho do meu sucesso,

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carlos maltz

que já era umas dez vezes maior do que o dele, pelo menos no que se referia aos números. Sim, era isso, o espírito de John Lennon se apresentou para mim por que estava com inveja de mim, inveja do sucesso que eu estava fazendo e do tamanho que o meu nome estava adquirindo. Sim, o cover estava ficando maior do que o original, o filho estava superando o pai. John Lennon fora mais famoso que Jesus Cristo, e eu era mais famoso que John Lennon. Eu também podia ser o que ele havia sido. Eu também. E como eu gostava daquilo tudo. Como eu gostava daquilo tudo. Como eu gostava de desfilar no meio dos poderosos, dos “vencedores”. E de ser bajulado por todos eles. Como eu gostava de estar no centro das atenções do beaultiful people do mundo inteiro. Todo mundo de olho azul e bananateknopop na cabeça. Eu falava, falava, falava. Um monte de asnices superficiais, egocentrismo sem noção, chato pra carai. E o povo bebia minhas palavras como se fosse leite das tetas da própria musa. Como eu gostava daquela merda toda. Como é que eu iria abrir mão de tudo aquilo? Como é que eu iria fazer isso? Nem fudendo, meu caro, nem fudendo, sir John. Como eu gostava daquela mierda toda. É claro que eu dizia que não, que não gostava. Especialmente pra mim mesmo. Eu fazia a maior pose de blasé pra mim mesmo. Dava uma de artista maldito, artista incompreendido, sei lá. Já que a porra toda era uma farsa mesmo, por que não vivê-la até o fim?

Eu podia ser Baudelaire fake, Jim Morrison fake, Oscar Wilde

fake. Eu podia ser o cover chinês do Elvis da feira do Paraguai. Quem se importava? Quem preferiria o original? Quem se lembrava do original? As pessoas queriam alguém pra bajular. Queriam pés pra beijar. Ídolos pra adorar. As pessoas queriam o seu bezerro de ouro, e ele agora era eu. E qual o problema disso? Qual o problema disso? Por que não dar-lhes o que eles queriam?

Será que tinha tanta diferença assim entre eu e os caras que

tinham alcançado o sucesso pelo seu “talento”? Passei a questionar tudo isso, essa história de talento. De repente eu tinha um puta dum

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talento. Um talento fake, tudo bem. Um talento para ser o fake. Um talento para ser o maior ídolo fake de todos os tempos. Mas aqueles não eram tempos-fake? E será que este não era o maior talento numa época fake? Passei a me ver de outra maneira. Passava horas diante do espelho admirando a minha “singularidade”. Não falava com mais ninguém. Não dava conversa pros perdedores dos meus amigos do passado, que eles me deprimiam. Nem com a minha mãe eu sentia mais vontade de falar, se bem que na maior parte do tempo de nossas conversas, ela também só ficava me bajulando e agradecendo todas as maravilhas do mundo pós-moderno de que ela agora podia desfrutar por causa do meu sucesso. Cheguei a pensar que eu poderia até transar com ela, se eu quisesse. Isso me colocaria na frente de todos eles. Do John, do Sid, do Kurt. Passei a entender melhor a coisa toda do jeito que o Bhardian via, e voltei a me encontrar com a minha namorada preferida: a heroína. Os próprios caras que o Bhardian havia colocado pra me “proteger” estavam passando o Diesel. Mas resolvi pegar leve dessa vez. Não tava injetando, só cheirava. Cheirava todo dia. No máximo uma vez por dia. Bom, umas quatro vezes por dia. Dez?

Às vezes dez. Toquei a mierda toda pra frente. Dicumforça.

Eu não ia abrir o meu bico pra contar aquela história nunca. O John que se fudesse. Ele mesmo não disse que os Beatles eram os piores filhasdaputa? Que eram os caras que fariam e fizeram qualquer coisa pra conseguir o sucesso que tiveram? Pois eu era maior que o John: Eu era mais filhadaputa que o John. Mas a situação estava ficando meio esquisita.

O banana tava dando mierda. Mierda grande. Muito mais mier-

da do que os caras imaginaram que pudesse dar. Parece que a quantidade de gente endoidando, que eles calcularam que seria “residual”, estava virando um problema seríssimo. Também tava aparecendo uns estudos, sei lá de onde, que mostravam que o índice de criminalidade tinha aumentado absurdamente desde que o povo tinha começado a

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instalar a nanocoisa na cabeça. É engraçado, todo o papo dos caras, o discurso “científico” era no sentido de que o aumento da capacidade de raciocínio ia trazer uma grande evolução pra humanidade e talz, mas a real é que o povo que tava aumentando a capacidade racional tava ficando mais doido e mais maligno ainda. Enfim, o mundo tava ficando apavorado com a perspectiva que se anunciava. Pelo menos as pessoas que não tinham entrado na febre da nanomaravilha. Eram bem poucas no começo, mas estavam começando a aumentar. Ao que parecia, ao contrário das previsões otimistas da ManGod e dos cientistas mais renomados do mundo, o ser humano não estava ficando melhor por ter se tornado mais inteligente. O departamento jurídico da ManGodCorp, que era poderosíssimo, estava trabalhando dia e noite. Muitos países já haviam proibido a instalação de novos implantes, o que também gerou uma onda de protestos violentos nas ruas das principais cidades do globo. Em resumo: Caos.

Teve um caso até que ficou famoso, vocês devem se lembrar.

O dos hackers transexuais neonazis romenos. Pelo que entendi, os caras foram dos primeiros a fazer o implante. E fizeram vários cada um, o que era terminantemente proibido. Não sei como eles conseguiram, a parada era superfiscalizada. Bom, pelo menos os caras da ManGod diziam que era. O fato é que os romenos superaditivaram o cérebro deles pra poder conseguir meios de sabotar a internet. E conseguiram. Parece que eles conseguiram encontrar alguns furos no DNS, o “Domain Name Service” da rede, que funciona como uma espécie de dicionário que transforma nomes de domínio em linguagem cotidiana, como ManGodCorp.com, em endereços IP (Internet Protocol) de doze dígitos, que o sistema entende e utiliza pra determinar o tráfego de um servidor a outro. Os neonazis malucos com seus cérebros hypersarados induziram, sei lá eu como, o servidor DNS de seu provedor de internet a pensar que ele sabia a localização de algumas páginas inexistentes de uma grande empresa chinesa. Assim que o servidor aceitou como legítimas as páginas falsas inventadas

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pelos caras, passou a aceitar qualquer informação que eles adicionavam sobre a tal companhia. Na verdade, os caras encontraram uma maneira de “hipnotizar” o sistema DNS fazendo-o acreditar que eles eram uma fonte confiável de informações gerais a respeito de qualquer domínio em toda a internet. O sistema então estava pronto para receber qualquer informação que eles desejassem fornecer sobre a localização de qualquer servidor na rede. A partir daí, os caras começaram a entrar em contas, sacar dinheiro, confundir informações, enfim, sabotaram em poucas horas, milhares de usuários particulares e empresas em toda a China.

Parece que a internet da China, por ter sido limitada e monito-

rada pelo governo durante muitos anos, era mais fácil de sabotar do que a dos EUA, por exemplo, que exigiria uma complexidade muito maior e um número também infinitamente maior de sabotadores para dar o mesmo resultado. O fato é que aquela história toda gerou uma mierda muito grande na China e uma crise gigante pro projeto “NTZSCH-01” e pra ManGodCorp. A partir dali as coisas não seriam mais do mesmo jeito. A opinião pública mundial, essa grande deusa da nossa “idade mídia”, começou a rosnar e rugir na direção do tótem que até pouco tempo atrás era a face da sua divindade. O que parecia ser uma vitória monumental passou a ser, passo a passo, uma derrota não menos impressionante e inevitável, como a do Terceiro Reich depois da batalha de Stalingrado.

Meu novo entusiasmo também durou pouco. Em menos de

três meses depois do “encontro” com o John, no bojo daquela confusão toda, eu já estava voltando praquele mesmo estado depressivo em que me encontrava antes. A heroína aliviava a dor, mas eu já estava cheirando trocentas vezes por dia, o que aumentava a noia, e estava me deixando preocupado. Eu ficava lembrando as palavras “dele”. Ficava lembrando, lembrando. O tempo todo eu lembrava. Ficava no meu quarto pensando. Parecia que o “John” estava lá o tempo todo. Parecia que eu ouvia a voz dele o tempo todo. Você tem uma missão,

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man. Você tem uma missão. Porra se eu contasse pro mundo o lance da manipulação pelas frequências, naquele momento em que o projeto NTZSCH-01 estava sendo tão duramente questionado, seria o golpe de misericórdia na ManGodCorp e no Bhardian. Os caras estariam fudidos. Seria o golpe fatal. Se o mundo soubesse que o sucesso de “Liberta-me” era uma manipulação. Que o bananateknopop estava interferindo no livre arbítrio das pessoas, seja lá o que isso ainda quisesse dizer àquela altura do campeonato, seria o golpe fatal. O gigante iria desmoronar. Sim, o golpe seria muito duro, os caras tavam blefando, eles sabiam que tinham jogado tudo naquele projeto e que o momento era extremamente delicado, nem em seus cálculos mais pessimistas eles imaginaram que estariam numa situação daquelas.

Eu tinha um poder muito grande em minhas mãos, sim, eles

estavam blefando comigo, eles sabiam do poder que eu tinha em minhas mãos naquele momento. Eu precisava contar. Eu precisava cumprir minha missão. Será que o gigante iria desmoronar mesmo? Que missão porra nenhuma, era inveja do “John”. Sim. Não, eles iam se safar dessa. Bhardian e Faiq não pareciam estar muito abalados. Eles iam se safar, a gente ia se safar. Eu ia continuar sendo Juan LMK, o maior ídolo pop de todos os tempos. Eles iam se safar sim. Eu tinha certeza. Acho. Pelo menos nas conversas que eu tinha tido com eles nos últimos meses. Não, eles não pareciam estar muito abalados, apesar dos ataques à ManGod e ao projeto NTZSCH-01. Eles iam se safar sim. Não, eu ia ficar de bico fechado. E se eu falasse a verdad? Talvez virasse um herói. Que herói porra nenhuma, meu, eu ia ser execrado. Ia ser executado, crucificado. As pessoas iam querer me matar. Talvez eu devesse me matar. Não, eu nunca me mataria. Judeus não dão bons suicidas, nós somos sobreviventes. Sim, sobreviventes. Eu tinha que sobreviver. Eu não ia contar nada. Nunca. Eu vou morrer de bico fechado. Nunca vou contar nada disso pra ninguém. Nunca. Mas eu nem sou judeu. Minha mãe... E se eu tivesse mesmo uma missão?

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o último rei do rock

Pensei em procurar a Poly. Ela era doida, mas achei que numa

situação daquelas era melhor conversar com alguém doido. Achei que ela podia me ajudar. Foi a única pessoa em quem eu pensei. Peguei o cartão do SSS que o Bhardian me deu e que eu nunca mais usara. Entrei no SenSoSex.

A sala dela tava bombada como sempre. Lá estava a minha

musa, a minha sacerdotisa. Lá estava a voz da minha alma vestida com um babydollzinho preto e os infalíveis scarpins, dando conselho praquele bando de manés carentes. Assim que ela viu o meu nome, perguntou se eu queria ir prum PVT com ela. Eu disse que sim, e em poucos minutos estava a sós com a minha deusa. Como sempre, eu ficava muito nervoso quando falava com ela.

– Oi Juan.

Oi Poly.

– Pensei que você tivesse morrido.

O quê? Bom. É...

– É? O quê?

É sim. De certo modo eu morri. Putz.

– Putz?

É, uma expressão.

– O que quer dizer?

Algo como “Shit”.

– Ahhh, Sim. Shit o que Juan?

Shit. Por que nossas conversas tem que ser sempre tão filosó-

ficas?

– Você prefere falar de outra coisa? Quer que eu mostre os

meus peitos ou os meus pés?

Não. Não, por favor. Poly.

– Hum. Você está feliz?

O quê? Ah não. Não estou nessa não, não sou um “buscador

da felicidade”.

– O que é isso?

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carlos maltz

Hã. Nada. É que o John...

– Quem?

O. É. Bom. Um amigo.

– Sei. O que seu amigo falou sobre a felicidade?

Ele disse. Bom. Ele citou as palavras de um irlandês.

– O Bono?

Não, não. Existem outros irlandeses além do Bono.

– Bem. Hehehe. Sim, é claro. Eu sei. Você lembra o nome do

cara?

Hã? Ah. George alguma coisa.

– Sei. Você sabe quem é, Juan?

Não. Um dramaturgo, sei lá.

– Pois é. Mas o que é que esse cara falou?

Bom, ele disse algo a respeito de o inferno ser a “pátria dos

buscadores da felicidade”. Ou algo assim.

– É mesmo, Juan? Por quê?

Porque a felicidade é algo que quanto mais você procura, me-

nos você encontra, ou algo assim.

– Ah, sim, sim, claro, isso faz sentido mesmo.

Isso faz sentido pra você, Poly?

– Sim, Juan, claro, claro. Claro que faz. Por que a pessoa que

fica ansiosa pra encontrar a felicidade já está se afastando dela.

Sim, é mais ou menos isso o que o meu amigo me disse.

– É claro. Juan. Veja como funcionam as coisas aqui no SSS.

São centenas de salas, centenas de garotas. Os caras entram e ficam pulando de sala em sala em busca de algo maior, algo melhor, em busca de algo mais excitante, mais, mais, mais. E isso nunca para. O cara gasta a grana toda que ele tinha e continua insatisfeito. Gasta tudo o que ele tinha e o que ele não tinha. E continua insatisfeito.

Tipo… I cant get no. Satisfaction. – Exato, and I try, and I try and I try. Que nem as drogas, né?

Mas… Acho que você não entrou aqui hoje pra falar dessas coisas, né?

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o último rei do rock

Não. Não mesmo.

– O que está acontecendo? Sobre o que você quer falar Juan?

Bom. Eu não sei nem por onde começar.

– Começa por onde tá doendo mais.

Doendo. Karaka.

– O que significa Karaka?

Karaka? Ah. Nada. Não esquenta com isso, é só uma expres-

são. Como “shit”.

– Karaka man, você só fala shit. Hehehe

Hehehe. É.

– Tá tudo doendo, Juan?

Doendo? Tá. Como você sabe?

– Eu conheço bem isso.

Conhece?

– Sim. Conheço bem. É quando passa o efeito da droga, né?

Você está com vontade de desistir. De tudo?

Desistir? Você quer dizer... Da minha vida?

– Sim, da sua vida. Ou. Dessa vida que você está vivendo agora.

Dessa vida?

– Sim. Por que não, Juan?

Por quê?

– É, por que não? Você está profundamente infeliz. Juan. O

que você tem a perder?

Não tem como enganar você, né?

– Não, Juan, não tem. Essa é minha profissão.

Você devia estudar Psicologia, sei lá.

– Não tenho grana pra isso. E tenho medo.

Medo?

– É. Medo de desaprender.

Desaprender o quê?

– Desaprender o que eu já sei. O que eu... Nasci sabendo. A

olhar pras pessoas.

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carlos maltz

E por que a faculdade de Psicologia ia te levar a desaprender

a olhar pras pessoas? Eu achei que as pessoas faziam a faculdade de Psicologia pra aprender a olhar pras pessoas.

– Hahahaha.

Do que você está rindo?

– Disso que você falou, de as pessoas irem pra faculdade pra

aprenderem a olhar pras pessoas.

Qual é a graça?

– Como é possível que alguém aprenda isso sentado em uma

sala de aula?

Bom. Sei lá. Devem existir técnicas, teorias.

– Mas é exatamente disso que eu tenho medo.

Do quê? Da técnica?

– Sim.

Mas você não precisa ter medo da técnica. A técnica não é

nenhum demônio. A técnica é uma ferramenta para a evolução da humanidade. Algo assim. Sei lá. Acho

– Não sei, Juan, não sei. Eu tenho medo. Acho que o maior

problema desse mundo é a técnica. A técnica está matando as pessoas que estão deixando de serem pessoas para serem... Técnicas.

Mas você... Você também deve ter as suas técnicas, não é

mesmo? Agora mesmo, como é que você soube que eu estava fudido, como é que você soube que eu não estava feliz?

– Bom, no seu caso é fácil, você nunca está feliz. Mas... Ah, é

fácil Juan, eu não tenho que usar técnica nenhuma, eu apenas olho pras pessoas e vejo como elas estão. Isso não acontece com você também?

Não.

– E o que você vê quando olha pras pessoas, Juan?

O quê? Pessoas? Eu. Não sei. Nada. Sei lá.

Novamente aquela coisa começou a crescer na minha barriga.

Logo ela ia chegar no meu peito e logo eu ia estar chorando como

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o último rei do rock

um bebê novamente. Karaka, eu ia começar a chorar que nem um bebê novamente. E na frente da Poly. Bom. Na frente. Mais ou menos. Quer dizer, eu em algum lugar da Ásia e ela lá na Europa. Sim, mas... Começou. Eu comecei a desmoronar. Que nem uma avalanche de neve em uma montanha congelada. Pensei em apertar o DELETE e simplesmente cair fora. Mas. Não... Eu não podia fazer isso. A Poly era a última pessoa real que sobrara na minha vida depois que a Mel... Só sobrara ela. Embora fosse uma profissional de sexo virtual em algum lugar desconhecido de outro país e com um nickname.

Ou talvez por isso mesmo.

Sim. Ela era a última pessoa real com quem eu mantinha al-

gum contato ainda. Eu simplesmente não podia me dar ao luxo de perdê-la. Eu já tinha perdido a Mel. Eu já tinha me permitido perder a Mel. Eu ia ter mesmo que desmoronar diante dela. Desmoronei. Chorei. Muito. Rolei no chão de tanto chorar. Chorei muito, muito mais do que com o “John”. Era muito mais fácil. Eu não precisava fazer pose, nenhum papel. É estranho. Como aquela menina realmente tinha o dom de abrir o meu coração. Sim, ela tinha o abridor que abria a tampa do meu peito enlatado e entalado. Como era bom chorar diante dela. Como era bom. Como era seguro. E ela não arredou pé. Eu devo ter passado horas chorando, sei lá. O tempo simplesmente sumia quando eu entrava naquela onda de abrir a tampa do meu peito. E ela não arredou pé. E não disse nada. Não perpetrou nenhum paralelepípedo do óbvio politicamente correto, ou alguma bobagem “positiva”, “espiritualizada”. Sei lá. Ela não disse nada. E não saiu dali. Ela era a pessoa mais estranha que eu já havia conhecido mesmo. Ela ficou ali. Que profissão estranha a dela: Puta filosofal.

Parei de chorar. Ela não disse nada. Ficamos um tempo mais

ainda em silêncio. Depois ela disse:

– Tá melhor?

Tô. Muito obrigado.

– Pelo quê?

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carlos maltz

Por não ter dito nada.

– Ah, nada.

Você já passou por isso também, Poly?

– Isso o quê?

Chorar assim.

– Ah. Já. Claro.

Você é tão nova.

– Eu sei.

O que aconteceu. Ah. Quer dizer. Desculpa, se você não quiser

falar.

– Não, tudo bem. Os meus pais...

O que houve com eles.

– Morreram em um acidente de carro. Meu pai tinha proble-

mas com o álcool. Capotou. Com eles dois dentro.

Karaka, putz. Desculpa. Meu pai também tinha problemas com

o álcool.

– Ah, não, tudo bem. Já faz dez anos.

Sua mãe era fã dos Beatles?

– Minha mãe? Não. A minha avó que é. Por quê?

Avó. Putz. Karaka. Por causa do seu nickname. Polythene.

– Ah, sim. Minha avó. Ela chamava minha mãe assim: Polythe-

ne Pam. Quando a minha mãe era menina. Sabe? É o nome de uma música dos Beatles, né? Depois quando eu entrei no SSS eu adotei esse nome. Sei lá. Foi o que veio na minha cabeça na hora que eu tive que escolher algum. Só isso. Coincidência.

Sei. Você mora com ela. Quero dizer. Com a sua avó?

– Sim. Ela está aqui no quarto ao lado.

Karaka. Ela. Sabe?

– Sabe o quê? Do lance do SSS?

É.

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o último rei do rock

– Sabe. Quer dizer. Bom ela finge que não sabe. Ela... Ela sabe

mais ou menos. Ela não sabe exatamente, mas ela. Também não pergunta de onde vem a grana.

Você que sustenta a casa?

– É.

Com a grana do SSS?

– É.

Karaka.

– Karaka o quê?

Você. Gostaria de poder sair dessa vida?

– Não sei.

Não sabe?

– Não.

Você gosta dessa vida? Quero dizer. De ter que se vender.

– O que você acha?

Não sei. – Não sabe? Não.

– Não é exatamente a mesma coisa que você está fazendo,

Juan?

Bom, não. É.

– Bom, quer dizer. No seu caso tem a sua arte, né?

Arte? HUAHUAHUA!

– Arte. Não? Juan.

Ah. Se você soubesse. Tem coisas que eu não posso falar

aqui.

– Entendo. Tem a ver com você querer sair da vida que está

vivendo?

Sim. E você. Poly. Tem a sua arte aqui também, né?

– Arte? Sim tenho. Acho.

Você gosta?

– Acho que sim.

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carlos maltz

Karaka.

– O quê?

Você é uma pessoa muito sincera mesmo.

– E o que mais que eu tenho, Juan? Além da minha sincerida-

de? Nem muito bonita eu sou.

Ah, eu não acho, acho você maravilhosa. Quer dizer. Você tem

estilo. Olha a sua sala. Sempre lotada.

– Ah, esses caras não vem aqui por causa da minha beleza. Eles

vêm por causa da minha dor. E da minha loucura. Que nem você, Juan.

Eu. É.

– Eu nunca poderia imaginar.

Imaginar o quê?

– Que você não é feliz fazendo o que faz, Juan.

Ah. É como eu falei. Eu... Tem muita coisa aí. Muita coisa que

eu não posso contar.

– Sei. Agora parece que você está um pouco melhor.

Sim. Melhor. Muito melhor. Poly. Muito.

– Que bom, Juan. Agora eu vou precisar sair.

Sair? Quer dizer. Ficar off line?

– Sim. Nós estamos aqui há umas quatro horas.

Quatro horas. Karaka, me desculpe eu...

– Não precisa se desculpar. Eu gostei de ficar com você.

Você gostou? Puxa. Eu...

– Não fala nada não, Juan, não precisa.

Não vou falar mesmo, se não, não vou conseguir segurar o

choro de novo.

– Não, não, por favor, Juan, por favor, agora não, agora eu

preciso sair.

Sim, sim, claro. Claro.

– Adeus Juan, até mais.

Adeus.

Encostei a cabeça no travesseiro e dormi. Um pouco.

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28. Vermelho

Acordei no outro dia e não consegui levantar da cama. Sim-

plesmente fiquei deitado com os olhos abertos. Eu poderia ficar ali até o final dos tempos. Não sentia nada, nem dor, nem culpa, nem alegria, nada. Meu corpo pesava umas duzentas toneladas. O telefone tocou, era o Thorwald, meu roadie de palco. A gente tinha um show pra fazer. Caralho. Nem me lembrava disso e nem em que país eu estava. Podia ser qualquer um. Já não fazia mais diferença nenhuma. Desci que nem um zumbi. Cumprimentei as pessoas, entrei no carro junto com a TaYmmYnnY. Se alguém me dissesse que ela era um robô ou uma múmia eu teria acreditado naquele momento. Olhei pra cara dela. Tudo esticado. Ela não tinha absolutamente nada pra dizer. Nunca tinha absolutamente nada pra dizer. A gente nunca conversava. A gente passava horas juntos e nunca tinha absolutamente nada pra dizer um pro outro. Karaka, ela era uma menina ainda. Pra que aquela esticação toda?

Dinheiro sobrando.

É. Como eu detestava aquela mina. Pra mim ela nunca pas-

sou de uma chupadora de picas imaginárias. Pensei em pedir pra ela me pagar um boquete ali mesmo no carro, só pra ver a cara dela. Comecei a rir feito um abilolado. Ela não entendeu nada. Pensei que eu podia matar ela estrangulada também. Seria uma maneira de me livrar daquela vida amaldiçoada. Eu iria pra cadeia, viveria coisas de

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verdade. Comeria comida ruim de verdad, seria enrabado, talvez fosse assassinado. Fomos para o show.

Um estádio lotado, pra variar. A mesma multidão maníaca e

doida por qualquer coisa real. Os mesmos gritos histéricos, os mesmos guardas sedentos por sexo, os mesmos roadies sedentos de sexo, o mesmo show patético, as mesmas modelos, atrizes, cantoras, etc., esperando ansiosas no camarim para saber quem seria a escolhida ou as escolhidas que iriam passar a noite com o maior ídolo do rock de todos os tempos. Eram mulheres belíssimas, orientais, eu estava em algum lugar da Ásia, com certeza. Era como se nada daquilo fosse comigo. Eu sentia algo estranho pra valer. Se eu já tivesse morrido antes diria que era uma sensação de morte, eu nem sabia ainda o que estava por vir. Mas não estava exatamente desejando a morte, era estranho. Quando o show terminou fomos para o camarim. Tranquei-me no banheiro com alguma daquelas orientais e cheirei cocaína. Acho que a mulher me chupou. Acho que ela usava um vestido vermelho desses que é fácil de colocar os peitos pra fora. Sai do banheiro e me joguei num sofá vermelho com cheiro de casa noturna, dessas que ficam muito tempo fechadas.

O Bhardian apareceu com seu tradicional otimismo embalsa-

mado. Lá vinha ele com o seu mantra: felicidade, oportunidade e orgulho! Resolvi contar quantas vezes essas palavras apareceram no seu discurso. Parei lá pela centésima quinquagésima qualquer coisa. Mas ele disse algo diferente dessa vez, algo que me encheu de alegria, dentro das possibilidades de eu sentir alegria naquela altura do campeonato. Ele disse:

– Juan, meu querido, você está com uma aparência horrível.

Precisa tirar uns dias. Nós vamos ter uns vinte dias de recesso até o próximo show. Vá para alguma praia na Tailândia, se você quiser eu posso chamar aquela garota que ficou com você quando a gente esteve lá na última vez. Lembra, aquela moreninha baixinha? Ela trabalha pra nós agora. Você até gostou dela. Um pouco. Lembra?

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o último rei do rock

– Quero passar uns dias em Brasília. Minha boca falou.

– Brasília? Mas Juan. Tem certeza? Puxa, você pode ir para

qualquer lugar do mundo que quiser. E vai pra Brasília. Eu hein? Hehehehe.

Eu sei. Mas eu preciso. Eu quero. Eu. Preciso.

– Você precisa Juan? Bem talvez seja bom mesmo. Nós po-

demos armar um esquema quente com a TV americana. Fazer um especial. Você voltando pra sua terra natal. Os americanos adoram essas babaquices de família, terra natal. Hehehe. A gente tá precisando mesmo um gancho legal pra entrar mais forte nos Estados Unidos. Tamos precisando melhorar nosso desempenho no mercado americano que nem só da Ásia vive um grande sucesso. Hehehe. Não é mesmo?

Não, não. Não quero saber de nada. Eu preciso parar. Eu pre-

ciso. Você entende?

Falei com uma determinação e uma coragem que há muito

tempo eu não via em mim mesmo. Na verdad, eu nunca tinha falado com o Bhardian daquela maneira, nem quando a Melzinha tomou os remédios nem nunca. Será que fora a conversa com o John, ou a conversa com a Poly que tinham me trazido aquela coragem toda?

Bhardian ficou um pouco descadeirado com o meu tom de

voz, mas percebeu que tinha algo de diferente acontecendo comigo e não quis enfrentar. Ele sempre tinha que sair por cima, sempre tinha que passar o rolo escrotocompressor, sempre tinha que dar a última palavra em tudo:

– Sim, Juan, é claro, claro que sim, você precisa passar uns

dias na sua terra natal, reencontrar a sua família, sim, todos nós precisamos passar uns dias na nossa terra natal de vez em quando isso é muito bom, muito positivo. Nossa terra natal.

Ele deve ter falado mais uns quarenta minutos sobre o tema:

terra natal. Bhardian seria capaz de fazer um discurso de improviso sobre qualquer assunto por mais de quarenta minutos. Isto era algo

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que a Melzinha apreciava demais no armênio. Ela babava de prazer e admiração ouvindo o Bhardian falar de improviso. Pobre da Melzinha. Minha maninha.

Três dias depois eu estava desembarcando anônimo num

aeroporto particular a uns setenta quilômetros de Brasília. Seria impossível ficar anônimo se eu descesse no Juscelino Kubitschek. Naturalmente, Bhardian designou uma pequena equipe para me acompanhar: um motorista, uma acompanhante local e um guarda-costas. Dispensei os três e disse a eles que precisava ficar só em minha própria cidade. Os caras toparam mais ou menos, mas a gorjeta gorda os ajudou a decidir. Mesmo assim, só concordaram que eu fosse dirigindo o carro sozinho, um coreano esportivo vermelho, se eles fossem atrás, a pouca distância na SUV preta. Topei. Era o jeito.

Cheguei à casa de minha mãe no Lago Norte perto do meio-

dia. Ela ficou tão feliz. Queria chamar a galera, mas eu a proibi terminantemente de dizer uma palavra sequer a qualquer pessoa sobre a minha presença em Brasília. Tive que prometer a ela que se fosse possível, ia arrumar um jeito de ir ver o Panka, que já estava no nível um na New Papu e podia receber visitas. Engraçado, eu sabia que estava mentindo pra ela. Eu sabia que não ia tornar a ver o único pai que eu tive. Por outro lado, algo me dizia que eu realmente veria o meu pai em breve. Estranho.

Coincidência.

Huumm. É? Dormi até umas cinco da tarde , acordei, tomei

um café e fiquei deitado na cama chique do quarto chique da casa chique de minha mãe. Tudo comprado com o dinheiro que eu ganhei “honestamente” com Liberta-me. Não tinha nada a ver. Minha mãe não nasceu pra ser chique. Nem eu. Que saudades dos velhos tempos. Putasquispariu, eu vim pra Brasília pra escapar do baixo astral e da depressão e a porra do baixo astral veio junto comigo. Fiquei no quarto até umas onze da noite assistindo uma porcaria duma série na TV a cabo. Era um lixo enlatado. Eu não seria capaz de dizer nem qual

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o último rei do rock

o assunto que tratava. Acho que eram uns caras negros americanos de classe média. Tinha uma menininha até que meio engraçada, o resto era uma mierda completa. Será que tinha sistema de cotas na TV americana? Quando a porra do programa acabou dei um pulo da cama e resolvi sair. Aonde eu iria? Lugar nenhum. Eu não poderia aparecer em nenhum lugar de Brasília que seria um tumulto total. Resolvi andar de carro. Isso. Eu ia rodar e rodar pela cidade até gastar os pneus e o cu fazer bico. Eu ia rodar. E ponto. Iria a Sobradinho, Planaltina, Taguatinga, Guará, Ceilândia, Cidade Ocidental, Núcleo Bandeirante. Até de Águas Claras eu sentia saudade. Eu ia rodar e ponto. Lembrar os velhos tempos. Olhar todos aqueles lugares. Pelo menos. Olhar. De longe. Podia ser até que eu avistasse algum camarada das antigas. De longe.

Fumei uma tora sintética e saí. Eu nunca fui muito de ter pres-

sentimento, essas coisas. Mas naquela noite. Sei lá. O jeito que minha mãe me abraçou e beijou na hora em que eu saí. Tudo bem, fazia tempo que ela não me via, devia ser isso. Saí. Peguei o coreano esportivo vermelho e segui rodando lentamente. QI 10. Conjunto 12. Fiz a rotatória e segui até a EPPN, fiz o retorno e voltei na direção do Plano Piloto. Foi só nessa hora que eu percebi que os fiadasputa tavam atrás de mim. Foi só nessa hora que eu vi a SUV preta. Não acreditei, simplesmente não acreditei que eu tava sendo perseguido em minha própria cidade pelos capangas do Bhardian. Porra será que eu não podia dar sequer uma volta sozinho? Fiquei muito, muito puto e pisei fundo na porra do acelerador do carrinho coreano. Vamo vê se essa merda anda mesmo ou se é só mais um fake nesse trem fantasma que a minha vida se transformou. Engraçado que hoje, apesar da minha memória me deixar na mão em muitas circunstâncias, eu ainda lembro de cada detalhe do que aconteceu naquela noite. O carrinho andava mesmo. A velocidade permitida na pista era de 60 km/h. Eu cheguei rapidinho nos 100. Os mala tavam grudado atrás. Eu voava baixo. 140. Passei zunindo por um carro branco, um sedã Volkswa-

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gen, acho, e um cara numa motinho. O cara ficou me xingando. Eu não tava nem aí. Os mala tavam vindo. O SUV preto também andava de verdad. Uma caminhonetezinha vermelha, quase que eu encosto no parachoque do cara. Os mala lá atrás no espelho agora. 110, 120, 160. Na altura da QI6, a porra de um pedestre me fez diminuir um pouco. Pisei fundo de novo. 170. Tasquispariu véi. Ultrapassei um carro prata, não sei a marca, esses coreanos pra mim são todos iguais. Um outro Volkswagen preto ficou pra trás. Passei um caminhão de Elma Chips. Lá na frente tinha algo que parecia ser um semáforo. Era um semáforo mesmo, fechado, puta que pariu, que se foda. Quem vai pagar a multa é o Bhardian. Hehehe. Eu devia estar na altura da QI3, tinha um comercinho à minha esquerda. Uma caminhonete prata entrou no comércio. Engraçado, lá na Ásia esses carros são utilitários de verdad, aqui no Brasil são todos metidos à besta. Duvido que alguém tenha a coragem de usar um desses como utilitário de verdad, o cara deve ficar morrendo de dó de sujar a caçamba. Hehehe. Lá na frente, outro semáforo. Tinha gente passando, putasquispariu. E os cara do SUV preto tavam encostando em mim. Pisei fundo, seja o que Deus, o acaso, ou como você queira chamar isso quiser. Eu devia estar a uns 180 km/h e ia deixar os feladamãe pra trás, eles iam ter que parar no semáforo. Bem na hora em que fui cruzar apareceu uma porra dum Eco-não-sei-das-quantas vermelho. Não sei de onde aquele carro apareceu, tenho certeza que ele não estava lá antes.

Tem mesmo?

Bom, tenho quase certeza, né? Eu vi a cara de desespero da

mulher que dirigia. Por sorte era bem no cruzamento. Tinha algum espaço do meu lado direito. Enterrei o pé no freio e puxei toda a direção pra direita pra escapar da mulher. Ainda deu tempo de ver a cabine verdinha da polícia que ficava do lado esquerdo e o SUV preto mais pra trás. Tinha um relógio desses digitais de rua: 22h21min. Eu rodei quase na frente da cabine da polícia, essa foi a minha sorte. Tinha um postezinho que dizia QI1. Eu arrastei o postezinho.

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Minha mãe sorriu pra mim ela estava bem nervosa acho que o

sorriso era forçado o panka vai chegar ele vai chegar será que ele tá bêbado entramos no palco o bbc tava alucinado demais naquela noite tinha uma menina que gostava de mim ela sempre ficava na primeira fila eu morria de vergonha no primeiro dia de aula a única coisa que eu lembro de nova york é o frio que porra de frio que fazia véi sheena is a punk rocker não mãe para para com isso não não faz isso você não quer fazer isso não você vai conseguir nós vamos conseguir sim ele te abandonou mas eu nunca vou te abandonar turn off your mind relax and float down stream você vai conseguir ser minha mãe eu vou te ajudar eu vou ficar bem quietinho e nunca vou chorar e depois eu vou ser grande eu vou ser muito grande você vai sentir muito orgulho de mim mãe até aquele filho da puta do meu pai vai sentir orgulho de mim também ele vai se arrepender amargamente de ter abandonado a gente mãe você vai ver o quão grande eu vou ser eu vou ser maior que ele mãe você vai it is not dying it is not dying você vai ver para com isso mãe larga esse travesseiro eu já estou quase morrendo sufocado para com isso eu não tenho força pra lutar contra você sim sim ela tá chorando ela tá arrependida eu sei que você me ama mãe eu sei que você não queria fazer isso eu sei que você também é só uma garotinha assustada eu sei que você está com muito medo dos seus pais do que eles vão dizer lay down al thoughts surrender to the void você veio pra nova york pra ser uma cantora famosa e você não conseguiu nada e só conseguiu arrumar um filho e nem um pai pro seu filho você conseguiu arrumar que aquele filho da puta saiu pra comprar cigarro e nunca mais apareceu e eles nos deixou aqui mas ele vai ver mãe eu vou ser grande eu vou ser muito grande it is shining it is shining e você vai sentir orgulho de mim e todo mundo vai sentir inveja de você por que eu vou ser muito grande e você vai ser a mãe de um cara muito grande sheena is a punk rocker yet you may see the meaning of within eu vou ser maior que ele cara eu vou ser maior que ele depois eu saía da aula e a gente ia prum quartinho

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que tinha no fundo da escola e a gente fumava maconha e ficava falando besteira até o meio dia e ninguém tava nem ai véi todo mundo sabia que a gente tava fumando maconha mas ninguém tava nem ai pra nós it is being it is being se o Panka bater na minha mãe eu arrebento ele porra eu mato ele love is all and love is everyone os caras do pavlov vão tocar antes da gente mas a gente vai comer eles com farofa hoje o pezinho dela era delicioso será que hoje ela vai deixar eu chupar os dedinhos não panka não cara sai fora cara sai fora eu não tenho pai meu único pai é o panka o panka pode ser doido véi mas ele é o único pai que eu tive meu pai me abandonou véi minha mãe é uma sheena is a punk rocker now o john também era foda né it is knowing it is knowing véi o john também era foda mas eu sou maior que ele eu a minha musica é muito maior do que a dele véi e eu não tenho nenhum paul macaco prá fazer os backing vocals hehehe paul macaco and ignorance and hate mourn the dead eu não tenho véio que o bbc caiu fora véio o bbc caiu fora foi a melhor coisa que ele fez véio ele conseguiu sobreviver que o coitado do loló dançou ele não conseguiu se safar dessa merda e o pobre coitado do ra-tón também se fudeu ele deve tá agora lá na papuda junto com o panka que eu como todas as minas que eu quero véi quando a minha mãe saía com o panka eu ficava em casa sozinho vendo televisão eu ficava morrendo de medo que o meu pai viesse de buenos aires e me sequestrasse it is believing it is believing mas eu não dizia nada pra minha mãe que se eu dissesse ela podia ficar preocupada e eu achava tão bom quando ela e o panka tavam numa boa véi que era raro quando ele não tava bêbado e não dava porrada nela heroína é phoda véi a gente eu sonhava todas as noites que o meu pai ia vim de buenos aires e me sequestrar então eu acho que eu nunca dormia véio but listen to the colour of your dreams eu nunca dormia e eu nem achava ruim que eu nem achava que a gente tinha que dormir de noite no começo sabia que era foda e a gente não ia se picar toda hora a gente combinou isso que a gente não ia se picar toda hora e eu acho mesmo que a

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gente acreditava mesmo que a gente não ia se picar toda hora mas quando a gente foi ver a gente já tava viciadasso e a gente já tava se picando toda hora it is not leaving it is not leaving ela me cuidou sozinha heroína hehehehe minha heroína hehehe será que hoje ela vai me deixar beijar os dedinhos do pezinho dela quando a gente entrou no palco os caras ficaram putos que eles tavam achando que eles é que iam fechar naquela noite depois eles disseram que a gente era traíra e que a gente não tinha respeitado o acordo que a gente tinha feito com eles mas eles é que já tinham rompido o acordo desde a primeira noite que era pra eles tocarem só uma hora mas eles tocaram muito mais que uma hora e meia o Panka também vinha de noite quando ele tava bêbado e tocava os meus pezinhos eu chorava demais véio chorava e minha mãe não sabia o que fazer ela não nasceu praquela porra de ser mãe e os pais dela também não ajudavam muito eles não ajudava muito e ainda ficavam enchendo o saco dela dizendo que ela tinha que fazer isso e tinha que fazer aquilo e que ela não era uma boa mãe e que so play the game existence to the end eu ia ser um delinquente ou qualquer coisa assim e então ela me levou na porra do psiquiatra e eu tinha uns seis anos sei lá e eu enchia o saco demais na escola então a porra do médico disse que eu tinha que tomar a porra da ritalina e minha mãe ficou feliz por que eu tomava aquela porra e não enchia tanto o saco dela e nem da professora na escola e daí eu fui ficando viciado naquela mierda e ela saía de casa e eu sabia onde tava escondido o remédio e então eu sempre tomava uma duas ou três bolas a mais do que era pra eu tomar então eu acho que eu fiquei viciado e depois eu comecei a mandar tudo quanto é droga que aparecia no meu caminho que eu fiquei viciado mesmo primeiro foi naquela porra da ritalina of the beginning of the beginning.

O carro capotou três vezes na frente de um shopping. O nome

era “Deck” ou alguma coisa assim. Pra minha sorte tinha uma pracinha com uns bancos de concreto, uma fontezinha, umas palmeiras e uma lixeira, foi ali que o carro parou.

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O relógio digital da pracinha marcava: 22h22min.

Coincid...

Cala a porra dessa boca. A última coisa que eu pensei é que o

John tinha morrido com quarenta anos. Depois ficou tudo vermelho e eu não me lembro de mais nada.

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29. Lá no túnel

Eu tava num lugar escuro. Nem sei se era um lugar. Mas era

escuro. Eu até via uma luz. Mas ela tava longe. Não tinha como eu chegar lá. Ficava num plano mais alto. Era tipo um túnel. Um túnel de luz. A luz mesmo ficava lá no final do túnel. Pessoas andavam pelo túnel, elas caminhavam em direção à luz. Mas não tinha como eu chegar até o túnel, era muito alto, eu teria que ir voando ou algo assim. Nem sei se eu queria ir até o túnel. Acho que eu tinha medo do túnel. Medo da luz, talvez. Eu era alguma espécie de animal. Um cachorro ou um porco. Não sei. Senti que se eu abrisse a boca pra dizer qualquer coisa eu ia começar a latir ou a grunir como um porco. Eu só queria ficar ali e até que não estava achando tão ruim ser um cachorro ou um porco, eu poderia ficar ali naquele canto escuro pra sempre. Mas era frio. Muito frio. Eu estava todo encolhido sobre mim mesmo. Como um animal. E sentia frio, muito frio. Acho que eu tava morto. Era uma coisa bem parecida com o efeito da heroína. Uma morte em vida, ou uma vida feita de morte. Algo assim. Acho que os outros caras que estavam naquele buraco também eram animais como eu. Devo ter ficado uns sete, ou setenta, ou setecentos anos ali. De repente senti que precisava sair. Aquilo começou a me dar nojo. Nojo de mim mesmo e daquele buraco. Eu precisava sair dali. Fazia muito frio ali. Eu tinha que ir até a luz pra fugir do frio. Mas como eu iria? Percebi que tinham outras pessoas bem perto de mim. Ninguém usava nenhum tipo de rou-

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pa, mas ninguém tava nem aí pra isso. Ninguém falava com ninguém. Ninguém tava nem aí pra ninguém. Parecia que aquelas pessoas não estavam nem aí pra nada. Não estavam nem sequer incomodadas com o frio. Só eu que estava. Fiquei muito tempo querendo me levantar, mas não tinha coragem. Quanto tempo? Horas, dias, meses, anos? Sei lá. Tanto faz. O tempo ali era infinito e sem variações. Sempre era escuro lá embaixo e sempre tinha o túnel e a luz no final dele lá em cima. Percebi que de tanto em tanto tempo, alguém, com um esforço muito grande saía daquela posição de animal e se colocava em pé. Quando a pessoa se levantava por sua própria conta e vontade, apareciam uns caras que pareciam anjos ou coisa que o valha e ajudavam a pessoa a chegar até o túnel e caminhar por ele em direção à luz. Eu queria levantar também, mas minhas pernas não estavam com a menor disposição de sair daquela posição em que me encontrava. Fiquei ali mais uma eternidade até o dia em que a vontade realmente chegou. Decidi me levantar. E as pernas simplesmente obedeceram como se elas estivessem apenas esperando que a vontade chegasse. Quando me firmei sobre minhas pernas duas criaturas daquelas que pareciam anjos apareceram e gentilmente me ajudaram a andar em direção ao túnel. Eles não diziam nada. Nem sei dizer se posso chamá-los de eles. Também não eram elas e nem tampouco eram afetados ou afeminados. Apenas eram. E foram me conduzindo. Quando me dei conta estava voando. Quando pensei nisso, quando pensei que estava voando fiquei pesado como chumbo e comecei a cair. Os “anjos” falaram pra eu não me preocupar e simplesmente seguir subindo. Falaram é modo de dizer, porque é como se o pensamento deles ecoasse dentro do meu pensamento. Eles não tinham vozes ou coisa que o valha. Eles diziam: confie, confie, se entregue. Acho que aqueles anos todos que eu passei lá embaixo no frio me permitiram confiar e me entregar. É como se eu não tivesse mais nada a perder. Fechei os olhos e quando percebi, já estava no túnel. Ele também era feito de luz ou algo assim, mas era como se fosse algo que estava em movimento, um movimen-

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to ultrarrápido. Eu podia pisar no fundo do túnel. Pisar naquela luz ultrarrápida. Pelo menos me parecia que eu estava pisando, que estava de pé. Os anjos foram me conduzindo em direção à luz. Era muito intensa, eu não tinha condição de olhar diretamente. Os anjos então pararam e ficaram ali comigo esperando que meus olhos pudessem ter condição de olhar em direção à luz. Não tenho ideia de quanto tempo se passou, podem ter sido dias ou anos também. Ou apenas alguns segundos. Depois de algum tempo eu já podia olhar na direção da luz. De repente apareceu alguém. Uma senhora, de aparência alegre e jovial. Eu sabia que a conhecia, mas não conseguia me lembrar de onde. Quem era ela? Não podia me lembrar, embora ela me parecesse muito familiar, e parecia que eu era muito familiar a ela também. Sim, nós realmente tínhamos algo em comum, mas era muito estranho. O que seria? Ela se aproximou e me abraçou demoradamente. Seu abraço era carinhoso e não tinha nada de sexual. Como o abraço de uma avozinha, embora aquela bela senhora tivesse uns trinta anos no máximo. Os anjos se afastaram e ela começou a caminhar em direção à luz me conduzindo pela mão. Ela apenas sorria, mas eu percebi que podia me comunicar com ela pelo pensamento também. Perguntei onde estávamos indo e ela me disse pra ficar calmo, que eu logo ia saber. Perguntei se a gente ia caminhar até a luz. Ela disse que não, que ainda não era a hora. Eu me sentia como um menininho que caminha por um belo parque conduzido pela mão de sua avozinha. Não existia o menor sinal de peso, mágoa, culpa, desejo, nada disso. Eu estava limpo e leve como um bebê recém-nascido. Num determinado ponto, antes de chegarmos à luz, existia uma espécie de passagem no túnel. Entramos por aquele lugar e quando vi, estávamos em uma espécie de hospital. Era como um hospital, a única diferença é que os enfermeiros sorriam pra mim quando a gente passava, e os médicos não eram arrogantes. Que lugar seria aquele? Minha “avozinha” me conduzia com firmeza e logo me vi em algo como uma sala de recuperação. Tinha várias camas, era uma espécie de enfermaria coletiva.

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Passavam médicos e enfermeiras, mas não vi nada parecido com a tralha tecnológica que a gente está acostumado a ver em hospitais. Os médicos ficavam parados na frente dos leitos numa atitude que parecia meditação, ou oração, ou algo assim. Paramos em frente a um leito e eu quase tive um troço. Quem estava deitada lá, em estado de inconsciência, era a minha querida irmãzinha Mel Lee. Eu balancei, e minha avozinha segurou firme a minha mão. Ficamos parados ali. Tentei “falar” com a Mel também, mas não consegui entrar em contato. Era como se eu sentisse um grande amor por ela, mas não tinha muita clareza sobre quem ela era e de onde eu a conhecia. A avozinha disse: você vai ter que fazer um grande esforço pra entrar em contato com ela, por que ela está muito inconsciente. Mas se concentre que você consegue. Concentrei-me e consegui. Eu ouvia a voz da Melzinha como se ela estivesse muito longe. Tipo Skype quando tá ruim. Quem era aquela pessoa, de onde eu a conhecia? Ela dizia algumas coisas que não faziam muito sentido. Senti que ela havia percebido a minha presença e estava se dirigindo a mim. Eu não conseguia ainda definir exatamente o que ela dizia. A “voz” dela não era clara que nem a da avozinha, mas podia sentir o sentimento dela por mim, podia sentir o amor da minha irmãzinha por mim. De repente lembrei de tudo. Lembrei de quem eu era, lembrei de quem ela era e lembrei do que acontecera com ela. Eu sentia vergonha, muita vergonha. Senti a vergonha que a minha irmãzinha sentiu quando soube da tramoia que era o sucesso de “Liberta-me”. A minha irmãzinha era uma pessoa decente, ela não era uma fiadamãe que nem eu. Ela tinha sofrido demais naqueles dias desde que a gente descobriu a parada nos óculos do Bhardian. Por isso que ela tomou a sopa de remédio. Por isso que ela quis acabar com a vida dela. Entrei em sofrimento. Nunca senti uma dor tão profunda, um desespero tão grande. Achei que eu fosse desintegrar, mas a minha avozinha segurou a minha mão com firmeza. Ela tinha uma força ao mesmo tempo suave e firme. Consegui me equilibrar. A Melzinha estava tentando falar comigo. Ela disse algo sobre eu ter que

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ajudar ela. Ela disse que só eu podia e que ela precisava muito de mim. Eu não sabia exatamente do que ela estava falando. Ela disse que quando eu “voltasse” eu saberia o que eu teria que fazer. Ficamos ali mais algum tempo, eu não saberia precisar quanto. Num instante a ficha caiu. Eu entendi o que eu precisaria fazer: eu precisava desligar as máquinas. Tinha que deixar a minha irmãzinha voltar pra casa, que enquanto as máquinas continuassem ligadas, ela ia continuar presa naquela gaiola high-tech. Eu chorei muito, mas meu sofrimento sumiu completamente e uma alegria imensa me invadiu. Cheguei quase a invejar a minha irmãzinha. Ela já podia voltar, eu ainda não. Sim, era isso mesmo o que eu tinha que fazer, e era isso mesmo o que eu iria fazer. A minha irmãzinha ainda ia passar um longo período lá no buraco escuro, antes de poder voltar pra casa. Mas ela precisava deixar o corpo dela, que não tinha mais volta, o cérebro tinha dançado. Morte cerebral não tinha mais volta. Não tinha mais motivo pra ela ficar presa. Ela ia passar um tempo no escuro, mas depois ela ia seguir o rumo dela, e eu tinha que seguir o meu, eu precisava voltar e fazer o que era preciso. Eu sentia que ainda tinha outras coisas que eu precisava fazer. Mas isso eu só ia saber quando eu estivesse lá de volta. Eu precisava voltar. Depois a avozinha disse que já estava na hora de eu voltar, que eu não me preocupasse e que quando eu voltasse eu saberia o que eu tinha que fazer. Eu tinha sentimentos ambíguos. Não estava entendendo direito, mas sentia um amor tão profundo, tão imenso, que seria capaz de ficar ali para sempre. Seja lá pra onde fosse que eu tinha que “voltar”, eu não queria. Sentia muito medo e voltei a sentir o frio que senti quando estava naquele lugar escuro. Mas ao mesmo tempo é como se eu soubesse que “tinha” que voltar. Minha avozinha me abraçou e a calma voltou ao meu coração. Ela me disse pra eu me despedir da minha irmãzinha e me conduziu pela mão. Quando percebi, já estava novamente no túnel. Ela me deu novamente um longo abraço e eu perdi a consciência.

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30. Tinha um cara estranho me olhando

Tinha um cara estranho me olhando. Quem era aquele cara?

Ele tinha alguma coisa a ver com a avozinha, mas não tinha aquela bondade e leveza no olhar. Era um cara estranho. Embora fosse velho (devia ter uns sessenta e poucos) ao mesmo tempo parecia um menino. Era um menino envelhecido. Como eu. Sim, era o cara mais parecido comigo que eu já havia visto. E tinha alguma coisa a ver com a avozinha também. Quem era aquele cara? Quando abri os olhos ele deu um pulo e começou a gritar. Estava eufórico. Veio até a cama e me abraçou. Lágrimas rolavam dos seus olhos. Ele estava chamando alguém, a enfermeira, acho. Quando percebi que ele falava espanhol é que a ficha caiu. Aquele cara era o meu pai. Aos quarenta e dois anos eu estava conhecendo o meu pai. Tinha um relógio na parede em frente à cama: 08h08min. Chegou uma enfermeira. Eu estava em algum hospital. Estava deitado em uma cama em algum hospital. Mas não era o mesmo hospital do túnel. Aqui as enfermeiras eram mal-humoradas e os médicos pareciam rock stars, ou promotores de justiça ou Deus, ou algo similar. Eu conseguia ver e entender o que se passava ao meu redor, mas não lembrava do que tinha acontecido antes. O que ainda estava muito presente em minha memória eram as coisas que eu vivi lá no túnel. Onde eu estava? Em Brasília? No Plano Pilouco?

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A enfermeira me viu e começou a rezar. Estava visivelmente

impressionada. Ela e meu pai se abraçaram. Tentei falar, mas não tinha controle sobre a minha língua, que parecia uma bola de tênis ou algo assim dentro da minha boca. Fiquei apenas assistindo ao movimento. Em poucos minutos minha mãe chegou acompanhada de um médico. Ela também chorava. Karaka, o meu pai veio da Argentina. Deve ter sido algo muito grave. Comecei a lembrar do acidente. Sim, o acidente. Comecei a juntar os pedaços. Eu devo ter sofrido um acidente muito grave, as pessoas devem ter pensado que eu ia morrer ou algo assim. Meu pai ficou sabendo, na Argentina, e veio me ver. Karaka. As memórias iam e vinham. Misturavam-se com as memórias lá do túnel. Eu não sabia direito o que era real e o que era fantasia. O que tinha sido aquilo tudo? Um sonho? Outra alucinação? Mas era tão real. Na verdad, era a coisa mais real que já tinha me acontecido. Vi minha mãe ligar para o Bhardian para transmitir-lhe a boa notícia. Eu queria gritar para ela não fazer isso, pra ela não falar pra ele, nem pra ninguém. Mas eu não tinha controle nenhum sobre minha língua. Eu não tinha controle nenhum sobre nada. Não podia fazer nada além de assistir o que estava acontecendo a minha volta.

Os dias foram se passando e eu fui entendendo o que havia

acontecido, embora não conseguisse falar ainda, eu me sentia muito cansado, sentia muito sono. Passava quase todo o tempo dormindo. Eu tinha passado desacordado mais ou menos uns dez dias. Sim, dez dias fora do ar. E lá no túnel a sensação foi de que eu havia vivido séculos. Os médicos achavam que eu não ia voltar. Eles tinham quase certeza que eu também tivera morte cerebral, como a Melzinha. Parece que o meu caso era um milagre da medicina. Não tinha sobrado quase nada do carro vermelho coreano. Ele ficou parecido com uma lata de Coca-cola amassada. Fui jogado pra fora durante uma das capotagens, foi só por isso que eu sobrevivi.

Os médicos achavam que eu tinha ficado abilolado, que eu

não ia voltar a falar. Minha mãe chorava muito, meu pai ficava lá, de

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vigília quase todo o tempo. Acho que ele resolveu correr atrás do prejuízo. Na verdad, quando eu comecei a fazer sucesso com “Liberta-me”, ele bem que tentou fazer um contato comigo e com a minha mãe, mas eu não dei a mínima chance, é claro. Aos poucos a fala veio voltando. Mas eu tinha ficado meio abestalhado mesmo. Tudo era muito confuso. Eu falava bem devagar, arrastado. Confundia as coisas. Quase todos os dias eu sonhava com o acidente. Tinha dias que eu ficava num estado semiacordado, lembrando as coisas que tinham acontecido lá no túnel. O Bhardian veio me ver umas duas vezes. Ele estava muito ansioso. Estava perdendo dinheiro. Eu sentia a ansiedade chegando uns quinze minutos antes dele aparecer no quarto. O Hospital Santa Lúcia era um dos poucos lugares grain-câmera-free de Brasília. Eu tinha quase certeza disso. O Bhardian propôs de a gente colocar umas duas ou três câmeras no quarto pra ficar transmitindo 24 horas a minha recuperação pros fãs do mundo inteiro que estavam insaciáveis com a minha ausência. Minha mãe chegou a cogitar a possibilidade. Meu pai foi veementemente contra. Comecei a simpatizar um pouco com aquele velho argentino. Até então eu tava muito puto com a presença dele.

Arrumaram uma psiquiatra pra cuidar de mim. Era uma meni-

na nova, recém-formada, cheia de boas intenções, moreninha, magrinha e bonitinha. Usava um sapatinho branco peep toe delicioso que permitia vislumbrar a pontinha da unha do dedinho, que invariavelmente ela pintava de cereja ou rosa claro, minhas cores preferidas. Ela ouvia a minha maluquice toda com a maior boa vontade. Fazia anotações. Queria me convencer que as coisas “lá do túnel” tinham sido uma “EQM”, uma “experiência de quase-morte”, que segundo ela, era algo causado pelos neurônios. Roberto Tálamo novamente na área. Ela era toda científica. Disse que o que eu havia vivenciado era uma “invasão de movimento rápido dos olhos”, ou coisa que o valha. Disse que era uma “programação do cérebro para enfrentar o momento da morte” e deixá-lo menos difícil e doloroso. Ela disse que

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as sensações de paz e luz que eu havia vivenciado nada mais eram do que uma liberação maciça de endomorfinas diante de uma situação de estresse excessivo. No começo eu nem ouvia a menina. Só ficava pensando em maneiras de boliná-la. Era uma cena patética, ela falando pelos cotovelos e eu imaginando maneiras de passar a mão em suas coxinhas. As perninhas ficavam deliciosas com a meia de nylon branca esticadinha. Por que ela não calava a boca e me deixava ficar lá só beijando os pezinhos dela? Por que as mulheres bonitas também tinham que falar?

Para minha sorte, eu estava praticamente imobilizado. Levou

muito tempo e muita fisioterapia pra que eu retomasse os movimentos. E eu estava tão fudido que não teria a menor condição de ousar colocar em prática o que a mão desejava.

Com o passar dos dias, a conversa da “doutora Micaela” (ela

pedia pra que eu a chamasse de Mi) começou a entrar em meus mi-olos. Aquilo tudo fazia sentido. Esses trem científico são uma maravilha. É uma espécie de religião também. Eles têm explicação pra tudo e tudo bate com tudo. Tipo uma astrologia. Eu entendi os acontecimentos lá do túnel como alguma espécie de filmezinho que Roberto Tálamo inventou pra me manter vivo naqueles momentos em que meu corpo estava lutando pra não definhar. Aquilo tudo parecia tão real. Mas era apenas Roberto Tálamo. Apenas endorfinas, neurotransmissores e correlatos.

Às vezes me dava uma tristeza profunda pensar que aquilo

tudo não tinha passado de um teatrinho neuroquímico. Dava uma tristeza pensar que nada daquilo tinha existido mesmo. Que eu não tinha encontrado com a Melzinha, que aquela senhorinha não passava de alguma criação do Roberto Tálamo. Dava uma vontade de morrer. Mas a doutora Mi com as suas coxas implacáveis me catequisava mansamente. Eu era um convertido. Já estava até pensando em estudar neurofisiologia quando saísse do hospital. A doutora Mi seria a

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mi-nha profe é claro. Eu seria um cara positivo, objetivo, produtivo, bem adaptado. Eu e a doutora Mi faríamos sexo umas trinta vezes por semana em praias tropicais belíssimas e ensolaradas. Praias de nudistas. Todos em forma e malhadíssimos. E com aqueles olhos azuis indefectíveis. E um sorriso igualzinho ao do Bhardian. Felizes.

Meu pai ficava lá comigo. Ele realmente resolvera se redimir

pelos quarenta e dois anos de omissão. Também tinha o lance do câncer dele, um câncer de próstata do qual ele havia sido curado, e que, segundo ele, o fizera repensar toda a sua vida. Eu não acreditava muito naquela conversa. Tinha certeza que ele tava tentando tirar uma casquinha do meu sucesso e da minha grana, embora ele fosse a pessoa que menos me cobrava recuperação e volta aos palcos. Ele dizia mesmo que se eu decidisse abandonar a carreira musical, ele me apoiaria incondicionalmente. Mas a nossa relação era muito conturbada. A gente brigava muito. Na verdad, eu brigava muito, ele só ficava lá quieto ouvindo. Parece que ele era meio budista ou coisa similar. Acho que ele tinha a paciência como um dos mais altos valores humanos a serem cultivados, e realmente aqueles dias que ele passou comigo no hospital Santa Lúcia em Brasília foram um exercício supremo de paciência pra ele. Eu tinha ataques de pití. Berrava de raiva. Chorava sem motivo ou explicação. A doutora Mi vinha e me explicava tudo. Os neurônios, ela dizia, os neurônios.

Até que chegou um momento em que meu pai não aguentou

mais. Juntou as poucas coisas que trouxe e me disse chorando ao pé da cama que teria que ir embora. Disse que entendia a minha mágoa, mas que era melhor ele ir enquanto a gente ainda tinha algum respeito e consideração entre nós. Deixou-me um livro: Sidarta, de um cara chamado Herman Hesse. Disse que se um dia eu estivesse numa situação muito difícil, que se estivesse ao ponto de desistir da minha vida, que eu pegasse o livro e o abrisse em uma página qualquer, que ali estariam as palavras que poderiam me tirar daquela situação, que

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aquele era o livro mais importante que ele tinha lido na vida dele, que era um resumo de tudo o que ele havia buscado em sua vida, e que era o livro que mais perto chegava da realidade do que é a vida e o amor, blá, blá, blá. Disse isso tudo e voltou pra Buenos Aires.

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31. Cão negro

A coisa veio chegando. Não foi assim de uma hora pra outra.

Veio aumentando. Quando eu vi, ela já tava lá, o tal do “mal do século”. Eu comecei a entender a Melzinha e aqueles bilhões de pessoas no mundo todo que naquela época ficavam escondidos em suas casas sem ter a menor condição de sequer botar o pé na rua. Escondidos de quem? Eu pensava antes de me encontrar com o “cão negro”. Mas depois de encontrá-lo, ficou fácil de saber. Eu não tinha vontade de nada, não tinha energia pra nada. Nem dormir eu conseguia mais. Tinha que tomar remédio pra tudo. Nem me lembro de quantos eram, mas com certeza eram mais de cinco todos os dias. Karaka véi, que lombra, que parada sinistra. Nada mais fazia sentido. Que porra era aquela? Eu tinha sobrevivido por um milagre ao acidente e agora não via mais sentido em estar vivo. Aquilo sim é que não fazia sentido. Porra eu não era um sobrevivente? Sobreviventes não ficam depressivos. Sobreviventes saem por aí fazendo palestras motivacionais, essas coisas. Mas o fato é que eu estava depressivo. O cão negro me pegou de jeito. A doutora Mi até que tentava. Ela tentou de tudo, até me deixou passar a mão nos joelhinhos dela numa tarde de chuva. Mas nem isso adiantou. A doutrina dela já não fazia nem cócegas no cão negro. E o pior é que aquilo estava começando a me dar muita raiva. E foi aí que aconteceu: Os ventos do destino começaram a soprar.

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Numa tarde, o Bhardian apareceu e a gente ficou a sós. Só

nós dois. Ele estava de passagem pelo Brasil e veio. Não me pressionou nada. Parecia outra pessoa. Não era o cara da ManGodCorp que estava lá. Era um bróder. Ele tava tão legal naquele dia, tão próximo. Contou coisas da vida dele, da infância, as histórias de amor frustradas que ele viveu. A gente ficou muito próximo mesmo. Eu comecei a falar. E quando eu me empolgo falando, como bom sagitariano, o freio e o bom senso vão pras cucuias. Resolvi abrir meu coração com o Bhardian. Senti que podia. Contei pra ele das coisas que eu tinha vivido lá no túnel. Falei da avozinha boa, da Melzinha, das minhas dúvidas. Contei tudo. Do meu encontro com o “John”, das coisas que ele disse que eu precisava fazer. Da minha “missão”. Eu chorava. Falava e chorava muito. O Bhardian ficou ouvindo. Calado. Ele foi um irmão naquele dia.

Passados alguns dias, meu estado emocional piorou um pou-

co mais e o Bhardian apareceu novamente. Ele estava estranho, diferente, não se via nem sinal daquele sorriso absoluto que ele costumava apresentar. Trouxe um presente: uma Fender Mustang Sonic Blue. Igual a do Kurt Cobain. Na verdade, era uma guitarra que havia pertencido ao próprio Kurt. Karaka, que presente véi! Putz, uma guitarra que havia pertencido ao Kurt Cobain! Devia ter custado uma baba. Como ele conseguiu comprar? Parece que foi num leilão ou algo assim. Ele já tinha a guitarra com ele. Era uma relíquia que ele guardava. E resolveu dar ela pra mim. Pela nossa amizade. Pelo menos foi o que ele me disse naquele momento.

Quando o Bhardian saiu já era noite. Eu estava sozinho com a

guitarra do Kurt. Tinha uma parada estranha naquela guitarra, sei lá, eu devia estar eufórico, supergrato ao Bhardian. Mas tinha uma parada estranha. Comecei a ficar noiado. O cão negro pulou pra cima de mim, comecei a pensar no Kurt, nos últimos dias da vida dele. O Kurt era um cara muito doido, muito mórbido. Ele conviveu com a morte face a face durante muito tempo. Durante todo o tempo, acho. A pa-

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rada foi ficando sinistra, sombria mesmo. Eu tava triste, muito triste. Triste não, desesperado. Nada mais fazia sentido. Ficar vivo pra quê? Ficar vivo pra quê? Karaka, que vontade de tomar um pico. Mas não tinha como, eu tava preso naquele hospital. Comecei a ouvir o Kurt cantar aquela porra da música dos Doors dentro da minha cabeça:

This is the end. My only friend, the end.

Que porra! Logo essa. Tinha um amp também. O Bhardian fora

meticuloso no presente. Trouxe uma guitarra que qualquer roqueiro do mundo daria a vida para possuir. E ainda trouxe um amplificadorzinho, desses de sessenta watts. Pra eu poder tocar um pouquinho naquela raridade.

This is the end.

Eu tava dividido. Por um lado queria tocar urgentemente na

guitarra, mas por outro, tremia de medo de encostar a mão nela. E tinha aquela tristeza toda e aquele desespero junto. Parada estranha demais. Que lombra!

My only friend, the end…

Resolvi tocar um pouco, bem baixinho pra ver se a lombra

passava. Peguei o amp. Ele tava pesado demais. Estranho. Fui olhar na parte de trás pra ver se encontrava o cabo. Tinha um pacote ali num papel pardo. O que seria? Os cabos? Tirei o pacote, tinha outro embaixo, mais no fundo do amp. Tirei o outro pacote também. Abri o primeiro com as mãos tremendo.

Não eram os cabos. Era heroína. Herô, uma seringa, colher,

um isqueiro, enfim, tudo o que eu precisava pra fazer o que eu mais queria fazer naquele momento: tomar um pico. O Bhardian tinha pensado em tudo mesmo. Preparei a parada. Putasquispariu, que fissura. Um problema: aonde eu ia me picar? Tinha que ser em algum lugar do meu corpo que as porra das enfermeira não vissem, senão eu tava fudido. Karaka, onde? Tinha um lugar onde elas não iam achar nem fudendo. Baixei as calças e cravei a agulha na cabeça do meu pau. A dor foi terrível, mas o bagulho era bom. Injetei, segurei o grito de

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dor e fiquei esperando a paz chegar. Pensei que o cão negro ia desaparecer com o Diesel, mas ele só fez aumentar de tamanho. Ficou gigantesco. Que porra, o tiro saiu pela culatra. O cão negro virou um tiranossauro feroz exigindo carne, a minha carne. Meu desespero parecia que ia engolir o prédio todo, a cidade inteira. O que fazer? Eu estava muito, muito doido, de um jeito que não conhecia até então. Que viagem horrorosa. Que lombra! O Kurt gritava dentro da minha cabeça:

You can deface my grave my friend… You can rephrase my

friend?

Será que o Bhardian calculou que isso ia acontecer? E eu não

podia chamar ninguém. Imagina se os caras do hospital descobrissem que eu tinha me picado. Lembrei do outro pacote. Decidi que precisava me picar de novo, que se eu tomasse mais um pico, a lombra ia passar e eu ia ficar naquele nada sem dor que a herô sempre me proporcionava. Peguei o segundo pacote. Era a minha salvação. Ele estava estranho, mais pesado que o outro. Pensei que era por causa da lombra. Fui abrindo o pacote. Minhas mãos tremiam. O conteúdo caiu no chão. Rolou pra baixo da cama. Que mierda. Enfiei a mão pra pegar o pacote. Mas o que eu peguei foi uma parada muito diferente da que eu esperava: Um revólver. Calibre 38. Cano curto, de coronha plástica cinzenta. Karaka, que mierda! Digo, merda. O que é que aquela porra tava fazendo ali? Karaka! Será que eu tava completamente doido? O fiadaputa do Bhardian tinha calculado tudo sim. O Kurt berrava agora:

THE KILLER WOKE UP IN BELGIUM! THE KILLER WOKE UP IN

BELGIUM!

Puxei o revólver e coloquei-o bem diante dos olhos. Era real,

era um revolver real, ele existia, pesava na minha mão. Puta mierda. Encostei o revólver na cabeça. Tirei fora. O Bhardian. Pensou. Em tudo. Filho de uma puta. Encostei o revólver na cabeça de novo. Era gelado. O Kurt berrava. Na minha cabeça. Abri a boca e coloquei o

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revólver lá dentro, com o cano encostado no céu da boca. Acho que foi assim que o Kurt fez. Ele tinha usado uma espingarda. Karaka. Que mierda eu era covarde demais pra isso também. De repente olhei o relógio: 23h23min. Karaka, que mierda, aquela porra de novo. De certo modo aquela porra de coincidência naquele momento me fez sair da situação em que me encontrava. Lembrei do meu pai, do livro. Do que ele tinha falado de eu estar numa situação muito difícil, querendo acabar com a minha vida. Putz, como ele tinha adivinhado que isso ia acontecer? Será que ele já tinha passado por isso também? Tirei o revólver da boca. Onde estava a porra do livro? Lembrei: tava na terceira gaveta do criado mudo. Peguei o livro e abri numa página qualquer, como o meu pai tinha dito pra eu fazer. A primeira coisa que eu li dizia:

“ Oxalá – disse lentamente o Venerável – que teus pensamen-

tos não sejam erros! Que te seja permitido alcançar o teu destino!”

Venerável? Que bosta. Meu destino? Que destino? Aquilo não

me disse nada e ainda me deixou mais puto. Joguei a porra do livro contra a parede com toda a minha força. Ele se estatelou e caiu no chão como uma ave abatida. Fiquei olhando aquele livro esborrachado por alguns instantes. Tinha algo curioso no meio das páginas amareladas e abertas como as pernas daquelas mulheres que são estupradas, assassinadas e jogadas no lixo. Tinha algo estranho ali no meio dos destroços da minha última esperança. Era uma foto. Aproximei-me. Juntei a foto. Era uma foto velha, bem amarelada. Tinha uma mulher de uns trinta anos ao lado de um garoto de uns dez, doze. Quem seriam? Eu tava muito doido. Fiquei olhando praquela mulher, eu a conhecia. Eu tinha certeza. Mas. De onde? Não conseguia lembrar. Como era possível? Era uma foto da década de 1960. Vinte anos antes de eu nascer.

Eu a reconheci: era a avozinha do túnel. Não, eu tava viajando.

Não, não tava não, era ela mesma, a avozinha do túnel. Meu coração disparou, comecei a chorar. Aquela mulher era a avozinha do túnel e

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o garoto era o meu pai com doze anos. Ela era a mãe dele, era a minha avó de verdad. Minha avozinha, que eu nunca conhecera. Aquela foto devia ser da década de 1960. Sim, pelas roupas que eles usavam. Karaka. Soltei a foto e fiquei chorando igual a um bebê. O meu sentimento dava voltas, eu estava sufocando e a lombra da heroína tornava tudo maior, tudo muito mais dramático. Como aquilo era possível? Eu nunca tinha visto nenhuma foto da minha avó, como aquilo era possível? A doutora Mi disse que aquilo que eu tinha vivido no túnel não passava de uma alucinação que Roberto Tálamo tinha produzido pra me manter vivo enquanto eu me recuperava do acidente, mas. E a avozinha? Ela existiu mesmo, era real, ela era a minha avó, que eu nunca havia conhecido e que já havia morrido há muitos anos. Lá estava ela, ao lado do meu pai. Sim, era ele, eu não tinha dúvidas. Como Roberto Tálamo poderia saber disso? Como ele poderia ter produzido uma alucinação com a imagem de uma pessoa que eu nunca conhecera? Eu chorava sem noção, cai no chão de tanto chorar, e fiquei ali chorando por horas. Fiquei em posição fetal, no chão, chorando por horas. Minha avozinha, minha avozinha.

Acordei. Devo ter dormido uma meia hora, mas pareceu que

foram horas e horas. A lombra tinha passado. Então tudo aquilo que eu havia vivido no túnel era real? Era real sim. Era a coisa mais real que eu já tinha vivido. Agora eu não tinha mais dúvida nenhuma.

Nenhuma?

Nenhuma. Minha vida toda fazia sentido naquele momento.

Entende? Peguei o livro novamente, beijei-o mil vezes e abri novamente numa página qualquer. A primeira coisa que li dizia:

“Neste instante Sidarta deu-se conta de que o jogo terminara,

de que jamais poderia voltar a fazer parte dele. Um calafrio perpassou seu corpo. Sentiu que algo acabava de morrer em sua alma”.

Sim, era isso mesmo. Algo acabava de morrer em minha alma.

Eu estava fora do jogo, nunca mais ia poder participar daquele jogo. O que seria da minha vida daqui pra frente? Eu não fazia a menor

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ideia, mas isso não fazia a menor diferença. Eu estava vivo. Por mil caralhos voadores, eu estava vivinho da Silva de novo. Zerado. Eu respirava como se fosse a primeira vez. Sentia a vida fluindo em meus pulmões, em meu sangue. E tinha que agir. Eu queria agir, precisava agir. Tinha que agir rápido, antes que o Bhardian soubesse que eu ainda estava vivo. O jogo tinha acabado. Eu nunca mais iria pisar num palco pra cantar aquele lixo nojento de novo. Eu tinha certeza disso.

Certeza?

Certeza. Sim. Tenho certeza de que tinha certeza. Naquele mo-

mento. Era diferente de todas as outras vezes. Eu sabia, tinha certeza mesmo. Aquilo tudo tinha acabado dentro de mim. O que seria da minha vida dali pra frente? Eu não fazia a menor ideia, mas isso não fazia a menor diferença. Eu estava livre. E leve. E tinha pressa, muita pressa. Meu coração parecia a bateria dos Ramones. Uma música antiga. Rápida. Daquelas dos primeiros discos. Aquele frescor, aquela energia. A batera mais simples e mais dukaralho do mundo: Tumti; táti;tumti;táti;tumti;táti;tumti;tá. Solo de baixo: Dudududududududududum. Eu ouvia a guitarra do Johnny zunindo na minha orelha. Aquele timbre sujo, pesado, guitarra de macho. Guitarra pescotapa: A5;D5;E5;A5;D5;E5;A5;D5;E5;A5;D5;E5. O Joey começou a cantar com aquela voz de Roy Orbison depois da explosão atômica:

They’re forming in a straight line They’re goin in a tight wind The kids are losing their minds Blitzkrieg Bop

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32. Samsara

A primeira coisa que fiz foi entrar em contato com o doutor

Mo Yin na Tailândia. Eu e o doutor Mo tínhamos ficado bem próximos durante o episódio da Melzinha. Ele já tinha me dito há algum tempo que minha irmãzinha não tinha mais chances de voltar à vida e que era melhor a gente desligar as máquinas e deixar a natureza fazer o que ela achasse melhor. A mãe da Mel, que era uma pessoa muito prática e cética, pensava da mesma forma. Eu é que não aceitava aquela hipótese e dizia a eles que, enquanto eu estivesse vivo, manteria as máquinas ligadas. O doutor Mo, um médico chinês extremamente competente e rico, radicado na Tailândia, ficou um tanto surpreso com a minha mudança de direção, mas não foi difícil convencê-lo. A primeira parte de minha missão estava cumprida, minha irmãzinha ia sair daquela prisão e voltar pra casa.

Agora vinha a segunda e muito mais difícil: eu tinha que con-

tar ao mundo sobre a farsa do bananateknopop, tinha que contar ao mundo que “Liberta-me” era uma picaretagem, que eu era um ladrão, e que todos tinham sido manipulados pelos homens da ManGodCorp. E eu tinha que fazer isso o mais rápido possível, porque se Bhardian desconfiasse que eu tava vivo, provavelmente ia mandar alguém me matar. Eu não queria morrer, não podia morrer. Mas como eu ia fazer? O que eu poderia fazer?

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Tinha um cara, um velho conhecido meu. Um bróder das anti-

gas que tinha escrito sobre rock a vida inteira e agora era tipo alguém que tinha uma coluna superbadalada na Rolling Stone. Um gaúcho mala (redundância), extremamente rápido no gatilho e ligadaço em novidade. Disse pra ele vir ao hospital que eu tinha uma notícia bomba pra dar. Um superfuro que eu ia passar só pra ele. O cara me achava um bosta traíra do punk rock, mas mesmo assim qualquer furo a meu respeito o colocaria em evidência. Ele veio voando. Eu tava convicto do que ia fazer. Pelo menos. Eu achava que tava. O cara chegou. Ficamos a sós. Minhas mãos suavam. Aquele era um momento crucial da minha vida. Travei. Não consegui dizer nada. Pensava na Melzinha pra criar coragem. Mas não consegui. Inventei uma historiazinha boboca sobre o próximo disco. O cara ficou visivelmente frustrado e eu também. Não falei. Não revelei a verdade. Que mierda. O que era aquilo, a velha covardia?

Pode apostar.

Eu queria salvar o meu posto de maior rock-star do mundo pro

caso de mudar de ideia? Pior que não. Não tinha mais volta mesmo. Nem foi uma medida de segurança. Eu sei que você não vai acreditar no que eu vou dizer agora, mas eu vou dizer assim mesmo: eu fiz aquilo pelos fãs. Simplesmente não achei justo, não consegui dizer a verdade pro cara. E as pessoas? E todas aquelas pessoas que tinham acreditado em mim, todas aquelas pessoas que me tinham como uma espécie de herói. Foi por elas que eu não falei.

HUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHUAHU !!!!

Eu sei. Eu sabia. Que você ia rir, sim. Você também é tão pre-

visível. Tudo bem, pode rir à vontade. Eu também riria se fosse você. Apesar de que... Eu sou você... Também. Pode rir à vontade. Eu sei por que eu fiz. Isso é o que importa. Eu sei. Eu sabia. Que tinha que fazer alguma coisa, tinha que me mandar dali. Mas. Pra onde? Tudo bem, o fato de não ter jogado a mierda digo, merda, no ventilador me dava um pouco mais de tempo, mas eu juro. Eu juro que não foi

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o último rei do rock

por isso que eu não falei. Eu nem sei direito. Só sei que não falei. Fiquei pensando no que fazer. Com quem eu poderia contar numa hora daquelas?

O rosto do meu bróder Fumabomber apareceu no meu pen-

samento. O Fuma? Claro, claro, o Fuma, sim, ele era o cara, ele era um cara doido o bastante pra se arriscar a me auxiliar e de conseguir sacar um jeito de fugir daquela situação com vida, de sair vivo. Lembrei-me de um truque que o Fuma me ensinou pra usar o Skype ficando invisível. O Fuma era especialista nesses trem de desaparecer, de ficar invisível, sim, ele era o cara. Que sorte a minha conhecer um cara como ele numa hora daquelas. Liguei pro Fuma, mas ele não atendeu, devia estar dando aula. Eu teria que esperar até a noite. Ele deve ter chegado lá pelas 19 h. Ficou superfeliz de ouvir a minha voz. Como era bom ter alguém que ainda gostava da gente numa situação daquelas. Como era bom ter alguém que, apesar de me conhecer, ainda continuava gostando de mim.

– Vamos ter que agir muito rápido, disse ele. Eu sei Fuma, eu sei. Preciso sair daqui urgente.

– Você tem pra onde ir?

Não cara, pior que não. Só a casa da minha mãe. Mas. Se o

Bhardian for atrás de mim ele vai direto pra lá.

– Pô meu, você é de Brasília cara, deve ter alguém, algum lu-

gar. Pensa.

Karaka. As pessoas que eu conhecia aqui não querem me ver

nem pintado de ouro.

– Entendo. Santo de casa.

É. Bom. Eu acho que tô mais pra diabo de casa.

– Sei. Então. Tu vai ter que sair daí cara.

Sair daqui? Como? Tá maluco, se eu der um passo na rua, sou

reconhecido e uma multidão cai em cima de mim.

– Tu vai ter que simular um acidente.

Quê?

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– Isso mesmo, simular um acidente, tu vai ter que simular um

acidente.

Simular?

– É. Bem. Não. Simular não, tu vai ter que sofrer um acidente

mesmo.

Sofrer? Outro?

– É. Bom. Não, esse é muito menor que o outro.

Menor.

– É. Muito menor. Tu vai ter que cair de cara.

Cair de cara? Aonde?

– Aonde? Sei lá meu. Na armação metálica da cama.

Karaka véi. Putasquispariu.

– Eu sei Juan, mas é o jeito cara. Você tem que arrumar um

jeito de quebrar a cara mesmo, o máximo que você puder pra eles te fazerem um curativo enorme.

Tô entendendo.

– Pozé. E tu tem que fazer isso o quanto antes.

Tô ligado.

– Eu vou te pegar aí de carro. Vou sair o quanto antes. E depois

a gente vai ter que desaparecer por uns tempos. Eu sei pra onde a gente pode ir. Eu conheço uma pessoa. Tem uma amiga minha. Uma pessoa que eu conheço. Vou ter que falar com ela. Mas. Acho que rola. É uma pessoa meio doida. Mas... Acho que rola, véio.

Karaka meu, não sei como vou poder te agradecer.

– Fica na tua, maninho, que eu tô te devendo uma mesmo. E...

Também não tô tendo muito que fazer da vida nesse momento. E.... Fica quieto, cara. Não fala nada pra ninguém, nem pra tua mãe.

Tô ligado. Legal. Putz. Muito obrigado cara.

– BLZ. Mas agora é o seguinte, meu bróder: a gente tem que

agir muito rápido. Eu vou juntar as minhas coisas, encher o tanque e picar a mula pra Brasília. Quero ver se eu consigo te pegar aí ainda na madruga. A gente tá correndo contra o tempo. O Bhardian já tá sa-

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o último rei do rock

bendo que tu não caiu na arapuca dele. Mas tu tem que fazer a parada do acidente véio. Capricha aí senão, com essa tua cara de Juan LMK a gente não consegue chegar nem na portaria do hospital.

Falow.

Karaka, que sorte conhecer um cara que nem o Fuma numa

hora daquelas. Quase dá pra dizer que ele ficou feliz com aquela parada toda. Desliguei o telefone e comecei a imaginar o que eu faria. Eu tinha que simular uma queda, mas tinha que fazer um estrago, ou os caras não iam me fazer um curativo decente. Lembrei de alguma coisa que eu li não sei aonde, que a boca é uma região supervascularizada ou algo assim, o que significa que é cheia de umas pequenas veiazinhas e que sangra pacaraca.

Peguei a garrafa bojudinha de vidro que estava ao lado da

cama com água. Joguei-a no chão, ela se quebrou fácil. A água espalhou. Peguei o caco maior e fiz um corte que ia do lóbulo da orelha esquerda até mais ou menos a metade do queixo. O sangue jorrou e começou a empapuçar o meu pijama e os lençóis. Apertei várias vezes o botãozinho de chamar a enfermeira. Ela chegou esbaforida e ficou apavorada quando me viu. Deve ter pensado que eu tinha cortado os pulsos. Eu disse a ela que tinha tropeçado com a jarra na mão e ela imediatamente limpou o meu rosto, viu o corte, se assegurou de que não era profundo e foi buscar o material pra fazer o curativo. Como o corte era extenso ela teve que fazer um curativo bem grande. Bem mais assustador do que a gravidade do corte. Fiquei com aquela cara de múmia que ia ostentar pelos próximos meses.

O Fumabomber chegou lá pelas cinco da manhã. Como o guar-

da da noite era meu bróder e rolou uma grana, foi relativamente fácil de sair. Pegamos a estrada de Brasília pra Belo Horizonte, que é quase uma reta só e àquela hora estava bem vazia. Cruzamos uns poucos caminhões e pegamos algum engarrafamento na chegada à capital mineira. O Fuma tinha um Duster 2015 2.0. O bichinho era mei véi, mas andava direitinho. Antes do meio-dia a gente já tava no apê dele em BH.

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O meu bróder Fumabomba era um cara muito inteligente e

tava bolado. Ele entrou naquela parada de cabeça e sabia que a gente não tinha tempo a perder. Que cada minuto fazia diferença.

Almoçamos num pé sujo da esquina da casa do Fuma. Feijão

tropeiro, couve, carne de porco. Há quanto tempo eu não comia essas coisas. Eu tava me cagando de medo. Desde que começou aquela história de rock-star, tinha uns dois anos, eu não chegava tão perto das pessoas reais sem algum esquema de segurança. As pessoas olhavam, mas não me viam. Acho que ninguém poderia imaginar que aquele mané com cara de múmia que tava ali sentado no pé sujo da esquina era o famoso Juan LMK.

Tomamos um dos melhores cafés que já tomei na vida: café

com gosto de liberdade. Atravessamos o engarrafamento e saímos de BH pela BR381. Depois pegamos a BR262 em direção a Vitória, no Espírito Santo. Passamos um pouco de um lugar chamado Martins Soares, se não me engano. Tomamos outro café, não tão bom quanto o de BH, abastecemos o carro e pegamos a direita em direção à serra do Caparaó. Seguimos por estradas secundárias até uma cidade chamada Dores do Rio Preto, bem na fronteira entre Minas e Espírito Santo. Seguimos pela ES190 e depois pegamos uma estrada de terra na direção de uma outra cidadezinha: Ibitirama. Estávamos no pé do pico da Bandeira, o ponto mais alto do sul do Brasil. Um lugar realmente incrível e incrivelmente pouco povoado. Uma casinha aqui, outra ali. Deviam ser umas oito da noite quando chegamos ao portão da casa da Herte. O Fuma me deixou no portão e disse que era pra mim seguir a pé, que ela estaria me esperando. Disse que não poderia descer e que tinha que voltar pra BH, que depois ele me explicaria. Disse que eu estaria seguro ali e que podia ficar tranquilo que a Herte era uma pessoa muito legal, apesar de ser um pouco excêntrica. E que ela já tava sabendo da parada toda.

Excêntrica?

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33. Dôug shtiváns

Herte Füchs era realmente uma mulher incomum. Vivia em

uma casa redonda de pedra com a sua filhinha Dorothea e o cão Dog Stevens, que tinha esse nome em homenagem ao cantor hiponga Cat Stevens. Ela pronunciava: Dôug Shtiváns. Na casa de Herte não tinha nem comida industrializada, que ela obviamente era vegetariana radical e só comia o que ela mesma plantava em sua horta, nem camas confortáveis, nem água encanada ou luz elétrica. Nada disso. Televisão, telefone, computador, essa tralhas, nem pensar. O lugar era bem inacessível, mas Herte não tinha essas comodidades da vida moderna por opção, já que os vizinhos tinham. Bom, vizinhos é modo de dizer, que a casa mais próxima ficava a pouco menos de uma hora de caminhada. Herte até tinha um carro, um Fiat Uno Mille branco 2003, mas ele tava invariavelmente quebrado. Ou seja: um lugar perfeito pra alguém que queria desaparecer do mapa, como eu.

Herte veio para o Brasil em 2012 fugindo do fim do mundo. Era

uma ativista verde radical na Alemanha. Conheceu a serra do Caparaó, apaixonou-se e nunca mais saiu de lá. Vivia sozinha. Do mesmo jeito que sempre viveu na Alemanha. Construiu sua casa sozinha, somente com o auxílio de dois ou três caras. Havia controvérsias sobre a sua filhinha Dorothea. Uma ruivinha linda com uma leve deficiência mental. As pessoas viram Herte engravidar, rolavam umas histórias

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de um cara que tinha ido lá pra serra com ela. Mas ninguém viu nenhum pai depois que a menina nasceu.

A gente não conversava muito nos primeiros dias. Herte era

uma pessoa reservada e desconfiada. Eu dormia numa casinha que ficava atrás da casa redonda e servia como uma espécie de depósito. Eu não sabia exatamente que tipo de amizade ela tinha com o Fumabomber nem que tipo de conversa eles tiveram pra que ela aceitasse a minha presença em seu pequeno refúgio longe de tudo e de todos. Eu procurava atrapalhar o menos possível, ficava calado. E procurava auxiliá-la em suas tarefas diárias.

Pela manhã: recolher o leite e os ovos, alimentar os animais,

fazer o queijo, a coalhada, cuidar da horta, eventualmente auxiliá-la com o almoço, que em geral era preparado apenas com o que ela mesma produzia. Depois do almoço não tinha muito que fazer. Eu dormia até umas quatro da tarde. Depois auxiliava a limpar a casa, pois Herte era cuidadosa com a limpeza. Jantávamos geralmente uma sopa de legumes da horta e antes das nove da noite eu já estava em minha cama, já que o dia começava por volta das quatro e meia da manhã.

Era muito raro aparecer alguém por lá, como algum vizinho ou

coisa que o valha. Herte era extremamente antissocial. Quando aparecia alguém eu colocava o meu disfarce de múmia e procurava ficar mais na minha, pelos cantos. Dog Stevens rapidamente me adotou e em poucos dias já estava dormindo comigo na casinha. Herte não se opunha. Era muito estranho estar na presença de alguém que não tinha a menor ideia de quem eu era. Uma pessoa que não dava a mínima para pessoas famosas, mídia, show business, essas coisas. Na verdad, em toda a minha vida eu nunca tinha convivido com pessoas assim, e nos dois últimos anos, não sabia mais o que era olhar nos olhos de alguém e não ver aquele espanto, aquela histeria. Herte Füchs era alguém para quem esse universo era totalmente desconhecido e inútil. Ela não tava nem aí pro mundo. Não tava nem aí pra mim.

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o último rei do rock

Com o passar dos dias, lá pelo segundo mês, a gente come-

çou a quebrar o gelo. Quem deu os primeiros passos nessa direção foi Dorothea, seguindo Dog Stevens, meu bróder.

A menina era realmente muito linda. Devia ter uns seis ou sete

anos de idade, uma cabeleira que ia até a metade das costas e aquele olhar ao mesmo tempo abobalhado e beatífico que têm as crianças com alguma deficiência mental. Ela não ia a escola e nem a lugar nenhum. Não tinha amiguinhas, vivia sempre lá com a mãe. Só com a mãe. Herte não me perguntava nada, nem sobre o passado, nem sobre o futuro. Parecia que essas duas entidades não existiam pra ela. Realmente vivia para o aqui e agora. Mas também não ficava papagaiando isso ou outra teoria qualquer. Ela falava pouquíssimo e geralmente só sobre o tempo ou as plantas, ou sobre Dog Stevens. Eu não tinha previsão de quanto tempo iria ficar lá. Não sabia. Não tinha a menor ideia do que iria acontecer comigo. O que eu faria depois dali. Se existiria algum depois dali. Não dei um telefonema, não mandei nenhuma mensagem. Nem pra minha mãe nem pra ninguém. Eu sabia que aquilo era um absurdo, mas o que não era um absurdo em minha vida? Aquela era a minha chance de ficar vivo, pelo menos era o que eu pensava. A única. Se eu pudesse realmente sumir do mapa por uns dois ou três anos talvez o povo me esquecesse. Do jeito que as coisas estavam, e na velocidade que a mídia inventava novos ídolos, eu cairia no esquecimento e talvez até pudesse realmente ter alguma vida real depois daquilo tudo.

Os dias foram passando. Os seis primeiros meses voaram

como poeira ao vento. Era tão bom o silêncio, tão bom não ter que dar explicações pra ninguém. Tão bom estar limpo, sem drogas nem nada. Tão bom não sentir a fissura violenta da heroína. Era incrível como aquilo podia estar acontecendo. As pessoas fazem tratamentos caríssimos, eu mesmo tinha feito. E caem novamente, não suportam um mês longe do paraíso artificial. E eu estava alí há seis meses e não sentia vontade nenhuma. Eu não sentia vontade nenhuma de nada.

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34. Tu vai ter que morrer, véio, se tu quiser ficar vivo

Mas os paraísos na terra duram pouco. Um dia o meu bró-

der Fumabomber apareceu. Notei a aflição em Herte e Dory. O Fuma, como da outra vez, não desceu do carro. Eu perguntei se ele queria descer, mas ele disse que não. Preferia respeitar o isolamento da “alemoa”. Saímos pra dar um rolê. Paramos o carro próximo a uma cachoeira que se via da estrada e ficamos lá deitados ao sol da tarde. O Fuma enrolou um e perguntou se eu queria. Eu disse que não, ele ficou surpreso, mas respeitou de boa e disse:

– E ai véio, que tá achando dessa tua vidinha? Karaka meu, eu poderia ficar aqui pra sempre.

– E a alemoa?

É gente fina, Fuma, ela fica na dela.

– Tô ligado. É meio doida, mas fica na dela.

Notei alguma amargura nas palavras dele. Falei:

Tu já teve alguma parada com ela?

– Eu? Não, não. Karaka. Viajô véi. Ela é muito amiga de uns

amigos meus.

Não sei se acreditei muito na resposta. Mas fiquei na minha.

Ele disse:

– Mas e aí velho. Tu já pensou no que é que tu vai fazer da tua

vida?

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Não sei cara. Por enquanto, tô achando tão bom ficar aqui.

– Eu sei véio, mas tu não vai poder ficar ai pra sempre, tu vai

ter que arrumar um rumo, mermão.

Pozé. Mas como é que eu vou fazer? Como é que eu vou fazer

pra sair dessa?

– Eu tive pensando, tem o teu velho lá em Buenos Aires, né?

Tá maluco meu? Meu pai, Karaka. Buenos Aires, viajô véi? O

que é que eu vou fazer lá?

– É o seguinte... Se tu quiser sobreviver, só vai ter um jeito, tu

vai ter que virar outra pessoa. O Juan LMK vai ter que morrer, mórrer, entendeu?

Karaka, mas como é que eu vou fazer isso? E o povo na Argen-

tina também me conhece.

– Eu sei seu mané. É o seguinte meu, tu vai ter que fazer uma

plástica.

Plástica?

– É, teve um político, um cara chamado José Dirceu, que fez

uma parada assim. Foi na época da ditadura militar no Brasil, lá pelos anos 1970. O cara fez isso mesmo, ele morreu e nasceu de novo, com outra cara, outros documentos, tudo. Tu vai ter que fazer uma parada assim. Tu vai ter que morrer, véio, se tu quiser ficar vivo. Tu vai ter que abrir mão de tudo, da fama, da grana, das mulheres na tua cama. Dessa tua cara, carreira musical, tudo.

Karaka.

– Pozé. Mas tu quer ficar vivo, não quer?

Quero sim. Preciso ficar vivo. Eu não quero morrer.

– Então tu vai ter que fazer desse jeito que eu tô te falando

véio. É o único jeito. Fazer a plástica, abrir mão de tudo, deixar a tua grana no banco e nunca mais aparecer pra buscar. E começar a levar uma vida nova, com um nome novo, documentos novos, como um mané qualquer lá em Buenos Aires com o teu velho.

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o último rei do rock

Mas. Buenos Aires. Caralho. Pra que ir pra Buenos Aires, eu

posso ficar por aqui mesmo.

– Não rola véio. Aqui mais cedo ou mais tarde alguém te acha.

E lá também.

– Não véio. Lá tu não tem passado, não tem amigos, conheci-

dos do bairro, nada. Lá tu não é ninguém. Ou melhor, lá tu é ninguém.

Caralho Fuma. Mas...

– É o jeito, velho. Sumir mesmo. Desaparecer na poeira das

ruas. Na poeira daquelas ruas que não conhecem as tuas pegadas, que não conhecem o teu rastro.

Putasquisospariu Fuma. E o meu velho. Será que ele vai me

aceitar lá?

– Vai, claro.

Cuméctu sabe?

– Uai. Porque eu já falei com ele.

Tu falou com ele? Karaka Fuma, porra sem falar comigo véio?

– Eu tinha que fazer isso mano véio, antes de falar contigo, se

não tava sujeito tu não aceitar. Os trem...

Putasquispariu, Fuma.

– Tô ligado meu. Mas foi o jeito. Teu pai mora sozinho em Bue-

nos Aires. Ele ficou superfeliz com a possibilidade de vocês morarem juntos.

Karaka meu. Porra.

– Eu sei Juan, mas não tem outro jeito véio.

Eu posso ficar aqui.

– Não véio, não rola. Sem chance de tu ficar no Brasil. Já falei.

Aqui mais cedo ou mais tarde alguém vai te descobrir.

Mas como é que a gente vai fazer isso?

– Nós vamos pra BH. Eu tenho um bróder. Um cara das anti-

gas. Médico, cirurgião plástico, esses trem. Ele vai fazer a cirurgia. Depois a gente volta pra cá e tu fica um mês se recuperando. E depois, com cara nova, documentos novos e talz, Buenos Aires.

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Porra meu, é phoda.

– Eu tô ligado, Juan, mas é o jeito.

Ninguém vai me reconhecer mais?

– Ninguém véio. Tu vai ser outra pessoa.

Karaka.

– Porra tá apegado meu? Hahahaha. Apegado?

Não, não. Quer dizer... Porra meu sei lá.

– Tu tá sim véio. Mas sei lá né. Não tô na tua pele né? Tu sem-

pre foi isso, né? Sempre foi essa porra de pop star, deve ser phoda também deixer de ser, né? Ser um cara comum sei lá.

Não, não véio, nada a ver, quer dizer sei lá. Mas é o jeito né?

– É. É o jeito. Não tem outro. Tu tem que morrer meu velho. Se

tu não morrer, eles vão te matar.

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35. Não dizem que a vida começa aos quarenta?

O Fuma conseguiu arrumar a parada em menos de um mês.

Eu ia ser outro cara. Ou pelo menos ia passar a ter outra cara. Muito mais velho e muito mais feio. O cara ia ter que fazer um trabalho insólito: transformar-me em um cara muito mais velho e feio do que o cara que eu era então. Ele ia ter que me transformar em alguém que não pudesse gerar nenhum tipo de suspeita de que ali existia um exsuper-pop-star.

Naqueles dias a Herte se aproximou mais de mim. A gente

desenvolveu uma amizade de verdad. Sei lá, acho que o fato de eu estar tirando a minha máscara abriu uma porta pra ela chegar mais perto. A gente começou a conversar e curiosamente descobrimos que tínhamos muito assunto pra conversar. Era uma conversa estranha. A Herte não era muito de conversar, e os assuntos que eu dominava não a interessavam em absoluto. Então a gente falava de coisas que eu nunca tinha falado antes com ninguém: o fogo, a terra, a água e o ar.

Durante toda a minha vida eu tinha vivido em ambientes liga-

dos ao rock, ao show business. Eu nasci e cresci naquele meio urbano sujo e decadente que era o mais natural para mim. Agora, convivendo com a Herte e a Dory, que eram pessoas que nem sabiam que esse tipo de coisas existia, eu estava me dando conta disso: eu havia vivi-

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do minha vida toda em um teatro. Eu sempre fora um personagem. Tudo o que eu dizia, tudo o que eu fazia, e até mesmo tudo o que eu pensava era calculado pra causar algum tipo de efeito nas pessoas. Eu era um personagem de uma peça teatral que era a minha própria vida. E agora eu estava ali naquela situação. Desarmado, sem a minha máscara, sem plateia, sem ninguém pra me lembrar do personagem que eu era. O que eu era afinal? Quem eu era? Eu tinha quarenta e dois anos e estava nascendo. Não dizem que a vida começa aos quarenta? No meu caso, isso era bem uma realidade.

Às vezes, andando sozinho no meio daquela imensidão de-

serta, eu percebia que até ali eu tava posando. Eu tava posando pra quem? Pras nuvens, pras formigas? Pras pedras? Eu passava horas e horas andando na montanha. Andando sozinho. Apesar de ser um lugar turístico, eu conheci umas trilhas onde nunca passava ninguém. Eu ia e voltava, subia e descia. Andava sem rumo apenas pelo prazer de andar e estar em minha companhia, sem a máscara. O futuro não me assustava nem me causava ansiedade. Era incrível como eu tinha mudado tanto em tão pouco tempo.

Tinha um pássaro que sempre estava por ali quando eu an-

dava. Não sei que pássaro era, não entendo nada desses trem. Meu conhecimento sobre pássaros é suficiente pra saber a diferença entre um pássaro e um avião. Bão. Pelo menos... De perto. O bichão tava sempre por ali. Ele no céu e eu na terra. Que nem Deus, ou como vocês queiram chamar isso. O que seria da minha vida dali pra frente, o que eu faria, o que eu seria? Eu estava tão desapegado de tudo. Acho que quase posso dizer que estava feliz, que aqueles foram os dias mais felizes da minha vida, seja lá o que isso quer dizer. A Herte tava me ensinando a ser gente. A Herte e o Véio Sebastião, que era um senhor que vivia por ali, e que eu encontrava às vezes nas minhas caminhadas pela montanha. O Véio Sebastião também não tinha a menor ideia de quem era Juan LMK. Pelo menos eu achava isso no começo. Ele apenas estava falando comigo, com a pessoa que ele

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estava conhecendo ali. Ele era uma peça bem rara, figura estranha mesmo. Eu não sabia nada da vida dele, onde ele morava, se tinha família ou não. E ele não queria saber quem eu era, de onde eu vinha, pra onde eu ia. Não queria saber o que ele iria ganhar sendo meu amigo ou não. A gente falava sobre a temperatura, os bichos que viviam por ali. Deus. Tudo isso era muito novo pra mim. Eu parecia um menino de tão deslumbrado que estava com aquela vida nova. Como era bom ser ninguém. Como era bom apenas ser, sem ter que pensar nas palavras que eu deveria dizer ou a pose que eu deveria estar fazendo na hora de falar. Eu era outro cara e a cirurgia ia apenas sacralizar meu renascimento. Pelo menos era o que eu pensava.

Mais ou menos uns dez dias antes da data marcada para a

cirurgia as coisas começaram a mudar. Comecei a ficar desesperado. De onde vinha o desespero? Que desespero era aquele? Eu estava tão seguro de que era exatamente aquilo que queria fazer. Pelo menos, achava que estava. Mas eu não estava. Tão seguro assim. Comecei a entrar numa noia terrível. Quem eu era? O que eu seria? Pra que continuar vivo? Já que eu ia morrer, por que não morria logo de uma vez, morte de verdad. Tinha medo. Eu ia ter que ganhar a vida como uma pessoa qualquer. Será que eu daria conta? Eu ia ter que ter amigos, teria que ter algumas pessoas para poder confiar se quisesse sobreviver. Será que eu ia dar conta de me fazer gostar pelas pessoas apenas pelo que eu era, sem o personagem, sem o cenário, sem as pessoas serem os atores coadjuvantes na peça que eu mesmo era o diretor? Será que eu não devia morrer logo de uma vez? Karaka. Talvez fosse melhor assim, sumir e pronto. Será que se eu morresse eu ia lá pro túnel? Será que ia ter que passar alguns séculos lá no buraco frio, longe de tudo e de todos? Não, eu não queria morrer, eu não podia morrer. O que eu ia fazer dali pra frente? O que seria da minha vida? Eu não sabia, mas sabia que não podia morrer. Que mierda, eu achei que estava curado. Eu estava curado. Então o que era aquilo agora? Uma recaída? Por quê? Por causa da cirurgia, sim, é claro, era por cau-

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sa da cirurgia. Porra que mierda, apego cara, apego. Putasquispariu, eu tinha morrido, tinha nascido de novo e tava ali apegado na minha imagem, apegado na porra da minha imagem que não me servia mais pra nada. Tava apegado no meu próprio cadáver. Como era possível? Como era possível eu estar apegado? De que me servia aquilo tudo. Eu não tinha renunciado? Não tinha entendido as palavras de Herman Hesse pela boca de Sidarta? Não tinha entendido tudo o que a Herte me disse? Tudo o que a montanha me dissera pela boca do Véio Sebastião,como o rio dissera pra Sidarta?

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36. Na montanha

Eu precisava estar mais uma vez com a montanha. Mas já era

tarde. Se eu saísse de casa naquela hora ia estar à noite na montanha, e à noite a montanha era perigosa. As pessoas não iam. Especialmente quando ameaçava chover. As nuvens estavam carregadas. Eu sabia que corria um risco, mas precisava ir. Precisava obedecer ao chamado. Eu estava mais uma vez caminhando sobre um fio de navalha e precisava fazer alguma coisa doida pra poder sobreviver. Já estava começando a sentir vontade de heroína de novo. Não podia deixar aquilo crescer em mim novamente depois de tudo o que tinha passado. Sai de casa em direção à montanha. Caminhei por umas duas horas. Já estava bem escuro quando eu comecei a subir e as nuvens baixas estavam carregadas. Eu praticamente caminhava por dentro de uma nuvem negra. Não enxergava muita coisa. A situação estava ficando realmente perigosa, mas eu não conseguia voltar, eu não podia voltar. Andava passo a passo. Ao mesmo tempo queria voltar, mas também desejava ardentemente seguir em frente. Pra onde eu ia? O que buscava agora? O que mais eu precisava? Que porra de um espírito alucinado eu era. Que mais eu precisava? Meu coração palpitava, eu sabia de alguma forma que não estava sozinho. Quem seria? Quem, além de um alucinado como eu, poderia estar na montanha naquele momento?

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carlos maltz

Havia lendas. Sobre ladrões, assassinos. Bandidos do Rio que

fugiam praquela região e se escondiam no alto. Assassinos. Havia outras lendas também. Sobre espíritos. De um homem que fora encontrado morto lá há muitos anos e ninguém sabia quem era e nem de onde veio. O Véio Sebastião conhecia as lendas. Ele me contava.

A chuva desabou. Era muita chuva, muita água. Eu estava en-

charcado, não enxergava mais um palmo à frente do nariz. O que eu faria agora? Andar era muito perigoso, mas se ficasse parado o frio ia me destroçar. Segui andando pra frente. Andar era melhor do que estar parado, apesar do perigo. Comecei a chorar, a me amaldiçoar por ter feito a burrice de subir sozinho aquela hora, sem agasalho e com um tempo daqueles. Ouvi um barulho. Agora eu não tinha mais dúvidas. Eu não estava sozinho. Quem seria? Comecei a gritar:

Quem está aí? Quem está aí?

Mas o ruído da enxurrada era maior. Era muito maior, encobria

tudo. Tudo era enxurrada. Comecei a sentir água correndo contra a direção em que eu caminhava. Tinha água por tudo, dentro das roupas, dos olhos, dos ouvidos. Era muita água, ia me arrastar. Eu tava fudido. Eu ia ser arrastado mesmo. Será que eu ia morrer? Não, eu não ia morrer, eu não queria morrer. Não ia morrer daquela forma idiota. Agora eu tinha certeza disso. Ouvi mais uma vez o barulho. Estava bem perto de mim. Era estranho, parecia barulho de asas. Seria o meu amigo pássaro? Sim, era ele, eu vi o vulto na escuridão. Ouvi o grito dele. Não, não podia ser. Eu estava delirando mais uma vez. Será que eu estava perto da morte mais uma vez? Será que ia conseguir me safar mais uma vez? Será que eu queria me safar dessa vez? Era ele. Eu tinha certeza. O que ele estaria fazendo ali? Será que estava me seguindo? Será que ele ia me salvar? Como ele poderia fazer isso? De repente ouvi uma voz:

– Dioleno! (era assim que ele me chamava).

Era o Véio Sebastião. De onde ele vinha? De onde ele saiu?

Seu Sebastião?

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o último rei do rock

– Sou eu mesmo.

O que o senhor está fazendo aqui?

– Eu vi ocê subino.

Mas. O pássaro.

– Sim, eu vi. O bichin.

Eu. Eu estou com muito frio.

– Sim, eu sei. Venha comigo.

Andamos uns vinte minutos sob chuva cerrada. O velho sa-

bia onde estava pisando. Entramos por dentro de uma mata escura. Alguns metros mais adiante, chegamos numa espécie de caverna ou algo assim. Não era muito ampla, mas era suficiente pra nós dois. Tinha fogo aceso. Sentir o calor daquele fogo naquela situação em que me encontrava foi uma das sensações mais maravilhosas que eu já vivi em toda a minha vida. O velho disse:

– Ocê tava correno perigo.

Eu sei seu Sebastião, sou muito agradecido ao senhor, o se-

nhor salvou a minha vida.

– Não tem carecência desses trem. E não é a primeira vez que

ocê quase perde ela né?

Como ele sabia disso? Eu não tinha contado nada pra ele. Do

meu passado.

– Como o senhor sabe disso, seu Sebastião? Eu não tinha con-

tado pro senhor.

– Tinha sim, tinha contado sim.

Não me lembro de ter contado.

– Não se alembra? Contou. Dendoseus pensamento, moço.

E o senhor lê pensamento, seu Sebastião?

– Ah, só dasveizdinquando.

E como que o senhor faz isso?

Uai, mas e ocê também não sabe fazê?

Eu não.

– E sabe sim. Ocê feiz iss lá no túnel.

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carlos maltz

No túnel? Mas como...

– Uai, tá nos seus pensamentambém moss.

E que mais que o senhor tá vendo nos meus pensamentos?

– Tó veno que ocê tá mui divindido.

Dividido?

– É seu Dioleno. O senhor tá com medo.

E com medo do que... Que eu estou seu Sebastião?

– Tá com medo de perdê uma coisa.

E que coisa é essa seu?

– É uma coisa que ocê nem tem mais.

E como é que alguém pode perdê uma coisa que não tem

mais, seu?

– Hehehe. E é isso que eu tô quereno que o sinho mêss mix-

prique. Que eu memo não vejo ixpricação pruma coisa dessa. A pessoa perdê uma coisa que não tem mais.

E o senhor pode me dizer que coisa é essa?

– Essa coisa era ocê mês né seu moço. Ocê mêss.

E não sou mais?

– Não, não é mais não.

E desde quando que eu não sou mais?

– Uai e ocê num sabe não? Não sabe que é desde quando foi

lá no túnel?

E o túnel existe mesmo, Seu Sebastião? O senhor já foi lá?

– E ocêr não sabe? Não viu a foto da sua avó? Se eu vô lá? Uai

e vô. Todasnoite eu vô. E o senhor também. De onde é que o senhor acha que a gente já se conhecia?

A gente já se conhecia?

– Uai, e não? Tá sisquecido de mim seu moço?

Esquecido?

– Tá sisquecido sim. Hehehe. Cabrito novo. E cuma mimória

ruim dessa.

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o último rei do rock

Quer dizer então que a gente vai todas as noites lá no túnel,

Seu Sebastião? A gente vai lá fazer o quê?

– E ocê tá achano que a gente vai lá no túnel pra passear, Dio-

leno?

E o que foi que eu perdi lá no túnel seu Sebastião?

– E não sabe não? Perdeu as ilusão. Mas parece que não qué

largá. Hehehe.

Sei. Seu Sebastião. Olha. Eu preciso perguntar uma coisa pro

senhor.

– Uai pringunte pringuntão, se eu pudé, eu repondo.

Por que eu não morri no acidente?

– Uai e eu sei lá moço. O cê acha mêss que eu vô sabê um

trem dess? Isso é assunto de Deus, e só EL’e mês que sabe as hora de cada um entrá e saí dessa vida. Mas... Ocê tá achano ruim tê ficado vivo? Tá quereno morrê? Tá quereno morrê antes da hora?

E tem hora certa de morrer?

– E tem uai, e quem decide não somo nóis, que não foi nóis

que decidimo quando era a hoa de vim.

Morrer? Não, não, eu... Não, não tô querendo morrer, não.

– E o que é que tava fazeno numa noite dessa na montanha?

Na chuva. Ocê subiu na montanha com a noite se adentrando. Colocô ocê mêss em perigo e eu também, que tive que vim aqui tirá ocê da situação.

Seu Sebastião. Puxa, eu não... Me desculpe. Eu... Eu tô numa

situação muito difícil.

– Difíci? Que difíci? Só por que vai perdê essa tuas fuça de

menino?

É? Não, sim. É. Seu Sebastião. É que eu...

– Rapá. Eita. Que frouxura. Tá se mixando só por que vai per-

dê a embalage de Dioleno de araque?

Mas. Seu Sebastião. Se tirar a embalagem o que é que sobra?

– Uai, sobra o presente.

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carlos maltz

O presente? Mas. O que é o presente?

– O presente? O presente é o que tá acontecendo agora seu

moço. O presente é nóis dois aquiagora tendo essa conversa que nóis nunca tivemu antes e nunca vamu tê dispois. O presente é o maior presente que Deus nos deu: o agora, o que tá acontecendo agora. Nóis aqui, se aquecendo nesse fogo. Adipois de tê quase morrido de frio. Pode tê coisa melhor que isso?

É verdade. Isso aqui tá bom demais. Mas... E depois, e depois

daqui?

– Adispois? Uai adispois é que nóis vai sabê.

Mas... Então. O senhor nunca fica pensando no futuro, seu

Sebastião?

– Não perca um minuto do meu sono pensanum trem desse.

Entendo. Deve ser por isso que o senhor dorme. Né seu Se-

bastião. Sem Rivotril.

– Rivelino?

Hã? Ah, nada não seu Sebastião, esquece. Olha. Não sei se o

senhor tá entendendo qual é o meu problema.

– Eu tô entendeno sim, seu moço. Dioleno. Eu sô uma pessoa

simples, mas num sô abestado. Óia, eu vô contá uma stória procê. A stória de uma moça. Muito bunita. Ela era filha duns fazendero de Dores. Gente cheia das mufunfa. Plantadô de café. Moça muito bunita mêss. E muito vaidosa, muito. Ela não namorava ninguém, só ficava era se exibindo mêss. Isso foi há uns quarenta ano atrás. O macharedo vivia atrás dela, os rapaz da região toda. Tinha um rapaz que era apaixonado. Já tinha pedido ela pro pai e tudo. Rapaz bom, trabalhadô. Vivia correndo atráis. Mas os assunto dela era só de se exibí mêss. A mãe que criou assim. Ela era os orgulho da mãe. A moça mais linda de toda essa região da serra. Nem em Minas não tinha moça mais linda que ela. Ela não namorava é com ninguém. Era tipo uma flor dessas de beira de estrada, sabe? Só servia pra sê oiada. Uma noite ela vinha vortando de uma festa co’irmão dela, uma noite

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o último rei do rock

de chuva que nem essa. O irmão tinha um camionetão e gostava de pisá fundo. Era gente muito rica e esses povo dasveizi fica se achano que pode tudo né? Especialmente os fio. Que não foi quem teve que ralá pra juntá a fortuna da família. Só faiz mês é disfrutá. Em noite de chuva a gente não deve pisá. E nem dirigí mamado. E nem subí na montanha. Viu seu moço? Eles capotaram numa curva que fica bem pertinho da fazenda do pai. Bem uns três quilometro, ou até menos que isso. O carro virou e pegou fogo. O irmão, apesar de tá mamado conseguiu siscapá sem muito dano. Mas ela “se queimou-se”. “Se queimou-se” feio. Metade do rosto dela ficou arruinado. E naqueles tempo as operação prástica não era desse memo jeito que é hoje. Os médico fizero de tudo. Melhorô bem, mas não vortô mais a ser da mema perfeição que era dantes.

O que aconteceu com ela, seu Sebastião?

– Não guentô muito tempo não, seu moço. O rapaz que vivia

atrás dela não se importô muito com as marca. Ele continuou correno atrás dela. Continuô quereno casá-se com ela.

E ela?

– Ela entrou numas tristeza muito grande. Não saía mais da

cama. Foi definhando que nem boi doente. Um dia siscutou-se um grito. A própria mãe que encontrou a filha pendurada no alpendre da cozinha. Tinha sido bem recente. O corpo ainda tava quente. Ela jogou a corda por trás de uma treliça e subiu numa cadeira. Adispois chutou a cadeira e ficou lá dependurada pelo pescoço.

Que triste. Meu Deus. Que absurdo.

– Sim, uma stória bem triste mês seu moço. Uma moça tão

nova, com tanta vida ainda pela frente. Podia ter se casado, constituído uma família, ter vivido os tempo dela aqui na terra. Os pais nunca mais se recuperaro. A mãe não se conformou, não se perdoou. Por perdê a sua boneca. Acabou ficando doida.

Seu Sebastião. Por que é que o senhor me contou essa história?

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carlos maltz

– E tu não sabe não, cabrito? Viche. O moço é tão intiligente.

Não se apercebeu-se não?

Percebi o quê?

– Percebeu-se que ocê é igualzin a ela. Igualzin a mocinha vai-

dosa. Que morreu. Porque rasgou a embalage. Ela preferiu morrer que viver sem a embalage perfeita.

Mas seu Sebastião eu. Não. Quer dizer. Não é só a embala-

gem, seu Sebastião, é a minha vida.

– Ukéki tem a tua vida?

A minha vida. O que é que vai ser da minha vida? Eu perdi a

minha vida seu Sebastião, eu perdi. Podia ser uma mierda de vida, eu podia ser um fake mal feito. Uma imitação. De outra pessoa. Mas. Sei lá. Era o que eu era, né? E se eu não for isso, o que é que eu vou ser?

– Pozé, como eu tô dizeno seu moço, ocê é igualzin a moça. Tá

achano que o presente é o pacote.

E não é? É o que então?

– Seu moço agora é que a sua vida vai começá. O presente

não é a embalage, o presente é o que tá dendela. O seus valor. As coisa que ocê dá valor de verdade, os seus sonho.

Minha vida vai começar? Que nem o Sidarta quando voltou

pra casa do balseiro.

– Quem?

Hã. Não, nada não seu Sebastião, é só um livro que eu li.

– Leu é? Pozé seu moço, agora é que sua vida vai começá.

Mas o que é que eu vou fazer, o que é que eu vou ser?

– E ocê acha que isso faiz tanta diferença assim? Ocê acha

mesmo que ocê é o que ocê faiz?

E não sou? Eu vivi a vida toda querendo ser uma coisa, al-

guém. E consegui chegar onde eu queria. Agora vou ter que deixar de ser essa pessoa, eu vou ser o quê? E o senhor tá dizendo que a minha vida vai começar agora? Como assim, o que o senhor está querendo dizer com isso. Eu não estou entendendo nada.

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o último rei do rock

– Pozé. E adispois eu é que sou o gonoronto aqui.

Gonoronto?

– É pessoa disinstruida, que não sabe de nada.

Ahhh, ignorante, ignorante o senhor quis dizer.

– É, isso mesmo.

Ah não seu Sebastião eu sei muito bem que o senhor não é

ignorante, eu já vi muito bem que embaixo dessa casca grossa aí disfarçado de caboclo, o senhor é um grande sábio.

– Hehehehe. Grande coisa nenhuma. Eu luto é pra sobervivê

meu fio. Mas. Oia só o que ocê mesmo disse cabrito novo.

O que eu disse?

– Ocê disse agorinha mês. Que debaixo da casca, eu sô outra

coisa.

É. É?

– É, pozé. E tem muita gente que não vê, tem muita gente que

pensa que eu sô um gonoronto. Cumaé que é mês?

Ignorante.

– É. Inguinoronto. Tem muita gente que não vê através da cas-

ca, pensa que eu sô um igonoronto mês.

É, eu sei seu Sebastião, eu sei. A maioria das pessoas, quando

a gente pede a elas pra se apresentarem, a primeira coisa que falam é a profissão. Os cursos que ela fez, os diplomas, esses trem.

– Póze seu moço. As casca. O povo tá achano que é só as cas-

ca. E eu é que sô o gonoronto.

Ignorante.

– Ingonoronto.

É, seu Sebastião, mas eu também, eu também passei toda a

minha vida acreditando que eu era a casca. E agora, como é que eu vou fazer pra sobreviver sem ela?

– Ah, é fácir, ocê arruma otra.

Outra? Mas. Assim. Quero dizer. Assim tão fácil, o senhor acha

que isso pode ser feito assim tão fácil?

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– Má rapai. Ocê salvou a sua vida. Ocê salvou a sua vida e

agora vai corrê pra trais. Vai duvidá de ocê mês? Vai duvidá das coisa que ocê mês viveu?

Seu Sebastião, eu sou uma pessoa muito confusa. Eu. Eu. Eu

usei drogas durante quase toda a minha vida e...

– E ocê acha que eu não sei?

Ah, sim. Tá nos meus pensamento também, né?

– Não. Tá marcado na sua cara seu môss. E nas suas palavra.

Na sua vacilação. No seu medo.

E eu tenho medo do que seu Sebastião?

– Uai. E do que as pessoa mais tem medo?

Da morte?

– Não seu moço. Se as pessoa tivesse medo da morte mêss,

cumaé que tinha tanta gente se matando nesse mundo?

É vero. Mas. Então. Do que é que as pessoas têm tanto medo,

seu Sebastião?

– Têm medo é da vida. Medo de se encontrá-se com a verdade.

O desafio de começar de novo sem a minha casca velha?

– Ferpeitamente sim sinhô môss.

Subitamente seu Sebastião levantou-se. A chuva tinha estiado

e ele disse que precisava buscar mais lenha. Depois de umas duas horas esperando ele voltar, eu dormi. Acordei pela manhã com o sol já alto. Nem sinal do velho. Na verdad, eu nunca mais o vi. Tinham marcas de fogo pela manhã, nas paredes da caverna, e eu não me lembro de ter feito o fogo. E também nunca mais consegui encontrar aquela mesma caverna nas duas vezes que subi novamente à montanha antes de partir definitivamente de Dores.

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37. Minha nova velha casca

Fiz a cirurgia. Deu tudo certo. Era moleza, embora o médico

tenha ficado um tanto quanto espantado com o fato de alguém querer fazer uma cirurgia daquelas. Ele disse que em seus trinta anos de profissão nunca tinha visto nada parecido. E sabia que ia ter que ficar de bico fechado sobre aquela parada. Mais um fato insólito na minha insólita existência. Eu tinha realmente envelhecido uns vinte anos. Ou desrejuvenescido. E era phoda, porque eu já estava acostumado a parecer um garoto e ter sempre aquele povo todo olhando pra mim. Fiquei uns dias de bobeira na casa da Herte, lendo e relendo o Sidarta. Depois de um mês, mais ou menos, o Fumabomber veio me buscar pra gente ir ao aeroporto do Galeão pegar o avião pra Buenos Aires.

Despedi-me das duas com lágrimas nos olhos. Foram alguns

poucos meses de convivência com elas, mas eu tinha vivido algumas coisas ali que não tinha vivido até então. Especialmente com a Dory. E com o Dog Stevens. Eu nunca tinha tido cachorro na vida. E nem tinha convivido assim tão próximo a uma criança, e ainda mais uma criança tão amorosa como ela. Quando passei pelo portão tinha um nó na minha garganta.

Eu falei pro Fuma que era melhor a gente ir por BH, ou por

Vitória, aeroportos um pouco menores, menos gente e talz, mas ele achava que não seria necessário, e realmente não foi. O Fuma tinha sido um bróderzaço pra mim. Eu não teria como retribuir tudo o que

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ele havia feito. Ou melhor, eu achava que não tinha nada que eu pudesse fazer por ele, mas na verdade tinha, e eu não sabia ainda.

Chegamos ao aeroporto umas três horas antes. Um misto de

euforia e pânico me percorria. Por um lado, queria experimentar minha nova casca, como um menino que ganha um brinquedo novo está doido para experimentá-lo. Por outro lado, eu temia me arrepender de toda aquela doidera e não ter como voltar atrás. Na verdade eu não tinha mesmo. O que é que eu ia fazer? Eu ia voltar pra onde? Todas as pontes estavam queimadas. Eu só podia avançar. Mesmo se aquilo tudo desse certo, e a chance não era das maiores, eu não sabia se ia poder sair vivo. Se os caras da ManGod iam arriscar me deixar vivo. Eu era a porra de um arquivo vivo. Mas eu tinha que tentar. Aquela era a minha única chance e eu tinha que tentar. Era um trem doido demais, mas as coisas que tinham acontecido na minha vida eram tão doidas que talvez aquela doidera tivesse alguma chance de vingar.

Era muito estranho andar no meio da multidão e não ser reco-

nhecido. Porra do caralho. Olha só que maluquice. Olha as coisas que eu tinha vivido nos últimos dois anos. Como aquilo tudo era possível? Eu era o mesmo cara. O mesmo mané. Agora as pessoas me tratavam como um mané mesmo. Um mané qualquer. De certo modo era também um alívio estar de volta ao meu tamanho real. Aquele negócio de ser uma divindade não combinava comigo. Ser uma divindade é coisa pra quem nasceu pra isso. Se tudo aquilo que aconteceu serviu pra eu aprender isso, já tinha valido a pena. Eu gostava de ser um mané. Embora agora, depois de ter sentido o gostinho de ser uma divindade, mesmo sem ter a vocação, eu também sentia falta dos privilégios. O Fuma até perguntou se eu queria ler o que os blogs e as revistas estavam dizendo a respeito do meu desaparecimento, e eu disse que não.

Eu tinha pouca grana. Bem pouquinha. Eu nem lembrava mais

o que era ter que pensar em grana. Eu tinha uma grana que o Fuma

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me deu pra poder chegar à Argentina, até encontrar o meu velho. Eu não sabia o que faria dali pra frente. Meu pai também não tinha lá muita grana. Ele sobrevivia da administração de um café, que foi o que sobrou da herança que ele recebeu do pai dele. Um café velho, sujo e feio em uma esquina qualquer num bairro qualquer de Buenos Aires foi a única coisa que sobrou. Eu teria que trabalhar. Teria que fazer alguma coisa. Fazer o quê? Eu nunca tinha feito nada. Teria que trabalhar no café. Será que eu tinha competência pra ser gerente? Caixa? Garçom? Faixineiro? Sei lá. Eu não fazia a menor ideia. E não estava mais acostumado a ter pouca grana. Não tinha a menor ideia do que era trabalhar pra ganhar a vida. Não estava mais acostumado a não ser bajulado. Era bom por um lado, mas me deixava profundamente irritado por outro. Era como se eu fosse duas pessoas ao mesmo tempo, uma que estava gostando da nova liberdade que a perda da casca velha me proporcionava, e outra que estava odiando tudo aquilo, como um menininho que de uma hora pra outra deixasse de ser o centro do universo pelo nascimento do irmão menor.

E o meu pai. Como seria a nossa relação? Karaka, isso era o

mais difícil. Embora eu achasse muito cruel o que estava fazendo com a minha mãe, eu sabia que ainda não podia entrar em contato com ela. Ela ia abrir o bico com certeza. Ela não ia dar conta de segurar nada. Precisava ser daquele jeito. Ela devia estar sendo monitorada vinte e quatro horas pela turma do Bhardian. E pelos jornalistas. Meu pai também devia estar sendo monitorado, mas algo me dizia que se eu realmente sumisse e entrasse na minha casca nova, teria alguma chance de sobreviver, teria alguma chance deles me deixarem em paz. Mas pra isso eu tinha que desaparecer mesmo. Pelo menos, por alguns anos. Sei lá, uns dez anos. Teria que realmente virar outra pessoa. E de certo modo eu sabia que se eu pegasse a grana da casca velha, ou mesmo parte dela, o instant karma não ia me perdoar. Sei lá, eu pensava isso. E acho que estava certo, pois estou aqui contando essa história.

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Desembarquei em Buenos Aires numa tarde fria e chuvosa.

Tinha estado lá só uma vez com a gig do “Liberta-me”. Só conheci o aeroporto, o quarto do hotel e o estádio onde tocamos, que coincidentemente era o mesmo que ficava próximo de onde eu morava agora. Era como estar pela primeira vez mesmo. Pareceu-me que eu estava voltando no tempo, pra outra época.

Eu cresci em Brasília, uma cidade que na verdade não é bem

uma cidade, é mais parecida com um Playmobil. Pela primeira vez eu estava vivendo em uma ciudad de verdad. Com calçadas, esquinas, gente nas ruas. E cafés, bares, restaurantes, teatros, esses trem. Apaixonei-me por essa cidade desde o primeiro momento e nunca mais perdi a minha paixão. Até hoje, faça frio ou calor, costumo andar pelas ruas de Buenos Aires sem rumo definido por horas a fio. É meu esporte preferido. E meu maior prazer, além de ler os livros que o meu pai me deixou. O escritor Jorge Luis Borges, que é um deus nesta cidade, também apreciava esse esporte. Chamava-o: Callejear por Buenos Aires. Callejear: palavra intraduzível.

Tudo que eu pude imaginar em relação a mim e meu pai foi

por água abaixo em menos de quinze dias. Ele estava sentindo dores muito fortes e uma ida ao médico revelou que o câncer que aparentemente havia sido vencido, na verdade estava apenas hibernando. A coisa voltou com força redobrada e espalhou-se por praticamente todo o corpo dele. Ele não teria, segundo o médico, mais do que um ano de vida. Na verdad, não chegou a seis meses.

Foram seis meses difíceis. Ele não podia fazer mais nada. Eu

praticamente ficava ao pé de sua cama. Por sorte ele não durou muito tempo mais. As dores eram terríveis. E eu era um péssimo enfermeiro. Era muito sofrimento. E ainda tendo um panaca como eu como única pessoa que ele podia contar. Dizem que o destino prega peças, e no nosso caso foi exatamente isso mesmo o que aconteceu. Que peça que o destino, o acaso, ou seja lá o que for isso nos pregou. Ele estava recebendo tratamento à base de química pesada e radiação.

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o último rei do rock

Vomitava muito. Não tivemos muito tempo juntos, mas foram dias intensos. De certo modo a vida resolveu a nossa encrenca por nós. Como eu ia cobrar qualquer coisa dele agora? Como eu ia reclamar? Só estava vivo por causa dele. E ele estava nos seus últimos momentos de vida. Ele estava morrendo. Karaka. Senti um alívio por um lado no dia em que ele se foi, mas muito medo por outro. Agora era só eu. O que ia fazer. Eu estava incomunicável com qualquer pessoa no Brasil. Precisava ficar. Estava só. Completamente só. Não conhecia ninguém em Buenos Aires, ninguém me conhecia. Eu era uma pessoa nova, como alguém poderia me conhecer? Nem eu me conhecia mais. Teria que começar tudo do zero e só podia contar comigo mesmo. Eu não tinha mais fama, nem grana, nem mulheres na minha cama. Nada do que eu conhecia ou achava importante até então. Será que ainda conseguiria arrumar alguma mulher? Eu tinha sido um ator a vida toda. Um ator chapado. Agora não tinha mais nenhum papel e nem droga. Teria que viver a vida de verdad, a realidade, fosse o que ela fosse. E ainda sem ninguém além de mim mesmo. Eu teria que ganhar grana trabalhando, esses trem que eu não fazia nem ideia do que fosse. Só o Fuma sabia da minha situação. Mas era só ele e a gente tinha combinado de só se falar em caso de extrema necessidade. Eu estava sozinho no mundo mesmo.

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38. A morte e a morte de Néstor Tracjgtemberg

Os últimos dias de meu pai não foram um passeio na Disney.

Ele sentia dores terríveis praticamente todo o tempo. O médico me disse que o câncer tinha diminuído de incidência na humanidade, ou a medicina tinha melhorado muito seus recursos pra enfrentá-lo. Mas quando ele aparecia como o do meu pai, geralmente era imbatível. Era barra pesadíssima. Os remédios violentos à base de morfina, que aliviavam um pouco a dor, funcionavam cada vez por um intervalo de tempo menor. Era um martírio assistir àquela coisa voraz devorando-o por dentro. Mas o sofrimento maior pra ele não era nem o do corpo, era o da sua alma, ou como queiram chamar isso. Era como se ele estivesse olhando pra sua vida sem a máscara. Como se ele estivesse olhando pra vida dele sem as lentes cor-de-rosa que ele usou a vida toda. Pra onde iria fugir agora? Estava atado àquela cama. E àquele karma.

Meu pai sempre fugiu de tudo em sua vida. Agora chorava por

tudo o que poderia ter vivido e deixou de viver. Pedia perdão umas mil vezes por dia, eu perdoava todas, embora nunca tenha sabido exatamente o que essa palavra realmente quer dizer.

O velho já começava o dia chorando. Ficava lembrando de

assuntos, de episódios passados. Eu ficava lá sentado ao lado dele. O cheiro no quarto era insuportável. Será que era o cheiro da morte?

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Era bem diferente do cheiro da morte da mulher do Panka. Talvez não fosse o cheiro da morte, talvez fosse o cheiro de uma alma apodrecida.

Meu pai havia chegado à conclusão que a vida dele não tinha

sido nada, não tinha prestado pra nada. Eu ficava ali tentando mostrar pra ele que não era bem assim, que ele estava enganado, que tinham acontecido coisas legais, que ele era uma pessoa boa. Que mais eu poderia fazer numa situação daquelas? Mas era difícil encontrar essas coisas boas pra falar pra ele. Na real, ele tinha sido um mierda mesmo. Eu nem o conhecia direito. Que peça a vida estava nos pregando agora. De uma hora pra outra, eu e ele, que sempre fomos atores, estávamos tendo que representar nossos verdadeiros papéis.

Coincidência.

Ah, você ainda está aí Achei que tinha vazado junto com a

casca velha.

Theres is someone in my head, but it’s not me. Hehehe…

Pozé… Eu queria fazer alguma coisa, mas o que é que eu po-

dia fazer? A única coisa que eu podia fazer era ficar lá quieto ouvindo. E ele falava, falava, falava. Estava no confessionário e o padre era eu. Se eu tivesse pra onde, com certeza teria fugido. Nunca tinha estado assim em uma situação que eu não queria estar e da qual não podia sair. E não podia fazer nada. Eu também sempre tinha sido um fujão. Pra onde iria fugir agora? Muitas vezes eu pensei em procurar algum traficante, comprar pó, algum fumo, sei lá. O fumo eu podia comprar direto na internet se quisesse. Na Argentina, naquela época ainda não era liberado como no Brasil. Mas era só estalar os dedos que aparecia alguém vendendo.

Era uma briga grande dentro de mim entre o lado que queria

se entregar e o lado que lutava duramente pra resistir. E era só eu aparecer em um bar, uma livraria, na esquina, sei lá, que já aparecia gente me oferecendo. Acho que está escrito na testa dos caras que já usaram droga que eles eram usuários e estão lutando pra se livrar

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daquela mierda. E como tem gente pra empurrar o cara pra baixo, né? Acho que pra cada um que puxa os outros pra cima, tem uns mil ou dez mil pra empurrar pra baixo. Era duro, mas aquela luta ia me dando força pra suportar o dia-a-dia, que por sua vez me fortalecia pra enfrentar a luta. Mas o pior é que os questionamentos terríveis do meu pai iam levantado a casca da minha autossuficiência e revelando as veredas profundas que existiam em mim.

E a minha vida? Prestava pra alguma coisa? Eu tinha feito al-

guma coisa de bom pra alguém, mesmo que fosse eu mesmo? Difícil responder. Karaka, a minha vida era muito ridícula. Uma sucessão de coisas ridículas e desconectadas. E agora ali, diante da morte inevitável do meu pai, eu pensava na minha própria morte, na minha própria vida. Então, aquilo lá é que era a morte? Porra, por isso que as pessoas tinham tanto medo, né? O medo, na verdad, como o Véio Sebastião tinha dito, não era da morte em si, que depois da morte, provavelmente as pessoas deveriam ir todas pro túnel. Será que iam todas pro túnel mesmo? E se aquilo tudo não tivesse passado de uma alucinação minha? Talvez a morte fosse simplesmente o fim da dor. Mas... Se a morte fosse mesmo o fim da dor, por que a gente teria tanto medo da morte? Se a morte fosse simplesmente o fim da dor, nós seríamos todos suicidas em potencial.

E... Será que não somos mesmo?

Ah, mas tinha o lance da foto, o lance da minha avozinha.

Coincidência.

Porra, puta coincidência da porra, né meu?

Não, aquilo não era uma coincidência, não podia ser uma por-

ra de uma coincidência, não, de jeito nenhum. Será que a vida toda então era... Apenas... A porra de uma coincidência de mierda? Que acabava por pura coincidência num dia qualquer, num lugar comum?

Não, não pode ser, é claro que não é. Será? Hehehe.

Então era disso que as pessoas tinham medo: desses momen-

tos que antecediam a morte. Quando a pessoa arranca todas as suas

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máscaras e fica nua diante da realidade da sua vida que não passa de uma sucessão de coisas ridículas. Um trem tipassim aquela hora que o Dorian Gray recebe de volta na cara todas as mierdas que ele tinha feito e que tavam impressas no quadro. Bom, tem as pessoas que também viveram coisas que não eram ridículas, né? Tem as pessoas que não fizeram só mierda. Será que tem alguma pessoa que não fez nenhuma mierda na vida? Fiquei pensando que tipo de coisa poderia não ser ridícula diante da “Dama de Preto”. Sobrou pouca coisa. Pouquíssima coisa, pra dizer a verdade. Coisas como: fama, grana, discos de ouro, marcas de carro, potência do pau, essas coisas todas viravam poeira. O que sobraria? O que teria alguma dignidade em minha vida, diante da inevitabilidade da morte?

O Café do meu pai, que era onde ele vivia ficava perto de uma

escola. Era um dia qualquer. Jueves, talvez. A tarde caía e los vientos del sur açoitavam as almas dos inquietos. Na hora do recreio a algazarra dos meninos enchia de vida aquele território onde a morte lançava suas raízes profundas e inexpugnáveis. Veio-me à cabeça um acontecimento idiota que se passou quando eu era menino ainda. Quando eu tava na escola. Tinha uma menina nova na sala, ela era bem feinha e bem tímida. Usava uns óculos com umas lentes supergrossas. A galera tirava o maior sarro dela. Chamavam-na de quatro -olho, essas coisas de moleque de escola. Ela era superassustada, não conseguia reagir. Só ficava lá chorando, como o meu pai estava agora. Um dia colocaram um gafanhoto na mochila dela enquanto ela estava fora da sala. Ela ia ter um troço quando abrisse pra pegar seu caderno e aquele bicho saltasse na sua cara. Todos esperavam ansiosamente a chegada dela, inclusive eu. Quando ela chegou, sei lá por que cargas d’água, eu não consegui suportar e contei pra ela antes da mierda acontecer. A galera quase me matou de porrada. Por que eu fiz aquilo? Não sei explicar. Fiquei com pena da menininha. Coitada, ela já tinha passado por tanta coisa e era uma pessoa tão frágil, tão sozinha. Acho que os pais dela nem ligavam pra ela. Ninguém ligava. Os

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professores também não. Sabe essas pessoas que não têm as manha de fazer as pessoas gostarem delas? Mas foi uma coisa que aconteceu na hora mesmo, naquele momento, por que até um segundo antes de eu falar com ela, eu também estava esperando ansiosamente a hora de rolar no chão de tanto rir da cara de espanto dela quando visse o bicho verde. E eu sabia que ia tomar porrada, mas falei assim mesmo. Era um acontecimento ridículo, insignificante, uma coisa que tinha acontecido há muito tempo, mas era aquilo que vinha à minha mente naquele momento. De alguma maneira inexplicável, aquele acontecimento ridículo tinha alguma dignidade diante da morte.

Meu pai gemia no quarto. Sua hora estava chegando. Os dois

últimos dias foram os mais difíceis. Se existia mesmo um Deus, por que ele fazia uma coisa daquelas com alguém? Tudo bem que a vida que meu pai tinha vivido, com a quantidade de droga, álcool, comida nojenta, mágoa e ressentimentos que existiam dentro dele que deve ter gerado aquela coisa terrível que o estava devorando. Sei lá. Nos dois últimos dias, eu praticamente não saí do seu lado. Ficava lá segurando a mão dele. Ele ficava quase todo o tempo com os olhos fechados e gemendo. Se eu largasse a mão por um minuto que fosse, ele reclamava. Que mierda. Tinha passado a vida inteira amaldiçoando aquele cara e agora a gente tava lá. Só eu e ele. E ele queria que fosse eu. Se eu colocasse alguém no meu lugar pra ficar segurando a mão dele, ele reclamava também.

Por fim chegou a hora e ele parou de respirar. Foi uma mierda,

porque foi bem num momento que eu precisei sair pra ir ao banheiro. Porra, meu pai tinha que morrer bem naquela hora? Aquilo me doeu um bocado. Se existia um Deus, por que levou ele bem na hora que eu havia saído por uns minutinhos?

Coincidência.

Sim. Eu sei. Encostei o ouvido no seu peito. O coração não

tava mais lá bombeando vida. Caralho. Então era assim? Simples assim? O cara simplesmente parava de funcionar? Seu corpo, que an-

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tes era ele mesmo, passava a ser uma coisa. Uma coisa não muito diferente do armário ou da cama em que ele jazia. Putasquispariu véi. Laputamadrequelorepario.

Seguindo o pedido do meu pai, seu corpo foi cremado e as

cinzas espalhadas diante do estádio olímpico da cidade de Córdoba, na província com esse mesmo nome. O estádio havia sido rebatizado com o nome de Mário Kempes, o ídolo do meu pai, de onde ele tirou o Kempes do meu nome. O pedido dele era pra que eu espalhasse as cinzas dentro do estádio, mas a galera da segurança não me deixou entrar e eu tive que fazer diante do estádio mesmo. Meia-boca, mas foi o jeito. Voltei para Buenos Aires com as duas mulheres que viviam na casa do meu pai e que foram únicas testemunhas daquela melancólica despedida.

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39. El Furbo de Oro

O Café do meu pai, “El Furbo de Oro”, era um boteco na esqui-

na das calles Cazadores y Juramento num bairro chamado Belgrano. O lugar até que não era ruim, perto de um belo parque e do estádio do River. Bem perto de uma estação de trem e mais ou menos perto do aeroparque. Belgrano era um bairro periférico que até já tinha tido alguma classe no passado. Foi onde meu avô morou a maior parte da sua vida. O velho deixou vários imóveis de herança pro meu pai, que foi queimando tudo até sobrar apenas o Café. Que se pagava às duras penas. Meu pai tinha sido, como eu, um viciado a vida toda. Deve ter torrado a grana do velho toda com cocaína. Ele tinha uma irmã mais nova, por parte de pai, mas ela não queria saber de muita conversa com ele. Devia ser uma pessoa sensata. Meu velho também fora um inútil profissional, mas ao contrário de mim, não tinha o álibi de ser artista. Tentou até arrumar maneiras de ganhar dinheiro que não fossem vender drogas, mas fracassou em todas. Em vendas de drogas ele também fracassou. Não era duro o bastante pra ser vencedor naquele ramo de comércio. Ele mais fornecia gratuitamente o pó em troca de amizade e sexo do que qualquer outra coisa. Era um looser clássico reluzente. Muito mais até do que eu. A mãe dele, minha avozinha querida, morreu antes dele completar vinte anos. Quando ele e minha mãe se conheceram em Nova York, aquela nobre senhora já não andava mais por essas bandas terráqueas. Acho que ele nunca se

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recuperou totalmente da perda da mãe. Quando o pai dele, que não era tão nobre assim (havia boatos de que o velho enriquecera com tráfico de escravas brancas na época da segunda guerra) morreu, em 1998, Néstor Tracjgtemberg resolveu largar o vício e cuidar do café. Que aquela altura era tudo o que havia sobrado. Deve ter sido a única alternativa que ele teve além de se suicidar, levar um tiro em alguma transação malfeita com um traficante de verdad, ou coisa que o valha.

O café era bem feio mesmo. Entusiasmo era algo que nunca

havia passado nem pela porta. Tinha o salãozinho escuro, com espaço pra quinze mesas de dois lugares, que a gente juntava em quatro ou seis, dependendo da necessidade. Os banheiros tristes, a cozinha e dois quartinhos no fundo. Meu pai morava em um deles, e no outro, doña Chacarita Flores, que era quem realmente tocava o negócio, vivia com a sua filha Lisandra. As duas mulheres que me acompanharam na funesta viagem a Córdoba.

“El Furbo” contava com quatro funcionários: Doña Chacarita

e Lisandra, que cuidavam da cozinha e da limpeza, e os señores Raul e Pablito, os garçons. Todos trabalharam com o meu velho durante pelo menos os últimos quinze anos, que era o tempo que ele vinha pelejando com “El Furbo”. Assim como eu e ele, aquelas pessoas também não tinham opção. Logo que meu pai partiu para o túnel, sentamos os cinco no salão vazio e ficamos algum tempo calados juntos até que alguém resolvesse dizer alguma coisa. Esse alguém naturalmente teria que ser eu. O que eu mais ou menos disse a eles é que eu era o herdeiro, mas não sacava nada daquele trem, como eles já deviam ter percebido. Não entrei em muitos detalhes sobre minha pessoa ou sobre a minha vida antes dali e disse que se quisessem, poderíamos tentar seguir juntos tocando o café pra que ele fosse um jeito da gente ganhar a vida e ir sobreviviendo. Naturalmente todos toparam, porque, como eu já disse, ninguém ali tinha muita escolha.

O señor Raul não durou muito tempo na casa. Ele nunca foi

com a minha cara. Tinha uma bronca particular com brasileiros por

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causa de um assunto de mulher no passado, e não era o tipo de pessoa capaz de não fazer generalizações. Yo era brasileiro y punto. Isso era suficiente pra ele não ir com a minha cara. Eu logo vi que nós íamos ter problemas e a saída dele foi um alívio pra mim. Ficamos eu, o señor Pablo, e as duas mulheres.

El señor Pablo Sanchez de Villalba era pessoa de outra época.

Pobre, direitista e solteirão convicto. Dizia-se descendente de alguma linhagem nobre de Castela. Tinha um cabelo preto ralo sempre “engomalinado” e usava um bigode levemente dalinesco inimaginável em qualquer outro lugar do planeta Terra que não fosse Buenos Aires. Pessoa magra, alta, leve, de corpo, fala e assuntos. Adorava conversas frívolas e inúteis, mas sempre se esquivava de qualquer discussão mais intensa fosse sobre o que fosse. Não se podia dizer que era um cara fiel, pois vivia falando mal de todos contra todos. Mas ele fazia isso mais por esporte, não era nada pessoal contra ninguém. Talvez se pudesse dizer que era fiel em sua infidelidade. Era aficionado por cavalos, Borges e Carlos Gardel. Citava versos de Almafuerte de cabeça e tinha ódio visceral a Astor Piazzolla (sepultou o Tango), aos peronistas, Che Guevara, Maradona e ao Club Atletico Boca Juniors. Mas tudo isso era apenas uma questão de estilo, pois Don Pablito era uma pessoa muy estilosa. Ele e meu pai passaram quinze anos discutindo futebol y políticas. E isso nunca arranhou a amizade e a afinidade que sentiam um pelo outro. Su vida resumia-se ao café, às corridas (a maioria dos nossos clientes, quando eu cheguei, ia lá basicamente pelas empanadas salteñas de Doña Chacarita e pra conversar sobre corridas de cavalos com ele) e uma irmã que vivia com o marido e duas filhas na província de Rosário. Ele fazia parte do espólio que meu pai me deixara. Como um gato vira-latas que a gente encontra na rua e leva pra casa, eu sabia que não teria como me livrar de Don Pablo enquanto ele vivesse.

As duas mulheres: Doña Chacarita Flores e sua filha Lisandra

eram de Salta, na fronteira da Argentina com a Bolívia. Vieram na

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mesma época em que meu pai começou a tocar o café. Eram duas indiazinhas pequenininhas e bem morenas. Doña Chacarita tinha mais ou menos a minha idade. Parecia ter uns dez anos a mais. Ou uns dez séculos. Foi mãe solteira com vinte e poucos e veio pra Buenos Aires com a filha pequena pra escapar da fome e tentar a sorte. Quem teve mais sorte foi o meu pai, porque ela era a pessoa mais ajuizada daquele batalhão abilolado e foi quem tocou mais ou menos as coisas até aquela data. Doña Chacarita tinha também dons culinários razoáveis. Como eu falei antes, era responsável pela iguaria que atraía a maioria dos nossos fantasmagóricos clientes.

O que tinha de melhor naquelas pessoas, como eu já disse,

é que elas, por também serem náufragas da vida, não faziam a mínima questão de saber muito sobre a vida das outras. Éramos como sobreviventes de antigas civilizações que haviam sido derrotadas e íamos tocando o barco sem maiores pretensões além da própria sobrevivência.

Como seria de se esperar, Lisandra, a indiazinha que tinha

nome grego e era magricela e carente de amor como uma plantinha do deserto, começou a se afeiçoar por este narrador que vos fala. No primeiro inverno congelado e congelante que passei por aquelas plagas ela veio pro meu quarto praticamente em todas as noites. Doña Chacarita fazia de conta que não via e consentia em silêncio. No começo era só pra conversar e assistir televisão. Um dia ela começou a chorar e me falar da sua vida triste e solitária. Inevitavelmente nos encontramos em nossos desertos glaciais e nos abraçamos pra espantar o frio do corpo e da alma. Logo estávamos juntos na cama.

Não posso dizer que me apaixonei por ela, nem mesmo sei

se sentia alguma afeição. Apenas era melhor estar com ela do que estar sozinho. Mas talvez isso fosse o mais próximo que eu pudesse chegar de uma mulher naqueles dias. Também era extraordinário prum cara como eu que nos últimos dois anos tinha estado na cama sempre como um produto de consumo ou coisa que o valha, estar

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com alguém que simplesmente estava lá pra se entregar pro tal do amor. A gente passou a transar praticamente toda noite. Apesar de ela ser bem magricela, feinha e ter uns quatro dentes a menos que o padrão Fifa, aquelas noites foram pra mim um banquete dos deuses. Por isso eu não deveria ter ficado tão assustado quando ela me disse que a menstruação já estava atrasada há duas semanas. Mas fiquei. Na verdad, entrei em parafuso.

Ser pai era algo que nunca estivera em meus planos. Durante

toda a vida eu lembrei das palavras de um personagem de um livro de Machado de Assis que eu lera no colégio, que dizia que não tivera filhos, e, portanto, não tinha deixado para ninguém o “legado da sua miséria”. Ou algo assim. Eu sempre entendi aquela miséria muito mais como algo existencial do que falta de grana. Então eu entendia que o cara, o personagem, chegando ao final de sua vida, percebia o quanto ela fora imprestável e insignificante, e declarava ao mundo que pelo menos não tinha tido filhos e não tinha transmitido a ninguém a sua herança em inutilidades. Tipo, não ter filhos era algo de bom que ele fazia pela humanidade. Eu pensava que não tendo filhos, assim como o personagem do Machado, eu estava pelo menos poupando a humanidade da continuidade da minha espécie apalermada.

E lá estava eu a caminho de ser pai. Nem esse ato de compai-

xão pelos meus irmãos – não ter filhos – eu poderia alegar em minha defesa quando voltasse ao túnel. Só que ainda tinha mais. Ainda tinha coisa pior naquela história.

De repente, ao descobrir que ia ter um filho com Lisandra, eu

percebi o quanto eu era racista e preconceituoso. Sim. Além de estar apavorado ante a possibilidade de ter um filho e ter que me engajar no empreendimento humano de uma maneira que eu nunca sequer havia imaginado, eu ainda ia ter um filho índio.

Porra, e qual era o problema de ter um filho índio?

Pozé. Karaka, eu era um cara cheio de defeitos e nunca tive

muita ilusão a respeito. Até me orgulhava de ser o último dos homo-

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fóbicos e talz. Mas a porra de um racista? E o BBC? O negão foi o meu melhor amigo de todos os tempos. Karaka, isso eu nunca poderia imaginar a meu respeito. Sim, mas lá estava eu sofrendo por que ia ter um filho índio. Que mierda, como é que a gente se conhece tão pouco? Como é que a nossa autoimagem é tão enganosa? Eu tinha que fazer alguma coisa. Por um lado era insuportável a ideia de ter um filho índio, e por outro era insuportável a ideia de que eu era um cara que tinha aquele tipo de preconceito.

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40. Naquele momento ele não teve a menor dúvida

Mais uma vez entrei em contato com meu único bróder res-

tante: o Fumabomber. O Fuma tinha as manha de me tirar dos piores buracos que eu me metia na vida. Dentro e fora de mim mesmo. Ele ia ter as manha de me tirar daquela situação em que eu me encontrava. Em menos de duas semanas ele apareceu em Buenos Aires. Pensei que se existe anjo da guarda mesmo, o Fuma devia ser o meu. Mas ele estava estranho. O Fuma sempre foi um cara alegre, meio doido sim, mas genial. Com aquele olhar que sempre mira além. Um cara que sempre me transmitiu esperança, coragem. Que sempre me fez acreditar que nunca é tarde e tudo é possível. Um cara que sempre soube rir de si e do mundo. Mas dessa vez ele tava diferente. Era óbvio que ele tava bolado. Ele me contou as novidades do Brasil. Disse que se falava pouquíssimo, quase nada sobre Juan LMK. Disse que a ManGod tinha suspendido “momentaneamente“ a instalação do bananateknopop na cabeça do povo. E que eles já estavam com dois artistas novos bombando no mundo inteiro: uma afrodescendente americana, nascida na Espanha, que cantava em árabe vestida com a bandeira da França, como Joana d’Arc (vestida só com a bandeira da França). E o outro, pasmem, eram os nossos amigos da “Mosca Aquariana”. O Pol Pot realmente era bom de serviço.

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Eu nem tive tempo de começar a contar a minha história de fi-

lho e talz. O Fuma logo começou a chorar e eu nem precisei apertá-lo muito pra que ele abrisse o jogo. Agora, sem saber, eu ia finalmente conseguir juntar os pedaços que faltavam pra completar o quebracabeça da Serra do Caparaó.

O Fuma contou a história toda. Ele conheceu Herte Füchs

quando ela chegou ao Brasil em 2012. Foi num seminário sobre o fim do mundo ou coisa que o valha, lá na serra mesmo. Tipo congresso de maluco de disco voador, esses trem. O encontro dos dois foi um encontro de almas. Duas almas solitárias que finalmente encontravam algo que julgaram nunca encontrar nesse mundo: alguém com quem compartilhar. Os primeiros dias foram tipo os dias mais felizes da vida dos dois, que eram pessoas que nunca tinham tido esse tipo de contato com alguém antes. Não que eles concordassem em tudo, de jeito nenhum. Mas o simples fato de estar com alguém com quem se pudesse conversar um pouco já era totalmente inédito pros dois e era suficiente. Pelo menos naquele momento. Decidiram construir uma casa. A casa redonda de pedra. E construíram. E foram morar lá. E logo a Herte engravidou. E logo começaram a aparecer as primeiras tretas.

Acontece que Herte Füchs, como eu já falei, era uma pessoa

radical. O Fuma também era um cara cheio de ideias. Mas não era tão radical. Eles viviam isolados. Só os dois. Quando entravam em alguma discordância ideológica, era a opinião de um contra a do outro. E nenhum dos dois cedia um milímetro no território das ideias. O Fuma era um baita de um cabeça dura mermão. Mas a Herte, nesse quesito, era imbatível. Briga de cachorro grande.

Ela entrou numas de fazer uma dieta radical durante a gesta-

ção. O Fuma era totalmente contra, mas ela não cedeu. Seguiu à risca um método superduro. Tipo aquelas pessoas que ficam calculando o número de proteínas ou não sei o quê que tão comendo por dia. Mesmo que tivesse que se moer de fome por causa do troço. Ele dizia pra

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ela que tava sujeito a criança nascer com problemas por causa disso, e se isso acontecesse, ele nunca a perdoaria. E foi isso mesmo o que aconteceu.

O Fuma percebeu logo, pelo olhar da criança. A Herte ainda

levou mais tempo pra se convencer. Mas o clima entre os dois foi ficando insustentável. Uma guerra. O Fuma chegou a bater nela numa noite em que a discussão ultrapassou o limite habitual de agressividade, que não era baixo. Ele dizia que a culpa era toda dela, do radicalismo e da intransigência dela. Que ela tinha sido muito egoísta, só tinha pensado nela, não tinha pensado na criança. Que tinha sido muita vaidade dela. Esses trem. Ela dizia que a culpa era dele, que ele ficou falando aquelas coisas durante a gestação e a palavra dele funcionou como uma espécie de profecia autorrealizada. Sei lá, algo assim. Tipo mágica. O fato é que ele foi embora antes da menina completar seis meses de vida e eles nunca mais se falaram pessoalmente.

Ficamos os dois sentados em silêncio na mesa velha do café

decadente olhando a chuva fria. Não passou ninguém por uns vinte minutos.

Coinci...

Não. Não fala nada agora, por favor. Karaka, a menina era lin-

da. E era filha dele. E era a cara dele. Agora eu conseguia enxergar. Por que não tinha visto isso antes? Era uma coisa óbvia. Porra, e ela tava com seis anos. Não conhecia o pai. E ele não conhecia a filha. Fiquei imaginando o meu pai vagando sozinho pelas esquinas escuras de Buenos Aires atrás de heroína enquanto eu crescia longe dele.

Putasquispariu Fuma, la putamadrequetepario seu hijodeputa

de mierda. Não acredito cara, não acredito que tu fez isso cara.

Ele baixou o rosto e ficou olhando pro chão.

Tu tem uma filha cara, uma menina linda, uma ruivinha linda,

que é a tua cara. Uma menina. Querida. Uma princesinha. Ela é tão. Doce. Cara. E tu. Não conhece ela. Tu abandonou ela, cara. Por causa... De uma vaidade. De uma disputa. Porra, qual dos dois é o mais

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arrogante? Qual dos dois é o mais duro? Qual dos dois tem o pau maior?

– Não véio. Vaidade. Não, Juan, não é bem assim. É que ela...

A Herte... Ela sim é que é.

Para meu! Para. Porra, não fala mais nada. Não fala mais nada,

véi. Não, porra meu. Karaka. Que mierda. Tu vai ter que voltar lá cara. Tu vai voltar lá e vai pedir desculpas pra tua filha cara. Tu vai pedir desculpas por tu e a mãe dela terem sido tão vaidosos, tão arrogantes. Tão... Porra duns egoísta. Véi.

– Mas, Juan. A culpa é dela cara. Ela é que foi, ela é que foi.

Eu não...

CARALHO VÉI CARALHO CALA ESSA PORRA DESSA BOCA.

Ele levantou e saiu fora. Pensei em levantar e ir atrás dele, mas

não tive força pra fazer isso. Putasquispariu, o que foi que eu fiz? Caralho, o cara foi meu bróder a vida inteira, sempre me aceitou com as minhas maluquices, sempre me compreendeu e até botou o dele na reta por minha causa. E agora, na primeira vez que o cara precisava de mim, eu tinha sido duro, tinha sido julgador. Porra Fuma volta mano-véio, volta cara. Fiquei lá rezando pra ele voltar. Ou qualquer coisa parecida com isso. Lembrei da minha mãe dizendo: meu Deus, meu Deus, naquele dia que o Panka matou a mulher. Rezei pra Deus (seja lá o que isto for) e pedi: Deus perdoa a minha falta de compreensão com o meu amigo e traz o Fuma de volta, por favor, não deixa ele fazer nenhuma mierda. Fiquei repetindo isso até ele voltar.

E ele voltou?

Voltou. A gente se abraçou. Eu disse:

Karaka Fuma desculpa véi. De boa.

– Não, não véio. Não, Juan. Não precisa se desculpar, de boa

meu, porra, você tá sendo meu bróder, eu é que tenho que me desculpar por ter saído, você está sendo meu bróder de verdade, ninguém tinha falado assim como você falou comigo. Ninguém. Antes.

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E foi a melhor coisa. Karaka véio, é isso aí mesmo, é isso o que eu preciso fazer, é isso mesmo que eu vou fazer.

Ele tava chorando. E eu também. Ele me abraçava e beijava o

meu rosto como um argentino.

Ficamos mais um pouco ali e o Fuma se mandou pro aeropar-

que. Ele foi a pé mesmo. Com a mochilinha nas costas e feliz da vida. Nunca tinha visto o meu bróder tão feliz. Falou que eu não precisava ir com ele, que não precisava de táxi, nada disso, que ia pegar o primeiro voo que ele conseguisse pra qualquer lugar do Brasil, e que não ia dormir antes de conseguir encontrar com a filha dele e beijá-la. Nunca vi um cara tão determinado em toda a minha vida. Naquele momento ele não tinha a menor dúvida. Karaka. Por que foi preciso tudo aquilo? Por que foram precisos todos aqueles anos, todo aquele sofrimento? Por que foi preciso ele vir até Buenos Aires e ouvir aquilo de mim? Por que ele mesmo não chegou àquela conclusão antes? Putaquispariu véi, la putamadrequelorepario. Fumabomber de mierda. Humanidade de mierda.

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41. Também tinha a minha parte

E foi assim que o meu bróder Fumabomber veio mais uma vez

me salvar de mim mesmo, mas acabou me dando uma oportunidade de salvá-lo de si. Aconteceu, porém, que toda aquela conversa, todas aquelas palavras bonitas e talz que eu falei pro Fuma acabaram reverberando em mim. Sim, o Fuma era um puta de um orgulhoso que tinha deixado de conhecer a filha dele por causa daquela mierda de briga com a Herte. Mas e eu? E eu que estava sendo preconceituoso e racista com o meu filho que ainda nem tinha nascido. Carajo. Em que sinuca de bico eu fui me meter? Também tinha a minha parte. As palavras que eu disse a ele ficavam ecoando na minha cabeça. Se fosse nos velhos tempos, eu simplesmente teria tomado um pico ou fumado um beq e mandado aqueles pensamentos pras cucuias. Mas agora, que eu tava fora daquelas paradas, o que é que eu ia fazer com a porra dos pensamentos? Só tinha uma coisa que eu podia fazer com aqueles pensamentos: olhá-los de frente. E foi isso mesmo que eu fiz. Olhei praqueles pensamentos de frente. Olhei bem dentro dos olhos deles. Comecei a falar comigo mesmo com a mesma firmeza, comecei a me medir com a mesma régua que eu tinha usado pra medir o meu bróder. Putasquispariu é teu filho, cara. Caralho, o cara tá chegando na Terra e já tá sentindo a tua covardia e a tua falta de amor por ele, seu bosta. Caralho, racismo cara. Não acredito, véio. Racismo

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meu. Tu tá com preconceito contra o teu próprio filho porque o cara é filho de uma índia. Caralho. Que mierda. Na hora de metê a pica na mãe dele tu não teve preconceito seu hijodeputademierda.

Realmente encarar a vida de frente sem o auxílio luxuoso da

maconha não era brincadeira. Decidi que ia receber o menino e aceitá-lo e criá-lo com todo o amor que eu fosse capaz. Independente do que a mãe quisesse fazer com ele. É claro que o primeiro pensamento dela foi tirar o bebê. Ela até tentou fazer isso, mas o bichin era forte. Aguentou firme e em 14 de Julho de 2024, passados exatos quatro anos do lançamento do bananateknopop, nascia o meu primeiro e único filho: Néstor Tracjgtemberg II.

Meu relacionamento com Lisandra, que foi péssimo durante

toda a gravidez, piorou muito depois do nascimento do menino. Ela ficou muito revoltada por não ter conseguido abortar. Definitivamente não estava disposta a abrir mão da sua “liberdade” pra ficar cuidando de alguém. O bebê chorava muito, e praticamente exigia que tivesse sempre um de nós dois grudado no berço dele o tempo todo. Curiosamente, quem ele preferia era eu. E eu tinha que estar o tempo todo segurando a mãozinha dele, se não, ele abria um berreiro descomunal. Ela aguentou pouco o papel de mãe, e uns dois meses depois do aniversário de um ano do Nestorzito, debandou nos deixando um bilhete onde dizia que ia tentar a sorte na Itália. Ao que tudo indica, arrumou um namorado que era meio mafioso, meio cafetão, e se mandou com ele. Durante os dois primeiros anos ela mandava cartões postais de vez em quando e, às vezes, pedia pra gente colocar o Nestorzito diante do computador e falava com ele. Despois ela sumiu e nós não tivemos mais notícias dela por muitos anos, até bem recentemente. De certo modo, coincidentemente, foi a mesma história do meu pai acontecendo com o meu filho. Ela só deu sinal de vida poucos meses depois do aniversário de vinte anos do Néstor II. Parece que está bem de vida por lá. Estabeleceu-se no negócio da

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cafetinagem e, pelo visto, leva jeito pra coisa. Tá cheia da mufunfa. Néstor não quis reencontrar a mãe. Eu não o censurei, mas tenho quase certeza de que ainda vai mudar de ideia quando amadurecer um pouco mais. Bom. Se ela ainda estiver viva, né?

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42. Os dias simplesmente passaram e ninguém mais apareceu

Depois da deserção de Lisandra, ficamos eu, Doña Chacari-

ta, que assumiu o posto de mãe, e o señor Pablo Villalba tomando conta do Café e do menino. E tocando nossas vidas como baratas sobrevivendo no porão de algum navio, indiferentes aos movimentos das ondas e das loucuras da humanidade de mierda. Os anos foram simplesmente passando. Eu poderia contar mais um monte de coisas que aconteceram e que eu achei importantes pra minha vida. Mas são coisas pequenas, cotidianas. Que não são importantes para você, leitor. Coisas menores diante das outras coisas que eu contei aqui. Uma vidinha. Sem pessoas importantes, nem acontecimentos excitantes.

Teve uma coisa que aconteceu. Um dia. O Nestórzito tinha uns

cinco anos, mais ou menos. Eu tava no Café. No caixa. Até então, aquela história do passado tinha ficado realmente no passado. Eu achava que os caras da ManGodCorp tinham esquecido de mim. E tinham. Eu tinha desaparecido completamente. Tinha morrido e nascido de novo. Naqueles cinco anos eu simplesmente não vi nem falei com nenhuma pessoa do meu passado. Nenhuma, nem mesmo a minha mãe. Virei um nada. E achei que os caras tinham esquecido de mim mesmo. Mas não tinham.

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Um dia entrou um cara no café. Era um dia muito frio. Inverno

em Buenos Aires é phoda. O cara tava de poncho e usava um cachecol que encobria o rosto. Desde o momento em que ele entrou, eu já senti uma parada estranha. Sabia que aquele cachecol era sinistro. Por que eu não fiz alguma coisa? Porra, o que é que eu ia fazer? E nessas horas, sei lá, acho que a gente fica meio que se enganando, né? A gente fica mentindo pra gente mesmo pra fazer de conta que o perigo não existe. Que não é real. Tudo bem que nesse caso não tem como eu provar que a parada era real mesmo. Mas eu tenho quase certeza que sim. O cara entrou e foi direto pro banheiro. Ele demorou um tempo por lá. Fiquei de olho. Quando ele saiu, tenho quase certeza que vi a arma na cintura dele.

Quase?

Quase. Tenho quase certeza. A arma tava lá, eu sei. O cara

chegou a pegar ela na mão. Ia me fuzilar à queima-roupa. E eu fiquei parado no caixa. Não fiz nada. Eu não tinha a menor ideia do que fazer. Tudo o que eu conseguia pensar era em cenas de filmes. Cenas heroicas de filmes. O cara veio se chegando pra perto do caixa, onde eu estava. Ele vinha com a porra da arma na mão. Eu tenho quase certeza de que ele tava pronto pra me liquidar.

Por que os caras da ManGod mandaram alguém me matar

naquela altura do campeonato? Porra, já tinha passado tanto tempo, ninguém tava mais nem aí pra mim. Ninguém falava mais de mim. Mas tenho quase certeza que o cara...

Quase?

É. Praticamente certeza.

O cara chegou a uns dois metros do caixa. Ele tava com a mão

pra trás. A arma tava na mão dele. Tenho certeza. Ele só não me mandou dessa pra melhor ali mesmo porque o Néstorzito entrou correndo naquele momento gritando:

– Papá, papá.

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o último rei do rock

O cara parou. O relógio digital na parede marcava: 12h12min.

O Café tava meio cheio. O cachecol caiu um pouco pro lado. Apareceu um pedaço do rosto dele. Putasquispariu véi, o cara era índio também. Quando ele viu o Néstorzito me chamando de papá ele ficou completamente paralisado. Não conseguiu dar mais um passo. Olha que puta coincidência da porra. Que puta sorte que eu tive: o cara também era índio. Ele ficou completamente paralisado e depois saiu correndo do café. Será que ele também tinha um filho pequeno? Um indiozito? Será que ele pegou aquele serviço de me matar por causa da grana? Será que o indiozito dele tava passando fome? Nos dias seguintes fiquei esperando o cara voltar. Eu tinha certeza que ele ia voltar. Ele não voltou. Pensei que eles iam mandar outra pessoa, mas não mandaram.

Você não chegou a pensar...

Que era tudo viagem minha? Cheguei, claro. Mas tenho quase

certeza, véi. Tenho praticamente certeza que aquele cara só não me matou por que o Néstorzito apareceu e ele também era índio. Olha. E eu não queria aceitar o meu filho por que ele era índio. Agora. Se ele não fosse índio, se o meu filho não fosse índio, eu não tava nem aqui contando essa história. Coincidência da porra. E eu só fiquei vivo por causa dela. Passei os dias seguintes esperando o cara voltar. Eu tinha certeza que ele ia voltar. Era só uma questão de dias. Dois dias? Dez dias? Mas vinte dias se passaram. Duzentos dias. Dois mil dias. E ele não apareceu. Ninguém mais apareceu. Os dias simplesmente passaram e ninguém mais apareceu. Acho que os caras definitivamente me esqueceram. Ou eu era uma barata insignificante demais pra merecer levar tiro deles. Sei lá. Eles queriam matar Juan LMK. Mas ele já tinha morrido. Acho que o cara que eu era não merecia nem as balas deles. De algum modo misterioso eles viram isso através dos olhos do índio. Deixaram-me lá vivendo à míngua em minha mediocridade. Sei lá. De alguma forma misteriosa, que eu não sei explicar, acho que o fato de eu ter deixado aquela grana toda pruma instituição de carida-

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carlos maltz

de deve ter contribuído pra eu ter ficado vivo também. Acho que sim. Não tanto pela caridade em si, mas pelo fato de eu não usar mais a grana. De alguma forma eu larguei aquele karma e aquele karma me largou. Desgrudou de mim. Sei lá. Eu acho isso, não tenho como provar. Mas... Eu realmente não era mais o cara que eles queriam matar. Ele já tinha morrido. A profecia do Fuma funcionou.

As únicas pessoas do passado, além do Fuma, que eu vi nes-

ses anos todos foram minha mãe e a Poly. Minha mãe veio pro aniversário de cinco anos do Néstor, e depois passou a vir todo ano, umas duas vezes por ano. E a Poly veio no ano passado. Foi quando ela meio que me obrigou a escrever o livro. Meu segundo pai, o Panka, morreu de insuficiência hepática na cadeia. Ele já tava no nível 1. Foi pouco depois da morte do meu primeiro pai. De alguma forma aquilo não me surpreendeu muito. Quando eu o vi naquela vez, eu sabia de alguma maneira que aquela era a última vez que a gente tava se vendo. Belair Bhardian também não ficou por essas bandas terráqueas por muito mais tempo. Pelo que minha mãe me contou, foi morto por um amante enciumado. Ela não soube me dizer se foi o Pol Pot. Sabe aquelas notícias que a gente vê e acha que é mentira, tipo o cara que foi assassinado com quarenta e quatro facadas?

Quarenta e quatro mesmo?

Ah sei lá meu, algo assim, porraí. Que diferença faz?

Quarenta e quatro seria muita coincidência, né?

Lareconchadesuputamadre. O fato é que o cara morreu. E que,

de uma maneira muito incompreensível para mim, a sua morte foi a que mais me tocou. Estranho isso. A Melzinha morreu, o Panka morreu. Meu pai. O pai do Bhardian. O Loló se matou. Eu mesmo morri. John Lennon morreu. Johnny Ramone também. A filhinha do Panka presenciou o pai matando a mãe dela. Mas a morte que mais me tocou nessa história toda foi a do Bhardian. Um cara que eu nem conhecia direito. E que eu tinha tudo pra odiar. O cara até tentou me matar. Bom, acho né? Tudo indica que sim. Por que eu senti tanto a morte dele? Não era

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o último rei do rock

bem tristeza. Era tipo. Sei lá. Acho que o Bhardian era um cara tão... Monumental. Eu nunca poderia imaginar que ele morreria um dia. Sim, eu sei que isso é imbecil, mas é a realidade. Eu jamais poderia imaginar que ele fosse capaz de morrer. E dessa maneira, um crime passional. Karaka. Como é que um cara com um sorriso inoxidável como o do Bhardian podia ter morrido? E de uma maneira tão... Óbvia?

Eu fiquei meio que fora do ar por alguns dias. De certo modo

aquilo causou uma pequena comoção no meu mundo, ou no que eu acreditava que fosse o meu mundo, ou ainda no que havia sobrado do que eu acreditava que fosse o meu mundo. Mais uma. Mas isso também passou com os dias. O meu bróder Fumabomber aparece por aqui de vez em quando. É legal o jeito que a gente tá envelhecendo, cada um no seu canto, mas atualizando a nossa conversa de tanto em tanto. Legal que a gente seguiu por caminhos diferentes, mas nossa conversa consegue se manter ao longo dos anos. Ele voltou lá naquele dia e conseguiu se entender com a Herte. A Dory passa um tempo com ele em BH e um tempo com a mãe lá na serra. O Fuma conseguiu até fazer uns tratamentos com ela e parece que ela melhorou bem. Ela já tá uma mulher feita. Alemoazona forte, que nem a mãe. O Fuma conseguiu que ela fizesse uma formação na área do turismo e parece que ela trabalha lá em Dores. Que agora é um puta polo turístico na região.

Do negão BBC, meu bróder, não ouvi falar mais nada. Minha

mãe nunca mais teve notícias dele. O cara evaporou mesmo. Tipo eu. Mais até do que eu. Mas o BBC era tão doido. Ele deve ter entrado naquela vida de ser agricultor no interior com a maior facilidade. Como se ele nunca tivesse sido o guitarrista dos Paralelepípedos um dia. O Ra-tón ficou pouco tempo na Papu. Ele ainda tocou com outras galeras e depois parece que montou uma lanchonete ou algo assim em Taguatinga. A gente nunca mais se falou. Ele nem sabe que eu estou vivo. Narcissus Von Faiq não morreu. Ou, pelo menos, não que eu saiba. Mas acredito que não. Acho que ele não vai conseguir morrer antes de fazer o bananateknopop virar realidade. Ele é um vencedor.

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43. Apenas mais um colossal congestionamento de carros coreanos cinzentos

Hoje acordei me sentindo bem. De alguma maneira eu sei que

cheguei ao final desse livro.

Não sei quanto tempo eu dormi. Muito. Acho. Às vezes eu não

durmo nada, e outras vezes eu durmo mais de quinze horas. Talvez isso ainda tenha a ver com a parada das drogas. Abri os olhos. Eu continuava vivo. Inclinei a cabeça e vi um par de sapatos encostado na parede. Eram sapatos bem velhos, gastos. Não sei porque, senti compaixão por aqueles sapatos. Deu vontade de chorar. Senti compaixão pela pessoa que usava aqueles sapatos. Levei um tempo pra me tocar que a pessoa que usava aqueles sapatos era eu mesmo. Eu tô ficando velho mesmo.

Por que aquele par de sapatos velhos foi capaz de me trazer

um pouco de compaixão por mim mesmo? Sei lá. Pensei que talvez eu não tivesse sido um cara tão ruim assim. Pensei que talvez eu tivesse sido apenas alguém que tinha andado muito atrás de alguma coisa que não sabia exatamente o que era. O que eu estive procurando? O que eu havia encontrado? Uma sensação boa percorria o meu corpo e encheu o meu coração de uma alegria que me lembrou uma canção do velho John:

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carlos maltz

I’m just sitting here watching the wheels go round and round

I really love to watch them roll

No longer riding on the merry-go-round

I just had to let it go.

É isso.. A minha vida era o meu evangelho e a minha salvação.

A minha vida com todo o seu absurdo e improvável. Com toda a sua obscura glória. Sim, a minha vida era o caminho a verdade e a vida, a própria vida, ela mesma, sim, pra mim.

Se a minha vida fora um erro? E como poderia ter sido? Como

ela poderia ter estado errada? Como é que a vida de quem quer que fosse, com toda a sua obscura glória, poderia estar errada? Tudo bem, eu tinha pegado a estrada errada. Caí em tentação, vendi minha alma. E nem sei se a recuperei de volta. E nem sei se a tive comigo algum dia... Mas. O que seria de Ulisses se ele não tivesse pegado a rota errada?

Não haveria a Odisseia. Pozé. Quer saber mesmo? Eu acho que tudo isso foi só pra ti-

rar aquela porra daquele sorriso irônico do meu rosto. É, aquela porra de sorrisinho irônico que me levava a rir de tudo o que era simples na vida. A rir de tudo que podia ter algum significado. O sorriso irônico me exilava da vida. Era só alguma coisa real começar a acontecer que lá vinha ele. Aquele sorrisinho irônico de mierda. Sim, pra isso minha vida prestou: eu já não tenho mais aquela serpente negra em meus olhos, em meus lábios. A morte me salvou. Sim, a minha morte me salvou do sorriso irônico. E me ensinou o que é a vida. Me ensinou que eu não precisava ser maior do que o John. E nem maior do que ninguém. Muito menos, maior do que eu mesmo. Sim, a morte me preparou para viver essa vidinha de mierda que eu vivo aqui em Buenos Aires, e que é o que de melhor aconteceu em minha vida. A morte me ensinou o que é a vida.

Gracias a la muerte, que me há dado la vida!

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o último rei do rock

De repente me enchi de uma plenitude que não caberia em

mil páginas. Sim, tudo estava perfeito em seu devido lugar errado. Toda aquela loucura era a minha vida e eu não a trocaria por nada. Si, eu tinha vivido tudo aquilo pra poder chegar ao lugar de perdoar os meus sapatos gastos de tanto andar em busca de algo que eu não sabia o que era. Pra chegar ao lugar de poder perdoar Deus por ter criado uma criatura como eu.

Eu estava em paz comigo mesmo. Em paz com tudo o que ti-

nha acontecido. Em paz. Eu já podia dormir sem remédio. Eu já podia morrer.

Mas não morri. Levantei da cama. Desci as escadas. Na rua,

um barulho infernal: apenas mais um colossal congestionamento de carros coreanos cinzentos. Segui andando na direção do movimento. Na direção do Sol. Será que um dia todo aquele movimento chegaria ao Sol? Comprei algumas coisas que ainda faltavam para o jantar e voltei pra casa. Farinha de algas. Praticamente só tenho comido farinha de algas nos últimos tempos.

Eu sou de outra época. Fico lendo os mesmos livros nova-

mente: Hesse, Thomas Mann, Milan Kundera, Robert Musil, Hermann Broch, Saul Bellow. Esses caras. Quem sabe um dia eu os compreendo. Não me entusiasmo com esse negócio de todo mundo ter a mesma cara e andar enfronhado dentro de si mesmo ou dos seus óculos de realidade aumentada, sabe? Acho que finalmente meu tempo por aqui por essas bandas terráqueas está chegando ao fim. Talvez esteja se aproximando o momento de eu voltar pro túnel. Acho que finalmente estou começando a entender o que o Hesse queria dizer com “ouvir o murmúrio do rio”.. Im just sitting here watchin the wheels go round and round. As rodas… Hehehe… Velho John… Sentado olhando as rodas… Olhando. A roda… Do karma. Moer. Nossas ilusões e nossos sorrisos irônicos.

As sexobôs melhoraram muito nesses últimos vinte anos,

sabe? Atualmente o cara só se relaciona com pessoas reais se fizer

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carlos maltz

muita questão. Eu mesmo tenho as minhas três. Até brigo com elas de vez em quando. Tenho DR, essas coisas.

Houve um tempo em que as mulheres eram virtuosas, hoje

elas são virtuais. Hehehe.

Hehehe. Sim. Ter uma DR com uma sexobô é uma delícia, a

gente ganha sempre. Hehehe.

Elas foram programadas pra perder sempre. Hehehe.

É. Hehehe.

O Néstorzito fica quase todo o tempo no virtual. Mesmo as-

sim, mesmo com a gente convivendo tão pouco, ele foi a melhor coisa que me aconteceu, sabe? Se não fosse por ele, acho que eu não teria mais nenhum motivo para ainda estar vivo.

Paralelepípedo do óbvio.

Tô ligado. Mas o óbvio também precisa. Ser dito. Né?

Não vai terminar a porra do livro?

O Néstorzito tá falando aqui nos meus óculos que ele não vem

pra jantar. Tem um movimento que ele faz com o rosto que é exatamente o mesmo que o meu pai fazia. Ele faz uma voltinha pra esquerda e no final sorri com o canto da boca. Karaka véi. Idêntico. O velho relógio digital de mesa do meu pai, que ainda funciona, está marcando 18h18min.

Peguei um livro qualquer do meu pai e abri em uma página

qualquer. Que delicia que é pegar num livro de papel: Nuevas Aguafuertes Porteñas, de Roberto Arlt, Editorial Losada de bolso, página 18.:

“Los antigos creían que la ciência podia hacer feliz al hombre.

Qué curioso! Nosotros tenemos, com la ciencia en las manos, que admitir lo seguiente: lo que hace feliz al hombre es la ignorancia. El resto, es música celestial”. Karaka. Música Celestial.

Que diachos será isso?

Sei lá. Mas seja lá o que for, deve ser isso mesmo.

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Para saber mais sobre nossos lançamentos, acesse:

www.belasletras.com.br


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