PRA SER SINCERO

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não me pergunte em que dia eu nasci não me pergunte em que cidade eu nasci o filme favorito, o time do coração o lugar mais esquisito em que escrevi uma canção se tu quiseres saber quem eu sou vem ver com os próprios olhos vem ver a vida como ela é


Humberto Gessinger


copyright 2009 Humberto Gessinger Editor | Gustavo Guertler Assistente editorial | Aline C. Orso Projeto gráfico | Melissa Mattos Luis Saguar Revisão | Alessandra Rech Karina de Castilhos Lucena Luís Augusto Fischer Capa | Melissa Mattos, sobre foto de Marco de Bari/Editora Abril [2009] Todos os direitos desta edição reservados à Editora Belas-Letras Ltda. Rua Coronel Camisão, 167 CEP 95020-420 – Caxias do Sul – RS Fone: (54) 3025.3888 www.belasletras.com.br Dados Internacionais de Catalogação na Fonte (CIP) Biblioteca Pública Municipal Dr.Demetrio Niederauer Caxias do Sul, RS G392c Gessinger, Humberto Pra Ser Sincero: 123 Variações Sobre Um Mesmo Tema / Humberto Gessinger. _Caxias do Sul, RS: Belas-Letras, 2009. 304 p.

ISBN 978-85-60174-45-4 1. Autobiografia. I. Título

09/34 CDU : 869.0(81)-94 1. Autobiografia

869.0(81)-94

Catalogação na fonte elaborada pela bibliotecária Maria Nair Sodré Monteiro da Cruz CRB 10/904


Humberto Gessinger

123 Letras

Luís Augusto Fischer



Humberto Gessinger

(ao som de baquetas contando o início da canção: 1… 2… 3…)


Nasci em Porto Alegre, misturando famílias com origem no interior. Colonos italianos por parte de mãe, colonos alemães por parte de pai. Geralmente falam dos gaúchos como se fôssemos um povo homogêneo, os branquelos do fim do mapa. Até pode ser assim, visto de longe. Visto de dentro, tudo é maior. Só entre a gringalhada da Serra e a alemoada do Vale já há um abismo de diferenças. Sem falar das outras peças do quebra-cabeça. Não havia nenhum músico na família da minha mãe. Havia música. Lembro de uma canção que meus tios cantavam quando me colocavam a esmagar uvas com os pés. A tradução poderia ser: Itália tá doente / desenganada pelos doutores / para salvar a Itália / tem que cortar a cabeça dos ricos. Não que fosse um pessoal politizado. Só eram sempre contra. E eram muito católicos. Eram muito católicos, também, na família do meu pai. Reza a lenda que todos tocavam algum instrumento. Piano, acordeón, violino, cítara alemã. Dez irmãos, uma pequena orquestra para quando chegasse visita naquelas noites do interior gaúcho. Noites de tempos sem TV. Não cheguei a vê-los tocar. Herdei o acordeón da tia Hildegard. No dia em que ela recebeu o diploma, fechou a tampa e nunca mais tocou.

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Nasci no dia 24 de dezembro, o que me deixou sem festa de aniversário a vida inteira. A vida inteira estudei numa mesma escola de classe alta. Só porque meu pai trabalhava lá. Ele vivia correndo de colégio em colégio, dando aulas de latim, depois francês, depois português. Enquanto os currículos escolares eliminavam idiomas, o professor Huberto corria atrás do leite das crianças. Quatro filhos pra criar. Nunca nos faltou nada, material ou espiritual. Minha mãe também lecionava. Eram dela os livros mais bacanas da casa. Grandes, com capa dura e muito mais figuras do que texto. Infelizmente, em vez de aprender geografia nesses livros, tomei gosto por gráficos e tabelas. Deve ser o que chamam de efeito colateral. Dona Casilda tem seus mistérios. Um motor que não faz barulho. E anda! Na próxima encarnação, quero ser neto dela. Não tenho nada muito interessante pra contar dos tempos de colégio. Quem não me conhecia me achava antipático. Ninguém me conhecia. Nenhum dos meus colegas frequentava as mesmas ruas, quadras e esquinas que eu. A cidade devia ser bem pequena vista de um avião. Por dentro, era enorme. nossa cidade é muito grande e tão pequena estamos longe demais das capitais

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Da escola não tenho nada muito interessante pra contar, a não ser que eu era goleiro. Uma pequena vaidade. Sofrer solitariamente? Sim, mas com fardamento diferente. Luva, bandana e joelheira. Do gol, passei a jogar tênis. Bjorn Borg era o cara. E era frio, o Iceborg. Podia jogar 123 horas, ganhar ou perder, sem que seu rosto revelasse alguma emoção. Parecia saber algo que ninguém mais sabia. E parecia não poder dividir o segredo com mais ninguém. Com seu jeito de goleiro argentino, Borg parou de jogar no auge da carreira. Há lendas nebulosas sobre tentativas de suicídio. Um tango nórdico escrito por Wagner. Como geralmente acontece na dança dos ciclos, as características dele ficaram mais nítidas contrastadas com a maneira de ser do cara que o sucedeu no topo do tênis mundial: John McEnroe, um fanfarrão. Eu nunca tive muito saco nem talento para competição. Depois de alguns minutos, me parecia absurdo ficar correndo atrás de uma bolinha que outro cara teimava em jogar cada vez mais longe. Treinar, eu achava legal. Passava horas no paredão, só ouvindo minha respiração e os três sons que a bolinha fazia: raquete-parede-chão, raquete-parede-chão. Um compasso ternário, uma valsa, um chamamé, um-dois-três, 1-2-3, raquete-parede-chão. Resumindo minha carreira tenística, desenvolvi um saque muito bom. Acima de qualquer outro golpe, pois era o único que eu podia aperfeiçoar sozinho. O golpe que começa e termina em si mesmo. Cordel Kill Bill.

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Cordel Kill Bill. Mente desligada. Hoje, consigo essa boa sensação estranha percorrendo, mecanicamente, sem emoção, escalas no piano ou violão. Lavar louça ou pregar botões também funciona, algumas vezes. se Capricórnio fosse Câncer se Califórnia fosse França a rampa que lança o skate ao céu seria nosso chão se eu fosse um cara diferente, sabe lá como eu seria Nasci no fim de dezembro, o que me aprisionou a um signo zodiacal pouco glamouroso. Dizem que a hora também é importante, pode desenhar outros elementos no mapa, suavizar o diálogo entre os astros. Nasci às 18h30min. Meia hora antes, aos trinta minutos negativos da minha vida, freiras passaram pelo quarto cantando ave-maria. Imagino que fossem freiras com fardamento completo. Como tia Rosina, que viveu 123 anos, sempre de hábito. Ela contava histórias de quando esteve na Itália em plena Segunda Guerra Mundial. Sempre me trazia um licor de anis que ela mesma fazia. Para cuidar da voz. 123%, o teor de álcool. enfermeiras em filmes de guerra violinos nas canções de amor Nasci em 1963. Tinha seis anos e uma camiseta do Jairzinho quando o Brasil foi tri na Copa do México. Minha camiseta era verde e amarela, a da Seleção foi cinza até a Copa de 74, quando uma Telefunken trouxe cores para os jogos. Aí eu já tinha onze anos e a TV, ainda, só três canais. Uma TV, colorida ou não, não era nada comparada ao toca-discos que apareceu lá em casa quando eu tinha cinco anos. A Eletrola. Tudo nela era fascinante: os pés-palito, o pano ortofônico, os enormes botões, a luz dentro da logomarca da Philips, o mecanismo de empilhar vários discos, o seletor de velocidades, 33, 45, 78 rpm… Uma joia. 11


Um conhecido dos meus pais trabalhava numa sociedade arrecadadora de direitos autorais, por isso ganhava uma quantidade enorme de discos. Sem ter o que fazer com eles, deixou todos com a gente. Era uma coleção fascinante por ser completamente aleatória. Ninguém compraria aqueles, e só aqueles, discos. No meio de todas as possibilidades musicais que os LPs ofereciam, eu voltava sempre para Os Incríveis, conjunto da Jovem Guarda, e José Mendes, cantor missioneiro. A causa do fascínio eram duas canções com uma característica comum: narravam uma história. Como um filme ou uma ópera. Histórias tristes, sem final feliz. Era um Garoto que como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones começava com uma rajada de metralhadora e contava a história de um jovem morto na guerra. Em Picaço Velho, era um cavalo que morria. Culpa de um boi brasino. Foi por querer muito tocar essas duas músicas que ganhei meu primeiro violão. 12


Quem me deu o presente foi tia Bambina. Eu adorava esse nome até o dia em que ela me explicou por que não gostava dele: Bambina quer dizer “menina” em italiano. Era um antinome, nome nenhum. Desde sempre escrevi, com a pior caligrafia da turma, letras de músicas que não existiam. O violão foi ficando pra trás, acumulando poeira. Quando eu tinha doze anos, meu pai adoeceu. Faleceu quando eu tinha catorze. Tudo ficou em stand-by, nesse período, lá em casa. Acumulando poeira. Muita coisa ficou em stand-by pra sempre. Não deu tempo pra ele me ensinar a fazer a barba. Enquanto meus colegas brigavam com seus pais na saudável busca de identidade, à noite, eu colocava os chinelos do meu pai para andar no escuro da casa. Fisicamente não nos parecíamos, mas o som dos chinelos caminhando era igual. Matava um pouco da saudade. toda vez que falta luz toda vez que algo nos falta (alguém que parte e não volta) o invisível nos salta aos olhos um salto no escuro da piscina O que havia de bom nessa época era ouvir música. Descobrir novos grupos nas revistas compradas no segundo andar do mercado público. Mais do que ouvintes, éramos torcedores das bandas. Quanto mais obscura e menos conhecida, mais gostávamos. O ideal de todo fã é ter uma banda só para si. Pelo menos era. Em algum ponto da estrada, vender mais discos e dar mais entrevistas passou a ter valor, mesmo nas tribos que deveriam oferecer alternativas. Até no minúsculo mundo do rock inglês havia territórios e fronteiras, uma divisão bem nítida entre estilos. Rock Pesado versus Rock Progressivo. Este último era o meu time. Apesar de também gostarmos de outras bandas, não podíamos admitir. Tínhamos que fazer pose de maduros defensores do rock mais cabeça, desdenhando os cantores que só ficavam no baby, baby, baby... 13


Concordávamos todos no pavor à Disco Music. É engraçado: o que considerávamos mais superficial vingou e influencia o pop de hoje. O que achávamos perene, micou. Continuo resistindo, achando que isso é só uma consequência matemática da maior exposição do que chamávamos de som comercial. Certamente não estou com a razão. Meu coração de fã continua intacto. Não é pouca coisa, manter as ilusões depois de ver a máquina por dentro. Sou completista: quando gosto de algum artista, quero saber tudo sobre seu trabalho. Adoro as fases estranhas pelas quais todos os artistas de longa carreira passam. Sempre tive um pé atrás com as novas ondas, por isso, frequentemente me atraso. Fui o último cara da minha turma a me dar conta de que Bob Marley era o que é. pra entender é preciso fé cega e pé atrás uma canção da banda preferida, uma descida ao porão seis cordas pra guitarra, seis sentidos na mesma direção 600 anos de estudos ou seis segundos de atenção Meu presente de quinze anos foi dinheiro suficiente pra comprar uma guitarra e um amplificador. Faltou pro táxi e tive que levar a tralha pra casa de ônibus. Decepção total com a guitarra. Não era um instrumento introspectivo. Resolvi tomar aulas de violão. Cordas de náilon. Yankees go home! Quando cheguei, na primeira aula, o professor estava tocando um choro ao bandolim. Foi o fim do violão. Falei que queria aprender aquilo. Ele disse que eu deveria formar um regional para me acompanhar. Consegui três colegas, dois violões e um cavaquinho. O chorinho virou uma paixão. Nos sábados, o professor nos passava uma música e eu ia direto para as lojas de disco do centro catar tudo que eu achava de Jacob do Bandolim e Valdir Azevedo. Os álbuns do Arthur Moreira Lima interpretando Ernesto Nazareth estavam no topo de qualquer lista. Fui ficando sozinho na paixão pelo choro. O regional de um homem só. Na época, abriu-se uma janela de receptividade, até comercial, para uma música instrumental bem mais complexa: jazz, Gismonti, Jean Luc-Ponty, Pat 14


Metheny, Stanley Clarke, Weather Report... Assisti a John McLauglin num Gigantinho quase lotado! Ainda que maravilhosa, essa música trazia uma sensação desestimulante. Tocar parecia algo reservado a poucos eleitos. Segui ouvindo meus discos e tocando meu violãozinho no quarto fechado. interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão escrito à luz de velas, quase na escuridão, longe da multidão Resolvi cursar Arquitetura, não sei bem por quê. Até não descarto uma influência inconsciente de músicos que fizeram esse curso. Alguns da Bossa Nova, outros da MPB. Até os caras do Pink Floyd, em biografias mal traduzidas, estudaram Arquitetura. Meu traço não era bom, mas eu gostava das matérias teóricas, história da arte, história das cidades. Aquela esquina entre Artes Plásticas e Engenharia era um lugar legal pra ficar olhando o movimento. Entrei na Escola de Arquitetura da UFRGS em 1981. Havia dois grupos de professores ideologicamente opostos. Dependendo de quem avaliasse os nossos trabalhos, poderíamos tirar a melhor nota ou sermos reprovados. Bela lição de relativismo cultural. Me foi muito útil fora da escola. o sonho é popular eu li isso em algum lugar se não me engano, é Ferreira Gullar falando da arquitetura de um Oscar o concreto paira no ar mais aqui do que em Chandigarh o sonho é popular No fim de 1984 rolou uma greve que fez as aulas se estenderem janeiro adentro. Sem muito o que fazer no verão porto-alegrense, a estudantada inventava atividades paralelas: exposições, festas, happenings… Numa dessas, me juntei a três colegas para fazer um show no auditório da faculdade. 15


O baterista era Carlos Maltz, figuraça. Muito inteligente. A piada que diz serem necessários dois bateristas pra trocar uma lâmpada (um pra segurar a lâmpada e outro pra beber até a sala girar) não se aplica a ele. Mais inquieto e rodado do que eu, Carlos já era casado e havia passado um tempo em Israel e na Europa. Nossas diferenças ajudavam muito na invenção de uma banda. Seguimos tocando juntos por muito tempo. Até brigarmos sem brigar. Cada um foi pro seu canto e cada canto virou um mundo à parte. Depois de um tempo, voltamos a fazer algumas coisas juntos. Carlos é um dos responsáveis por eu ter seguido escrevendo e tocando. 123 vezes resolvi largar tudo e ele sempre me dizia, às vezes sem falar nada, pra continuar. seguir viagem, tirar os pés do chão já vi o fim do mundo algumas vezes e, na manhã seguinte, tava tudo bem No início, escrever releases pretensiosos e desenhar cartazes espertos nos interessava tanto quanto fazer música. Estou mentindo: os cartazes eram nossa preferência. Sempre ensaiávamos na casa da família Maltz. Na garagem ou na sala, dependendo da moral da banda no momento. Flap, o irmão menor, sempre ficava por ali. Era muito engraçado na sua incorreção política. Se não era um profundo conhecedor de aviões e carros antigos, nos enganava muito bem. Estreia e despedida dos Engenheiros do Hawaii aconteceriam no dia 11 de janeiro de 1985, dia da abertura do primeiro Rock in Rio. Tentamos convencer algumas pessoas de que seria melhor nos ver tocar ao vivo do que assistir aos monstros sagrados pela TV. Eu tinha alguns cadernos de canções que incluíam trechos do que viria a ser Infinita Highway, Nada a Ver, e outras músicas que eu gravaria depois. Não mostrei nenhuma delas. Escrevi uma dúzia de canções no espírito da época, pós-punk. Tinham aquele humor nonsense, niilista. Engenheiros do Hawaii, uma delas, acabou dando nome ao grupo. 16


Lembro de ter sugerido Frumelo & Os 7 Belos, brincando com o nome das balas. Todo o mundo odiou. Engenheiros do Hawaii era uma brincadeira com os estudantes de Engenharia e surfistas que frequentavam nosso bar atrás das nossas colegas. Péssima escolha. Até hoje não sei nadar. Até hoje tenho que explicar que nunca estudei Engenharia pra gente que não acredita e jura que conhece outralguém que estudou comigo, Engenharia. Mas há uma autoironia, no nome, que me agrada. to be or not to be engenheiros do Havaí eles odeiam Albert Camus eles só querem ler gibi Li, em algum lugar, que, no início da banda Metallica, falaram para os músicos que eles nunca fariam sucesso com aquele nome, porque era unidimensional. Péssima previsão. Aqui rolou algo parecido, ao contrário. Bandas com nomes unidimensionais e heroicos como Ratos do Porão e Legião Urbana tendiam a ser levadas mais a sério. Os Titãs, que no início eram “do Iê-Iê-Iê”, deixaram essa questão explícita quando simplificaram o nome para se adequar aos ares menos sutis que se aproximavam com os anos 90. meninos de engenho santa ingenuidade santíssima trindade sexo, drogas, rock’n’roll Voltando ao primeiro show, encontraremos minha guitarra Giannini Diamond fingindo ser uma Gibson 335. Eu, de bombacha e cabelo new wave, não sei o que fingia ser. O repertório era meio performático. Além das músicas que escrevi, tocamos uma versão reggae de Lady Laura, do Roberto Carlos, e jingles dos biscoitos Sem Parar e do Extrato de Tomate Elefante. 17



Não lembro bem do show, pois estava bêbado. Era a primeira vez que eu tocava em público. Tracei uma linha na lista das músicas que ficava aos meus pés, exatamente no que seria a metade do show. Enquanto tocava, olhava o roteiro e pensava que, se chegasse até aquela linha vivo, iria até o fim. Essa mania me acompanhou por alguns anos. Em princípio, eu nem deveria cantar todas as canções, mas, no processo, o pessoal foi tirando o corpo e sobrou pra mim. Cantar não era algo que me dava prazer. O que eu queria fazer era tocar algum instrumento. E compor. Esse primeiro show parece ter ido bem. Pintaram convites pra apresentações em outras faculdades e alguns bares. A banda que montamos pra durar uma única noite estava virando uma banda pra durar algumas semanas. Já como um trio, tocávamos onde dava pra tocar. Onde não dava, também tocávamos. O repertório ia mudando rapidamente. As colagens performáticas foram dando lugar a um material mais pessoal, saído do velho caderno. Dos bares, começamos a andar pelo interior. Era algo que as outras bandas menosprezavam. Ficavam umas tocando para as outras, no mesmo bar. Dizem as más línguas que são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo (um para tocar e 99 para dizer que fariam melhor). Não é bem assim, mas é quase.


A agenda da época mandava ser completamente urbano e cosmopolita, romper com qualquer influência da MPB ou de sua versão gaúcha, a MPG. Inventou-se que o rock no Brasil foi inventado nos anos 80. Muita gente jogou fora seus discos antigos. Depois se arrependeu. Nós éramos estranhos porque tínhamos e mantínhamos um pé em cada um desses mundos: rock clássico, MPB, MPG e atitude punk do-it-yourself. Deve ter sido essa salada que chamou a atenção de uma gravadora do centro do país, que lançaria um disco com cinco bandas gaúchas. Éramos a banda na qual ninguém acreditava e a banda que estourou. O disco se chamou Rock Grande do Sul. Vendo em retrospectiva, acho que, sem querer, os caras fizeram uma seleção emblemática da cena local. Das cinco bandas, duas faziam um rock clássico, sessentista e setentista. Outras duas bandas tinham pretensões de pós-modernidade, rezavam pela cartilha das revistas e jornais de São Paulo. 20


e nós ali no meio no meio da cegueira nós ali no meio no meio das bandeiras Os clássicos me pareciam mal informados para menos. Os modernos, mal informados para mais. Nós estávamos mais prontos para o que viria. O BRock acabou transcendendo as gracinhas do Rio e o mau humor de São Paulo, criando um ambiente que nos favoreceria. Com o sucesso da coletânea, pudemos gravar um disco só nosso. Durante as gravações, em São Paulo, ainda éramos o patinho feio. Gravávamos nas horas que sobravam de outros artistas. Infelizmente, quase sempre pela manhã. Toda Forma de Poder, primeira música do nosso primeiro disco, cometeu quatro pecados capitais: colocou Fidel e Pinochet na mesma frase, tinha participação de um ícone da MPG, estourou no Brasil inteiro e entrou numa novela (nessa ordem).

Eu era completamente despreparado para tudo o que estava acontecendo. Não sabia como me relacionar com outros artistas, gravadora, imprensa e público. Só depois me dei conta de que rolava um subtexto nas relações São Paulo/Rio/Província. Misteriosamente, sobrevivi sem aprender a fazer a coisa certa. Aquele destemor de quem não sabe onde está se metendo deve ter ajudado. Ganhamos um Disco de Ouro raro na cena e começamos a viajar pelo Brasil inteiro. No fim da turnê, Marcelo Pitz, nosso baixista, resolveu saltar fora. Peguei emprestado o baixo dele, um lindo Rickenbacker Sunburst, para gravar, com Carlos, a demo do que viria a ser o próximo disco. As músicas já estavam todas prontas. 21


Sempre achei as limitações de um trio estimulantes. Compor, fazer arranjos e tocar nesse formato é estar numa interessante esquina entre arte e ofício. Um lugar bom para ficar ouvindo o movimento. Pensei que, se eu passasse para o baixo e encontrássemos alguém que também tocasse mais de um instrumento, estaríamos livres para explorar o trio de uma maneira mais versátil. Sem cair nas armadilhas de heroísmo dos power trios. Talvez eu esteja mentindo. O real motivo para eu ter virado baixista pode ter sido aquele Rickenbacker Sunburst. E os Rickenbacker Creme e Madeira que vieram depois. E os Steinberger, fretless e de dois braços. Podem ter me feito baixista os Fender Precision do Roger Waters e do Phil Lynnot, o Fender Jazz Bass do Jaco Pastorius, os amplificadores do Chris Squire e do Jack Bruce, a palhetada do cara do New Model Army, de quem, até hoje, não sei o nome. Mais físico do que a guitarra, mais espiritual do que a bateria, o contrabaixo fica na esquina entre ritmo e harmonia. Lugar legal para ficar sentindo o movimento. Por acaso, virei baixista. Instrumento pelo qual a maior parte dos fãs me identifica, mais do que guitarra, violão, teclado, harmônica ou viola caipira. Sou autodidata em todos esses instrumentos, mas é o baixo que deixa minha precariedade técnica mais evidente. Não deixa de ser constrangedor receber elogios nessa área. Talvez quem goste da maneira como toco baixo saiba mais da vida do que eu. É impossível ser, ao mesmo tempo, um coração e um cardiologista. Falei com Maltz sobre a mudança. Ele achou legal a atitude irresponsável de mexer no time que estava ganhando. Alguns dias depois, ao encontrar Augusto Licks, num show, no Rio, Carlos o convidou para tocar guitarra com a gente. Conhecíamos o Augusto de trabalhos com o pessoal da MPG e de um show, dos Engenheiros do Hawaii, no qual ele havia sido técnico de som. Além do grande talento musical, achávamos que ele traria um estranhamento legal, já que vinha de outro ambiente. As mudanças de formação se tornaram frequentes na história dos Engenheiros do Hawaii. Não que eu gostasse. Não que eu evitasse. 22


Num mundo ideal, as pessoas ficariam juntas para sempre. Mas, num mundo ideal, talvez não se precise de música. hoje eu sei, só a mudança é permanente de repente tudo está no seu lugar O disco que gravamos em seguida fez uma história bacana. No lançamento, não repetiu o sucesso do anterior, mas seguiria vendendo até o fim da indústria fonográfica, no início do século seguinte. Saber que nossa música estava chegando a lugares que não imaginávamos existir era estranho. Não posso dizer que me sentisse muito à vontade com a perda de controle que essa nova escala trazia. Boa sensação estranha. Nossa gravadora, à época, era fraca no ambiente pop rock. O cast se baseava em artistas românticos e populares. Foi bom para nós. Fazíamos sucesso e os caras não entendiam como ou por quê. Então, nos deixavam em paz. Sempre gravei o que eu queria, da maneira que eu queria gravar. Os números que gerávamos eram confortáveis e nossa maneira de ser deixava claro que não queríamos, nem poderíamos, fazer outra coisa. Impossível nos transformar em dançarinos ou rostinhos bonitos. Isso nos protegeu. Claro que a divulgação sempre era mais leviana e grosseira do que eu gostaria que fosse. Eu me consolava pensando que, se Bach fizesse parte do cast, tratariam-no da mesma forma. Cabia ao trabalho sobreviver, ou não, às intempéries. Enquanto gravávamos nosso segundo disco, em São Paulo, o pessoal da gravadora, no Rio, ficou sabendo que havia uma música com potencial para fazer sucesso. Era Terra de Gigantes. Os caras estavam apreensivos porque nosso arranjo não tinha bateria. Achavam um desperdício, nenhuma música sem bateria tocava nas rádios. Muito amigavelmente, nos sugeriram que seguíssemos a fórmula das baladas da época: que a canção começasse só com guitarra e voz e a bateria entrasse depois, seguindo até o fim. A música cresceria, os pés bateriam no ritmo e as lágrimas rolariam. Não estávamos muito interessados em fórmulas. Como uma brincadeira 23


interna, gravamos uma virada de bateria que caía no vazio. A levada não seguia, morria ali, na entrada. Além disso, tiramos a letra dessa música do encarte do LP. Pode ser irrelevante, e certamente é ingênuo, mas algumas atitudes como essa reforçavam a mistura de teimosia e irresponsabilidade que fazia com que nossas impressões digitais sobrevivessem aos apertos de mão. É natural que, ao conhecer um artista, a indústria, os críticos e os fãs se perguntem com quem ele se parece. Mas é preciso que o artista se pergunte o que é que só ele tem. Na reunião em que mostramos o disco com Terra de Gigantes para a gravadora, o clima foi de decepção total. Lembro das palavras do chefão: “Esse disco é um Boeing com tanque cheio. Pode ir longe… Se não explodir na decolagem”. Não creio que ele acreditasse na primeira hipótese. Saí da reunião direto para o aeroporto, achando que havíamos gravado nosso último disco. No voo para Porto Alegre, encontrei um grande artista pop que estava indo ao Sul fazer alguns shows. Ele me mostrou, na fita K7 do seu walkman, a música que lançaria em alguns dias. A canção, que seria um grande hit, era bacana, seguia o formato dos singles radiofônicos da época. Fiquei com a boa sensação estranha de que ele havia feito a coisa certa, nós havíamos feito a coisa certa, os caras da gravadora estavam certos, tudo estava certo. As luzes de Porto Alegre, lá embaixo, estavam certas, as estrelas, lá em cima, estavam certas. Cada um na sua. as chances estão contra nós mas nós estamos por aí a fim de sobreviver como um avião sobrevoa a cidade em chamas O disco saiu, a turnê seguiu, e minha conexão com o ambiente externo foi nublando e minguando. A banda virou um casulo. Não consigo mais 24


situar o que fizemos nas correntes e tribos da época. Contribuiu para esse alheamento, além da minha introspecção, a preguiça de encarar os clichês que se realimentavam. No Sul, éramos a trena pela qual o possível sucesso de outras bandas era medido, o que gerava um justificado ciúme (são necessários 100 guitarristas gaúchos para gravar um solo…). Nunca quisemos ser porta-vozes de nada. Nossa viagem era extremamente pessoal. Mas, infelizmente, nos coube, no Sul, ser a banda que atravessou o Mampituba. Era muito pouco e era chato. No resto do país, depois de rock-chimarrão e rock de bombacha, caiu sobre nós o clichê de odiados-pela-crítica-amados-pelo-público. Nada disso era muito verdadeiro. Tudo isso era muito desestimulante. Não havia diálogo acima dos clichês. Enfim… Aproveitando a autonomia que conquistamos na indústria, fui me fechando no meu próprio trabalho, que foi ficando cada vez mais autorreferente. Era consciente disso e nunca me preocupei. Sempre achei que tua maior virtude e teu maior defeito são irmãos siameses. Discos compunham trilogias, melodias e capas se repetiam anos depois, letras de músicas voltavam transformadas. Duas letras na mesma melodia, duas melodias com a mesma letra… Um mundo à parte, um mundinho à parte. Daqui pra frente, acho que as músicas falam por si. tudo se resume a uma cruz e uma espada e o principal, fica fora do resumo (caberia aqui toda a letra de Camuflagem)


P.S.: quando não quero perder tempo falando da minha trajetória, costumo dizer que tive muita sorte. É menos cansativo do que reviver todo o trabalho, as alegrias e as frustrações.

Pra ser sincero, sorte mesmo, e sorte grande, foi casar com Adriane. Luz que não produz sombra. Estudamos no mesmo colégio e fomos colegas na Arquitetura. Uma das primeiras coisas que ela me disse foi que eu era diferente do que parecia ser. O tom de voz sugeria ser um elogio. Até hoje tenho dúvidas. Será que ver de perto ou de longe muda tanto as coisas? juntos para sempre objeto e observador física moderna velhas canções de amor Diga-se, a meu favor, que tenho o raríssimo dom da monogamia. Pelos meus cálculos, só 12,3% das pessoas deveriam se casar. E, destas, 12,3% deveriam ter filhos. Coisas para iniciados. Segue sendo um mistério, para mim, que as pessoas achem que casar e ter filhos é o caminho normal. Ninguém é igual a ninguém, né? Eu, por exemplo, não gosto de flores. E acho um tédio ir ao cinema. 26


Em 1992, nasceu minha filha, Clara. E o mundo se refez. Um dia, quando eu estava cantando uma das minhas músicas favoritas para fazê-la dormir (índia teus cabelos nos ombros caídos / negros como a noite que não tem luar), ela me perguntou por que a tal índia tinha os ombros caídos. Acostumada com CDs, quando Clara viu, pela primeira vez, meus LPs perguntou o que era aquilo. Respondi que eram discos, pra tocar música. Ela falou: “Que legal, agora os discos vão ser grandões!”. Um mundo novo pode ser uma nova forma de ver o velho mundo. morte anunciada: direitos autorais pela tv a cabo uma baleia acaba de nascer nascer pode ser uma passagem violenta o futuro se impõe, o passado não se aguenta Por Deus Nosso Senhor, eu achava mesmo que o fim do texto era ali, no parágrafo anterior. O pessoal que me convenceu a fazer o livro me convenceu também de que seria legal o texto chegar aos dias de hoje. Enquanto eu explicava com belos argumentos por que não continuaria, de jeito nenhum, nem pensar, imagina, claro que não, comecei a achar que era pretensioso demais parar ali. Quantas vezes posso fazer o que fiz com a bateria de Terra de Gigantes? Não muitas, certamente. Prometo que, se me convencerem de mais alguma coisa, eu aviso. Fiquem tranquilos. No mais, os erros são todos meus. Daqui pra frente, vou me valer desta abstração que é a contagem do tempo em anos, pois me falta ciência para situar bem o que fiz em relação às tribos e ondas do momento. Efeito colateral dos coloridos livros de geografia da minha mãe, tenho gráficos e tabelas com todos os shows, gravações, videoclips e programas que fiz. Por si só, dizem muito pouco, quase nada. Serão úteis para criar um quadro pontilhista. Impressões numa imagem sem linhas. Curioso caso em que quadro será moldura. Continuo achando que, falem bem ou falem mal, os discos falam por si. É só ouvir. 27



• 1986 • Após o sucesso de Segurança e Sopa de Letrinhas, na coletânea Rock Grande do Sul, gravamos, em São Paulo, nosso primeiro LP, Longe Demais das Capitais. Não consigo me lembrar se a canção deu nome ao disco ou se o nome do disco sugeriu a canção. O que significa que canção e conceito nasceram muito próximos um do outro. Fizemos as fotos da capa perto de Porto Alegre, no lugar mais parecido com o Pampa que encontramos. Sinalizava nossa falta de interesse pela agenda da época, com suas paredes pichadas, latas de lixo em becos escuros e bússolas apontando para Nova Iorque e Londres. O disco teve Carlos Maltz na bateria, Marcelo Pitz no baixo e as participações de Nei Lisboa em Toda Forma de Poder e Manito, saxofinista d’Os Incríveis, em Segurança. MPG e Jovem Guarda engrossando nosso caldo. Não era fácil conseguir instrumentos importados, na época. Consegui que um-colega-do-primo-do-pai-da-irmã-do-vizinho-de-um-cara-que-tinhauma-kombi trouxesse dos EUA uma Fender Telecaster. Encomendei um modelo clássico, anos 60. Para minha decepção, veio uma guitarra moderninha, prateada, de metaleiro. Mas era minha e eu a adorava. Gravei esse disco com ela. Surpresa foi a gravadora ter pintado a foto da capa, originalmente P&B. A estética new wave impunha um colorido atroz. Mas o tiro saiu pela culatra. A capa até ficou bacana com as cores artificiais. Parecia-se com aqueles retratos antigos, artificialmente coloridos. Bucólico. Na edição do CD restaurou-se o P&B outonal original. um cão sem dono uma árvore no outono o nono mês de gravidez eu perco o sono ao som de Yoko Ono telefono pra vocês

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1986

Longe Demais das Capitais

Humberto Gessinger voz & guitarra Marcelo Pitz baixo & voz Carlos Maltz bateria


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