Abridores de Letras

Page 1


7

Conteúdo

Prefácio | Lia Monica Rossi Apresentação, 11 Uma jornada tipográfica do litoral ao sertão pernambucano

CAPÍTULO 1

Introdução, 15 A gráfica e o letreiramento popular de Pernambuco 1.1 Uma breve reflexão acerca da produção informal de design e a gráfica popular, 16 1.2 Os letreiramentos populares e sua inserção nas paisagens urbanas, 19 1.3 O ofício do pintor de letras – um pouco de história, 24

CAPÍTULO 2

Abridores de Letras, 29 Mapeando a gráfica popular de Pernambuco 2.1 Recife, 34 2.2 Gravatá, 46 2.3 Caruaru, 54 2.4 Arcoverde, 66 2.5 Salgueiro, 76 2.6 Petrolina, 84

CAPÍTULO 3

Um Olhar Tipográfico, 97 Descobrindo padrões visuais

CAPÍTULO 4

Aspectos Técnicos, 105 Materiais e modos de fazer 4.1 Conhecendo os materiais de trabalho, 106 4.2 Entendendo o método geral de trabalho, 110 4.3 Exemplificando alguns processos, 112

CAPÍTULO 5

Considerações Finais, 117 O fim da jornada ou apenas o começo

English Version, 121 Referências, 142


15

Capítulo 1

INTRODUÇÃO

A contínua presença do “útil e necessário” é que constituem o valor desta produção, sua poética das coisas humanas nãogratuitas, não criadas para mera fantasia. Lina Bo Bardi

1 | O termo abridores de letras deriva da expressão abrir letras, utilizada pelos pintores para descrever a ação de desenhar o letreiro sobre o suporte escolhido.

rantir seu sustento; outros se adaptaram às novas tecnologias; no entanto, muitos ainda resistem e continuam até hoje desenvolvendo seus artefatos de forma manual.

O rico universo popular brasileiro passa por um processo de deslocamento, adaptação e tradução para os meios digitais. Ofícios antes desenvolvidos por processos exclusivamente manuais aos poucos necessitaram incorporar técnicas e ferramentas digitais para manterem-se vivos e concorrerem com a produção de artefatos em larga escala. Foi assim que aconteceu com a indústria da comunicação visual brasileira. Com a introdução das novas tecnologias digitais, a maioria das antigas "oficinas de pintura" ou casas de "faixas e placas’" desapareceram ou cederam espaço para empresas de sinalização e birôs de impressão, que incorporaram ao seu maquinário routers, plotters de recorte de vinil ou de impressão digital.

O trabalho de resgate do ofício dos pintores de letras em Pernambuco — que aqui denominamos abridores de letras1 — busca contribuir para o fortalecimento da Memória Gráfica Pernambucana, principalmente daquelas manifestações informais de design passíveis de extinção — como a gráfica popular —, com o intuito de tornar-se uma fonte de referência para o desenvolvimento de novos projetos que incluam, em sua essência, elementos da cultura local.

Nesse processo de transição, alguns artífices e mestres no fazer manual de placas e letreiramentos perderam seu lugar no mercado e foram obrigados a migrar para outras profissões para ga-

Ao mesmo tempo, o projeto também busca revalorizar um ofício que se encontra marginalizado no mercado, para quem sabe reintroduzi-lo na cadeia produtiva local.


17


18

Letreiramentos de Seu Everaldo 路 Recife Lettering by Everaldo 路 Recife


21

Figura 2 Letreiramentos desenvolvidos por pintores letristas n達o especialistas (acervo pesquisa) Lettering created by non-specialist sign painters (research collection)


23


26


29

Capítulo 2

ABRIDORES DE LETRAS

ENXERGAR O VERNACULAR É ENXERGAR O INVISÍVEL. É OLHAR PARA ALGO COMUM E SE APAIXONAR. Tibor Kalman

5 | Veja o sistema de classificação completo nas páginas 100 e 101.

Para realizar o mapeamento e a análise da produção de letreiramentos populares e da profissão do pintor letrista em Pernambuco, foi desenvolvido um estudo comparativo entre as paisagens urbanas das cidades do Recife, de Gravatá, Caruaru, Arcoverde, Salgueiro e Petrolina, com a finalidade de investigar as similaridades e diferenças da linguagem visual dos letreiramentos populares da região metropolitana, ao agreste e sertão pernambucano. Os métodos utilizados para desenvolver esse levantamento envolveram pesquisas de campo para a realização de registros fotográficos dos letreiramentos populares, bem como entrevistas e visitas ao local de trabalho dos artífices que desenvolvem esses artefatos. Essa extensa coleta de dados proporcionou a formação de um acervo de mais de 1.000 fotos e o registro do trabalho de 12 pintores letristas do Estado de Per-

nambuco por meio de entrevistas semiestruturadas. Para analisar as imagens dos letreiramentos sob o ponto de vista dos seus aspectos tipográficos, foi utilizado como base o sistema de classificação dos letreiramentos populares desenvolvido por Finizola5 (2010a) . As cidades escolhidas para esse levantamento pontuam toda a extensão do Estado de Pernambuco, do litoral ao sertão, por meio da BR–232 — uma das rodovias mais importantes da região, complementada pelo trecho que interliga as cidades de Salgueiro e Petrolina. Ao mesmo tempo, também representam centros urbanos e comerciais de destaque que estão em pleno desenvolvimento econômico em cada uma das suas respectivas regiões. Nas últimas décadas, a cana-de-açúcar deixou de ser o principal produto primário de Pernambuco. O Estado, recente-


30

mente, observa uma relevante mudança na sua economia, com grandes investimentos nos setores secundários, em especial o petroquímico, biotecnológico, farmacêutico e automotivo, aliada à crescente importância do setor terciário, do turismo e de empreendimentos dos setores: alimentício, químico, têxtil, de materiais elétricos, comunicação e metalurgia, dentre outros. Destaca-se também a produção e exportação de frutas ao longo do São Francisco, além de outros polos dinâmicos de desenvolvimento, como o gesseiro no Araripe, a pecuária leiteira e o polo têxtil do Agreste, a cana-de-açúcar e a biomassa na Zona da Mata e o polo de informática, industrial e de serviços na Região Metropolitana do Recife. As cidades mapeadas em nosso estudo, além de pertencerem à rota da BR–232, encontram-se entre as 30 (de um total de 185) cidades mais populosas do Estado e representam quatro das cinco Mesorregiões de Pernambuco: a Região Metropolitana do Recife; o Agreste Pernambucano; o Sertão Pernambucano; o São Francisco Pernambucano; e a Zona da Mata, a única não contemplada, por estar muito próxima à região metropolitana e por ter apenas um pequeno trecho margeando à BR–232. Iniciamos pela região metropolitana, onde visitamos a cidade do Recife. Depois seguimos para o Agreste, onde percorremos as cidades de Gravatá e Caruaru. Continuamos a adentrar o interior do Estado e visitamos as cidades de Arcoverde e Salgueiro, em pleno Sertão pernambucano, para finalmente alcançar a

cidade de Petrolina, localizada no Vale do Rio São Francisco (Figura 9). É interessante observar as transições e contrastes entre a paisagem, o bioma e topografia do Estado de Pernambuco e, ao mesmo tempo, tentar compreender como as particularidades de cada local — os hábitos, costumes, tradições, etc. — podem deixar marcas na paisagem tipográfica de cada cidade.

PARA REALIZAR O MAPEAMENTO E A ANÁLISE DA PROFISSÃO DO PINTOR LETRISTA EM PERNAMBUCO, FOI DESENVOLVIDO UM ESTUDO COMPARATIVO ENTRE AS PAISAGENS URBANAS DAS CIDADES DO RECIFE, DE GRAVATÁ, CARUARU, ARCOVERDE, SALGUEIRO E PETROLINA.

Cada centro visitado carrega consigo idiossincrasias que refletem os aspectos históricos, geográficos e culturais que permearam o processo de formação de cada cidade, de seu tecido urbano e de suas paisagens arquitetônicas. Nesse contexto, elementos de comunicação também se caracterizam como parte dessas paisagens urbanas por estarem integrados às edificações ou se encontrarem em locais públicos. Entre eles, figuram fachadas de estabelecimentos

comerciais, placas e murais, vitrines, carrocinhas de ambulantes, cartazes, entre outros gêneros. De forma geral, todas as paisagens urbanas visitadas apresentaram claramente o contraste entre fachadas e placas confeccionadas por processos manuais e aquelas desenvolvidas por meio de plotters de impressão digital ou recorte. As placas impressas por processos digitais geralmente tomam espaço predominantemente nas vias principais de cada centro urbano. Enquanto que aquelas produzidas por processos manuais são encontradas com mais facilidade em vias secundárias ou áreas mais populares. A presença de elementos de comunicação visual em cada cidade, independentemente da técnica utilizada para sua confecção, está intrinsecamente ligada aos serviços e atividades comerciais prestados nas áreas visitadas, haja vista que a grande maioria dos letreiramentos é porta-voz de mensagens de cunho comercial ou publicitário, em detrimento daquelas com conteúdo político ou religioso. Entre as atividades que mais empregam letreiramentos populares como elemento de publicidade em sua fachada, destacam-se pequenos estabelecimentos ou negócios informais, como borracharias, oficinas mecânicas, eletricistas, cabeleireiros, manicures, bares e restaurantes, entre outros. Por outro lado, um amplo espectro de atividades se utiliza dos murais publicitários desenvolvidos por pintores letristas, entre elas estabelecimentos comerciais de médio porte, cursos e


31

Figura 9 Cidades onde foi realizado o levantamento dos abridores de letras de Pernambuco Cities visited during the research project for sign painters in Pernambuco


36

Letreiramentos | Recife Lettering | Recife


37


40


97

Capítulo 3

UM OLHAR TIPOGRÁFICO

A GRÁFICA POPULAR POSSUI UMA ASSOMBROSA COERÊNCIA, MESMO QUE SUAS MANIFESTAÇÕES CONCRETAS TENHAM SIDO FEITAS POR PESSOAS DISTANTES TANTO NO TEMPO COMO NO ESPAÇO. Rojas & Soto

É possível sistematizar um conjunto de produtos originados por meio de técnicas artesanais? É possível encontrar similaridades entre a produção dos abridores de letras de Pernambuco mesmo com todas as idiossincrasias do trabalho de cada artífice? Após muitos anos observando os letreiramentos populares, percebemos que existem algumas similaridades entre os estilos tipográficos utilizados mesmo por aqueles abridores de letras distantes pelo tempo ou espaço, seja em diferentes épocas, diferentes países ou regiões. Uma questão intrigante fica: o que determinaria então a semelhança entre esses artefatos? Qual seria a referência ou ponto de partida comum a todos esses artífices? Podemos investigar alguns fatores passíveis de influenciar a definição do formato e o estilo das letras elaboradas

pelos pintores, entre eles: (1) o processo de formação e aprendizado deste ofício por cada pintor; (2) as fontes de referência utilizadas para o desenho dos estilos tipográficos; (3) os seus métodos; e (4) as suas ferramentas de trabalho. Em contraponto com a cultura dos sign painters norte-americanos — na qual muitos pintores de letras têm oportunidade de vivenciar alguma formação técnica na área para exercer a profissão — na pesquisa desenvolvida no Estado de Pernambuco nota-se que a maioria dos abridores de letras entrevistados possuem um processo de formação autodidata ou no formato mestre-aprendiz. O "dom artístico", ou a habilidade e a facilidade para desenhar ou manejar pincéis em muitos casos é percebida logo cedo nesses indivíduos. Como aqui no Brasil atualmente não há cursos especializados, tampouco profissionalizantes na área, o aprendizado


98

do ofício se dá por meio da observação do trabalho de outros profissionais e da iniciação à prática profissional como assistentes de pintores mais experientes. Assim sendo, esse processo de educação extremamente pragmático não justificaria a semelhança visual entre alguns estilos de letreiramentos, já que os pintores não apreenderam as técnicas de pintura sob o "guarda-chuva" de uma mesma escola ou linha de ensino comum. Durante esta investigação, observamos também que as referências visuais utilizadas pelos abridores de letras são bastante diversas. Antes de tudo, é importante distinguir dois parâmetros maiores que definem o processo criativo dos pintores de letras: a cópia e a criação livre. No primeiro caso, o trabalho do pintor se resume a reproduzir da forma mais fidedigna um layout impresso apresentado pelo cliente no momento da solicitação do serviço, geralmente elaborado previamente no computador. A cópia pode ser total ou parcial, como no caso apenas da reprodução de um logotipo da empresa e o restante do layout ficar a critério do pintor. Nos casos de cópia, os estilos tipográficos já são predefinidos por outro profissional que montou o layout, não havendo liberdade de escolha de novos estilos pelo pintor. Por outro lado, nos casos em que os pintores recebem encomendas de peças em que há espaço para a livre criação e em que o briefing é realizado ali na hora em conjunto com o cliente, o artífice pode explorar seu estilo próprio de trabalho.

Ao conhecer de perto o trabalho dos letristas de Pernambuco, descobrimos algumas das referências visuais utilizadas na sua prática profissional. Entre as referências remotas — aquelas que fizeram parte da vivência ou background particular de cada pintor — está o trabalho de outros pintores letristas, entre eles seus mestres ou mesmo concorrentes.

OS ABRIDORES DE LETRAS POSSUEM UM PROCESSO DE FORMAÇÃO AUTODIDATA OU NO FORMATO MESTRE-APRENDIZ, ONDE O APRENDIZADO SE DÁ POR MEIO DA OBSERVAÇÃO DO TRABALHO DE OUTROS PROFISSIONAIS.

Já entre as referências mais imediatas, que podem ser usadas como guia no momento da pintura de uma peça, encontram-se recortes de revistas e catálogos de estilos de letras. O pintor Sebastião, da cidade de Arcoverde, por exemplo, tem em sua oficina uma estante onde coleciona inúmeras pastas com recortes de letras de revistas. Já o pintor Carlinhos, da cidade de Gravatá, possui na sua biblioteca alguns catálogos de letras publicados pela editora Ediouro (Figura 10). Muitas dessas referências visuais que fazem parte do acervo dos pintores, no entanto, não são utilizadas no momento em que estão "abrindo letreiros", mas

são apreendidas na memória por meio da repetição prática. Novamente não há uma padronização entre as referências visuais utilizadas por todos os pintores entrevistados, o que também não justifica a semelhança tipográfica entre os letreiramentos populares. O processo criativo, como vimos anteriormente, é diferenciado caso a peça seja uma cópia ou um artefato de livre criação: na cópia não há processo criativo, no segundo caso o processo criativo ocorre de forma bastante intuitiva e mental no momento da pintura. Geralmente esboços prévios não são utilizados e, quando existem, são bastante esquemáticos. A visualização do resultado final do produto se dá na imaginação do artífice e vai tomando forma ou se adaptando no momento da elaboração do próprio artefato. Quanto aos métodos de trabalho, estes basicamente variam de acordo com o tipo de superfície ou gênero do artefato a ser pintado: madeira, superfícies em metal, tecido, alvenaria, vidro, papel, borracha; placas, faixas, murais e fachadas, cartazes, etc. De forma geral, é possível observar pontos em comum nos métodos utilizados, alguns inerentes à própria técnica de pintura: preparação da base, pintura da camada de fundo, marcação de linhas guias, pintura do letreiramento, pintura do acabamento final das letras, pintura de elementos decorativos — como sombras, fios, 3D, entre outros — e a secagem. O uso das ferramentas também pode variar de acordo com a superfície a ser


99 Processo | REFERÊNCIAS

VISUAIS

Figura 10 Algumas referências visuais dos pintores: catálogos de letras, recortes de revistas e esboços manuais (acervo pesquisa) Visual references used by some of the painters: lettering catalogues, cuttings from magazines and handmade sketches (research collection)


100

Figura 11 Esquema de classificação dos letreiramentos de Finizola (2010), categorias quanto aos atributos formais: Amadoras, Quadradas, Serifadas, Cursivas, Gordas, Grotescas, Caligráficas, Fantasia e Expressivas. Scheme for Lettering Classification by Finizola (2010), categories of the formal attributes: Amateur, Square, Serif, Cursive, Rounded, Grotesque, Calligraphic, Fantasy and Expressive


103

Tabela 1

Nomenclatura utilizada pelos artífices entrevistados para designar alguns estilos de letras utilizados em seu trabalho. Nomenclature used by the interviewed craftsmen to designate certain lettering styles used in their work.

LETRA DE FÔRMA QUADRADA Termos similares |Maiúscula, Comum, Letra de Caixa Alta

MANUSCRITA

Termos similares |Caligrafada, Manual, Brush Script, Cursiva, Gótica.

ITÁLICA

(Letra serifada)

LETRA DE FÔRMA BOLEADA

MINÚSCULA

Termos similares | Letra Redonda

Termos similares | Letra de Caixa Baixa

CAIXÃO

PARTIDA

DECORADA

DEGRADÊ

Termos similares | Quadrada

Termos similares |Expressiva (Letra empregada em cartazes)

Termos similares | Bicolor

(Letra típica das carrocerias e lameiras de caminhão)

Nota. A tabela acima representa uma coletânea dos termos registrados durante as entrevistas. O emprego destes termos pode variar de acordo com cada pintor de letras, e portanto não se caracterizam como uma classificação consolidada no ofício. | Note. The above table represents a collection of the terms registered during the interviews. The use of these terms may vary according to each sign painter, and therefore does not qualify as a consolidated classification within the craft.


105

Capítulo 4

ASPECTOS TÉCNICOS O GRANDE SEGREDO PARA PINTAR LETRAS É SABER MANUSEAR CORRETAMENTE O PINCEL. Pintor Carioca

Embora a maioria dos pintores de letras de Pernambuco apresentem uma inclinação natural para as artes e o desenho, observamos que o domínio de técnicas básicas de pintura, bem como o conhecimento dos materiais de trabalho, é fundamental para diferenciar o trabalho de um pintor profissional daquele pintor ocasional ou amador.

A partir das entrevistas realizadas com diversos pintores de letras — entre eles, aqueles que apresentamos neste livro —, bem como da observação do seu processo de trabalho, podemos relatar quais materiais e processos são empregados mais comumente em Pernambuco para a elaboração dos letreiramentos manuais.


107

Materiais utilizados na pintura de murais


108 Características | GÊNEROS

Figura 12

E SUPORTES

Diferentes gêneros de letreiramentos: placa, fachada, mural, cavalete, cartaz e carrocinha (acervo pesquisa). Different genres of lettering: signs, shop fronts, murals, a-frames, paper signs and carts (research collection).


113

Pintura de Mural | Carioca


117

Capítulo 5

CONSIDERAÇÕES FINAIS A PROFISSÃO DO PINTOR LETRISTA NUNCA VAI ACABAR. Pintor Carlinhos

A jornada tipográfica em busca dos abridores de letras do Estado de Pernambuco nos permitiu conhecer e entender um pouco mais a profissão do pintor letrista, seu processo de aprendizado, suas técnicas e materiais de trabalho, bem como suas preocupações com o mercado.

do e reconhecido perante a sociedade. Sorrisos, homenagens e agrados vindos de pessoas simples e muito talentosas, estas foram a nossa recompensa e a certeza de estarmos trilhando o caminho correto.

No entanto, mais do que isso, este projeto nos proporcionou um mergulho nas diferentes paisagens e cidades que compõem o Estado, alargando a nossa percepção para as diversas formas de inserção do design formal e informal nessas localidades.

Remontando ao início do projeto, percebemos o quanto aprofundamos a pesquisa desde o momento em que deixamos apenas de documentar, por meio de registros fotográficos, os letreiramentos manuais para nos aproximarmos e conhecermos, de fato, os seus autores e suas preciosas histórias de vida.

Nesta caminhada, nos deparamos com muitos artífices dedicados e verdadeiramente presenteados com o "dom" artístico. A surpresa e alegria de cada um deles em receber a equipe do projeto transparece a esperança de, enfim, ver o seu ofício devidamente documenta-

Diante da ameaça das novas tecnologias digitais, entre outros fatores, partimos do pressuposto inicial da provável extinção da profissão do pintor letrista especialista, nos levando a crer que provavelmente apenas aqueles artefatos produzidos por letristas ocasionais não


118

especialistas teriam mais chances de sobreviver devido à necessidade contínua da comunicação informal e urgente entre os indivíduos de uma sociedade. Contudo, mesmo com crescimento de gráficas rápidas que produzem banners, cartazes, entre outros artefatos em menor espaço de tempo e com custo reduzido, que representam hoje uma concorrência desleal ao tradicional ofício, notamos que a discussão acerca da extinção da profissão ainda divide a opinião dos pintores letristas. Após conversarmos com esses artífices, percebemos que muitos ainda possuem uma visão positiva e esperançosa do futuro de sua profissão. Carlos, de Caruaru, acredita que a profissão não deve acabar, por se tratar de uma "cultura antiga" e afirma que hoje as pessoas continuam contratando letristas, pois confeccionar uma “placa definitiva” sai bem mais caro. Da mesma forma, Moisés, de Salgueiro, justifica não haver concorrência do seu trabalho com a impressão digital, pois já é bastante especializado e reconhecido em sua cidade. Ely do Recife, especialista na pintura de vitrines, também confia que seus serviços continuarão sendo solicitados, visto que alguns clientes já tentaram utilizar os adesivos em recorte vinílico como alternativa para a pintura de para-brisas de carros, por exemplo, mas voltaram atrás por fatores de custo e de facilidade de remoção da pintura versus adesivo.

O pintor Genivaldo, de Petrolina, também aponta uma série de vantagens da pintura manual em relação às peças impressas, entre elas o domínio técnico e a percepção visual inerente aos pintores letristas. Ele observa que a maioria dos birôs de impressão são instituídos por empresários que não necessariamente têm a sensibilidade estética ou não são habilitados para tal função. Além disso, Genivaldo alega que o seu público é diferente daquele das grandes gráficas, pois em sua maioria é formado por moradores ou pequenos e médios comerciantes das redondezas que gostam de um atendimento personalizado.

A DISCUSSÃO ACERCA DA EXTINÇÃO DA PROFISSÃO AINDA DIVIDE A OPINIÃO DOS PINTORES LETRISTAS. MUITOS AINDA POSSUEM UMA VISÃO POSITIVA E ESPERANÇOSA DO FUTURO DE SUA PROFISSÃO. O pintor também destaca a durabilidade dos letreiros pintados a mão, que, quando bem executados, podem durar bem mais tempo que o recorte em vinil ou impressões digitais. Por fim, ele observa a importância dos pintores instituírem uma oficina de trabalho própria, pois tendem a ser mais valorizados do que aqueles pintores que atendem diretamente na rua.

Por outro lado, Marcos, de Caruaru, que vive exclusivamente do ofício de pintar lameiras, conta que as vendas têm caído bastante, pois crê que devido à modernização dos carros, os motoristas estão usando menos as lameiras, e ele pode ter razão. Aos poucos, “as lameiras vão se tornando peças do passado”, afirma o artífice. Carioca também não observa um futuro muito promissor para a carreira de desenhista letrista no Recife, haja vista que hoje em dia já não sobrevive apenas deste ofício e complementa a sua renda com a pintura de quadros artísticos. O debate é extenso e de certa forma inconclusivo, no entanto os relatos dos pintores sugerem que, nas grandes cidades, o ofício tende a perder espaço no mercado de forma mais rápida do que nas cidades menos populosas, com exceção para aqueles letristas "superespecialistas" como os cartazistas e pintores de vitrines e para-brisas. Afora o debate acerca do futuro da profissão, ao final desta jornada também reconhecemos a importância deste trabalho no intuito de preservar a memória gráfica desses artefatos. Como portadores de significado, para quem produz ou para quem absorve a informação, os letreiramentos se configuram como manifestações gráficas que, de alguma, forma marcam a memória, pois retratam aspectos e relações entre as pessoas e o meio,


119

possuindo a capacidade de promover experiências cognitivas. Os estudos na área de memória gráfica permitem investigar tais manifestações, os seus autores, o público a quem se destinam, bem como refletem o entendimento, a concepção e o imaginário da comunidade de uma determinada época, ou seja, a cultura intrínseca a este ou àquele grupo social. Como designers, tivemos a oportunidade de observar o valor implícito na "feitura" desses objetos — na maneira e nas técnicas utilizadas pelos autores —, de forma não só a aprender com eles, mas também com a intenção de promovê-los e requalificar o trabalho desses mestres para um patamar central e menos periférico. Se o objetivo primordial da pesquisa aqui relatada foi o de mapear a produção desses especialistas no Estado de Pernambuco, do ponto de vista da visualidade tipográfica, a jornada nos mostrou outros aprendizados, como o apreço, o orgulho e o prazer que cada um dos letristas impõem ao seu trabalho, à sua profissão e a crença de sua estabilidade no mercado. Assim, se tínhamos como pressuposto a extinção dessa profissão, hoje temos a quase certeza de sua permanência, fato este que nos alegra os olhos e a alma. Da mesma forma, compreendemos que ao final de uma jornada, outra se inicia. Aqui esperamos começar um percurso novo, de pinceis atados àqueles dos "abridores de letras".


120


Abridores de Letras de Pernambuco

Um mapeamento da grรกfica popular Fรกtima Finizola Solange Coutinho Damiรฃo Santana

Lanรงamento 2014 ISBN: 9788521207986 Pรกginas: 140

Formato: 22,5 x 23 cm



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.