Expressão e Linguagem: Aspectos da teoria freudiana

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tanto na infância como na pré-história, permitiu observar que inconsciente e consciência ainda

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não haviam se diferenciado, e a censura não havia se erigido. Além disso, encontramos nos chistes, na obra de arte e na própria clínica um resgate dessa linguagem que revela um verdadeiro mergulho dado pela

presentes nas primeiras descobertas da clínica e das teorias de Freud e se desenvolvem ao longo de toda a sua obra. Embora Lacan não tenha afirmado o contrário, há quem pense que foi só

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a partir dele que a linguagem foi abrangida pela psicanálise.

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Janaina Namba É psicanalista e professora de Epistemologia da Psicanálise no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Especialista nas relações entre psicanálise e antropologia, dedica-se também ao estudo dos fundamentos biológicos da teoria freudiana. Editou e traduziu para a língua portuguesa Filosofia zoológica, de Jean-Baptiste Lamarck, com Ana Carolina Soliva e Celi Hirata.

Aspectos da teoria freudiana

investigações a respeito de expressão e linguagem já estão

Este livro é uma travessia da obra freudiana, partindo do árido terreno da tese sobre as afasias e retomando a escrita hieroglífica em A interpretação dos sonhos, as minúcias em O chiste e sua relação com o inconsciente e a pré-história no mito de Totem e tabu. Aspectos da linguagem abordados por Freud são iluminados

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consciência no inconsciente.”

A psicanalista Janaina Namba mostra neste trabalho que

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Janaina Namba

PSICANÁLISE

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“Em Sobre a concepção das afasias, Freud faz extensa crítica à neurologia do século XIX, que defendia uma localização anatômica para as funções mentais. Para ele, a memória não está circunscrita em células, embora tenha um substrato nervoso, ‘lugar’ por onde percorrem os estímulos que se inscrevem como traço ou representação. Este livro trata da linguagem na teoria psicanalítica freudiana e aborda o processo de aquisição da linguagem verbal no indivíduo em relação ao desenvolvimento psíquico infantil e também a aquisição da

pelo recurso à história da Filosofia, ao tecer as relações e distin-

linguagem como parte de um processo

ções entre mito, símbolo e metáfora resgatados na fantasia, na

do desenvolvimento da cultura

arte, nos sonhos e na clínica.

humana. Tanto no indivíduo quanto

– Camila Salles Gonçalves

na cultura, esse processo envolve uma linguagem que caracterizamos como série

PSICANÁLISE CONTEMPORÂNEA PSICANÁLISE

Coord. Flávio Ferraz

‘simbólica’, termo utilizado pelo filósofo alemão Schelling. Numa linguagem simbólica, as palavras são tratadas como coisas. Percorrer essa linguagem individualmente,


EXPRESSĂƒO E LINGUAGEM Aspectos da teoria freudiana

Janaina Namba

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Expressão e linguagem: aspectos da teoria freudiana © 2020 Janaina Namba Editora Edgard Blücher Ltda. Imagem da capa: iStockphoto Série Psicanálise Contemporânea Coordenador da série Flávio Ferraz Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Bonie Santos Produção editorial Isabel Silva e Luana Negraes Preparação de texto Cristine Akemi Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Beatriz Carneiro Capa Leandro Cunha

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

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Namba, Janaina Expressão e linguagem : aspectos da teoria freudiana / Janaina Namba. – (Série Psicanálise Contemporânea /coordenada por Flávio Ferraz) – São Paulo : Blucher, 2020. 260 p. Bibliografia ISBN 978-85-212-1913-2 (impresso) ISBN 978-85-212-1914-9 (eletrônico) 1. Psicanálise.  I. Título.  II. Ferraz, Flávio.  III. Série. 20-0262

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

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Conteúdo

Apresentação 11 1. De concepções sobre as afasias a uma linguagem simbólica 17 2. Intensidade e formas no aparelho psíquico

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3. Instâncias e linguagens

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4. As culturas e o simbólico

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5. O chiste e a obra de arte em Freud: formas de linguagem simbólica 179 6. A clínica, do simbólico ao alegórico

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Conclusão 239 Referências 243

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1. De concepções sobre as afasias a uma linguagem simbólica

O cheiro de madeira, palha e serragem da casa de comércio, as ruas brancamente poeirentas, iluminadas por um sol vertical, . . . a partir da janela, tudo ficou contaminado por um sinistro e mais ou menos preciso valor simbólico. Casares (2006), Histórias fantásticas

Concepções das afasias na neurologia contemporânea O estudo das desordens da linguagem serve para iluminar a relação abstrusa existente entre as funções psicológicas e a anatomia e a fisiologia do cérebro. Os mecanismos da linguagem recaem tanto sobre as bem-localizadas funções sensoriomotoras quanto sobre as mais amplamente distribuídas e complexas operações mentais como imaginação e pensamento, os quais não podem ser localizados. (Victor & Ropper, 2001, p. 499, tradução nossa)

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de concepções sobre as afasias a uma linguagem simbólica

A citação anterior, proveniente de dois conceituados autores da neurologia contemporânea, indica de certa maneira como foi delineado o estudo dos distúrbios da linguagem por parte da medicina desde o século XIX. Ainda que de uma maneira sutil, a indicação se encontra na própria linguagem utilizada, ou seja, na afirmação de que existem certas operações mentais que não são localizáveis a par de outras que podem sê-lo (por exemplo, as funções sensoriomotoras). A partir do estudo dos distúrbios de linguagem classificados por afasias, veremos como Freud se contrapõe à orientação localizacionista da neurologia do final do século XIX e propõe uma reorientação desse estudo das afasias, abandonando, portanto, o enfoque anatomopatológico, ou seja, reorienta um estudo antes calcado na anatomia para o do funcionamento da linguagem, conseguindo extrair algumas implicações do próprio funcionamento psíquico. Na neurologia contemporânea é considerada a existência de uma dominância hemisférica (predomínio de um hemisfério em relação ao outro), pois há diferenças hemisféricas, sejam relativas à fala, sejam relativas à motricidade de um lado do corpo sobre o outro. Há suposições quanto à dominância hemisférica, de que ela seja concomitante ao desenvolvimento da fala e ao desenvolvimento motor: “uma ausência do desenvolvimento ou perda da dominância cerebral resultante de determinadas doenças causa uma perturbação de ambas as características, e, portanto, o aparecimento de afasias e apraxias” (Victor & Ropper, 2001, p. 499, tradução nossa). Desde o século XIX foram determinadas algumas áreas corticais e subcorticais relativas à linguagem e à fala, no que diz respeito tanto aos aspectos motores como aos sensoriais. No entanto, tais áreas não são microscopicamente delimitadas nem representam “estruturas histológicas circunscritas de função constante” (Victor & Ropper, 2001, p. 501, tradução nossa) – ou seja,

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2. Intensidade e formas no aparelho psíquico

Conheceram o que era [o amor] quando começaram a padecer; porque é no sofrimento que ele desabrocha, como as rosas de mais apreço nos seus berços de espinhos. Paganino (2003), Os melhores contos portugueses do século XIX

Representação de pulsões A partir da ideia exposta no capítulo anterior de que tanto a palavra como representações corticais complexas foram formadas de impressões sensoriais individuais que partiram da periferia do corpo ou, em outras palavras, que os estímulos provenientes de um meio exterior ao corpo são interpretados ao longo das vias sensoriais que os conduzem até um centro psíquico onde são representados em diversas instâncias, cabe-nos agora a tarefa de esclarecer como o corpo é representado nesse centro psíquico, ou no aparelho psíquico proposto por Freud.

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intensidade e formas no aparelho psíquico

Nos Três ensaios sobre a sexualidade, Freud se refere à pulsão como uma “agência representante (Repräsentanz) psíquica de uma fonte intrassomática de estímulos, em contínuo fluir. . . . Ela é um dos conceitos de deslinde do anímico com relação ao corporal” (Freud, 1905/2003f, p. 153, tradução nossa). A representação do corpo seria feita pelas pulsões que, como vimos, foram estímulos exteriores que se tornaram endógenos ao serem incorporados, ao longo da filogênese. O estímulo exterior, assim que introjetado, é traduzido para uma linguagem própria do meio interior, isto é, passou pelo processo de recepção e foi interpretado numa linguagem dotada de sentido para o organismo afetado. Na medida em que o estímulo é interiorizado, provoca uma modificação na conformação do organismo, que por sua vez se torna capaz de produzir ele mesmo os estímulos. A produção interior de estímulos provoca um aumento da quantidade de energia livre dentro do sistema, o que é um sinal de desprazer conforme o princípio, formulado por Freud como prazer-desprazer e posteriormente denominado apenas princípio do prazer. O modelo do aparelho psíquico concebido é baseado no arco-reflexo simples, sendo composto de um polo sensorial de onde chegam os estímulos provenientes do exterior e de um polo motor, responsável pela descarga motora e eliminação desses estímulos ou da energia proveniente deles. O princípio do prazer está de acordo com a atividade inercial nervosa, que tem como função eliminar quantidades de energia. Uma vez que o neurônio tenha sido devidamente estimulado, há uma propagação nervosa da quantidade de energia que parte do polo sensorial até o polo motor e que, ao chegar ao sistema muscular, desencadeia um movimento reflexo. Em Para além do princípio do prazer, de 1920, Freud se refere a uma tentativa de dominação ou de ligação da excitação que

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3. Instâncias e linguagens

Se a mínima ação do entendimento não pode ocorrer sem sinal verbal, então o primeiro momento da consciência foi também o momento do nascimento interior da linguagem. Herder (1987), Ensaio sobre a origem da linguagem

Os tempos da libido Em um breve escrito de 1920, “A associação de ideias de uma menina de quatro anos”, Freud nos descreve a conversa de uma menina norte-americana de quatro anos com sua mãe. A menina descobre que sua prima vai se casar e a partir desse dado infere que sua prima teria um bebê. Para o espanto de sua mãe, a menina segue dizendo que também sabe sobre o crescimento das árvores e sobre a criação do mundo: “sei também que as árvores crescem da terra (in the ground) e que o bom Deus cria o mundo (makes the world)” (Freud, 1920/2004p, p. 261, tradução nossa). Freud observa que o espanto da mãe vem da compreensão de que sua filha havia feito

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instâncias e linguagens

uma associação de ideias de maneira simbólica, isto é, as crianças são provenientes de suas mães, as árvores da “Mãe Terra” e todas as outras coisas do “Bom Pai”. Ainda que esta última inferência da menina já corresponda a uma ideia sublimatória, e tem, portanto, a sua meta dessexualizada, a associação entre as duas primeiras ideias revela, conforme o que a menina diz, como o pensamento está sujeito ao desenvolvimento anímico e ao da sexualidade de cada um. Segundo Freud, uma criança de quatro anos encontra-se, quanto ao desenvolvimento da sexualidade infantil, na primeira fase da eleição de objeto, momento em que já existe uma unificação das pulsões parciais, mas ainda não há uma submissão, ou uma submissão incompleta, ao primado genital. Esse primeiro tempo da eleição de objeto tem como característica o direcionamento dos afãs sexuais a uma única pessoa, a determinadas coisas ou assuntos específicos, que possam satisfazer sua meta (Freud, 1905/2003f, p. 181), como observamos na menina que se detém na geração de todas as coisas. Essa primeira fase de eleição de objeto se estende dos dois aos cinco anos e dela se segue um período de latência sexual da infância, período em que toda a energia sexual, ou quase toda ela, é desviada de seu uso sexual. Nos Três ensaios sobre a sexualidade (1905), Freud supõe que é a partir de moções sexuais infantis, com suas metas redirecionadas para fins não sexuais, que são erigidas as importantes construções da cultura pessoal, bem como delas decorre a responsabilidade pela normalidade psíquica do indivíduo adulto. De acordo com a teoria freudiana, a sexualidade infantil se exterioriza de maneiras diversas conforme a fase em que se encontra. Até por volta dos dois anos, as pulsões sexuais, que emanam dos órgãos ou das zonas erógenas, e que se encontram disseminadas pela superfície corpórea, são designadas “parciais”. Por não se

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4. As culturas e o simbólico

A pré-história da cultura ou o simbólico da cultura A evolução dos hominídeos até o Homo sapiens sapiens poderia, com efeito, parecer uma evolução biológica que levaria em conta o progresso técnico, o desenvolvimento das faculdades intelectuais e a organização social. Mas podemos compreender a relação de causalidade no sentido inverso. (Gibeault & Uhl, 1998, p. 14) A aparição dos primeiros hominídeos, os Australopithecus, se dá por volta de três milhões de anos atrás, o que coincidiu com o período da aquisição da bipedestação. Do ponto de vista da psicanálise, Freud se refere à bipedestação como responsável pela instauração da repressão orgânica, ou do momento em que o homem, ao adotar a postura vertical, tornaria visíveis os órgãos genitais,

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as culturas e o simbólico

que até então encontravam-se encobertos, por uma postura predominantemente horizontal e, desse modo, passaria a ter vergonha de expô-los. Esse processo estaria intimamente ligado ao deslocamento da atenção antes voltada para as sensações olfativas, devido à periodicidade do ciclo menstrual, para as sensações visuais. A principal consequência da adoção da bipedestação seria justamente o “início fatal do processo de cultura . . . do ser humano” (Freud, 1930/2004d, p. 97, tradução nossa). A hipótese da repressão orgânica, como nos diz Freud, é uma especulação teórica, mas supondo que a hipótese tenha sido um fato, o processo de repressão teria se instaurado há mais ou menos três milhões de anos. “O tabu da menstruação” seria uma consequência dessa repressão “como defesa frente a uma fase já superada do desenvolvimento” (Freud, 1930/2004d, p. 97, tradução nossa). Haveria a partir da posição ereta uma constante estimulação sexual e, a partir da constante necessidade de satisfação sexual, fundar-se-ia uma família primitiva ou, como Freud denomina em Totem e tabu, de 1913, a horda primitiva. Isso porque deixaria de haver um comportamento de “hóspede”, cíclico, para ser substituído por um comportamento de permanência, de conservação dos objetos sexuais junto a si, que por sua vez conduziria à formação da família primitiva na qual já encontraríamos “um traço essencial da cultura” (Freud, 1930/2004d, p. 97, tradução nossa). Para Freud, o traço essencial dessa família, ou, como chamou anteriormente, horda primitiva, reside na organização patriarcal. Isto é, apesar de a organização contar com membros que possuem direitos iguais entre eles, encontram-se submetidos às restrições do chefe ou do pai, que, por sua vez, possui poderes ilimitados. Isso causa, em determinado momento, uma união fraterna e a revolta dos irmãos contra a submissão a esses poderes ilimitados, de modo que “ao vencer o pai, os filhos experimentaram uma união mais forte que o indivíduo” (Freud, 1930/2004d, p. 98, tradução nossa). Essa união

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5. O chiste e a obra de arte em Freud: formas de linguagem simbólica

Onde fantasia e juízo se tocam, nasce o chiste; onde razão e arbítrio fazem par, humor. Novalis (1988) As criações poéticas nos deixam entrever a natureza através de si mesmas, da mesma maneira atuam também como uma névoa entre a qual reconhecemos a época remota do mundo primitivo e as grandes figuras singulares que se movem sobre seu escuro pano de fundo. Schelling (2001)

Jogos infantis: as primeiras fantasias Das peculiaridades de que temos conhecimento através da análise, tomamos como nosso ponto de partida os processos psíquicos inconscientes. Consideramos os

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o chiste e a obra de arte em freud

processos psíquicos primários (os mais antigos) como sendo remanescentes de uma fase do desenvolvimento em que havia apenas um tipo de processo. Esses processos primários são guiados por uma tendência facilmente identificável que chamamos de princípio do prazer-desprazer ou simplesmente princípio do prazer. Tais processos buscam ganhar prazer; nossa atividade psíquica evita qualquer ação que possa suscitar o desprazer. Em nossos sonhos noturnos, ou mesmo durante a vigília há uma tendência a evitar as impressões de dor, o que é um vestígio da regra desse princípio e uma evidência de seu poder. (Freud, 1911/2006b, p. 414, tradução nossa) Para Freud, a fantasia, bem como o sonho noturno, encontra-se sob a tendência ou princípio do prazer que, por sua vez, rege de maneira exclusiva os processos psíquicos primários. Ainda que um novo princípio tenha emergido e funcione segundo processos secundários, a fantasia segue obedecendo a regras inconscientes, ou seja, permanece submetida somente ao princípio do prazer e se comporta como um sonho diurno. O “fantasiar” teve seu início junto com os jogos infantis: é tomado como um tipo de pensamento à parte, que não abandona o modo alucinatório de obter prazer nem o substitui pelo modo real, dito de outra maneira, pelo modo que se encontra submetido ao princípio de realidade. Uma explicação dessa manutenção seria que a transição do princípio do prazer para o de realidade . . . não é alcançada de uma única vez, nem de maneira uniforme. Enquanto as pulsões do ego são submetidas ao desenvolvimento, as pulsões sexuais divergem de modo significativo. As pulsões sexuais se portam inicialmente de maneira autoerótica, encontrando satisfação no próprio corpo

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6. A clínica, do simbólico ao alegórico

L’homme doit apprendre à éprouver de nouveau qu’il est lá pour lui-même. . . . L’esprit de l’homme est un tout accompli en soi. Moritz, citado por Todorov (1977), Théories du symbole

O método analítico desde os primórdios Temos desenvolvido a técnica da sugestão hipnótica, a psicoterapia baseada na distração mental, no exercício, na motivação de afetos adequados. Não menosprezo nenhuma delas, e em condições apropriadas as aplicaria. Se na realidade me circunscrevi a um único procedimento terapêutico, o método que Breuer chamou “catártico” e eu prefiro qualificar como “analítico”, não foram senão motivos subjetivos que me fizeram decidir por ele. . . . A mim, é lícito asseverar que

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a clínica, do simbólico ao alegórico

o método analítico da psicoterapia é o que tem efeitos mais penetrantes, o que permite ir mais longe, aquele pelo qual se consegue uma modificação terapêutica mais ampla do enfermo. . . . Posso aduzir [também] em seu favor que é o mais interessante, o único que nos ensina algo acerca da gênese e da trama dos fenômenos patológicos. (Freud, 1905[1904]/2003r, p. 249, tradução nossa) A partir do extrato anterior, proveniente da obra Da psicoterapia, de 1904 (Freud, 2003r), Freud já apresenta uma concepção bem delimitada tanto da técnica como dos fenômenos que envolvem o funcionamento e as disfunções psíquicas. Com relação à técnica de análise, distingue-a completamente da sugestão. Evoca uma comparação proposta por Leonardo da Vinci, a de que a pintura seria uma sugestão, e tanto na sugestão quanto na pintura haveria acréscimo, depósito, agregação. No caso da sugestão, ou da hipnose, pode-se mesmo “impedir a exteriorização da ideia patológica” (Freud, 1905[1904]/2003r, p. 250, tradução nossa). Já o método analítico é comparado ao ato de esculpir, de retirar, porque tem como meta eliminar a ideia patológica e “preocupa-se justamente com a gênese dos sintomas e da trama psíquica que engendram a ideia patológica” (Freud, 1905[1904]/2003r, p. 250, tradução nossa). A crítica mais veemente em relação à sugestão talvez seja a de que esta impeça o analista de entender o jogo de forças psíquicas, por exemplo, o papel da resistência à cura ou a resistência que os enfermos mostram ao aferrar-se à própria enfermidade. Ao questionar a hipnose e a sugestão, Freud indaga Bernheim, da escola de Nancy, cujo resultado será posteriormente, em 1910, a própria formulação do conceito de transferência, “através do qual o discurso psicanalítico vai conseguir articular a exigência

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tanto na infância como na pré-história, permitiu observar que inconsciente e consciência ainda

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não haviam se diferenciado, e a censura não havia se erigido. Além disso, encontramos nos chistes, na obra de arte e na própria clínica um resgate dessa linguagem que revela um verdadeiro mergulho dado pela

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Este livro é uma travessia da obra freudiana, partindo do árido terreno da tese sobre as afasias e retomando a escrita hieroglífica em A interpretação dos sonhos, as minúcias em O chiste e sua relação com o inconsciente e a pré-história no mito de Totem e tabu. Aspectos da linguagem abordados por Freud são iluminados

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A psicanalista Janaina Namba mostra neste trabalho que

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“Em Sobre a concepção das afasias, Freud faz extensa crítica à neurologia do século XIX, que defendia uma localização anatômica para as funções mentais. Para ele, a memória não está circunscrita em células, embora tenha um substrato nervoso, ‘lugar’ por onde percorrem os estímulos que se inscrevem como traço ou representação. Este livro trata da linguagem na teoria psicanalítica freudiana e aborda o processo de aquisição da linguagem verbal no indivíduo em relação ao desenvolvimento psíquico infantil e também a aquisição da

pelo recurso à história da Filosofia, ao tecer as relações e distin-

linguagem como parte de um processo

ções entre mito, símbolo e metáfora resgatados na fantasia, na

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arte, nos sonhos e na clínica.

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