Capa_mezan_freud_P6.pdf 1 20/08/2019 21:15:39
É psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professor titular no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
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“Publicado pela primeira vez em meados da década de 1980, Freud, pensador da cultura se tornaria nos anos seguintes um clássico da literatura psicanalítica brasileira. Mezan contextualiza as ideias do médico vienense, traçando um painel da época em que ele viveu, com todos os movimentos sociais, a atmosfera e a cultura, além do contexto psicanalítico.” — Jorge Pombo Barile, O Tempo
pensador da cultura
Y
“Trata-se de um livro amigo, agradável e elegante, que se deverá tornar com certeza uma espécie de companheiro de leitura da obra de Freud, para psicanalistas e não psicanalistas. Quase um romance de mistério, sobre o mistério da criação da psicanálise, que é decifração, hesitante e decidida, do mistério da psique humana. O livro de Mezan é para ser lido de uma vez, pois fascina como um enigma sempre empurrado para a frente, mas depois deve-se tê-lo à mão enquanto se estuda Freud, e retomá-lo cada vez que esse estudo perca a carne, torne-se um jogo de noções rígidas e atemporais.” — Fabio Herrmann, Folha de S. Paulo
Não há, certamente, um pensamento mais perturbador neste nosso século turbulento do que aquele introduzido pela teoria freudiana. Muito pouca coisa permaneceu no seu lugar, na nossa tradição cultural, depois do terremoto promovido pelo mestre de Viena.
Renato Mezan
FREUD
M
É autor de Freud: a trama dos conceitos; Freud: a conquista do proibido; Psicanálise, judaísmo: ressonâncias; A vingança da esfinge; A sombra de Don Juan; Escrever a clínica; Tempo de muda; Interfaces da psicanálise; Intervenções; Figuras da teoria psicanalítica. Também publicou, na França, Figurer l’Inconscient: De Freud à Houston, e Ben alors – tout ça pour ça? Freud et Dora. De sua autoria, a Blucher editou Sociedade, cultura, psicanálise e O tronco e os ramos, vencedor em 2015 do Prêmio Jabuti na categoria Psicologia e Psicoterapia.
“Mezan arma seu livro como uma obra de arte, expondo uma série de tramas históricas e psicanalíticas para depois providenciar sínteses majestosas ao final de cada capítulo. O Freud de Mezan pode ser debatido e até contestado, mas não deve ser ignorado. Seu fascínio e seu poder o tornam imprescindível para qualquer estudo de psicanálise que se faça daqui por diante.” — Mario Sergio Conti, Veja
Renato Mezan
Renato Mezan
É sobre essa decisiva mudança que Renato Mezan discorre em seu denso trabalho de especulação e pesquisa, Freud, pensador da cultura. O que o autor pretende, sondando as imagens e fantasias que compõem o substrato da teoria psicanalítica, é, ao fim, encontrar os elementos de teor universal que se destacam das idiossincrasias do inconsciente de Freud. À parte o tratamento refinado da teoria freudiana e a exploração profunda das suas incursões na área da cultura, o que mais atrai no texto de Mezan é a relação repassada de afeto denso e caloroso tanto para com a figura paternal de Freud quanto para com sua filha dileta, a psicanálise. O perfil dela que seu texto desenha se apresenta como uma tela barroca, com múltiplos planos, regiões de sombra e outras cheias de luz, em que a razão e o mistério se interpenetram sem se resolver.
FREUD pensador da cultura
Ele confirma plenamente os versos de Shakespeare com que se abre: “Os homens são feitos da mesma substância que os seus sonhos.” Belos e terríveis sonhos.
Nicolau Sevcenko Caderno de Programas e Leituras, Jornal da Tarde
8ª edição 8ª edição
renato mezan
Freud, pensador da cultura 8ª edição
Freud, pensador da cultura, 8. ed. Copyright © 2019 Renato Mezan 1a edição – Brasiliense, 1985 8a edição – 2019 Editora Edgard Blücher Ltda. Capa Leandro Cunha Índice remissivo Noemi Moritz Kon Índice onomástico e índice de textos de Freud Marisa Nunes Preparação Eliane de Abreu Santoro Preparação dos índices Luciano Marchiori Revisão Isabel Jorge Cury Otacílio Nunes Beatriz de Freitas Moreira Beatriz Carneiro
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar
Mezan, Renato
04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
Freud, pensador da cultura / Renato Mezan. – 8. ed. – São Paulo : Blucher, 2019.
Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.
760 p. Bibliografia ISBN 978-85-212-1857-9 (impresso) ISBN 978-85-212-1858-6 (e-book) 1. Freud, Sigmund, 1856-1939 2. Psicanálise I. Título.
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blucher Ltda.
19-1598
CDD 150.1952 Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise : Freud
Conteúdo
Agradecimentos ............................................................................................. 9 Prefácio à 4a edição ........................................................................................ 11 Nota à 7a edição e Nota à 8ª edição ............................................................... 17 Introdução ...................................................................................................... 21 1. berggasse 19: um endereço impossível? ................................................. 33 1. A cidade Potemkin ................................................................................ 34 2. Do Sacro Império à Cacânia .................................................................. 51 3. “Três vezes apátrida” ............................................................................. 69 4. Shlomo ben Yaakov ............................................................................... 78 5. “Flectere si nequeo superos...” .................................................................... 99 6. O esplêndido isolamento ....................................................................... 120 7. De me fabula narratur (1) ...................................................................... 149 2. as três fontes da psicanálise .................................................................... 157 1. Da neurologia à psicanálise ................................................................... 166 2. Abertura em surdina .............................................................................. 179 3. Uma arqueologia da moral .................................................................... 193 4. O aprendiz de feiticeiro ......................................................................... 206
5. “Vom Himmel durch die Welt...” ............................................................ 223 6. A estrada real ....................................................................................... 249 7. A sombra do outro .............................................................................. 264 8. De me fabula narratur (2) ...................................................................... 284 3. do pai em questão ................................................................................... 293 1. Diálogo de surdos ............................................................................... 300 2. Obsessão, delírio e teoria .................................................................... 328 3. Um mito científico .............................................................................. 356 4. O acesso ao real .................................................................................. 394 5. “A psicanálise farà da sè” ...................................................................... 423 6. Realidade psíquica e realidade material .............................................. 447 7. De me fabula narratur (3) ...................................................................... 470 4. às voltas com a história . ....................................................................... 478 1. De Eros a Thânatos e vice-versa ......................................................... 489 2. Vicissitudes da alteridade .................................................................... 504 3. A cultura: origens, funções, mazelas .................................................. 534 4. Uma ilusão sem futuro ....................................................................... 568 5. Filogênese contra história ................................................................... 601 6. História contra filogênese ................................................................... 624 7. “Nosso deus Logos” ............................................................................ 654 8. “Prefiro ser eu mesmo o ancestral” .................................................... 687 9. De me fabula narratur (4) ...................................................................... 706 Bibliografia ................................................................................................... 717 Índice remissivo ........................................................................................... 725 Índice de textos de Freud ............................................................................. 741 Índice onomástico ........................................................................................ 749
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Introdução
Men are such stuff as dreams are made on. Shakespeare, The tempest Não é comum, por certo, começar a redação de uma tese de filosofia pelo relato de um sonho. A abstração conceptual, o rigor da análise, a parcela de erudição necessária à realização de um tal projeto parecem mesmo desaconselhar a aliança de dois registros supostamente heterogêneos: o da vida interior do filósofo e o do conhecimento teórico. A “objetividade” das reflexões consignadas numa tese, a ascese da meditação, o trabalho de verificação essencial à propriedade da interpretação apresentada não parecem ter muito em comum com o que se passa no mundo da existência pessoal, de que pouco se pode esperar para o progresso da ciência. Considerações de discrição intervêm igualmente para manter afastados os dois registros: não sendo meu objetivo escrever uma autobiografia, mas uma tese, o tesouro dos desejos e das reminiscências que, como todo mundo, eu tenho em alta estima, corre o risco de me conduzir a divagações desprovidas de interesse para meus leitores, embora possivelmente proveitosas para mim. A menos que suponha nesses leitores um ardente desejo de saber o que passa pelos meus devaneios, o que pode ser verdadeiro sob um aspecto — não somos todos comadres em potencial? —, mas configuraria um
apreço um tanto megalomaníaco por minhas produções pessoais, a decisão de começar pelo relato de um sonho exige explicações preliminares. E, na verdade, não comecei pelo relato do sonho: comecei duvidando, por um artifício de retórica, da viabilidade de começar pelo relato do sonho... Mas a recusa de partir do sonho, em nome da separação entre a vida particular do autor e o que ele possa ter a dizer sobre o tema escolhido, merece uma análise mais detida. Com efeito, ela implica que, na esfera dos interesses intelectuais, as atrações e as repulsas sejam explicáveis unicamente em termos teóricos. Isso significa que alguém se interessa por tal ou qual questão em virtude de sua complexidade, ou de sua novidade, ou de sua dificuldade: em suma, por características pertencentes à questão em si, e só indiretamente referentes ao questionador. Ora, essa hipótese é insustentável. Quem algum dia já se debruçou sobre um problema “teórico” sabe que não existem “questões em si”. O que existe são problemas que, de uma forma ou de outra, dizem respeito ao investigador, fazem parte de suas inquietações e proporcionam um certo prazer ao serem abordados. O desejo de “resolver um problema”, ou seja, de vencer uma dificuldade, de lançar luz sobre um domínio até então confuso ou inexplorado, está sempre presente, em toda atividade intelectual. O que se passa é que esse desejo não ousa dizer seu nome, preferindo abrigar-se atrás do “Interesse Intelectual”, às vezes acrescido de nobres motivações filantrópicas, tais como o desígnio de contribuir para o bem da Humanidade ou, mais modestamente, o de evitar aos pósteros o aborrecimento de precisar exumar todos os documentos utilizados, ganhando tempo na preciosa corrida em busca do Saber. O que não deixa de traduzir um outro desejo, o de dizer enfim a palavra definitiva sobre o assunto escolhido, mediante a mais completa “objetividade” e “seriedade”, a tal ponto que, aos pesquisadores das gerações vindouras, nada mais reste senão... citar o autor. Ora, se essa ficção pode ser mantida, em nome do respeito às regras da Academia, em muitos trabalhos de cunho intelectual, ela falsearia por completo a finalidade de um estudo sobre Freud. Não é possível se aventurar pelos domínios da psicanálise fingindo ignorar que os temas a serem tratados dizem respeito, também e exemplarmente, ao investigador e às suas motivações. Estas podem ser de vários tipos, sem se esgotar no desejo de se autoconhecer: propósito, aliás, para cuja realização aproximada o divã é muito mais vantajoso do que a mesa de trabalho. Contudo, o projeto de escrever um livro sobre Freud e a cultura não pode ser considerado independente de motivações pessoais, visto 22
1. Berggasse 19: um endereço impossível?
“A psicanálise, porém, que durante minha longa vida se difundiu por muitos países, não encontrou ainda um lar que lhe fosse mais propício do que a cidade na qual nasceu e cresceu.”1 “Odeio Viena com um ódio verdadeiramente pessoal e, ao contrário do gigante Anteu, sinto retornar minhas forças tão logo levanto o pé da cidade paterna. Este verão, por causa das crianças, terei de renunciar às viagens e às montanhas, resignando-me a ter constantemente na minha frente, de Bellevue, o panorama de Viena.”2 Seria demasiado simplista explicar a oposição entre essas duas afirmações de Freud apenas pelo tempo transcorrido entre uma e outra, ou, de maneira um pouco mais sutil, pelo fato de a primeira ser escrita às vésperas do Anschluss e da 1 O homem Moisés e a religião monoteísta, sa ix, p. 504; se xxiii, p. 55; bn iii, p. 3273. No decorrer deste estudo, as citações de Freud serão referidas a três edições: a Studienausgabe para o original alemão, a Standard edition como texto crítico fundamental, e as Obras completas, na tradução castelhana da Biblioteca Nueva, sob a responsabilidade de J. Tognola. As siglas sa, se e bn referem-se a essas edições. Caso um texto não figure na sa, a fonte será indicada pelos Gesammelte Werke (gw). Em todos os casos, os algarismos romanos indicam o volume, e os arábicos, a página. 2 Carta 130 a Fliess (11/3/1900), em Los origenes del psicoanálisis, bn iii, p. 3637. A edição espanhola é a única que traz o texto integral das cartas e manuscritos endereçados a Fliess, razão pela qual citaremos somente esse texto, que será designado pela sigla op.
emigração forçada, enquanto a segunda espelha a decepção pelo gélido acolhimento feito à Interpretação dos sonhos. A ligação com a cidade em que viveu e trabalhou, e da qual só se resignou a partir quando a invasão nazista o colocou diante de uma ameaça à sua existência física, é certamente um elemento importante na vida de Freud; contudo, a firmeza com que se expressa tanto numa quanto noutra das frases que citamos sugere que suas relações com Viena sejam mais complexas do que de pronto se poderia pensar. Além disso, o sujeito da citação inicial é a psicanálise, enquanto na segunda Freud fala na primeira pessoa do singular. Essa distinção tem, no entanto, um valor limitado, dada a íntima vinculação entre a psicanálise e seu fundador, evidente se refletirmos que uma de suas raízes é a autoanálise de Freud. Mas, se a psicanálise se cristalizou num conjunto de teorias cuja ambição é elucidar o funcionamento do psiquismo humano em geral, e não apenas o do indivíduo Sigmund Freud, é lícito inferir que o modo particular de reflexão que a engendra não se esgota na introspecção e na autobiografia. Em outros termos, a teoria psicanalítica é a parte mais abstrata, que se elevou à categoria do conceito, da análise empreendida por Freud sobre si mesmo e sobre seus pacientes. Nesse sentido, a acusação de psicologismo que foi inúmeras vezes levantada contra ela deixa de ser pertinente, embora reste explicar como se dá essa passagem da meditação singular e da observação de casos particulares à dimensão universal da teoria. Parece-me que um caminho fecundo para pensar a questão consiste na exploração sistemática dessa singularidade e dessa particularidade a fim de desvendar as determinações que as constituem e as tornam, precisamente, aptas a engendrar uma concepção radicalmente nova do fenômeno humano. Como a psicanálise nasceu num lugar e num momento determinados — a Viena da virada do século — e por obra de um indivíduo determinado, as relações de seu fundador com esse meio específico não podem deixar de ser decisivas para sua emergência. Um estudo sobre a interpretação psicanalítica da cultura deve levar em conta, portanto, a cultura em sujo seio se tornou possível interpretar psicanaliticamente. Eis por que o iniciaremos com uma análise da atmosfera cultural em Viena no final do século xix.
1.
a cidade potemkin
Viena no tempo de Francisco José: essas palavras evocam uma impressão de conto de fadas. As associações correm, céleres, para o “Belo Danúbio Azul” 34
2. As três fontes da psicanálise
O primeiro texto publicado em que Freud analisa um “fenômeno cultural”, no sentido de uma teoria psicanalítica da cultura, é a passagem da Interpretação dos sonhos sobre o Édipo-Rei de Sófocles, à qual se segue imediatamente um comentário sobre Hamlet.1 Seria preciso, porém, ignorar por completo o trabalho realizado ao longo de toda a década anterior para imaginar que esse texto constitua o elo inicial das reflexões de Freud sobre a problemática da cultura. Com efeito, o que dissemos no primeiro capítulo mostra que a preocupação freudiana com tais temas tem raízes muito mais profundas, que mergulham em seu universo pessoal e na complexa trama de desejos, aspirações e reminiscências que o unem a seu tempo e à sociedade na qual se insere. O fato de Freud ser um homem lido e sensível à esfera humanística, porém, não é suficiente para dar conta do surgimento de uma teoria psicanalítica da cultura. É necessário examinar o percurso por ele realizado, que o conduz da neurologia, na qual se distinguira por seus trabalhos anteriores, às concepções que externará ao longo de toda a sua obra psicanalítica. Basta um olhar de relance à lista das Obras completas para constatar que os títulos de psicanálise 1 A interpretação dos sonhos, v, 6: “Sonhos sobre a morte de pessoas queridas”, sa ii, pp. 265-70; se iv, pp. 261-6; bn i, pp. 506-9.
“aplicada” se estendem por quatro decênios, demonstrando um interesse permanente por esse gênero de pesquisas. A partir de 1912, a revista Imago fornecerá ao movimento psicanalítico um órgão específico para a difusão de trabalhos de “aplicação dos conhecimentos sobre a alma”; é notório o interesse de Freud por essa publicação, para cujo número inaugural escreveu o primeiro ensaio de Totem e tabu. Da mesma forma, a polêmica a respeito do exercício da psicanálise por não médicos (“Sobre a questão da análise não médica”, de 1926) oferece-lhe a ocasião de reiterar uma posição da qual jamais se afastou: a psicanálise não é um assunto de médicos, mas de psicanalistas, e proibir a não médicos o seu exercício seria limitar singularmente a ampliação de seu corpo de conhecimentos, já que os estudiosos de outras disciplinas seriam os mais indicados para desenvolver o campo da “psicanálise aplicada”. Essa preocupação constante de Freud em não reduzir sua disciplina a uma especialização terapêutica significa que a investigação psicanalítica, movida por sua própria dinâmica, não pode deixar de se estender às manifestações culturais. É preciso repetir que Totem e tabu era seu livro preferido? Um interesse tão insistentemente expresso requer uma explicação. À primeira vista, a mais simples seria a seguinte: a psicanálise, desvendando os processos inconscientes, não teria por que se privar de demonstrar o funcionamento de tais processos em outros domínios da atividade humana. O postulado implícito dessa posição é a unidade do espírito, que seria discernível em qualquer dos seus produtos, em especial naqueles que trazem o selo da imaginação criadora — é o paralelo que se estabelece, já na correspondência com Fliess, entre a formação das fantasias inconscientes e a criação literária. Essa será efetivamente uma das direções que tomará a teoria freudiana da cultura, mas de modo algum a única. Um segundo caminho é aberto pela problemática da repressão: o afastamento de uma representação “intolerável” do fluxo associativo da consciência conduz Freud a se interrogar sobre a origem das concepções morais e sobre sua vinculação privilegiada com a sexualidade. Daqui partem duas vias: em primeiro lugar, a moralidade é um fator claramente social, inculcado por meio da educação; em segundo, o fundamento aparente dos deveres e prescrições morais reside na religião. Desse modo, vem se colocar para Freud o problema da gênese desta última, no duplo registro dos mitos fundadores e dos deveres recíprocos derivados desses mitos e por eles justificados. Ao mesmo tempo, a moral se expressa sobretudo de modo 158
3. Do pai em questão
A periodização da obra freudiana é sempre questão delicada. Por um lado, ela se refaz sem cessar; os mesmos problemas são retomados a partir de diferentes perspectivas, o progresso da reflexão faz surgir novas questões, que, sem se reduzir por completo às anteriores, tampouco são de todo inéditas, encontrando-se em germe em textos que precedem, por vezes, de duas ou três décadas sua eclosão. Por outro lado, a cada momento, a psicanálise apresenta uma face sistemática, permitindo apresentações de conjunto que, embora sempre um passo atrás em relação às ideias que fermentam no espírito de Freud, são capazes de retratar com fidelidade o estado das interrogações e das respostas no campo próprio dessa disciplina. Essa combinação de arquitetura rigorosa e de inovação revolucionária a princípio desconcerta o investigador, e por isso mesmo o obriga a avaliar, aproximativamente, o peso dos fatores de estabilidade e de transformação em cada texto considerado. Desenham-se dessa forma linhas de força, momentos de particular densidade de um ou outro elemento, redes de questões correlatas que se articulam para definir campos relativamente organizados. Com a ressalva de não ver nessas figuras conceptuais mais do que cristalizações provisórias e trabalhadas pelas tensões internas que conduzirão à sua passagem para outras cristalizações, também provisórias e portadoras das mesmas tensões, é possível reconhecer na trajetória freudiana certas etapas, nas quais o foco
permanece algo constante, sustentando — e sustentado por — elaborações que precedem em níveis diferentes, mas que caminham na mesma direção ou ao menos em direções convergentes. Se voltamos o olhar para a zona mediana da obra de Freud — grosso modo, o período abrangido pelo segundo volume da biografia de Jones (1901-19) —, na qual se situa a maior parte de seus escritos, essa unidade feita de convergências e de tensões parece emanar de um conjunto de fatores que parecem ser heteróclitos, mas que sob análise se revelam intimamente entrelaçados. Há, de imediato, uma maior segurança na exploração dos três domínios sobre os quais repousa a psicanálise: a psicopatologia, o estudo das formações culturais e a autoanálise de Freud. Em cada um desses terrenos, novas configurações emergem, dando origem a um grande número de livros e artigos, alguns dos quais poderemos examinar neste capítulo. A expressão “segurança” alude à relação entre Freud e sua disciplina, e, mais do que num conceito-chave ou numa problemática isolada, é nessa relação, feita de diversos elementos, que me parece residir a unidade desse período de sua conceptualização. Um fator de extrema importância vem intervir nesse plano: o surgimento do movimento psicanalítico, que, propriamente, assinala a inscrição da psicanálise na história. Com efeito, o ano de 1907 marca o início do contato de Freud com o mundo exterior aos arrabaldes de Viena. É certo que, desde 1902, um pequeno grupo de alunos, recrutados entre os ouvintes de seu curso na universidade, se havia reunido na “Sociedade Psicológica das Quartas-Feiras”; mas é sem dúvida o interesse despertado em Zurique pela psicanálise que assinala o fim do “esplêndido isolamento” de Freud, iniciando a difusão da nova ciência em escala a princípio europeia e depois universal. Tal fato é prenhe de consequências decisivas, não apenas para a existência de Freud, mas também para o progresso de seu pensamento. Eis por que encerrei o capítulo anterior com o estudo da “Gradiva”, publicado em 1907: esse ano marca uma verdadeira mutação na história da psicanálise. O advento de discípulos estrangeiros — e estrangeiros do quilate de Jung, Abraham, Ferenczi e Jones — significa o acesso de Freud à posição de fundador de uma disciplina autônoma, cujos caminhos, embora fortemente influenciados por sua pessoa nos anos em que viveu, tendem a se constituir numa rota cada vez mais independente. Essa implantação da psicanálise na realidade social e científica merece a máxima atenção do estudioso, pois, a priori, nada exigia que 294
4. Às voltas com a história
Eis minha conclusão secreta: Já que nossa civilização atual — a mais evoluída de todas — pode apenas ser considerada uma gigantesca hipocrisia, devemos concluir que, organicamente, não somos feitos para ela. Ele, o Grande Manitu dissimulado atrás do Destino, recomeçará essa experiência com uma raça diferente.1
Ao confiar, no outono de 1914, essa “conclusão” a Lou Andreas-Salomé, Freud reitera um pensamento que vem de longe e cuja primeira expressão se encontra numa nota dirigida a Fliess em 1897: a cultura repousa integralmente sobre a coerção das pulsões. Uma e outra vez, ao comentar temas ligados à sociedade, a mesma noção volta a aparecer (por exemplo, em “O nervosismo moderno e a moral sexual civilizada”, em 1908, ou em determinadas passagens da correspondência). Expressão de seu “pessimismo” ou inferência necessária da prática psicanalítica — questão que tornaremos a encontrar em nosso percurso —, o fato é que na formulação de 1914 transparecem várias das determinações sob as quais será pensado o fenômeno da civilização nos escritos posteriores: o evolucionismo eurocêntrico, a relação da cultura com o substrato biológico, e mesmo o “Manitu” que se esconde atrás do Destino, prefigurando 1 Citado por Marthe Robert, La révolution psychanalytique, Paris, Payot, 1964, ii, p. 175.
o que na década de 1920 será denominado Ananké — a “Necessidade”. Em grego como em alemão (e como em português, ora...), a Necessidade se diz no feminino; e cabe interrogar esse deslizamento aparentemente imposto pela linguagem, do “ele” ao “ela” — deslizamento que, como tudo o que tem um ar natural, obedece a motivações profundas a descobrir nos meandros do texto: a suspeita cujo exercício aprendemos com Freud não se satisfaz com o argumento da submissão às regras da gramática. A confissão feita à sua correspondente é tanto mais notável quanto, nos primeiros meses da guerra, Freud se sentira “pela primeira vez em trinta anos” — como dirá a Abraham — identificado com a Áustria, à qual “doara toda a sua libido”.2 Mas tal sentimento será passageiro: em breve, a “brutalidade sem freios” da época irá lhe parecer repugnante, e o artigo “Considerações de atualidade sobre a guerra e a morte”, publicado nos primeiros meses de 1915, comentará em termos inequívocos o panorama da Europa dilacerada. A experiência da guerra e da violência de que são capazes os membros da “civilização mais evoluída”, bem como o desmoronamento dos impérios centrais e as dificuldades da sobrevivência na Áustria do pós-guerra, transformada em palco das lutas políticas mais acirradas, não deixam de imprimir sua marca no pensamento de Freud. Os comentadores são unânimes em considerar que, com Além do princípio do prazer, tem lugar uma viragem decisiva na evolução de suas ideias; a data de composição dessa obra — 1919 — sugere que os fenômenos sociais de que é testemunha seu autor não são indiferentes à gênese dessa inflexão. Sem dúvida, seria absurdo imaginar que a queda da monarquia dos Habsburgo levasse Freud a inventar o conceito de pulsão de morte: duplamente absurdo, mesmo, pois, além de pretender que a teoria analítica seja simples reflexo das condições históricas que presidem à sua elaboração, tal derivação também pressupõe, de modo inteiramente arbitrário, que para Freud o fim do Império Austro-Húngaro tenha representado uma catástrofe pessoal, o que dificilmente pode estar mais longe da verdade. Outras considerações — dessa vez de natureza biográfica — procuram vincular a aparição da pulsão de morte ao luto de Freud por sua filha Sophie, que em janeiro de 1920 sucumbe à gripe espanhola. A leviandade dessa suposição é comprovada pelo fato de que o texto estava na tipografia quando Sophie faleceu. E, contudo, resta a evidência de que é 2 Freud a Abraham (26/7/1914) Freud-Abraham, p. 190.
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“Publicado pela primeira vez em meados da década de 1980, Freud, pensador da cultura se tornaria nos anos seguintes um clássico da literatura psicanalítica brasileira. Mezan contextualiza as ideias do médico vienense, traçando um painel da época em que ele viveu, com todos os movimentos sociais, a atmosfera e a cultura, além do contexto psicanalítico.” — Jorge Pombo Barile, O Tempo
pensador da cultura
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“Trata-se de um livro amigo, agradável e elegante, que se deverá tornar com certeza uma espécie de companheiro de leitura da obra de Freud, para psicanalistas e não psicanalistas. Quase um romance de mistério, sobre o mistério da criação da psicanálise, que é decifração, hesitante e decidida, do mistério da psique humana. O livro de Mezan é para ser lido de uma vez, pois fascina como um enigma sempre empurrado para a frente, mas depois deve-se tê-lo à mão enquanto se estuda Freud, e retomá-lo cada vez que esse estudo perca a carne, torne-se um jogo de noções rígidas e atemporais.” — Fabio Herrmann, Folha de S. Paulo
Não há, certamente, um pensamento mais perturbador neste nosso século turbulento do que aquele introduzido pela teoria freudiana. Muito pouca coisa permaneceu no seu lugar, na nossa tradição cultural, depois do terremoto promovido pelo mestre de Viena.
Renato Mezan
FREUD
M
É autor de Freud: a trama dos conceitos; Freud: a conquista do proibido; Psicanálise, judaísmo: ressonâncias; A vingança da esfinge; A sombra de Don Juan; Escrever a clínica; Tempo de muda; Interfaces da psicanálise; Intervenções; Figuras da teoria psicanalítica. Também publicou, na França, Figurer l’Inconscient: De Freud à Houston, e Ben alors – tout ça pour ça? Freud et Dora. De sua autoria, a Blucher editou Sociedade, cultura, psicanálise e O tronco e os ramos, vencedor em 2015 do Prêmio Jabuti na categoria Psicologia e Psicoterapia.
“Mezan arma seu livro como uma obra de arte, expondo uma série de tramas históricas e psicanalíticas para depois providenciar sínteses majestosas ao final de cada capítulo. O Freud de Mezan pode ser debatido e até contestado, mas não deve ser ignorado. Seu fascínio e seu poder o tornam imprescindível para qualquer estudo de psicanálise que se faça daqui por diante.” — Mario Sergio Conti, Veja
Renato Mezan
Renato Mezan
É sobre essa decisiva mudança que Renato Mezan discorre em seu denso trabalho de especulação e pesquisa, Freud, pensador da cultura. O que o autor pretende, sondando as imagens e fantasias que compõem o substrato da teoria psicanalítica, é, ao fim, encontrar os elementos de teor universal que se destacam das idiossincrasias do inconsciente de Freud. À parte o tratamento refinado da teoria freudiana e a exploração profunda das suas incursões na área da cultura, o que mais atrai no texto de Mezan é a relação repassada de afeto denso e caloroso tanto para com a figura paternal de Freud quanto para com sua filha dileta, a psicanálise. O perfil dela que seu texto desenha se apresenta como uma tela barroca, com múltiplos planos, regiões de sombra e outras cheias de luz, em que a razão e o mistério se interpenetram sem se resolver.
FREUD pensador da cultura
Ele confirma plenamente os versos de Shakespeare com que se abre: “Os homens são feitos da mesma substância que os seus sonhos.” Belos e terríveis sonhos.
Nicolau Sevcenko Caderno de Programas e Leituras, Jornal da Tarde
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