Corpo, sonho, palavra
Ensaios psicanalíticos II
CORPO, SONHO, PALAVRA
Ensaios psicanalíticos II
Flávio Ferraz
Corpo, sonho, palavra: ensaios psicanalíticos II
© 2024 Flávio Ferraz
Editora Edgard Blücher Ltda.
Série Psicanálise Contemporânea
Coordenador da série Flávio Ferraz
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Andressa Lira
Produção editorial Luana Negraes
Preparação de texto Maurício Katayama
Diagramação Negrito Produção Editorial
Revisão de texto Bárbara Waida
Capa Leandro Cunha
Imagem da capa iStockphoto
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Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br
Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021.
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Ferraz, Flávio
Corpo, sonho, palavra: ensaios psicanalíticos II / Flávio Ferraz. – São Paulo: Blucher, 2024. 144 p. (Série Psicanálise Contemporânea / coord. de Flávio Ferraz)
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2001-5
1. Psicanálise. I. Título. II, Ferraz, Flávio. III. Série.
24-0433
CDD 150.195
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
1. Das neuroses atuais à psicossomática 17
2. A tortuosa trajetória do corpo na psicanálise 35
3. O primado do masculino em xeque 55
4. Por uma metapsicologia dos restos diurnos 73
5. As entrevistas iniciais, o problema do diagnóstico e a escolha da técnica 89
6. Estado de exceção e desamparo 107
7. Vida e morte da palavra 117
1. Das neuroses atuais à psicossomática1
Os estudos iniciais de Freud sobre as neuroses ficaram marcados pela distinção que ele fazia entre as chamadas neuroses atuais e as psiconeuroses. Ocorre que, aos poucos, o conceito de neurose atual foi deixando de aparecer em seus trabalhos, como que colocado à parte do campo propriamente psicanalítico. No entanto, é interessante observar, hoje em dia, como muitos dos aspectos por ele descritos como peculiares às neuroses atuais podem se articular com aquilo que se compreende atualmente como o campo da psicossomática.
A expressão “neurose atual” apareceu pela primeira vez na obra de Freud (1898/1980d) no artigo “A sexualidade na etiologia das neuroses”. Nesse trabalho, ele afirmava que a principal causa atuante na origem de toda neurose repousa sobre a vida sexual do paciente, afirmação que viria a constituir-se como pedra fundamental para toda a estruturação da psicanálise. Mas Freud alertava para o fato de que o papel desempenhado pela sexualidade pode
1 Publicado originalmente na revista Percurso, VII(16), 35-42, 1996, e reproduzido no livro Psicossoma I: psicanálise e psicossomática (Flávio Carvalho Ferraz e Rubens M. Volich, orgs.; pp. 23-28), Casa do Psicólogo, 1997
18 das neuroses atuais à psicossomática
ser bastante diferente de acordo com o caso. Desse modo, aparecia, nesse artigo, a necessidade de se classificarem os casos de neurose – a partir do diagnóstico feito com base em um cuidadoso exame da sintomatologia – em dois grupos: o da neurastenia e o da psiconeurose (histeria e obsessões), existindo ainda a ocorrência, muito frequente, de casos em que os sintomas de ambos os grupos aparecem combinados.
Nos casos de neurastenia, segundo Freud, era possível chegar-se, a partir da anamnese, à descoberta do fator etiológico, presente na vida sexual do paciente, que teria dado origem à doença. Isso porque esse fato deveria fazer parte de sua vida atual ou do período posterior à maturidade sexual. Já nas psiconeuroses, constatou Freud, uma anamnese desse tipo não traria resultados. Embora o fator etiológico certamente se encontrasse vinculado à vida sexual, o paciente não seria capaz de conhecer tal vinculação:
Por um curioso trajeto circular . . . é possível chegar a um conhecimento dessa etiologia e compreender porque o paciente foi incapaz de falar-nos qualquer coisa a respeito. Pois os eventos e influências que estão na raiz de toda psiconeurose pertencem não ao momento presente, mas a uma época de vida há muito passada, que é como se fosse uma época pré histórica – à época da infância inicial; e eis porque o paciente nada sabe deles. Ele os esqueceu – embora apenas em um certo sentido. (Freud, 1898/1980d, pp. 293-294)
Essa passagem deixa nítido o fato de que Freud já condensava aí toda uma teoria das psiconeuroses que ainda estava por ser desenvolvida em detalhes, mas cujos pilares – a sexualidade infantil e o recalque – estavam construídos.
2. A tortuosa trajetória do corpo na psicanálise1
Nos últimos anos têm proliferado, nas publicações psicanalíticas, trabalhos que tratam do problema das manifestações psicopatológicas que se articulam de diferentes formas ao corpo. Não mais àquele corpo da histeria – corpo erógeno ou representado –, mas ao corpo biológico ou soma. Tal preocupação, evidentemente, encontra razão de ser na própria clínica contemporânea, quando se constata um aumento da incidência das patologias que, diferentemente das neuroses, ligam-se ao corpo somático, seja pela via do adoecimento, seja pela predominância da ação (acting) em sua manifestação (Fuks, 2000). É assim que foram povoando as publicações psicanalíticas temas como as somatizações em geral, os transtornos alimentares, o transtorno do pânico, as adicções e diversos fenômenos como a body art, o barebacking, modificações e manipulações corporais e “novos” tipos de sadomasoquismo (Silva Jr. & Lírio, 2005).
1 Publicado originalmente na Revista Brasileira de Psicanálise, 41(4), 66-76, 2007, e reproduzido no livro Psicossoma IV: corpo, história, pensamento (Rubens M. Volich, Flávio Carvalho Ferraz e Wagner Ranña, orgs.; pp. 55-68), Casa do Psicólogo, 2008
A psicanálise se viu, diante de tais manifestações, convocada a pronunciar-se sobre essa nova realidade, até porque o tipo de demanda presente nos consultórios psicanalíticos foi se alterando. Ocorre que o seu aparato teórico-clínico clássico, como sabemos à exaustão, direcionava-se às psiconeuroses; o alvo da clínica psicanalítica sempre foi o sintoma neurótico, entendido de modo bastante peculiar e distinto daquele pelo qual a medicina o define. Uma das possíveis vertentes da investigação sobre a crescente presença do corpo na psicopatologia passa pela antropologia da sociedade contemporânea. O estudo das peculiaridades da cultura atual pode nos ajudar a formular hipóteses sobre as novas representações e os novos usos que se fazem do corpo. Mas, para a utilização desses dados na psicopatologia, deve haver uma hipótese de cunho psicológico que as fertilize; caso contrário, ficaríamos apenas com informações estanques. E qual seria a hipótese francamente psicanalítica a fazer um elo com a constatação antropológica? Ora, seria a ideia, hoje bastante aceita, de que um excesso não elaborável, produto de um mundo que lança uma quantidade altíssima de estímulos e exigências aos indivíduos, que impõe um processamento do tempo e das informações praticamente impossível aos sujeitos, pode conduzi-los a formas de manifestação do sofrimento psíquico por vias similares àquelas peculiares ao traumático (Lima, 2000). Aí então as modalidades de sintoma definidas pelas defesas neuróticas, ligadas à formação de representações, de seu recalque e de seu ressurgimento sob formas simbólicas, vão dando lugar a manifestações somáticas, pré-simbólicas, “brutas” ou “cruas”, por assim dizer. Tais manifestações estariam mais próximas do que se convencionou chamar de actings do que propriamente do sintoma, na acepção clássica psicanalítica do termo. O corpo, mais do que a linguagem, seria o cenário onde essas formações se desenvolvem: tanto no plano da motricidade (que rege o acting dirigido ao exterior ou acting psicopático) como no plano
3. O primado do masculino em xeque1
O que se depreende da obra de Freud como uma “teoria do feminino” encontra-se constantemente definido pela justaposição com algo a que se poderia chamar de “teoria do masculino”. Ambas podem ser construídas interpretativamente, pois se constituem como teoria apenas quando se reúne um conjunto de diversas afirmativas que perpassam a obra freudiana em diversos momentos, e sobre esse material, então, dá-se a tarefa de atribuição de um sentido coeso e coerente. Mas aí o sujeito dessa tarefa já se faz presente com todos os seus a priori teóricos e morais.
Para o presente trabalho, gostaria de fazer algumas poucas reflexões sobre o sentido mais amplo e as consequências das construções freudianas sobre o feminino e o masculino, que foram corroboradas por Lacan e sua escola. Em seguida, procurarei cotejá-las com outra forma de construção teórica sobre os gêneros que se lhes contrapõe.
1 Publicado originalmente na revista Percurso, XX(40), 69-78, 2008, e reproduzido no livro Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura (Silvia Leonor Alonso, Danielle Melanie Breyton e Helena M. F. M. Albuquerque, orgs.; pp. 57-71), Escuta, 2008
A pergunta que organiza o material teórico que escolhi para analisar e traduz o problema que ora interessa é: estaria a formulação de uma teoria psicanalítica isenta dos determinantes culturais e ideológicos sob os quais ela é engendrada? Se essa pergunta é válida para qualquer tópico que se eleja de uma teoria vasta, penso que ela é particularmente dramática para o caso de uma teoria da sexualidade e dos gêneros. Senão vejamos.
Freud e a negatividade do feminino
O discurso de Freud é prenhe de afirmações que definem o feminino pela falta ou pelo negativo, e que têm por consequência a colocação da mulher em um lugar secundário em relação ao homem. Por vezes, ele chega até mesmo a fazer referências pouco lisonjeiras à mulher e à sua condição. Mas não esconde o fato de que julga conhecer pouco sobre o universo do feminino (o “continente negro”, como o chamou) e confia às analistas mulheres da primeira geração da psicanálise a tarefa de trazer à luz descobertas mais acuradas sobre o assunto (Freud, 1933/1981f).
Sem pretender fazer um levantamento sistemático ou exaustivo que demonstre essa assertiva, menciono aqui, apenas por alto, alguns pontos que permitem afirmá-la:
1. A libido, em si mesma, teria um caráter masculino.2
2 Freud (1905/1981a) afirma, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, que “a libido é invariável e necessariamente de natureza masculina, ocorra ela em homens ou em mulheres e independente de ser seu objeto um homem ou uma mulher” (p. 226). Em nota de rodapé acrescentada em 1915, esclarece que “masculino” referia-se à atividade, e “feminino” à passividade. Esse seria o significado dos termos mais útil para a psicanálise. Mas, para além dessa acepção dos termos, ele afirma que há aquela biológica (mais simples, por dizer respeito ao sexo biológico) e a sociológica, que “recebe sua conotação da observação de indivíduos masculinos e femininos efetivamente existentes” (p. 226n). É interessante manter em consideração essa última acepção do termo,
4. Por uma metapsicologia dos restos diurnos1
O sonho aparece na obra de Freud como “a via régia para o inconsciente”. E foi assim que ele veio a ser tratado pela psicanálise: como manifestação ou formação do inconsciente, expressão psíquica de enorme valor para a investigação na clínica psicanalítica. De modo muito sucinto, eu diria que essa abordagem inaugural – e que sempre prevaleceu – privilegiava o aspecto “deferente” dos sonhos, ou seja, sua função expressiva e demonstrativa do inconsciente que, ao lado dos sintomas e da transferência, permitia o acesso ao mundo das representações recalcadas do paciente neurótico. E assim foi pela razão de que se tratava de uma clínica da neurose.
A literatura psicanalítica contemporânea, entretanto, tem dado ênfase ao valor que o sonhar, em si mesmo, tem para vida psíquica.2 Assistimos ao deslocamento de uma parte da preocupação
1 Publicado originalmente na revista Percurso, XXIV(47), 55-62, 2011, e reproduzido no livro Psicanálise em trabalho (Flávio Carvalho Ferraz, Lucía Barbero Fuks e Silvia Leonor Alonso, orgs.; pp. 27-39), Escuta, 2012.
2 Entre as diversas produções que trazem essa preocupação, posso mencionar os livros O sonhar restaurado, de Tales A. M. Ab’Sáber (2005), e Sonhar, dormir e psicanalisar, de Decio Gurfinkel (2008). Remeto o leitor também aos artigos
com o sentido do sonho para a abordagem da função do sonhar. O aprofundamento da compreensão psicanalítica das psicopatologias não neuróticas tornou irrefreável esse encaminhamento da pesquisa em torno do sonhar. Os problemas relativos ao processo de sonhar nos pacientes psicóticos e a pobreza dos processos oníricos nos somatizadores introduziram desafios para a teoria dos sonhos que, para serem devidamente enfrentados, exigiram o exame de uma outra dimensão do sonhar, que chamarei de “via aferente” do sonho. Trata-se da função recalcadora do sonho, que responde pelo seu papel no processo de inscrição psíquica e, portanto, na constituição das representações mentais. É um desdobramento daquilo que Christophe Dejours (1988) chamou de perlaboração pelo sonho.
O sentido deferente do sonho é bastante conhecido na psicanálise. Todavia, quando se observa a quase ausência de sonhos em pacientes psicossomáticos, há que se indagar a razão de tal falha. Ela não se explica por um excesso de recalcamento, que impediria as representações de se manifestarem no sonho. Ao contrário, o déficit onírico verificado resulta da falha daquele mecanismo. No caso da psicose, a ausência de uma barreira de contato (Bion, 1962/1991) entre inconsciente e consciente introduz uma dificuldade na caracterização do sonho à moda do que se passa na neurose. Portanto, as dimensões deferente e aferente do sonho devem guardar alguma complementaridade. Parece haver simultaneidade entre o processo de inscrição e a expressão onírica de seu objeto, que nos exigirá o exame das percepções emocionalmente significativas na vigília e as vicissitudes de seu processamento psíquico, que vai se dar de acordo com a estrutura em questão. Por fim, o exame da percepção nos
“Algumas coordenadas de leitura de A interpretação dos sonhos”, de Renata Udler Cromberg (1997), “A interpretação dos sonhos”, de Janete Frochtengarten (1997), e “A experiência de sonhar: o prazer de existir”, de Maria Laurinda Ribeiro de Souza (2000).
5. As entrevistas iniciais, o problema do diagnóstico e a escolha da técnica1
Tratarei neste capítulo do velho problema do diagnóstico no âmbito da psicanálise. Qual é a sua especificidade? Qual é o seu sentido? E, por fim, qual é a sua função? Por meio de um breve percurso histórico, procurarei desenvolver as reflexões que essas perguntas desencadeiam. Antecipando o que concluirei, penso que a avaliação do funcionamento psíquico de um paciente nas entrevistas iniciais, particularmente no que toca à estruturação do seu pensar, é de grande valia para o analista que se lança em mais uma análise. O grau de contato de um sujeito com seu mundo interno pode auxiliar na escolha do modelo das intervenções e dos detalhes da organização do setting. Parto da premissa de que a técnica analítica deve comportar um grau de elasticidade. E de que, conforme o pensamento de André Green (1996) e de outros autores contemporâneos alinhados com seu pensamento clínico, o enquadre interno é o que sustenta a posição do analista, mais do que os
1 Publicado originalmente na Revista Brasileira de Psicanálise, 46(4), 48-56, 2012, e reproduzido no livro Psicossoma V: integração, desintegração e limites (Rubens M. Volich, Wagner Ranña e Maria Elisa Pessoa Labaki, orgs.; pp. 363-375), Casa do Psicólogo, 2014
90 as entrevistas iniciais, o problema do diagnóstico e a escolha…
arranjos formais que em geral balizam as condições materiais de uma análise.
Nessa perspectiva, o enquadre – enquanto “regra fundamental” – passa a ser um instrumento de diagnóstico, permitindo ao analista fazer uma avaliação das possibilidades e das dificuldades do funcionamento representativo do paciente. De acordo com Urribarri (2012), “com pacientes não-neuróticos fundamentam-se as modificações do enquadre (menor frequência de sessões, posição cara a cara etc.), de modo a estabelecer as melhores condições possíveis para o funcionamento representativo” (p. 59).
Para dar início ao argumento que pretendo desenvolver, proponho, de partida, o exame do poema “Doação”, de Libério Neves (2013), que, a rigor, dispensaria boa parte do que direi em seguida. Com a força da poesia, o autor traça a linha divisória entre o somático e o psíquico, com a curiosidade adicional de que seu poema se dirige a um certo “doutor”, supostamente o detentor do saber médico. Assim fazendo, o poeta lança um desafio à nossa escuta e à nossa avaliação diagnóstica, e traça com precisão o marco divisório entre a escuta médica e a escuta psicanalítica.
Dou minha matéria à terra, Entanto antes apresento o corpo a ti, doutor, para a ciência dos teus dentros.
Tu vês o cérebro em seus maciços de estanho, mas não dissecas os versos aí regurgitando inconclusos ou inéditos.
6. Estado de exceção e desamparo1
Quando fui convidado a escrever sobre estado de exceção a partir de um ponto de vista psicanalítico, confesso que me inquietei diante da questão que se me propunha, assim formulada: haverá elementos teóricos em psicanálise suficientes para isso? Não seria arriscado repetir os exageros já tão conhecidos daqueles que se utilizaram do referencial da psicanálise como uma verdadeira panaceia que a tudo poderia se aplicar: fenômenos sociais, culturais, políticos e econômicos?
Passado o primeiro momento, entretanto, o quadro foi se aclarando, à medida que eu ia me dando conta de que não seria o caso de me valer da teoria psicanalítica como instrumento de explicação para fenômenos históricos e políticos, mas o trabalho possível seria a tomada do problema de um ponto de vista diferente. O posicionamento epistemologicamente legítimo do psicanalista seria em um lugar distinto daquele do cientista político, do historiador
1 Publicado originalmente na revista Percurso, XXVI(52), 89-94, 2014, e reproduzido no livro Ditadura civil-militar no Brasil: o que a psicanálise tem a dizer (Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes e Flávio Carvalho Ferraz, orgs.; pp. 107-114), Escuta, 2016
108 estado de exceção e desamparo
ou do jurista. Seria necessário pensar a questão a partir de um recorte específico, que se delineia como o fenômeno da colocação dos sujeitos diante do estado de exceção. E uma abordagem pelo prisma da subjetividade, segundo entendo, desembocaria, naturalmente, em uma consideração às consequências do estado de exceção sobre a esfera do funcionamento psíquico dos sujeitos, tanto no que ele comporta de potencial patogênico como nos mecanismos de reparação representados pela resistência que a ele se faz.
Foi assim que me vi perante o desafio de afastar-me da abordagem político-jurídica do conceito, que, afinal, é sua origem e seu campo usual de debate, para encontrar, na teoria psicanalítica, elementos que me permitissem ampliar a reflexão sobre o estado de exceção, agora pelo ângulo de visão dos sujeitos. Não daqueles que o engendram, mas dos que a ele são submetidos.
Tratei de buscar em Giorgio Agamben (2004) uma compreensão do conceito mesmo de estado de exceção, empreitada de base para definir as especificidades potencialmente patógenas do campo sobre o qual se situariam os sujeitos. No entanto, o exame da questão pelo prisma político não será o escopo desta comunicação: será apenas um ponto de partida, e não de conclusão. Em primeiro lugar, porque não tenho formação em Ciência Política, tampouco em Direito, que me permita discorrer de forma mais profunda sobre o assunto. Em segundo lugar, a fortiori, porque o que me foi dado como tarefa é, precisamente, buscar em meu repertório psicanalítico os referenciais que conduzam ao tratamento do problema pelo viés da subjetividade. Foi assim, então, que deixei de lado as considerações estritas sobre o estado de exceção para pensar qual poderia ser o seu significado e as suas consequências para cada sujeito que com ele depara e a ele se encontra involuntariamente submetido.
Agamben retoma as situações políticas e os momentos históricos em que o estado de exceção encontrou as brechas para se
7. Vida e morte da palavra1
Introdução
Para falar sobre vida e morte da palavra, convém começar por situar as condições de possibilidade tanto de uma quanto de outra vicissitude. Como é possível dizer que uma palavra está viva? Por que meios se a anima? Como se pode diagnosticar sua morte? Ou ainda, indo mais longe, como postular o seu “assassinato”? De que ela morre?
Essas são questões que, para serem minimamente esclarecidas – ao menos no nosso âmbito –, nos colocarão num campo de intersecção entre a psicanálise e a filosofia da linguagem. Porque não se trata aqui da palavra esgotada em si mesma, como elemento de uma língua, mas da palavra proferida por um sujeito singular. É por esse viés que a psicanálise pode dar alguma contribuição para a filosofia da linguagem,2 uma vez que faz um recorte específico
1 Publicado originalmente na revista Ide, 37(59), 15-31, 2015, e reproduzido no livro Ecos do silêncio: reverberações do traumatismo sexual (Cassandra Pereira França, org.; pp. 39-62), Blucher, 2017
2 Considero que a psicanálise pode dialogar com a filosofia da linguagem dentro
do problema, pelo prisma da fala numa situação muito particular, que é o setting analítico. Nessa situação, a palavra é proferida sob transferência e emoldurada pelo contrato da associação livre, o que potencializa uma de suas dimensões, qual seja, a de comportar, quando pronunciada, mais do que aquilo que o sujeito falante sabe, de si e do que fala. Isso é o que ocorre, de maneira exemplar, no ato falho e no chiste, quando o desejo se insinua de maneira a surpreender.
A ideia de palavra viva – algo em si mesmo já nomeado por meio de uma metáfora – remete à postulação de Freud (1894/1980a) de uma representação imantada por um quantum de afeto, tal como, comparava ele, um campo elétrico se cria em torno de um corpo. No caso da palavra, seu revestimento pelo afeto corresponde a uma espécie de “sopro” de vida que responde por sua animação, de modo similar ao que se passa com os traços mnêmicos que, ungidos por uma carga afetiva, tornam-se pontos ligados na cadeia que Freud (1895/1980b, 1911/1980d) assumiu como sendo o pensamento.
O filósofo Ernst Cassirer (2001) se refere ao que aqui chamo de animação pelo “sopro” com outro termo metafórico: milagre. Com esse termo, ele designa o processo pelo qual uma “simples matéria sensível”, que no nosso caso pode ser a palavra como elemento sonoro, “adquire uma vida espiritual nova e multiforme” (p. 43).
das diversas tradições dessa última. O problema da significação e seus desdobramentos, tratados na psicanálise a partir do exame dos atos falhos ou da interpretação referida à polissemia das palavras, aportam questões para a vertente da filosofia da linguagem mais preocupada com os problemas da semântica e da linguística estruturalista, como se vê na obra de Lacan. Já a problemática dos usos da linguagem e de seus efeitos sobre o outro, no sentido, por exemplo, em que Bion (1967/1988) a relaciona à identificação projetiva, estabelece uma ponte com a vertente pragmática da filosofia da linguagem (Austin, 1990; Wittgenstein, 1953/1975). Jurandir Freire Costa (1994) esclarece tais relações com bastante precisão no artigo “Pragmática e processo analítico: Freud, Wittgenstein, Davidson, Rorty”.