O psicanalista vai ao cinema
Volume 4
O PSICANALISTA VAI AO CINEMA
Volume 4
Sérgio Telles
O psicanalista vai ao cinema: volume 4
© 2024 Sérgio Telles
Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenador editorial Rafael Fulanetti
Coordenação de produção Andressa Lira
Produção editorial Juliana Morais
Preparação de texto Samira Panini
Diagramação Plinio Ricca
Revisão de texto Regiane Miyashiro
Capa Leandro Cunha
Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057
Telles, Sérgio
O psicanalista vai ao cinema, volume 4/ Sérgio Telles. – São Paulo : Blucher, 2024.
192 p.
Bibliografia
ISBN 978-85-212-2028-2
1. Psicanálise - Interpretação 2. Psicanálise e cinema I. Título
24-0422
CDD 150.195
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise - Interpretação
Conteúdo
1. Anatomia de um escândalo (Anatomy of a scandal, 2022), de S. J. Clarkson (Netflix) 11
2. Resenha do filme Je suis Karl, 2021, de Christian Schwochow (Netflix) 15
3. O ataque dos cães (The power of the dog, 2021), de Jane Campion 19
4. Sobre o último filme de Charlie Kaufman – Estou pensando em acabar com tudo (I´m thinking of ending things, 2020) 23
5. A floresta do amor (2019), de Sion Sono 29
6. A fera na selva (2019), de Paulo Betti, Eliane Giardini e Eduardo Escorel 33
7. Considerações sobre o filme Coringa (2019), de Todd Phillips 37
8. Roma (2018), de Alfonso Cuarón 47
9. A professora do jardim de infância (2019), de Sara Colangelo 51
10. Mãe! (2017), de Darren Aronofsky 57
11. Dente canino (2009) e O sacrifício do cervo sagrado (2017), dois filmes de Yorgos Lanthimos 61
12. Voyeur (2017), documentário de Myles Kane e Josh Koury 73
13. O castelo de vidro (The glass castle, 2017), de Dustin Daniel Cretton 79
14. Anotações sobre Corpo e alma (2017), de Ildikó Enyede ou Sonhar o mesmo sonho 85
15. O estudante (2016), de Kiril Serebrennikov 89
16. Necrofilia e canibalismo em Demônio de Neon (The Neon Demon, 2016), de Nicolas Winding Refn 93
17. Sobre Julieta (2016), de Pedro Almodóvar 97
18. Considerações sobre Que horas ela volta? (2015), de Anna Muylaert 103
19. Prova de coragem (2015), de Roberto Gervitz 115
20. Meu amigo hindu (2015), de Hector Babenco 119
21. O lagosta (The lobster, 2015), de Yorgos Lanthimos 125
22. Sobre o filme Francofonia (2015), de Alexander Sokurov 131
23. David Lipsky e David Foster Wallace em O fim da turnê (The end of the tour, 2015), de James Ponsoldt 135
24. Entre segredos e mentiras (All good things, 2010), de Andrew Jarecki 139
25. Reflexão sobre grupos e massas a partir do filme A onda (Die Welle, 2008), de Denis Gansel 143
26. Linha de passe (2008), de Walter Salles 155
27. A questão humana (La question humaine, 2007), de Nicolas Klotz 159
28. No limite do silêncio (The unsaid, 2001), de Tom McLoughlin 163
29. Escrever em corpos, escrever no papel – Algumas ideias em torno de O livro de cabeceira (The pillow book, 1996), de Peter Greenaway 169
30. Curtindo a vida adoidado hoje (1986), de John Hughes 187
1. Anatomia de um escândalo
(Anatomy of a scandal, 2022), de S. J. Clarkson (Netflix)1
Crime e castigo são questões primordiais que atormentam a humanidade desde Adão e Eva e seu filho Caim, deixando-a temerosa das merecidas punições divinas ou seculares.
Baseado num livro de Sarah Vaughn, a série inglesa Anatomia de um escândalo (Netflix) se utiliza da bem-sucedida fórmula já aplicada muitas vezes no cinema, em que crime e castigo são encenados no ritual dos tribunais. Tal ritual reproduz, por sua vez, o cenário interno desde sempre intuído por todos, mas iluminado definitivamente por Freud ao descrever o conflito psíquico como decorrente – entre outros fatores – de um ego que luta contra o julgamento e as punições incessantes do superego.
Além desse apelo mais amplo, Anatomia de um escândalo tem outro elemento muito atual – uma grave acusação de estupro.
1 Publicado no caderno EU&FS do jornal Valor Econômico em 6/5/2022
Que vivemos em uma sociedade patriarcal, machista, na qual a violência contra a mulher é uma constante e se manifesta de várias maneiras, como preconceitos, salários injustos, boicote profissional, agressões físicas, estupros e assassinatos, é um fato indiscutível que deve ser combatido vigorosamente com todas as armas que a sociedade dispõe.
Mas não é esse tipo inequívoco de estupro que é tratado em Anatomia de um escândalo. Estamos num outro plano; aqui a violência sexual é de outra ordem, ela não é necessariamente física, evidente e explícita e se exerce por coação, pelo abuso do poder, os limites e as transgressões ficam difíceis de precisar – até onde vai o consentimento, onde começa o abuso? De qualquer forma, é uma prática antiga contra a qual se constituiu mais recentemente uma forte oposição, que, nos Estados Unidos, se organizou socialmente e criou uma ativa militância sob a bandeira do MeToo.
A filósofa e psicanalista francesa Sabine Prokhoris recentemente escreveu contra os graves desvios do que chama “Feminismo MeToo” – a cultura da denúncia de abusos sexuais perpetrados por homens e a sacralização das supostas vítimas, mulheres cujas acusações não podem ser questionadas. À “narrativa patriarcal” se contrapõe uma “narrativa feminista” que vê o homem como “predador”, e não leva em conta a possibilidade de falsos testemunhos (deliberados conscientemente ou derivado de fatores inconscientes) por parte da mulher.
Tal postura não leva em conta que homens, mulheres e crianças mentem e que a vida sexual de todos (homens e mulheres) está permeada por fantasias censuradas, reprimidas, negadas, projetadas, o que faz com que, muitas vezes, a realidade fática mal se vislumbre no meio do nevoeiro provocado pelos desejos inconscientes.
Ademais, a psicanálise mostra que a memória é pouco confiável, passível de ser remodelada por motivações conscientes e inconscientes e pelas pressões do momento presente. Em uma situação como a
mostrada em Anatomia de um escândalo, em que uma mulher apaixonada, que já praticou inúmeras vezes sexo consensual com seu suposto agressor a quem passa a acusar de estupro, é difícil estabelecer as gradações entre o que é permitido ou não numa relação sexual num determinado momento. Tampouco se pode ignorar a influência das flutuações afetivas que ocorrem numa relação amorosa, a emergência de raivas, ciúmes, vinganças que podem condicionar uma acusação. Colocar automaticamente a acusadora como a vítima que não pode ter sua versão checada e examinada é uma postura ideológica, irracional, que pode levar a grandes injustiças.
Anatomia de um escândalo explora com muita pertinência as ambiguidades das emaranhadas situações humanas em jogo no julgamento, deixando claro como é difícil a tarefa de captar a fugidia verdade em meio a tantos interesses conflitantes. Como fazer justiça a partir de afirmações baseadas na memória, cuja confiabilidade é mínima, e que é permanentemente refeita em função dos afetos antigos e atuais, bem como dos interesses do momento presente?
Em Anatomia de um escândalo, o protagonismo é das mulheres. As duas advogadas, a de defesa e a de acusação, que mostram os impasses dos depoimentos dos envolvidos, a acusadora e a esposa do indiciado, que tem uma decisiva participação no desfecho do caso. Elas não são virtuosas portadoras da pura verdade, apenas seres humanos com as contradições que lhes são próprias.
E são elas quem decidem o destino do homem. Teria ele alguma chance?
2. Resenha do filme Je suis Karl, 2021, de Christian Schwochow (Netflix)1
O filme Je suis Karl, de Christian Schwochow, embora um tanto esquemático, é uma boa representação do ressurgimento da direita radical que vivemos atualmente. A ação se passa numa Alemanha assustada com as ondas migratórias, principalmente as muçulmanas, que provocam a reanimação dos fantasmas da supremacia branca e a defesa de uma Europa que estaria sofrendo uma colonização às inversas, com a invasão de povos que antes subjugara.
Em Berlim, um grupo de militantes de direita planeja e executa um atentado terrorista que provoca comoção popular. O grupo, que pretende se discriminar do nazismo e do fascismo, mas que se trai com seu próprio discurso e a saudação – Siel Heil – que seus membros trocam entre si, imediatamente responsabiliza os imigrantes pelo atentado e acusa o governo de não proteger a população contra os perigosos “terroristas árabes”.
1 Versão ampliada de texto publicado no jornal Valor Econômico em 22/10/2021
Entre as vítimas do atentado, está uma família que foi dizimada, com exceção do pai (um liberal que ajudara um imigrante líbio a entrar clandestinamente na Alemanha) e sua filha adolescente Maxi. Traumatizados, cada qual tenta lidar com o luto à sua maneira. Desestruturada e confusa, Maxi é presa fácil de Karl, o militante que praticara o atentado. Ele a seduz e a introduz no grupo, visando explorar politicamente a tragédia que ele mesmo provocara. O movimento direitista está implantado em diferentes cidades de vários países europeus, por onde circulam os militantes. Numa importante convenção, Maxi dá um depoimento, no qual assume o discurso do grupo, atribuindo aos imigrantes muçulmanos a autoria do atentado. Minutos depois constata que sua fala havia viralizado e já havia sido vista nas redes sociais por 250 mil pessoas. Sem que Maxi soubesse, Karl havia planejado uma outra ação ainda mais impactante a ser realizada naquela convenção, visando a provocar reações mais violentas, o que de fato ocorre, com perseguição e assassinatos de “terroristas” negros e árabes adultos e crianças.
O filme mostra uma tática clássica de manipulação das massas em momentos de polarização e radicalismo político. Uma das facções realiza um ato ignominioso (terrorista) e o atribui à facção oposta.
A população, atordoada pela propaganda e privada de informações fidedignas, se deixa levar pelas emoções do momento. Há exemplos históricos conhecidos, como o incêndio do Reichstag, que teria sido provocado por Hitler e atribuído aos comunistas, assim como a bomba a ser lançada no Rio Centro, no tempo da Ditadura, que seria atribuída a movimentos de esquerda, mas explodiu no colo do militar que a levava.
Dizem que a violência é a “parteira da história”, a única forma de viabilizar as mudanças necessárias para atingir a justiça social. Mas é possível o uso racional da violência? Ou ela estará sempre toldada pela afetividade e a irracionalidade? Essa questão tem uma
ressonância mais profunda, pois aponta para a dimensão inconsciente que assombra toda e qualquer racionalidade consciente.
As situações do filme levantam importantes questões de difícil resolução. Por exemplo, seria possível fazer uma discriminação precisa entre ideologia, religião e delírio? Como discriminar entre a efetiva necessidade de lutar por mudanças sociais e o delírio megalomaníaco de mudar o mundo? Como avaliar a decisão de alguém que decide doar a própria vida por uma causa? É possível ver esse gesto sem as lentes ideológicas? Seria um gesto louco, destrutivo, assassino ou uma atitude heroica, de absoluta doação, de uma generosidade única?
A decisão de Karl deve ser atribuída a seu amor pela humanidade e pela revolução ou se deve a um narcisismo onipotente megalomaníaco, que não leva em consideração as próprias limitações e as pessoas que estão a seu lado e que o amam? Como entender a frieza com que executa o atentado e manipula Maxi? Pensaria que os inocentes mortos e o sofrimento dos imigrantes que seriam perseguidos não importam diante do objetivo maior de transformação da sociedade? Seria um ato de coragem e desapego em nome de uma humanidade futura ou a expressão de uma loucura pessoal, um ódio psicótico acobertado pela racionalização ideológica?
A amante de Karl se oferece para colaborar na realização de seu plano por convicção revolucionária ou simplesmente por amá-lo e querer sua admiração? Ambos estão alienados de si mesmos, ignoram os afetos que os comandam? A relação entre eles é uma mistura tóxica de Eros e Tânatos, vida e morte, na qual a última termina por se impor e isso não tem nada a ver com suas propostas revolucionárias? Difícil dizer, pois nada sabemos de suas motivações internas. O único personagem do qual temos alguma informação é Maxi, que está perdida e desorganizada em função do trauma que sofreu até ser resgatada pelo pai.
A necessidade de discriminar bem os fatores inconscientes pessoais e grupais nas grandes propostas políticas e revolucionárias se impõe quando lembramos a violência e a destrutividade desencadeada por aqueles que quiseram implantar uma nova sociedade e criar um novo homem. Os totalitarismos stalinista e nazista e a montanha de ossos do Khmer Vermelho nos dão um bom testemunho disso. 18 resenha do filme
3. O ataque dos cães (The power of the dog, 2021), de Jane Campion
Em certo nível, O ataque dos cães é uma desconstrução – mais uma – do gênero western, dos filmes de caubói, em que predomina o machismo, a força bruta sobre a lei. No filme, há uma inversão completa – o machão alfa Phil se revela um sensível homossexual, e o delicado Peter mostra que, debaixo da conduta pouco máscula, se esconde um vingador implacável, que usa da sedução e da dissimulação para manipular e realizar de forma inexorável seus propósitos.
O filme expõe não a habitual rivalidade fraterna, a luta entre os irmãos Phil e George – embora ela esteja presente – mas o amor (incestuoso?) entre eles. Vemos que, na casa imensa e despojada em que vivem, eles dormem no mesmo quarto em duas pequenas camas de solteiro, como duas crianças. No hotel, dormem numa cama de casal. É o casamento de George com Rose que desencadeia todo o conflito.
Já antes aparecera a figura mítica de Bronco Harry, o mentor, o professor, o que tudo havia ensinado aos dois irmãos. Ele “via” coisas
na montanha que ninguém enxergava e teve papel decisivo no episódio com implicações eróticas ocorrido nas montanhas, em que ele salvara a vida de Phil.
Bronco Harry é uma imagem paterna idealizada, pois os dois irmãos tratam os pais, a quem chamam cerimoniosamente de “Old Lady” e “Old Gent”, – com extrema formalidade, como se fossem importantes visitantes, tanto quanto o governador e sua mulher, a quem recebem para jantar, ocasião usada por Phil para humilhar Rose mais uma vez. A distância afetiva dos pais é confirmada quando Phil se refere a si mesmo e a George como Rômulo e Remo, os gêmeos fundadores de Roma que, abandonados pelos pais, foram amamentados por uma loba.
É significativo que George, um fazendeiro rico e respeitado, tenha escolhido Rose para se casar, sendo ela viúva de um suicida e proprietária de uma singela hospedagem frequentada por vaqueiros, quando poderia escolher uma rica mulher de sua classe social, fato que Phil não para de censurar.
O conflito entre os irmãos não aparece apenas nos ciúmes de Phil em relação a Rose – a quem resolve perseguir com todas suas forças. Sabe-se que Phil era um estudante brilhante em Yale. Por que estaria ali, no trabalho grosseiro, cuidando do gado, no trato rude com outros vaqueiros, em vez de gastar seu grego e latim (como diz o governador) em lugares mais apropriados? Seria por culpa em relação ao irmão? Em um momento, Phil se refere a George de forma depreciativa por não ter ele ingressado numa universidade e que, se não fossem os providenciais ensinamentos de Bronco Harry, ele nada seria. Teria Phil – por culpa – abdicado da condição privilegiada que poderia usufruir decorrente de seus estudos para ficar junto de George, situando-se numa posição inferior à dele, desde que é ele quem se encarrega das negociações e das finanças, enquanto ele, Phil, fica relegado ao trabalho braçal?
Em uma tentativa de reviver o passado, Phil chama George para retomarem as trilhas nas montanhas como antes fizeram com Bronco Harry, o que George recusa.
Como não apoia o casamento de George com Rose, Phil a hostiliza de várias maneiras, denunciando seu alcoolismo e atacando Peter, o filho dela, delicado fazedor de flores de papel e ajudante no restaurante.
Se já existiam dois polos de tensão (Phil e George, Phil e Rose), logo se estabelece um outro polo entre Phil e Peter. É Peter quem descobre o lugar secreto onde Phil esconde seus desejos homossexuais e a paixão enlutada por Bronco Harry tantas vezes insinuada. Numa ocasião, ao ouvir George e Rose fazendo sexo, sintomaticamente Phil vai ao estábulo, onde espanca um cavalo e depois passa a polir a sela de Bronco Harry, o fetiche que guarda com muito zelo.
Surpreso, Phil descobre que Peter também vê nas montanhas a figura do cão com a boca aberta, que apenas Bronco Harry divisava e lhe ensinou a ver – um reconhecimento mútuo da homossexualidade? A partir da descoberta do segredo de Phil, Peter passa a ter uma ascendência sobre ele, que se dispõe a ensiná-lo a ser homem, sair da barra da saia da mãe – o que deixa Rose ameaçada, temendo romper o vínculo fusional que mantinha com o filho. É então que o maquiavelismo e a dissimulação de Peter se evidenciam. Ele age de forma ambígua, estabelecendo um vínculo de provocação homossexual com Phil – como a cena com o cigarro – quando de fato, planeja seu assassinato com uma corda contaminada com o antraz.
Peter diz para Phil que o pai lhe censurava a dureza, o que Phil ridiculariza. Mas já havíamos visto o fingimento de Peter e sua crueldade. As flores que fazia e que a mãe pensa serem para as mesas do restaurante, são para o túmulo do pai; o coelho que traz para casa não é um presente para a mãe, como ela acredita, mas lhe serve como objeto de dissecação em seus estudos de anatomia; mata friamente
outro coelho na frente de Phil – atitudes muito distantes da aparente fragilidade ou sensibilidade supostamente não masculinas.
Interrogado por Phil, Peter diz que o pai era alcoólatra e que foi ele mesmo, Peter, quem cortou a corda com a qual ele se enforcara e ainda o mantinha suspenso no ar.
Há um simbolismo obscuro – a corda com a qual o pai se mata, a corda com a qual Peter mata Phil. A corda prende, tira a liberdade, ao mesmo tempo que junta, une, amarra objetos díspares. Representaria as difíceis relações entre os homens?
O filme começa com a voz de Peter dizendo que, desde a morte do pai, seu objetivo maior é salvar a mãe. E, de fato, a cena final – que sucede a leitura de Peter do trecho da Bíblia que menciona o poder do cão, referente aos poderes do mal, dos desejos destrutivos de cada um – mostra a satisfação de Peter ao ver George e Rose, finalmente em paz, chegando em casa depois do velório de Phil.
Também chama a atenção que somente no velório o casamento de George é plenamente reconhecido, quando sua mãe entrega as joias da família para a nova Sra. Burbank. Como se isso não pudesse ter acontecido enquanto Phil estivesse vivo.
Phil não usufrui do status de formado em Yale não apenas por identificação culposa com o irmão George, mas como um gesto de fidelidade com o próprio Bronco Harry – o “lobo” que os criou (Rômulo e Remo), cujo lenço bordado traz sempre consigo. A intensa idealização de Bronco Harry teria alguma repercussão na sexualidade dos dois irmãos?
Intrigas familiares, canibalismo, necrofilia, cosmogonias, banquetes totêmicos, narcisismos, dissociação, despersonalização, lutas de classe, voyerismo, identificações fusionais, violência contra homens e animais, delírios religiosos, distopias sociais, psicologia das massas, literatura e escritores, arte e guerra, ideologia corporativa, adolescência, simbolização, manipulações da mídia e redes sociais, informação e desinformação, radicalização política, questões da sexualidade. Neste volume 4 de O psicanalista vai ao cinema, Sérgio Telles mostra as implicações inconscientes dos temas presentes em 30 filmes realizados por diretores, como Peter Greenaway, Walter Salles, Andrew Jarecki, Aleksandr Sokurov, Yorgos Lanthimos, Hector Babenco, Anna Muylaert, Pedro Almodóvar, Kiril Serebrennikov, Darren Aronofsky, Alfonso Cuarón, Sono Sion, Jane Campion e outros igualmente talentosos.