Sobre o Tipo Feminino

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Lou Andreas-Salomé

tradução do alemão

Sobre o tipo feminino

e outros textos

Renata Dias Mundt

Lou Andreas-Salomé

Sobre o tipo feminino
e outros textos
Paulo Sérgio de
Jr. Prefácio Cornelia Pechota Posfácio Nina Virgínia de Araújo Leite
Renata Dias Mundt
Organização
Souza
Tradução

Sobre o tipo feminino e outros textos, de Lou Andreas-Salomé Série pequena biblioteca invulgar, coordenada por Paulo Sérgio de Souza Jr. © 2022 Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Jonatas Eliakim

Produção editorial Thaís Costa

Tradução Renata de Souza Dias Mundt

Preparação de texto Ana Carolina do Vale, Antonio Castro e Bonie Santos

Diagramação Negrito Produção Editorial

Revisão de texto Danilo Villa Capa e projeto gráfico Leandro Cunha

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4° andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) ANGÉLICA ILACQUA CRB-8/7057

Andreas-Salomé, Lou, 1861-1937 Sobre o tipo feminino e outros textos / Lou Andreas-Salomé ; organização de Paulo Sérgio de Souza Jr. ; prefácio de Cornelia Pechota ; posfácio de Nina Virgínia de Araújo Leite ; tradução de Renata de Souza Dias Mundt. – São Paulo : Blucher, 2022. 296 p. (Pequena biblioteca invulgar)

Bibliografia ISBN 978-65-5506-445-2

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

1. Psicanálise. 2. Andreas-Salomé, Lou, 18611937 – Biografia. I. Título. II. Souza Junior, Paulo Sérgio de. II. Mundt, Renata de Souza Dias. III. Pechota, Cornelia. IV. Araújo, Nina Virgínia de. 22-4254 CDD 150.1952

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

Lou Andreas-Salomé

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Conteúdo

Lou Andreas-Salomé: pioneira da Modernidade 9 Cornelia Pechota

O erotismo 59 Sobre o tipo feminino 131 Anal e sexual 161 Psicossexualidade 211

Lendo Lou Andreas-Salomé com Hélène Cixous 261

Nina Virgínia de Araújo Leite

Índice onomástico 287 Índice remissivo 289

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O erotismo

Die Erotik (1910)

59 O erotismo
60
Lou Andreas-Salomé

O erotismo1

Introdução

Podemos abordar o problema do erotismo por onde quiser mos: sempre teremos o sentimento de extrema unilateralida de. Especialmente, porém, se procuramos usar a lógica: ou seja, a partir de seu exterior.

Isso significa, por si, subtrair do erotismo a vivacidade imediata das impressões, em tal extensão e por tanto tempo que nos encontramos no estado da mais cômoda conformidade com a maior parte possível da sociedade. Em outras pala vras: apresentar as coisas de forma suficientemente insubjetiva, suficientemente alheia a nós mesmos, a fim de obtermos, em vez da totalidade, da indivisibilidade de uma manifestação da

1 Texto publicado pela Editora Literarische Anstalt Rütten & Loening, na cidade de Frankfurt am Main. Tratava-se do volume 33 da série coordenada por Martin Buber e intitulada “Die Gesellschaft. Sammlung sozialpsychologischer Monogra phien” [“A sociedade: coleção de monografias em psicologia social”].

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vida, uma obra interpretada em fragmentos que possa ser, as sim, justamente, fixada em palavras, manuseada com seguran ça conveniente e totalmente visualizada de forma unilateral.

Esse método específico de apresentação, que inevita velmente materializa e desalma tudo, deve, no entanto, ser também aplicado àquilo que conhecemos em detalhes ape nas subjetivamente, que só pode ser vivido individualmente; àquilo que estamos habituados, portanto, a designar como impressões “espirituais” ou “anímicas”, ou seja, simplesmente: as impressões na medida em que — e tanto quanto —, em princípio, dele se distanciem. Em nome da conformidade a ser obtida, nós podemos também lidar com esses efeitos di versos elucidando-os sempre apenas com base nesse único efeito, enquanto todo o resto que poderia ser dito a respeito deles pode ser considerado apenas complementação ilustrati va — a qual, aliás, também adequada à conformidade lógica, pode convencer somente mais ou menos de maneira subjeti va, mesmo com a ajuda formal dessa mesma conformidade.

Para o problema do erótico, contudo, essa contraditória meia-medida, essa redução à metade, ainda é bastante típica conforme ele próprio parece vacilar mais indefinivelmente entre o físico e o espiritual.

Essa contradição, porém, não se ameniza com o esmaeci mento ou a amalgamação dos métodos diversos entre si, mas sim por meio do seu evidenciamento cada vez mais apura do, de seu manejo cada vez mais rigoroso. Poderíamos dizer: devido ao fato de termos em mãos algo completo, com um limite cada vez mais seguro, como peça isolada e material, confirma-se e materializa-se para nós, apenas então, a sua

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dimensão que se alarga muito além de nós mesmos. Com isso, visualizamos não apenas a unilateralidade do objeto obser vado, mas também a do método: o caminho que, por assim dizer, leva para duas direções, no qual a vida se abre para nós e que apenas uma ilusão de ótica parece reunir em um ponto. Pois quanto mais adentramos em algo, mais profundamente ele se abre para nós em dois caminhos, assim como a linha do horizonte se torna cada vez mais elevada a cada passo que nos aproximamos dela.

No entanto, em um trecho mais além do caminho, a visão exata das coisas começa a se considerar unilateral. A saber, em todo lugar em que o próprio material foge a essa visualização, resvalando no incontrolável, para além do senso e da razão, enquanto ela ainda o percebe em seu senso como algo exis tente ou ainda pode considerá-lo na prática. Além do curto trecho de controle, acessível apenas à nossa vigilância, surge, para aquilo que está dentro de seu âmbito, um critério modi ficado no que diz respeito a “verdade” e “realidade”. Também aquilo que é mais materialmente tangível, também aquilo que é mais compreensível pela lógica torna-se, nesses termos, uma convenção sancionada pelas pessoas, um guia para fins de orientação prática — ademais, volatilizando-se no mes mo valor meramente simbólico como aquele registrado por nós como “espiritual” ou “anímico”. E em ambas as pontas de nosso caminho eleva-se, portanto, inviolavelmente o preceito: “Farás para ti uma imagem de escultura e uma parábola!”, de modo que também o alegórico — abordado apenas em signos e comparações, de que toda descrição mental depende — vê-se incluído no valor essencial da forma de reconhecimento

63 O erotismo

Sobre o tipo feminino

Zum Typus Weib (1914)

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Sobre o tipo feminino
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Andreas-Salomé

Sobre o tipo feminino1

1

Pretendo realizar aqui apenas um pequeno passeio reflexivo: passar, de início, por um caminho estreito, pessoalmente de limitado, e depois buscar um horizonte mais amplo para, por fim, mesmo que somente com alguns passos mais largos, ul trapassar a visão objetiva.

De forma bastante pessoal, tenho de começar contando que minha lembrança mais remota está relacionada a botões. Sentada sobre um tapete florido, à minha frente uma caixa marrom aberta cujo conteúdo — botões de vidro, de marfim, coloridos, de formatos fantásticos — eu podia remexer

1 Texto publicado em Imago: Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften [Imago: revista para a aplicação da psicanálise às ciências hu manas], Vol. III, n. 1 (1914, pp. 1-14). Posteriormente republicado, por ocasião dos 70 anos da autora, em Psychoanalytische Bewegung [Movimento psicanalítico], Vol. III, n. 2 (1931, pp. 122-137).

Sobre o tipo feminino

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quando havia me comportado muito bem ou quando minha velha tutora não tinha tempo para mim. A caixa de botões se chamava — no início, de forma inocente; mais tarde, irônica — a “caixa maravilhosa” e, a princípio, ela realmente repre sentava para mim a maravilha por excelência, talvez porque tenha me ensinado as respectivas palavras associadas aos bo tões, nos quais eu admirava tantas safiras, rubis, esmeraldas, diamantes e outras pedras preciosas, de modo que a palavra russa para “pérola” (zhemtchug)2 tem para mim, ainda hoje, um som estranhamente repleto de lembranças. As joias-bo tões permaneceram ainda durante muito tempo o epítome daquilo que, por ser extremamente precioso, é colecionado, e não descartado (assim como, de fato, os botões da moda, à época proporcionalmente mais dispendiosos, eram guar dados após o consumo das roupas). Para mim, é como se essa ideia dos botões como peças mais preciosas já tivesse se assentado diretamente sobre uma outra ideia ainda mais primordial, segundo a qual eles representavam partes inalie náveis — de certa forma, pequenas partes de minha própria mãe (ou seja, de suas roupas, cujos botões eu, sentada em seu colo, gostava de manusear) ou talvez de minha ama (dedicada a mim), em cujo peito, por trás da roupa aberta, eu pratica mente conheci o primeiro rubi. Pelo menos me recordo que, quando os botões-tesouros, posteriormente, se combinaram com um conto de fadas que me era contado, em que eles re presentavam uma questão mais interna, eu já encontrava essa

2 Em cirílico: жемчуг. No original alemão, porém, a autora utiliza o termo Juwel [joia], e não Perle [pérola] [N.E.].

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nova concepção como um sólido patrimônio dentro de mim. O conto era sobre uma pessoa que, ao penetrar uma monta nha encantada, devia desbravar um caminho em seu interior através de todos os reinos das pedras preciosas (“safiras, ru bis” etc.) até chegar a uma rainha a ser desencantada. Por con ta disso, não me causou nenhum estranhamento quando, du rante a minha primeira viagem ao exterior, com meus pais, na Suíça, ouvi uma montanha ser chamada de “A Donzela” (die Jungfrau). Desde então, consolidou-se para mim a imagem de uma virgem-montanha inatingivelmente alta, bastante enco berta de gelo, que esconde em seu interior mais profundo incontáveis botões. Mais tarde, uma segunda impressão de via gem pareceu-me uma lembrança dessa primeira: uma viagem para dentro de uma mina, em uma montanha, junto com meu pai, nas imediações de Salzburgo, na qual eu, terrivelmente entalada entre ele e os mineiros, precisei descer voando, es carranchada, até as profundezas aterradoras, até o lago fabu losamente iluminado, sendo que cheguei lá embaixo bastante espremida e berrando amargamente. Pareceu-me indubitável que o sal brilhante nas paredes só podia significar um coleti vo para pedras preciosas de todos os tipos. E acreditei rever seu rutilado quando, pouco depois, ouvi a descrição e vi pes soalmente as valiosas coleções de pedras preciosas russas no Museu do Instituto de Mineração de Petersburgo. Toda essa percepção infantil diferencia-se de forma ca racterística de uma segunda percepção concomitante que tem outros pequenos objetos de valor redondos em foco: moedas. Quando bem pequena, eu não sabia que era possível acumular dinheiro para as necessidades da vida, já que isso me foi

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Anal e sexual

Anal und Sexual (1916)

161 Anal
sexual
e
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Lou Andreas-Salomé

Anal e sexual1

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Há algum tempo tornou-se quase um hábito repreender a escola de Viena pelo destaque das regressões ao campo anal como uma espécie de atraso — mais ou menos como quan do as pessoas, em vez de dar continuidade ao exame objetivo dos problemas, preferem aferrar-se justamente aos mexericos familiares mais desagradáveis. No entanto, há mais motivos para acreditar que justamente esse ponto, talvez mais que qualquer outro, deveria ser resolvido de uma vez por todas — minimamente porque ele é o ponto para o qual retorna, afinal, todo o resto das difamações que se opunha e ainda se opõe à menção do fator sexual por Freud. Pois, por mais forte que tenha sempre sido a contraposição a ele e principalmente

1 Texto publicado em Imago: Zeitschrift für Anwendung der Psychoanalyse auf die Geisteswissenschaften [Imago: revista para a aplicação da psicanálise às ciências hu manas], Vol. IV, n. 5 (1916), pp. 249-273.

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à “sexualidade infantil” freudiana, a aversão a essas questões ainda parece significantemente menor que a aversão especi ficamente à sexualidade anal. Pois enquanto as pessoas, no primeiro caso, ficam indignadas com a impertinência de ma cular as carícias infantis com a palavra “sexual”, essa sexuali dade banida, por sua vez, revela-se, no segundo caso, escan dalosamente maculada por sua referência ao anal. Assim, as manifestações de carinho infantis no corpo dos pais costu mam ser observadas com qualquer forma de olhar emocional e são permitidas ilimitadamente, enquanto no outro campo destaca-se, desde o princípio, em letras capitais, o primeiro “eca!” que temos de introjetar. Com isso, inicia-se a história, tão significativa e cheia de referências para todos, da primeira proibição. A compulsão à abstinência pulsional e ao asseio tor na-se, assim, o ponto de partida para o aprendizado do nojo, do nojo por excelência que nunca mais poderá desaparecer completamente da formação do sujeito como um todo ou de nosso próprio modo de viver. Uma tal circunstância nos leva a supor que por trás do nojo e da resistência normal de todos nós podem, não raro, estar escondidas intelecções, pois não gostamos de desentocá-las dessa região — de forma bastan te semelhante às resistências patológicas dos neuróticos, que escondem atrás de si intelecções cuja revelação é pressuposto para a cura, na medida em que somente ela possibilita o olhar consciente sobre os fatos. Assim, poderia ser que justamente nesse campo, do qual nós — em casos comuns — aparente mente nos emancipamos somente com nossas experiências práticas e superações, a nossa compreensão de alguns frutos tardios ainda esteja amadurecendo.

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Com efeito, não é fácil conferir importância suficiente ao fato de que aquele primeiro “eca!” e a proibição se iniciam sugestivamente num período em que mal sabemos de nós; em que, de certa forma, ainda não existimos para nós; no qual nossas moções pulsionais ainda parecem quase não delimi tadas perante o entorno — as quais só se tornam perceptíveis como nossas para nós mesmos por meio dessa compulsão à proibição que, consequentemente, acompanha o nosso des pertar para nós, iniciando-o de certa forma. Todavia, algo como um mandamento já está associado a outra regulação da vida mais primeva, aquela da ingestão de alimentos, sendo que esta inclui uma renúncia apenas passiva, um “não poder obter”. Aqui, no entanto, não se ergue meramente uma fronteira decepcionante vinda do mundo exterior contra o ser re cém-nascido, há pouco ainda totalmente vinculado, mas ele é induzido a realizar um ato peculiar — um ato contra si mes mo, a imposição de um limite dentro do próprio impulso —, ao dominar seu ímpeto anal, concomitantemente ao primeiro verdadeiro “recalcamento” em si mesmo. Se quiséssemos já dotar tais processos, que decorrem de forma quase puramen te biológica, com os nomes imponentes da psicologia que se rão dedicados aos seus contextos posteriores, mais compreen síveis às ciências humanas, então poderíamos dizer: ocorre o fato interessante de que o pequeno germe do eu se manifesta logo de início sob a pressão do “ascetismo” que o eleva; de que é este ascetismo que diferencia, inconfundivelmente, seu crescimento incipiente dos estímulos pulsionais como tais que o envolvem. Pois somente nesse ser lançado de volta a si mesmo, nesse exercício egoico mais primitivo de controle do

Anal e sexual

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Psicossexualidade

Psychosexualität (1917)

211 Psicossexualidade
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Psicossexualidade1,2

Primeira parte | abril de 1917

Com a palavra “sexualidade”, as pessoas têm nas mãos o pano vermelho contra o qual, desde o início até hoje, a desaprova ção da psicanálise freudiana avança de forma tão intempestiva que ela, na ânsia de pegar o homem pelos chifres, nunca teve total clareza de suas intenções com o pano. Se nos lembrar mos então do termo “psicossexualidade” como aquele estabe lecido por Freud desde o início, então não compreendemos de

1 Texto publicado em dois números do volume 4 da Zeitschrift für Sexualwissens chaft [Revista de sexologia]: a primeira parte, no n. 1 (abril de 1917, pp. 1-12); a segunda, no n. 2/3 (maio/junho de 1917, pp. 49-57).

2 O presente trabalho é parte de um livro dedicado à psicanálise freudiana intitu lado Ubw. Escrito em 1914/1915, ele não chega a se ocupar dos últimos ensaios de Freud na Internationale Zeitschrift für ärztliche Psychoanalyse [Revista internacio nal de psicanálise médica], sendo que os apêndices com citações deles — os quais foram acrescidos posteriormente — foram aqui eliminados a fim de não reduzir ainda mais o espaço disponível.

213 Psicossexualidade

imediato essa oposição combativa; mas, de fato, mesmo entre os apoiadores, podemos dizer que apenas a segunda metade da palavra foi lida — circunstância resultante do fato de que só se poderia travar uma batalha em torno dessa segunda me tade, enquanto não houve nenhuma chifrada preconceituosa em torno das sílabas iniciais. Todavia, os mal-entendidos na turais estabeleceram-se não apenas entre o público, mas também entre os colegas, a ponto de tornar possível o surpreen dente comentário irônico vindo dos lábios de Pierre Janet no Congresso de Neurologia de 1913, em Londres: que “todas as palavras utilizadas pelos psico-analistas,3 como instintos se xuais, sensação genital, impulso ao coito, libido etc. designam muito simplesmente o ‘elã vital dos metafísicos’”.4 Em reação a esse tipo de comentário, foi questionado, também por aqueles que procuram seriamente compreender Freud, por que então nos aferramos a uma tal palavra que, por si só, provoca resis tência. Como mera denominação, ela naturalmente também está entre todas as outras mais socialmente aceitáveis ou ba tizadas com cunho mais filosófico — Freud, inclusive, seria o último a discutir palavras ou “batismos”. Contudo, a intitula ção da questão pretende, aqui, cumprir uma finalidade outra que não a formal — uma finalidade prática — e, ao mesmo tempo, realizar uma tarefa: pois é relevante já pronunciar com

3 Janet utiliza aqui a grafia antiga do termo [N.E.].

4 A controvérsia entre Janet e Freud tem seu início marcado justamente por este Congresso Internacional de Medicina, em que o francês apresentou, na seção do evento dedicada à psiquiatria, um relatório intitulado “A psico-análise”, num tom altamente antifreudiano. Cf. Janet, P. (1913/1914). La psycho-analyse. Journal de psychologie normale et pathologique, Vol. XI, p. 122 [N.E.].

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a própria palavra em que medida os fenômenos da sexualida de, até então não considerados em sua totalidade ou conside rados de forma respeitosa demais, se relacionam entre si. Se escolhêssemos uma outra designação da esfera corporal, algo que soasse, por exemplo, como “desejo corpóreo” de manei ra geral, então essa sonoridade neutra demais iria facilmente fazer referência também a processos vitais que servem à manutenção do eu, introduzindo, com isso, um tom inadequado. Mesmo a objeção mais justificada — de que “sexualidade” seria um termo já muito marcado, carregado de definições vi gentes; de que derrubá-lo significaria quase um desafio ao desentendimento — pode ser claramente admitida e ao mesmo tempo refutada. Pois justamente o vespeiro de preconceitos e interpretações errôneas que tantas vezes impede uma análise mais profunda das questões da sexualidade deve ser, sim, so bressaltado dessa forma, com suas ferroadas mais venenosas e seu zumbido mais traiçoeiro. Quando essa questão houver sido fundamentalmente esclarecida, então chegará o momen to de disputas terminológicas reais que até agora, conscien te ou inconscientemente, representam quase sempre apenas subterfúgios (proteger-se das vespas). Até esse momento, po rém, pode-se afirmar sobre o termo “sexualidade” — assim como sobre alguns freudianos que trazem na fronte o carimbo inconfundível da origem de sua batalha — que existe algo no exagero da expressão que continua a lutar: algo que, com seu vermelho-sangue ofuscante, salta aos olhos; olhos que ainda continuam buscando as antigas pinceladas que costumavam encobrir tudo com cores belas. Por isso, aqueles para os quais o sucesso dos resultados dos estudos freudianos é importante

215 Psicossexualidade

Apenas no feminino essa reversão da pulsão em si não se chama “perversão”, mas o seu delongar, o seu resumir estão dados junto com sua meta. Assim, a rigor não existe, dentro de seu princípio, um mero prazer preliminar (no sentido freudiano), nada de provisório no decorrer do erotismo: o feminino deve ser de nido como aquilo que o dedo mindinho signi ca para a mão. Não no sentido de um contentamento ascético, muito pelo contrário: pois o menor espaço já permite, à ternura, que ela se realize completamente dentro dele, que abranja com o mínimo possível o total do âmbito amoroso (mais ou menos como Dido fez com a pele do touro em Cartago).

pequena biblioteca invulgar

Sobre o tipo feminino (1914)

Lou Andreas-Salomé

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