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Navegação inquieta foi o título encontrado para dar conta do que salta à vista neste livro: a diversidade de interesses do autor – reflexo de sua biografia, tal como aparece na cativante entrevista que faz as vezes de Prefácio.
luiz meyer Penso que o sonho é o modo expressivo por meio do qual o aparelho psíquico delineia, constrói e comunica uma questão com a qual se confronta. Para ilustrar meu ponto de vista, optei por apresentar a autoanálise de um sonho – prática frequente, herdada de minha pós-análise com Meltzer. O contexto é o tratamento de um problema cardíaco que eu vinha apresentando. Após relatar o sonho, trago minhas associações e duas abordagens interpretativas. Tomando como eixo condutor um interpretante que apareceu em vários contextos (sonho, associações e até numa atuação), confesso ao leitor que me surpreendi com minha própria interpretação.
Filho de imigrantes judeus agnósticos, Luiz nasceu no Brasil e frequentou uma escola brasileira. Crescendo no conforto de um lar burguês, cedo deu-se conta da injustiça de seus privilégios. Buscou conciliar uma profissão respeitável com sua paixão pela cultura. Eis a história de suas múltiplas almas, a cujas reivindicações passou a vida tentando atender. A conciliação – possível, ou impossível – tornou inquieta sua navegação. O leitor poderá desfrutar das ricas paragens em que aportou: diversidade da clínica e sonhos; análise didática; acontecimentos históricos
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É médico, tendo se especializado em psiquiatria em Paris e Genebra. Posteriormente, dedicou-se inteiramente à psicanálise, sendo um dos fundadores do grupo de Brasília. É membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, de cujo Instituto é professor. Publicou Família: dinâmica e terapia – uma abordagem psicanalítica (Brasiliense, 1983), Rumor na escuta: ensaios de psicanálise (Editora 34, 2008) e Réu confesso: poemas reunidos (Ateliê Editorial, 2010).
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luiz meyer
e políticos; cinema; poesia e literatura. Marion Minerbo
navegação inquieta ensaios de psicanálise
PSICANÁLISE
NAVEGAÇÃO INQUIETA Ensaios de psicanálise
Luiz Meyer
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Navegação inquieta: ensaios de psicanálise © 2021 Luiz Meyer Editora Edgard Blücher Ltda. Imagem da capa: Eleonore Koch (in memoriam) Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Bárbara Waida Preparação de texto Ana Maria Fiorini Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Bonie Santos Capa Leandro Cunha
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
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Meyer, Luiz Navegação inquieta : ensaios de psicanálise / Luiz Meyer. – São Paulo : Blucher, 2021. 402 p. : il. Bibliografia ISBN 978-65-5506-277-9 (impresso) ISBN 978-65-5506-278-6 (eletrônico) 1. Psicanálise. 2. Psicanálise – Ensaios. 3. Psicologia clínica. 4. Análise didática. 5. Sonhos. I. Título 21-0720
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Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
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Conteúdo
Agradecimentos 11 Apresentação 13 Prefácio 19 Parte I. A clínica e sua diversidade
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Introdução 37 Abordando o sonho como uma questão: uma investigação sobre a função expressa do sonho
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Produção onírica e autoanálise
87
Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista 99 Familidade e bissexualidade: dificuldades de integração
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Prisioneiro de si mesmo: clínica do habitante do claustro
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conteúdo
Parte II. Questionando a análise didática
161
Análise didática enquanto enactment institucional
163
A análise didática deve ser mantida?
193
Parte III. Contemporaneidade: um olhar crítico
201
Introdução 203 A mente totalitária
209
Analista desconcertado, analista desconcertante
231
Parte IV. Cinema: o feijão e o sonho
241
Introdução 243 Endereço desconhecido
247
Melancolia e a psicopatologia contemporânea
265
Parte V. Poesia: a luta com as palavras
279
Introdução 281 Resistência: a propósito do conflito estético
287
Parte VI. Literatura: a polissemia de Machado de Assis
311
A fatal secreção: notas sobre o conto “Verba testamentária”
313
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Parte VII. Recreio: textos de circunstâncias
343
O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias
345
Luiz Tenório Oliveira Lima Comentário sobre o trabalho “O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias”, de Luiz Tenório Oliveira Lima
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Breve nota sobre hipocrisia
381
Posfácio 387
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Introdução
Os cozinheiros contemporâneos, aqueles que se empenham em participar do cotidiano de seu tempo, pouco seguem receitas estandardizadas ou preparam seus pratos seguindo um padrão consagrado. Eles costumam ir à feira, ao mercado, para escolher aquilo que naquela estação está sendo oferecido. Ou abrem a dispensa e se valem do que se mostre disponível nas prateleiras. Aí então conjugam o encontrado, criando um prato original, pessoal, eventualmente inédito, o que não significa que seja necessariamente apetitoso. Nesse processo, o momento relevante, de caráter experimental, é a acuidade perceptiva. Em meio à oferta que o pressiona, ele precisa selecionar o que considera indispensável, aquilo que melhor dará forma à sua sensibilidade. Para que tal acuidade esteja presente, é evidente que, ao fazer a opção dos insumos, sua visão não deve estar saturada por fatores que nada têm a ver com a criatividade – como o desejo de ganhar uma estrela no guia-bíblia, de tornar-se o chef da moda ou de atrair uma clientela abastada. Essa exigência pode ser confundida como uma espécie de elogio do achado casual ou uma preferência dada à intuição. O que estou
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introdução
sublinhando, entretanto, é que tanto o achado quanto a ação movida pela intuição são balizados pelo escrutínio rigoroso dos alimentos disponíveis, acompanhado simultaneamente da liberdade de imaginação. O que se procura é uma sinergia, uma harmonia que, paradoxalmente, englobe e reflita o conflito. Até minha análise com Donald Meltzer, fui um cozinheiro aplicado, respeitoso das tendências da época, com isso evocando entre os pares certo respeito. Entre tais tendências incluía-se a hagiolatria, então vigente em São Paulo (e que mais tarde se dissolveu), dedicada à adoração de W. Bion e que, como se esperaria de toda veneração, deformava a natureza de seu pensamento, que foi adquirindo um cunho ideológico, quando não preconceituoso. Um desses vieses fazia a apologia de uma certa “pureza”, da abstinência da memória e do desejo (tomada no seu sentido literal), o que implicava – vejo-o assim agora – uma caricatura do que é conhecido em psicanálise como o “aqui e agora”. Imbuído dessa matéria-prima, respondi a Meltzer – quando, ao iniciar a análise, ele sugeriu que, além do habitual, eu lhe trouxesse sonhos – que ele era um analista atrasado, e que em matéria de sonho só valeria aquele que fosse “espontâneo”. Ele me escutou com atenção e respondeu: “Eu sou bom em sonhos. Se você quiser tirar o melhor de mim, traga sonhos”. Havia calma e modéstia em sua frase: não se tratava de louvação de uma qualidade sua, mas do simples enunciado de uma realidade. Nem é preciso dizer que, duas semanas depois – um pouco espantado e naturalmente motivado por suas interpretações profundamente kleinianas, que estabeleceram para mim nexos até então insuspeitos –, eu passei não só a levar sonhos, mas a me indagar, digamos assim, sobre sua estrutura e sua dinâmica. Nesse ponto fui muito ajudado por minha pós-análise.
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Abordando o sonho como uma questão: uma investigação sobre a função expressa do sonho
Nunca será demais sublinhar o impacto revolucionário sobre a compreensão do psiquismo humano provocado pela publicação da “A interpretação dos sonhos” (1900/1964a). Se em trabalhos anteriores, notadamente aqueles sobre histeria, Freud havia apontado para o papel determinante do inconsciente na formação dos sintomas (propondo que a compreensão da patologia psíquica passava pela compreensão do modus operandi do inconsciente), agora o estudo dos sonhos permite expandir e universalizar o seu domínio. O inconsciente passa a ser concebido como uma realidade psíquica contínua, onipresente, que nada deve àquela do mundo externo, e cujo funcionamento não induz apenas à formação da neurose, mas à do comportamento humano comum. O sonho, experiência trivialmente vivida por todo sujeito, é sua expressão princeps. A maneira de Freud apreender o sonho é naturalmente caudatária de sua concepção do funcionamento do aparelho psíquico. Segundo ele, esse aparelho está sempre à procura de conforto, de relaxamento, de modo que todas as excitações – internas ou
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abordando o sonho como uma questão
externas – são fontes de desorganização, de desprazer, das quais o aparelho precisa se proteger. Ao mesmo tempo, o prazer – a procura de satisfação pulsional – é constantemente buscado e está ligado seja às paixões infantis (insatisfeitas), seja ao alívio das experiências traumáticas infantis vinculadas a essas paixões. Estabelece-se então um conflito entre a necessidade de realização da pulsão (isto é, de obtenção do prazer) e a necessidade de manutenção do equilíbrio psíquico. A regressão implícita no sono, que impede a satisfação consciente, motora, do prazer desejado, permite que esta seja, agora, obtida de forma alucinatória, pois a descarga pulsional nesta circunstância percorre uma via retrógrada, um percurso “em recuo”, passando a investir as representações internas e não os objetos externos. Ainda assim, essa proteção é insuficiente, e o prazer perigoso – basicamente de caráter infantil –, proibido pela censura, vai precisar, para ser satisfeito, se disfarçar via trabalho do sonho (condensação, deslocamento, figurabilidade, simbolização). Freud insiste que toda essa tramitação torna o sonho o guardião do sono, ao impedir que as paixões infantis (os traumas – a excitação que visa à descarga) em sua forma pura irrompam na consciência do indivíduo desprotegido-adormecido, levando-o a um despertar perturbador. O sonho, ao “canalizar” o prazer, torna-se a satisfação disfarçada de um desejo infantil censurado. Freud vai se preocupar em definir e delimitar não só o campo de atuação da psicanálise, mas também sua natureza. Para caracterizá-la, tornou-se necessário que a teoria que ele vinha desenvolvendo – a psicanalítica –, fundamentalmente voltada para a compreensão dos processos inconscientes, se distinguisse das teorias até então vigentes, que se dedicavam ao estudo dos processos conscientes. A metapsicologia (a psicologia do que está além da consciência) abrange os pressupostos teóricos que fundamentam
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Produção onírica e autoanálise1
Um sonho Tive este sonho dois dias antes da data que eu me impusera para entregar o texto para um fórum no qual deveria expor minhas ideias sobre o sonho. Estou numa sala ampla, na qual estão dispostas várias mesas quadradas, para quatro pessoas. Há bastante gente no ambiente. Poderia ser uma reunião ligada à psicanálise, provavelmente com psicanalistas ingleses. Meu pai e minha mãe estão presentes, mas minha mãe às vezes se confunde com minha mulher. Desde o início do sonho estou angustiado e me sinto perseguido porque teria feito algo errado, ou condenável, aos olhos de meus pais. Em determinado momento digo à minha mãe (meu pai está ao seu lado) – mas que é também minha mulher – que estou absolutamente convencido de que não fiz nada de errado. O tom é firme, 1 Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em: Candi, T. S. (Org.) (2015). Diálogos psicanalíticos contemporâneos: o representável e o irrepresentável em André Green e Thomas H. Ogden (pp. 135-151). São Paulo: Escuta.
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produção onírica e autoanálise
pleno de convicção. Sinto então um extraordinário alívio, um sentimento único de prazer.
Associações A sala ampla lembra o apartamento de meus pais (já falecidos), que costumavam convidar seus amigos aos sábados para jogar cartas e servir um jantar apetitoso. Dispunham várias mesas quadradas no ambiente, aquelas cobertas de pano verde, às quais os convidados se sentavam. Eram encontros concorridos e celebrados na comunidade que frequentavam: em torno das cartas espocavam discussões e disputas, mas o clima era fraterno e caloroso. No intervalo servia-se a ceia caprichosamente preparada por minha mãe, da qual eu eventualmente participava. Os psicanalistas ingleses são uma referência a parte da minha formação, e particularmente à vinda de Britton, anunciada para breve, quando dará conferências e supervisões na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Ele foi meu colega na Tavistock, e juntos frequentamos vários seminários, inclusive na Sociedade Britânica. Na véspera minha mulher conversara comigo sobre a dificuldade que experimentávamos em nos afastar dos hábitos e das formas de vida provenientes de nossa – na verdade minha – família de origem. O tom era de crítica: continuávamos atrelados a atavismos anacrônicos, que já não cabiam no modo de vida presente nem serviam à perspectiva de vida que ainda nos restava.
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Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista1
Há alguns anos, procurando informação para escrever um texto sobre o método psicanalítico, li, no International Journal of Psy chology, um artigo de um colega nova-iorquino. Curiosamente, embora tendo o método como meta, o trabalho versava, na verdade, sobre técnica. Para ilustrar seu ponto de vista (às avessas, como veremos), o autor descreveu uma situação que lhe pareceu particularmente informativa, ocorrida em uma supervisão com um jovem analista. Este lhe disse que um paciente lhe oferecera uma... maçã (!). O jovem analista declinou, explicando para o paciente que em sua Sociedade, durante a formação, lhe fora ensinado que não deveria aceitar presentes de clientes. O artigo que logo mais lerão começa com uma citação de Green que aponta para a tendência natural, isto é, que faz parte da natureza humana, de guiarmo-nos pela racionalidade, pela procura da 1 Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em: Jornal de Psicanálise, 48(89), 203-218, 2015. Este texto faz parte de um conjunto e foi precedido por um de Marion Minerbo. Há nele algumas menções ao que ela escreveu, o que, entretanto, não causa prejuízo à compreensão geral.
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conversando sobre a escuta analítica…
ordem e, sobretudo, pela obediência à temporalidade. Ao psicanalista – e a seu paciente – é pedido, entretanto, que marche na direção contrária: o primeiro deve escutar a fala do paciente de maneira desatenta, inadvertida (quando não distraída): é o que se denomina atenção flutuante. Já o segundo deve abandonar o discurso coerente, dirigido, e contar tudo o que lhe ocorre, que passa em sua mente. É a associação livre: ela produz um fluxo verbal que prossegue por contiguidade e se distancia do senso comum. Na verdade, pede-se um pouco mais ao analista: que abandone a racionalidade, mas mantenha simultaneamente a formalidade; que respeite a liturgia do cargo, mas não sufoque sua espontaneidade expressiva. Diante de tantas exigências, de aparência disparatada, compreende-se que nosso jovem colega americano, para se sentir seguro, tenha reagido “by the book”, invocando os preceitos da instituição cuja tutela o faria sentir-se protegido. No título deste trabalho – “Conversando sobre a escuta analítica com um(a) jovem analista” – está implícita uma assimetria: só um dos interlocutores é jovem. Ora, o referente de “jovem analista” não é “velho analista” (ou “analista velho”), mas analista experiente. Um dos atributos que o definem é a capacidade de conversar com seu (jovem) colega sem se apresentar como alguém que sabe o que deve ser dito: ele apenas flagra o que está sendo feito e partilha sua percepção com o colega. O purgatório – é o que se alardeia – está repleto de boas intenções; já a formação e a atividade analítica estão repletas de tentações. Uma das mais comuns é balizar a atividade guiando-se por uma cartilha e dar à formação o caráter de uma ideologia. Quando eu trabalho com casais fico sempre atento à complementaridade da relação (o que implica vê-los sempre juntos). Habitualmente é possível mostrar como ambos alimentam o vínculo
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Familidade e bissexualidade: dificuldades de integração1
Este livro tem como uma de suas propostas ilustrar os campos variados da psicanálise pelos quais me interessei. Entre eles ressalta o da terapia de família e de casal. Sobre este tema publiquei, em 1983, um livro intitulado Família: dinâmica e terapia – uma abordagem psicanalítica (Brasiliense), que teve em seguida várias reedições. O que ali exponho é basicamente alicerçado na teoria de relações de objeto, mais particularmente nas concepções de Melanie Klein e Bion. Essa teoria concebe a fantasia inconsciente como o conteúdo primário dos processos mentais inconscientes. Ela não é apenas a representação mental das pulsões e das sensações que estas provocam, interpretadas como relações, mas também a das 1 Este texto foi apresentado no evento “Diálogos psicanaliticos sobre família e casal”, realizado na Universidade de São Paulo, em 2011, com o título “Das dificuldades de separação entre a família de origem e a família nuclear nascente: sua relação com a bissexualidade”. Uma versão deste capítulo foi publicada com o título “Familidade e bissexualidade: dificuldades de separação entre a família de origem e a família nuclear nascente: sua relação com a bissexualidade” em: Gomes, I. C., Fernandes, M. I. A., & Levisky, R. B. (Orgs.) (2016). Diálogos psicanalíticos sobre família e casal (pp. 243-249). São Paulo: Escuta.
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familidade e bissexualidade
vivências emocionais que são apreendidas como o desdobramento dessas relações. A fantasia inconsciente carrega de intencionalidade a relação de objeto, ao mesmo tempo que esta, ao se evidenciar, produz um remanejamento da fantasia. O surgimento e a expansão da teoria de relação de objeto e suas variantes vão permitir o surgimento, na psicanálise contemporânea, de uma nova e surpreendente abertura para a compreensão da forma assumida pelas inter-relações humanas, sejam diádicas, sejam grupais. As relações entre os objetos, as fantasias que as instrumentam e os conflitos daí decorrentes – isto é, a dinâmica da assembleia interna descrita por Melanie Klein – se atualizam sob a forma de transferência na relação diádica que caracteriza o trabalho psicanalítico. Ora, no trabalho com a família o foco de atenção do analista deixa de ser a relação diádica. É a família como um todo, é a dinâmica que rege o intercâmbio entre os diferentes familiares, é o conjunto das relações que eles estabelecem entre si que vai merecer a atenção do psicanalista. A família não é vista como a mera soma de indivíduos, cada qual com sua personalidade, mas como uma unidade, uma concreção, resultante das variadas contribuições desses indivíduos. Neste sentido ela é uma formação nova, original, única, e seu funcionamento transcende aquele de cada um de seus membros. Estamos diante de uma rede de intercâmbios que cria uma atmosfera afetiva peculiar. Apoiada preponderantemente no mecanismo de identificação projetiva, essa rede se forma a modo de um acordo, de um conluio, de uma operação conjunta e coletiva do grupo familiar que dá sustentação e continuidade à forma de funcionamento vigente. Percebe-se que para manter essa dinâmica operante há, entre os membros, uma cumplicidade que confere
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Prisioneiro de si mesmo: clínica do habitante do claustro
No fim da década de 1950, um jovem publicitário foi premiado pelo calendário que fizera para ser distribuído como brinde de fim de ano. Nele, sob um céu azul densamente estrelado, foram inseridas as figuras de três personagens sorridentes que encaravam o espectador com um ar irônico: Freud, Darwin e Einstein. O aspecto jocoso do conjunto não ocultava, entretanto, a necessidade de pensarmos qual o denominador comum que levara o artista a reuni-los daquele modo. Penso que aquilo que os une, justificando sua presença na foto, é o fato de os três terem, cada um a seu modo, provocado um descentramento na concepção que o homem tinha até então de si mesmo. Como ocorrera quando o sistema ptolomaico foi, não sem conflitos – “E pur si muove!” –, substituído pelo heliocentrismo, tendo como base as descobertas de Copérnico e Galileu, os aportes desses autores também induziram toda uma mudança na forma de o homem encarar suas relações com o universo psíquico, social e físico. Eram, no exato sentido do termo, revolucionários.
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prisioneiro de si mesmo
Basicamente, eles demonstraram que o homem deveria abandonar qualquer pretensão a conceber-se como um demiurgo, na medida em que a extensão de seu domínio em todas essas áreas se revelara agora infinitamente menor do que até então ele a concebia, e que, com isso, também deveria aceitar a redução de sua capacidade de autodeterminação. No que diz respeito a nosso campo, Freud mostrou que o homem sequer comanda a própria casa que habita. Ele se dá conta de que nela é obrigado a conviver com moradores hostis e rebeldes que, em certa medida, ele mesmo convidou. Precisa então negociar com eles a permissão para transitar entre os cômodos e, muitas vezes intimidado ou bloqueado pela atitude ameaçadora dessa companhia, acaba por se paralisar ou por se recolher, isolando-se em um dos quartos: autocarcereiro, prisioneiro de si mesmo. O título deste capítulo, em virtude de sua abrangência, pode se aplicar a todos os capítulos do livro. É que em qualquer área do texto – clínica, família, instituição, literatura, cinema, sociedade – é possível flagrar e descrever essa limitação de autoridade, essa perda de domínio, essa atividade constante de esquiva. Freud, entretanto, não era niilista e não se limitou a descrever a perda da autodeterminação e a sujeição do homem às forças de seu inconsciente. Ele concebia a psicanálise como, a um só tempo, uma teoria sobre a estrutura e o funcionamento do aparelho psíquico, uma técnica de investigação (orientada por essa teoria) e uma terapia decorrente da investigação que, por sua vez, realimentava a teoria. Ocorre aqui um entrelaçamento que não opera visando eliminar a clausura ou impor à casa e a seus moradores um padrão de ocupação predeterminado. Quando o paciente (se) oculta algo do analista, este não se interessa pelo conteúdo subtraído, mas pelas razões que levaram ao ocultamento. Ao dar inteligibilidade a esse
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Análise didática enquanto enactment institucional1
Nos últimos anos, a questão da análise didática, que Wallerstein (2010) recentemente definiu como “psychoanalysis perennial prob lem”, cuja história Balint (1948) classificou como melancólica, e sobre a qual uma bibliografia desfavorável não cessa de crescer, atraiu meu interesse. Ele foi detonado por um fato bizarro devido ao seu cunho antianalítico: um colega que vivia sua análise, que já durava alguns anos, como intensamente proveitosa, viu-se obrigado – na verdade, pressionado – a mudar de analista no momento em que decidiu seguir a formação. Esta só poderia ser feita com um didata reconhecido pela instituição. A violência da situação fez com que eu passasse a estudar essa faceta da formação, e a respeito dela – na verdade questionando sua natureza, seu funcionamento, bem como a necessidade de sua existência – escrevi alguns artigos (Meyer, 2001, 2002, 2003, 2007a, 2007b, 2007c, 2008). O presente 1 Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente com o título “Training analysis as institutional enactment” em: Zagermann, P. (Ed.) (2017). The Future of Psychoanalysis. The Debate about the training analyst system (pp. 197-219). London: Karnac.
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análise didática enquanto enactment institucional
capítulo, em continuidade a essa postura crítica, visa mostrar como a análise didática se estrutura e funciona ao modo do enactment. A exposição vai ser dividida em quatro partes. Na primeira (baseada em meus trabalhos anteriores), descrevo, de um lado, como a análise didática é habitualmente percebida na bibliografia corrente e, de outro, minha maneira de conceber sua estrutura, seu modus operandi e as razões de sua permanência. Na segunda parte, visando tornar clara a distorção presente na análise didática, contrasto-a com os aspectos mais básicos e comuns da análise tout court. Na terceira faço um resumo das descrições mais conhecidas do enactment. Assim, tendo se familiarizado com o conceito, o leitor poderá mais facilmente perceber aquilo que será o tema da quarta parte: o encaixe visceral entre enactment e análise didática. Valendo-me desses quatro passos procuro fornecer progressivamente informação sobre o tema do trabalho, de modo que, ao fim da caminhada, minhas concepções e a conclusão alcançada surjam como produto lógico da articulação entre as partes.
Análise didática: imagem polêmica, estrutura e forma de funcionamento Desde seu início – isto é, historicamente –, a análise didática se apresenta como categoria separada, superior, e a aura aristocrata com que é envolvida promove e sustenta a criação de um grupo oligárquico e autoritário. Dela emergem não apenas dois tipos de análise, mas também dois tipos de analista: os que são bons para o paciente tout court e os realmente bons, que cuidarão dos futuros membros das sociedades (Bernfeld, 1962). Seu discurso, uma vez
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A análise didática deve ser mantida?1
Para compreender a permanência da análise didática, e por que ela se fez necessária, sugeri, no capítulo anterior, duas hipóteses ou interpretações: 1. a análise didática é um fetiche, habitualmente incluído no campo da perversão; 2. a análise didática é uma formação ideológica, portanto seu funcionamento é marcado pela alienação. Não vou detalhar a argumentação que dá peso a essas hipóteses, já expostas em meu artigo, mas voltar-me para outro foco que surgiu de sua releitura. Percebi que ao usar frases como “a análise didática esvazia a relação analítica de sua essência”; “a análise didática procura harmonizar incongruências” (daí sua estrutura de fetiche), “ela está em contradição com os princípios elementares 1 Trabalho apresentado no XXI Congresso Brasileiro de Psicanálise, com tema: “Prática psicanalítica: especificidades, confrontações e desafios”, Porto Alegre, realizado entre 9 e 12 de maio de 2007. Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em Revista Brasileira de Psicanálise, 41(3), 33-40, 2007.
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a análise didática deve ser mantida?
da clínica e da técnica analítica”, eu tinha um mente um modelo de análise que se contrapunha frontalmente ao da análise didática. Vou descrevê-lo para que, à maneira do contraste entre fundo e figura, fiquem ressaltadas a disparidade e a oposição entre a prática da análise tout court e a da análise didática. Minha argumentação vai utilizar, como ponto de partida e paradigma, um poema bastante conhecido do poeta espanhol Antonio Machado, incluído em seu livro Campos de Castilla (1912), na parte intitulada “Proverbios y cantares”, sob o número XXIX: Caminante, son tus huellas El camino, y nada más; Caminante, no hay camino, Se hace camino al andar, Al andar se hace camino, Y al volver la vista atrás Se ve la senda que nunca Se ha de volver a pisar. Caminante, no hay camino, Sino estelas en la mar. O poema pode ser lido como a fala de um narrador – o poeta – que está respondendo a uma questão posta por um interlocutor particular: o caminhante. Este, colocado diante da necessidade de iniciar seu percurso, sente-se forçado a defini-lo previamente, a estabelecer um trajeto que lhe evite de antemão as dúvidas e opções – as encruzilhadas – com que inevitavelmente se depararia.
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Introdução
Drohobych é uma pequena cidade ucraniana. Quando meu pai imigrou para o Brasil, em 1933, a cidade pertencia à Polônia e ali viviam 34 mil habitantes, dos quais 40% eram judeus. Sua família, composta de meus avós e minhas três tias (suas irmãs), era muito pobre. Meu avô era um judeu ortodoxo que havia recebido somente educação religiosa. Mal falava o polonês; sua língua corrente era o iídiche. No verão ele fabricava sabão caseiro e no inverno trabalhava como pintor de paredes. Meu pai pertenceu à primeira geração que se secularizou: educou-se na escola pública, fazia esporte, tinha uma vida social arejada e planejava tornar-se um profissional liberal. Entretanto, a existência de numerus clausus, regulamentação que impedia e/ ou limitava o acesso dos judeus à universidade, aliada à grave crise econômica pela qual o país passava na década de 1920, criando uma profunda ausência de perspectivas, frustrou sua intenção. Premido por essas circunstâncias e continuadamente assombrado pelo antissemitismo visceral da sociedade polonesa, ele se organizou para emigrar para o Brasil. Era um jovem instruído
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introdução
(cursara uma escola de boa qualidade e nela o latim fazia parte do currículo: isso o levou a aprender o português rapidamente), inteligente, sagaz, atento; aqui chegando, passou a trabalhar com determinação e seriedade. Usou suas economias para trazer para o Brasil suas três irmãs (e os dois namorados que cortejavam as mais velhas), seus pais e finalmente minha mãe, namorada que deixara em Drohobych. Se casaram em 1937, em Recife. Todos aqui se integraram e criaram grandes famílias. Meu pai, paulatinamente, tornou-se um homem de sucesso. Já a história de meus avós maternos e de minha tia, irmã mais nova de minha mãe, é de outra ordem. Jamais os conheci. O que recordo são fotos sépia dispostas na cômoda da sala, em porta-retratos de madeira com apliques de metal. Tocavam uma pequena mercearia conjugada com um bar, em um imóvel de sua propriedade. Vendiam produtos típicos da região, trazidos pelos camponeses. Minha mãe descrevia as barricas cheias de pepino em salmoura, de arenque salgado, de repolho fermentado colocadas à porta de entrada; nas prateleiras, potes de creme fresco; caixotes com casha (trigo-sarraceno) a granel perto do balcão. Em 1939, a Alemanha invadiu e ocupou a Polônia. O pacto Molotov-Ribbentrop, assinado pouco depois da invasão, dividiu o país em duas partes: uma para a Alemanha e outra para a Rússia. Drohobych passou a fazer parte do território soviético, especificamente da Ucrânia. Meus avós maternos ali permaneceram; nunca mais viram a filha que havia partido para o Brasil. Em 22 de junho de 1941, a Alemanha rompeu o pacto e iniciou seu avanço sobre a União Soviética – a operação Barbarossa. Quase de imediato, em julho, Drohobych foi ocupada pelos nazistas. Já nos dias 7 e 8, nacionalistas ucranianos, apoiados pelas forças nazistas, iniciaram um pogrom – uma aktion – que durou três dias; insultavam, espancavam e matavam os judeus que encontrassem
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A mente totalitária1
As teorias psicanalíticas iniciais a respeito do funcionamento do aparelho psíquico o conceberam como possuindo uma atividade voltada para a descarga, para o alívio de tensão. Tudo se passava como se o funcionamento psíquico, per se, fosse um incômodo do qual o aparelho psíquico devesse se desembaraçar. Por esse viés Freud descreveu o princípio da constância e seu irmão gêmeo, o princípio de nirvana. Obtém-se prazer ao se procurar atingir o grau zero de tensão. O objeto, para o qual se dirigia a pulsão a ser exaurida, era aleatório, um mero suporte para a operação econômica de alívio. Se a hipótese de uma mônada isolada, autossuficiente, que se retroalimenta, era bizarra além de inviável, e se o nirvana tinha caráter mítico, o princípio de constância alcançou representação no segundo princípio da termodinâmica e principalmente na noção de homeostase elaborada mais tarde por Cannon.
1 Trabalho apresentado no 48º Congresso da International Psychoanalytical Association, em Praga, 2013. Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em: Revista Brasileira de Psicanálise, 52(3), 47-59, 2018.
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a mente totalitária
Freud – é um truísmo necessário repeti-lo – é um autor extraordinário. Longevo, prolífico, político, deixa uma obra única passível de exegeses as mais variadas, mormente por causa da extraordinária documentação que nos legou a respeito do embate contínuo que mantinha com suas próprias teorias. O intelectual autêntico é aquele que basicamente polemiza com suas próprias ideias. Freud não cessa, até o fim de sua vida, de propor indagações e questionamentos sobre seus escritos, como faz, por exemplo, quando introduz o narcisismo, quando descreve o mecanismo de identificação no artigo sobre luto e melancolia, bem como quando remodela a teoria da angústia. É o que acontece também na reformulação da teoria das pulsões. A observação do trauma e dos sonhos traumáticos repetidos o obriga a rever a ideia inicial do princípio do prazer e implicitamente do sonho como guardião do sono. É assim que, conjugada com a pulsão de vida, ele propõe a existência de uma pulsão de morte, que, ao se descolar da libido, torna-se o puro caldo da destrutividade, de uma violência que se exprime interna e externamente. A teoria estrutural que sucede à topográfica propõe não uma pulsão a ser esvaída, mas uma que transite entre instâncias – ego, id, superego –, bem como um sofisticado sistema de negociação entre elas. De certo modo, caminhava-se para o amainamento da importância do ponto de vista econômico. O que estou querendo dizer com este mais que reduzido apanhado é que Freud preparou o terreno para a concepção de um psiquismo em que a tensão que se resolve em pulsão não é o barulho inoportuno da máquina, a ser silenciado, nem o espinho incômodo que precisa ser arrancado, mas a areia que faz a ostra produzir a pérola. Melanie Klein se apropria da noção de pulsão de morte para torná-la, paradoxalmente, periférica: sua externalização coincide
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Analista desconcertado, analista desconcertante
O instrumento de trabalho do analista é sua mente. Assim, ele a educa e desenvolve de forma variada, sendo a análise pessoal um dos elementos fundantes para atingir tal objetivo. Como ele lida com outras mentes, cuja composição, estrutura e conteúdo são semelhantes aos da sua, ele precisa a um só tempo deixar-se atingir por elas sem com elas se confundir. Do mesmo modo que seu paciente, o analista tem relações amorosas, pai, mãe, irmãos, desafetos públicos, afetos clandestinos, que compõem seu modo de pensar e sentir e dos quais o paciente deve ser poupado; mas o conhecimento, a contenção e o significado desse seu modo de sentir devem ajudá-lo a entender o funcionamento psíquico de seu paciente. Todos esses truísmos referem-se a um elemento central da prática analítica, que é a manutenção da assimetria entre paciente e analista, de certo modo já graficamente presente na clássica situação em que um se encontra deitado dando as costas para o outro, que o observa sem ser visto. Evidentemente essa assimetria – que também é uma hierarquia – não se refere ao valor dos participantes, mas à sua função. Quaisquer que sejam a teoria e a prática do
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analista desconcertado, analista desconcertante
analista, é importante que a diferença se mantenha para que a análise prossiga, isto é, para que ela não se torne um engolfamento de parte a parte nem uma fusão identitária tendendo à beatitude. É a assimetria, isto é, o reconhecimento da transferência, que permite a manutenção da postura analítica. Um paciente inicia a sessão dizendo ao analista: “[cheguei] em casa [e disse] para meu filho, vá buscar um pedaço de banana para seu pai acender o charuto. Naturalmente o filho pensará: papai está maluco...”. Sim, é compreensível que o menino pense dessa maneira e faça ilações variadas (andou bebendo? Está estudando para ser camelô?). Já a escuta analítica se disporá a outras indagações: a) por que ele começou a sessão desta maneira?; b) com quem ele está falando?; c) quem é o filho que ele está mencionando?; d) ele está dando a esse filho uma ordem ou está fazendo um pedido?; e) por que alude a dois objetos tão evidentemente fálicos – banana e charuto – para se complementarem?; f) quer me distrair, fazer troça, mostrar seu conhecimento sobre a poética de Manuel Bandeira? O analista mantém uma postura indagativa, de modo a não se fixar no lugar em que o paciente quer colocá-lo. Ele dá um passo atrás face à paisagem que o comove na medida em que a contempla, mas esse movimento de recuo não o retira daquela geografia; antes, o insere nela mais firmemente, à medida que sua perspectiva se alarga. Melanie Klein e Freud eram figuras de seu tempo, identificadas com as práticas e os costumes então vigentes (curiosamente, os dois analisaram seus filhos), mas ambos deram esse passo atrás que lhes possibilitou participarem do universo social de que faziam parte e ao mesmo tempo observá-lo segundo uma nova perspectiva propiciada graças ao ângulo criado pelo recuo. Chegamos assim ao tema desta apresentação. A análise pessoal nos ajuda a manter a assimetria entre as duas mentes que se
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Introdução
Chegando ao fim do segundo ano colegial e com o vestibular começando a surgir no horizonte, me vi pressionado a escolher uma “profissão”. Mas eu não tinha a menor ideia do que fazer. De um lado, como filho de emigrantes que batalharam para se inserir (e me inserir) num meio burguês respeitável, senti-me na obrigação de optar por uma carreira de prestígio. Por outro lado, via-me atraído por atividades mais intelectuais e especulativas, como sociologia e literatura. Exemplar dessa ambivalência é a resposta que dei à professora Betti Katzenstein, sumidade da época, quando fiz com ela um teste vocacional. Ela me ofereceu uma extensa lista de profissões para que eu apontasse a preferida e perguntou se havia alguma que eu pensara que não estava ali incluída. De pronto respondi: “folclorista!”. Os testes revelaram que eu podia fazer qualquer coisa. O curso de Medicina era para mim, no seu início, um verdadeiro porre. Achava tudo aquilo (com exceção das aulas de estatística) de uma chatice ilimitada. Foi naquele contexto que o cinema, sobre o qual já tinha breve informação proporcionada por leituras
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introdução
esparsas, surgiu como saída. No fim do ano fui ao consulado italiano pedir uma bolsa para estudar nada mais nada menos que no já célebre Centro Sperimentale de Cinematografia, em Roma. Para meu azar, a pessoa encarregada de fazer a seleção conhecia bem meu pai e telefonou para ele: “Você sabia que o seu filho está querendo largar a medicina?”. Meu pai reagiu de forma hábil e generosa. Propôs que eu concluísse o curso e, se então meu desejo persistisse, ele financiaria meus estudos de cinema onde eu escolhesse. Prosseguindo no curso, o desgosto foi amainando: fui seduzido pela elegância da clínica médica e me aproximei da psiquiatria e, mais tarde, finalmente, da psicanálise. Esses encontros não impediram que, em paralelo, eu continuasse intimamente interessado e ligado ao cinema. Tanto no intervalo das aulas como de noite e nos fins de semana, participava de cursos os mais diversos: história do cinema, elaboração de roteiro, montagem etc. No jornal do centro acadêmico escrevi meu primeiro texto. Era uma crítica do filme O grande momento (1958), precursor intimista do Cinema Novo dirigido por Roberto Santos, que mais tarde veio a fazer inúmeros outros filmes, o mais conhecido dos quais A hora e a vez de Augusto Matraga (1965). É impossível para o espectador de hoje, para quem a tecnologia propicia o acesso imediato a qualquer filme, imaginar a atmosfera de excitação que envolvia o pequeno grupo provinciano – todos se conheciam – que religiosamente cultuava o cinema reunindo-se na Cinemateca (que pegou fogo!), nos cineclubes, nos “cinemas de arte”, nos festivais de filmes estrangeiros e nas mostras paralelas que eram organizadas pelas Bienais de Arte: suecos, poloneses, franceses, italianos. Tanto os filmes clássicos como os contemporâneos, não comerciais, eram praticamente inacessíveis, o que nos obrigava a recorrer ao departamento cultural dos consulados para que organizassem mostras que divulgassem o cinema de seus países.
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Endereço desconhecido1,2
O presente trabalho conjuga e integra campos de interesse variados. Ele parte de um filme produzido na primeira metade do século XX, cuja trama será narrada logo a seguir, no qual as cartas3 desempenham um papel central. O aspecto ficcional da história, por sua vez, proporcionou-me um encontro com formas de pensar da psicanálise nele expressas. E fez também emergir uma experiência pessoal da análise, associada ao sentido do filme como o apreendi. Martin Schultz e Max Eisenstein, amigos e sócios de longa data, ambos alemães, originários de Berlim, haviam decidido, após a guerra de 1914, se estabelecer nos Estados Unidos, mais 1 Endereço desconhecido (Address unknown). Direção e produção: William Cameron Menzies. Roteiro: Herbert Dalmas. Fotografia: Rudolph Maté. Estados Unidos, Columbia Pictures, 1944 (72 min). Baseado no romance homônimo de Kressmann Taylor (1938). 2 Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente em: Ide: Psicanálise e Cultura, 33(50), 126-138, 2010. 3 “Cartas” era o tema da edição da revista Ide na qual o capítulo foi originalmente publicado.
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endereço desconhecido
particularmente em São Francisco, onde prosperaram como marchands de arte tradicional. Martin, casado com Elsa, tinha um filho mais velho, de 25 anos, Heinrich, e vários filhos menores; já Max era viúvo e tinha uma única filha, Griselle, estudante de teatro e que estava noiva de Heinrich. Martin morava em uma casa pequena, porém luminosa, situada em um ponto elevado da cidade, que se abria para a vista magnífica da baía. A relação entre as famílias era muito afetuosa. Aos domingos, por exemplo, se reuniam no jardim, que dava para a paisagem, em volta de um almoço preparado por Elsa, regado a bom vinho, a conversa correndo solta entre “tio” Max, “tio” Martin e os jovens. No início da década de 1930, os sócios decidiram que Martin e sua família regressariam à Alemanha. A viagem fazia parte de uma estratégia para ampliar os negócios. De Munique seria mais fácil para Martin acompanhar o mercado de arte europeu e escolher os quadros que deveriam ser comercializados na galeria em São Francisco. Esta ficaria sob os cuidados de Max e Heinrich. Martin lamenta deixar São Francisco e seu ambiente acolhedor, no qual o convívio com Max ocupa um lugar central. Além do mais, preocupa-se com o estranhamento que a viagem pode causar a seus filhos, já que os sente inteiramente americanizados. No almoço que precede a partida, Griselle e Heinrich informam, deixando todos pesarosos, que resolveram adiar o casamento por um ano, pois ela também seguirá para a Europa a fim de aprimorar sua formação de atriz em Viena. Chegando à Alemanha, Martin aluga uma mansão nos arredores de Munique e passa a decorá-la com móveis e objetos rebuscados, procurando dar à casa um aspecto senhorial. Em um dia em que a chuva está prestes a cair, enquanto a mudança se completa e os móveis vão ganhando seus lugares e ocupando os aposentos, olhando pela janela, ele percebe do outro lado da rua um homem, vestido com uma elegante capa preta e usando um chapéu da moda, que observa com curiosidade o movimento da casa e
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Melancolia1 e a psicopatologia contemporânea2
Melancolia é um filme composto de um prólogo e duas partes, intituladas Justine e Claire, nomes de duas irmãs de perfis psicológicos contrastantes. Na aparência é um disaster film, já que tem como pano de fundo um planeta desgarrado de sua órbita que poderá se chocar contra a Terra e destruí-la. Digo na aparência porque não há verdadeiramente suspense, já que o prólogo deixa claro qual será o final, seja antecipando o cenário de desequilíbrio astrofísico causado pela iminência do choque (aves que tombam, o chão que cede, a natureza alterada), seja aludindo à vivência interna dos personagens face à iminência da catástrofe (Justine caminhando com seu vestido de noiva presa a uma rede de novelos 1 Melancolia (Melancholia). Direção: Lars von Trier. Produção: Meta Louise Foldager e Louise Vesth. Escrito por: Lars von Trier. Dinamarca/Suécia/França/Alemanha/Itália, Zentropa Entertainments/Memfis Film (entre outros), 2011 (135 min). 2 Este trabalho foi apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo no final de 2012. Uma versão deste capítulo foi publicada anteriormente com o título “Melancolia de Lars Von Trier e a psicopatologia contemporânea” em: Jornal de Psicanálise, 46(84), 239-151, 2013.
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melancolia e a psicopatologia contemporânea
de lã), seja mostrando explicitamente o choque final e destrutivo entre os dois planetas. Na primeira parte assistimos à festa do casamento de Justine, realizada em uma suntuosa mansão, localizada em um campo de golfe à beira-mar. A festa é patrocinada por seu cunhado milionário e gerida por sua irmã. Justine lentamente vai se desgarrando da atmosfera festiva e convencional, se ensimesmando, até que a celebração e a relação com o noivo desemboquem em um fracasso patético. Na segunda parte Justine mergulha em um estado de confusão, perplexidade, abulia, desorientação e inapetência do qual se recupera paulatinamente. Em paralelo, vai ficando evidente a perspectiva da destruição da Terra por um choque planetário, o que deixa Claire intensamente perseguida e sujeita a seguidas crises de angústia. O caráter alegórico do enredo é evidente, e é este aspecto que ressaltamos na proposta que enviamos à direção científica do congresso para a realização deste painel. Escrevemos que a questão das assim chamadas “novas patologias” ganhou razoável importância no meio psicanalítico no último decênio, tendo sido tema de mesas e painéis em diversos congressos de nossa especialidade e de artigos e ensaios nas mais variadas revistas. O filme de Lars von Trier, embora ostente como título uma entidade nosográfica “clássica” (basta lembrar o trabalho de Freud “Luto e melancolia”), na verdade trata menos da questão da depressão e muito mais das do vazio psíquico e da vacuidade de projetos existenciais, inserindo-as num contexto social específico. Os vínculos com os objetos primários, a fratria, a dinâmica familiar, as relações amorosas, são abordados tanto a partir de uma perspectiva psicológica quanto de inclusão em uma classe social, de modo que o filme pode ser considerado uma reflexão psicopolítica sobre os impasses em que estão envolvidos os sujeitos ativos no mundo ocidental, englobados pelas formas contemporâneas do capitalismo e do cientificismo tecnológico. O painel propõe-se a discutir esses temas sob o
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Introdução
Eu sempre digo para mim mesmo: tive muita sorte no encaminhamento que seguiu a minha relação com a poesia. Tudo vinha a seu tempo, de fontes variadas, se encadeando de forma construtiva. Em casa, na cama, de noite, escondido, escutava no rádio boleros ressentidos: Pintor de santos de alcobas Si tienes alma en el cuerpo Por qué al pintar en tus cuadros Te olvidaste de los negros?1 Do Carnaval de rua vinha a descrição da vida sofrida:
1 Andres Eloy Blanco e Manuel Alvarez Maciste, “Angelitos negros”, 1946.
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introdução
Lata d’água na cabeça Lá vai Maria, lá vai Maria Sobe o morro não se cansa Pela mão leva criança Lá vai Maria2 Mas também a insinuação maliciosa: A história da maçã É pura fantasia Maçã igual àquela O Papai também comia3 Quando viajava a Recife, onde vivia a maior parte de minha família, encontrava a embolada: E cuma é o nome dele? é Mané Fuloriano E cuma é o nome dele? é Mané Fuloriano4 Pra onde vai, valente? Vou pra linha de frente5
2 3 4 5
Jota Jr. e Luís Antônio, “Lata d’água”, 1955. Haroldo Lobo, “História da maçã”, 1954. Manezinho Araújo (1956). Cuma é o nome dele. Manezinho Araújo (1934). Pra onde vai, valente?.
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Resistência: a propósito do conflito estético1
Em 2012, fui convidado pela revista Ide para participar de um número dedicado a “Poéticas”. Creio que a iniciativa da revista estava ligada ao fato de eu ter publicado em 2010 o livro Réu confesso: poemas reunidos (Ateliê Editorial), que reunia meus poemas de 1968 a 2010. Resolvi então abordar no artigo certos conflitos – ou entraves – pelos quais passei ao longo da redação e da criação de determinado poema. O trabalho se concentrou, pois, em descrever e problematizar o itinerário da escritura do poema. O termo escolhido para descrever esses embates e dar título ao artigo, retirado do vocabulário conceitual da psicanálise e usado com um evidente duplo sentido, foi “resistência”. Sabemos que a resistência em psicanálise alude à dificuldade, e mesmo à oposição, por parte do paciente em aceitar e integrar determinado conteúdo da personalidade que o diálogo analítico acabou evidenciando. Isso porque o aspecto flagrado colide com 1 Uma versão deste capítulo foi publicada em: Ide: Psicanálise e Cultura, 34(53), 141-153, 2011.
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resistência: a propósito do conflito estético
a sua autorrepresentação, a desequilibra, e o obriga a reconsiderar a percepção que tinha até então de seu funcionamento psíquico. No caso da criação literária, creio que essa resistência surge como uma recusa do diálogo com os objetos internos, como um atropelamento provocado pela vaidade ferida ao percebermos nossa dependência em relação a eles. O que vou expor procura dar conta dessa dinâmica. *** É no seu livro A apreensão do belo (Meltzer & Williams, 1988) que Donald Meltzer desenvolve a noção de conflito estético. De maneira muito simplificada, ele pode ser descrito como o impacto produzido em ambos – mãe e bebê – pela beleza externa que um percebe no outro. Donald Meltzer expõe inicialmente a reação do bebê, seu alumbramento diante da figura da mãe (rosto, olhos, seios). Entretanto, passado esse impacto inicial, no decurso do contato com a criança, a mãe vai se apresentar a ela de modo cambiante, incerto, inesperado e misterioso. Ao tornar-se enigmática ela gera dúvidas sobre sua confiabilidade, e essa desconfiança impulsiona no bebê a necessidade de conhecer e verificar a consistência de seu interior. A ambiguidade da mãe torna-se a ambiguidade da própria beleza. O conflito estético é, de certa maneira, a experiência de convivência com essa dúvida e a capacidade de tolerá-la. Essa procura de um significado oculto no/do objeto corresponde à criação de um espaço interno no sujeito, uma câmara protegida onde esse conflito encontra refúgio para ser experienciado de forma construtiva. O conflito estético tem mão dupla, na medida em que o bebê é para a mãe essencialmente um objeto indutor de evocações infinitas ligadas ao seu potencial enigmático. Para a mãe ele também é maravilha e mistério, expectativa e temor. Esse impulso – ambivalente, como dissemos – para conhecer o interior do objeto e de nós mesmos se dá por meio de conjecturas
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A fatal secreção: notas sobre o conto “Verba testamentária”
Oh! inveja, raiz de infinitos males e carcoma das virtudes! Todos os vícios, Sancho, trazem consigo um não sei quê de deleite, mas o da inveja não traz senão desgostos, rancores e raivas. Cervantes (2007) Nas narrativas machadianas, os gestos mínimos do cotidiano podem encarnar questões de longa abrangência, como o espelhamento dos lugares sociais ou as formas de reprodução de bem assentada ideologia. Nem por isso há prejuízo para o desvendamento dos indivíduos mesmos, dos traços singulares de sua ação e de seu temperamento, dos seus motivos ou ainda do modo como respondem às necessidades humanas de sempre... Villaça (2005)
“Verba testamentária” é um conto em que o sentimento de inveja e o comportamento que dele resulta são descritos com uma minúcia
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a fatal secreção
e uma profundidade que só a psicanálise recente conseguiu conceituar e detalhar. Mas não só isso. Seria ingênuo aceitar que Machado de Assis está nos oferecendo um relato meramente clínico, a biografia de um personagem cuja visão de mundo é pautada pela inveja. Daí meu interesse pelo conto, voltado para entender o propósito de Machado de Assis ao escrevê-lo e o uso da inveja para comunicá-lo. Nicolau é construído com uma maestria que surpreende o leitor contemporâneo, afeito ao entendimento psicanalítico. Estamos diante de uma criação literária incomum: o conto esmiúça um comportamento balizado por conceitos que à época sequer haviam sido enunciados. Devemos, pois, começar por conceituar essa inveja que move Nicolau e dá sustentação ao conto, que é um sentimento invasivo e dominador, com extensas consequências destrutivas. Vou descrevê-lo apoiado nos conceitos de Melanie Klein (1957/1975). A inveja tem como fantasia inconsciente estruturante o impulso de penetrar o bom objeto e estragá-lo, bem como seus conteúdos, e de impedir a sua alteridade e a sua autonomia. O pensamento kleiniano propõe que o sujeito cria, a partir do nascimento, um mundo cindido composto de bons e maus objetos (separação que, com o desenvolvimento, tenderá a ser substituída pela ambivalência e, finalmente, pela integração). Essa distinção lhe permite atacar o objeto mau, à guisa de defesa, e aliar-se ao objeto bom, provedor, que lhe oferece abrigo e suporte. A inveja provoca um embaralhamento dessa ordem. Ao atacar o bom objeto ela promove uma confusão entre bons e maus objetos, bons e maus impulsos, impedindo que se estabeleça a discriminação de valores. Notável é o fato de o bom objeto ser atacado exatamente por sua bondade. Uma vez destruído, sua ausência cria um sentimento de desamparo acompanhado de desespero que impede o sujeito de estabelecer um sentido apropriado de realidade. É preciso frisar que não se
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O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias1 Luiz Tenório Oliveira Lima2
A realidade da alma é fundada na matéria corporal, e não está na alma. De um modo mais geral, o mundo material é, no interior do mundo objetivo total a que chamamos Natureza, um mundo fechado em si e particular, que não necessita do apoio de nenhuma outra realidade. Pelo contrário, a existência de realidades espirituais, de um mundo do espírito real, está vinculada à existência de uma natureza no sentido primário, aquele da natureza material, e isso não por razões contingentes, e sim por razões de princípio. Enquanto a res extensa, quando lhe interrogamos a essência, não contém nada que dependa do espírito, nem nada que exija mediatamente (über sich hinaus) uma conexão com um espírito real, descobrimos 1 O presente trabalho resultou de uma entrevista gravada para a Revista Brasileira de Psicanálise com Elsa Vera Kunze Post Susemihl e Ana Rosenzweig. Agradeço a Maria Carolina Starzynski Bacchi pela dedicada digitação e pela revisão do texto. 2 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
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o corpo na psicanálise
ao contrário que um espírito real, por essência, está necessariamente vinculado à materialidade como espírito real de um corpo. E. Husserl (1913, Ideen III), citado por M. Merleau-Ponty (1960/1991, p. 181)
Introdução O interesse pela questão do corpo em psicanálise está vinculado à evolução do pensamento de Freud, de seu pensamento pré-psicanalítico – médico e clínico – ao, enfim, propriamente psicanalítico. A relação entre corpo e mente é sempre levada em consideração, bem como a diferença entre corpo e imagem corporal, ou seja, entre a questão biológica e o corpo de cada indivíduo. Na II Bienal de Psicanálise e Cultura, fiz uma exposição sobre esse tema, por ocasião de uma mesa redonda coordenada pelo já falecido colega Manoel Laureano.3 O título da exposição era “Do modelo psicofísico – tal como apresentado por Freud no ‘Projeto de uma psicologia científica’ (1895/1995) – a uma teoria encarnada da mente” – como exposta no Capítulo VII, “Sobre a psicologia dos processos oníricos”, de “A interpretação dos sonhos” (1900/2013). A apresentação foi gravada e não escrita e, portanto, não foi publicada. No início da década de 1970, sem que eu soubesse, Green publicara um artigo com o mesmo foco, mas com uma perspectiva ligeiramente diferente, intitulado “Do Projeto à Interpretação dos sonhos: ruptura e fechamento”.4 A proximidade de seu artigo com a 3 II Bienal de Psicanálise e Cultura, promovida pela Sociedade Brasileira de Psicanálise em 1994, no Centro de Convenções Rebouças. 4 André Green (1927-2012), médico franco-egípcio que especializou-se em psicanálise.
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Comentário sobre o trabalho “O corpo na psicanálise: sua especificidade do ponto de vista da história das ideias”, de Luiz Tenório Oliveira Lima1,2
Lembro-me de que quando fiz minha primeira comunhão, como deve ser o hábito, ajoelhei-me, com solenidade e contenção, bem embaixo da abside, à espera do padre que me daria a hóstia. Vestia uma camisa imaculadamente branca e um terno azul-marinho de calças curtas, o que era comum naquele tempo. No braço esquerdo, formando uma braçadeira, um laço ligeiramente rebuscado de fita branca evocava minha pureza e castidade (embora o significado desses termos ainda fosse confuso para mim, que havia pouco completara 7 anos). O conjunto – por que não dizê-lo – dava-me um ar de nobreza que me envaidecia e que se mantinha oculto pela 1 Artigo publicado originalmente em: Revista Brasileira de Psicanálise, 50(2), 15-29, 2016. 2 Tenho sido convidado com alguma frequência para participar de bancas de mestrado, de doutorado, de passagem para membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e também para comentar trabalhos que colegas apresentam em reuniões científicas na nossa Sociedade ou em congressos variados. Essas atividades me são muito prazerosas e me estimulam a escrever pequenos textos, centrados no trabalho do autor, focando um tema específico. Eles terminam por ganhar autonomia e um tom autoral.
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comentário sobre o trabalho “o corpo na psicanálise…
contrição posta no rosto que o momento exigia. Eu e meus amiguinhos fomos colocados em fileira, cabendo a mim ocupar o meio do grupo, quase de frente para o altar. Vi o padre se aproximando, e quando ele se achava à minha frente, fechei com alguma compunção os olhos e estendi a língua, onde, já consagrada, a hóstia foi colocada. Mas em vez da esperada lenta e suave dissolução do redondo e delgado pão ázimo no interior da minha boca, que eu aguardava sublimemente compenetrado, rendido ao seu mistério, ocorreu algo que, para mim, adquiriu contornos trágicos. Quando recolhi a língua, a hóstia, por algum movimento desastrado de minha parte, colou-se ao céu da boca, próxima aos dentes. Naquele instante, irromperam em minha mente, de modo intensamente invasivo, todas as lembranças das aulas de catecismo, deixando-me varado por um medo persecutório. A hóstia era a representação de Cristo, morto e ressuscitado, o cordeiro imolado, mortalmente agredido pela maldade humana. Na véspera de sua crucificação, durante a última e Santa Ceia, ele tomara do pão, partira-o e dissera a seus discípulos ali reunidos: “Tomai e comei, isto é meu corpo entregue a vós”. Depois tomou também o cálice e disse: “Bebei dele todos pois este é meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por muitos para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória a mim”. E tudo aquilo estava agora colado no céu da minha boca. Ali me encontrava para receber a eucaristia, para entrar em comunhão com o Cristo no sacrifício de seu corpo e de seu sangue, com o coração livre de pecados e, no entanto, estava prestes a mordê-lo. Surgiu diante de meus olhos a figura do padre Eulálio, nosso catequista, explicando a transubstanciação, quando o pão se transforma no corpo de Cristo e o vinho, no seu sangue. “É um símbolo!”, exclamei, procurando aliviar minha perplexidade,
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Breve nota sobre hipocrisia1
A hipocrisia é sempre consciente e intencional, e sua meta é enganar o objeto ao se apresentar a ele como confiável. Ela se reivindica continuadamente como virtuosa, necessitando, é claro, dissimular seus sentimentos profundos. O hipócrita vai procurar satisfazer seus interesses pessoais por meio de manobras enganosas. O que o diferencia do psicopata corrente é a apresentação desse seu interesse próprio como se fosse causa nobre, impregnada de superioridade moral. Ele quer parecer íntegro evitando os custos da integridade. Ele se apropria da lei em benefício próprio e, por ser ao mesmo tempo o mentor da lei, conta com a impunidade. Ele opera seguindo duas lógicas necessárias e complementares: a da figura pública, que aparenta seguir a lei, e a da figura privada, voltada para seus interesses particulares. As duas precisam se manter ativas; a renúncia a uma delas desequilibra o jogo e expõe
1 Do grego hypokrisía, “resposta de oráculo, ato de desempenhar um papel, de interpretar uma peça”; em latim, hippocrisis, “mímica, imitação da maneira de falar e dos gestos de alguém” (Machado, 1977).
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breve nota sobre hipocrisia
a dinâmica em curso. A cisão que descrevemos é a proteção que impede essa exposição. Mas cabe perguntar em paralelo: por que os hipócritas encontram crédulos? Por que um especulador transmutado em político não hesita em afirmar, contra todas as evidências, que sua intenção é tirar os pobres dos lugares insalubres em que vivem e levá-los a ter uma moradia confortável e bem situada? O hipócrita não hesita; ele promete a certeza desejada pelo crédulo, fazendo propostas aliciadoras que eludem a necessidade de fazer uma varredura da realidade. Obtém então a adesão do objeto em troca de uma (falsa) oferta de segurança. A eficiência da hipocrisia está alicerçada na idealização do hipócrita. Essa idealização e o engodo serão empregados sempre que forem necessários à obtenção de poder ou de uma sua parcela. Estabelece-se assim uma complementaridade entre as partes, o hipócrita e o crédulo, baseada na ilusão da oferta e na esperança de seu cumprimento. Não é à toa que os bastiões da hipocrisia são os governos e as religiões. O hipócrita precisa ter antenas afinadas para flagrar a carência do objeto e a incerteza que esta produz; oferece então seus préstimos sempre dissimulando suas verdadeiras intenções. A fragilidade do objeto é essencial para a ação hipócrita: políticos e religiosos se servem da transferência e da idealização para manter seu discurso enganoso, e o sucesso que alcançam nessa empreitada abre caminho para o sentimento de onipotência, para a arrogância e a impunidade e, ipso facto, para a corrupção. A hipocrisia é uma das faces da perversão política. Maquiavel já assinalava que o príncipe não deve ser honesto se isso for contra seus interesses. O objeto é abordado de modo a perceber apenas o valor de face, o leque de boas intenções da ação do hipócrita. Para o hipócrita o essencial é que o objeto permaneça dependente de seu poder, e as renovadas
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Navegação inquieta foi o título encontrado para dar conta do que salta à vista neste livro: a diversidade de interesses do autor – reflexo de sua biografia, tal como aparece na cativante entrevista que faz as vezes de Prefácio.
luiz meyer Penso que o sonho é o modo expressivo por meio do qual o aparelho psíquico delineia, constrói e comunica uma questão com a qual se confronta. Para ilustrar meu ponto de vista, optei por apresentar a autoanálise de um sonho – prática frequente, herdada de minha pós-análise com Meltzer. O contexto é o tratamento de um problema cardíaco que eu vinha apresentando. Após relatar o sonho, trago minhas associações e duas abordagens interpretativas. Tomando como eixo condutor um interpretante que apareceu em vários contextos (sonho, associações e até numa atuação), confesso ao leitor que me surpreendi com minha própria interpretação.
Filho de imigrantes judeus agnósticos, Luiz nasceu no Brasil e frequentou uma escola brasileira. Crescendo no conforto de um lar burguês, cedo deu-se conta da injustiça de seus privilégios. Buscou conciliar uma profissão respeitável com sua paixão pela cultura. Eis a história de suas múltiplas almas, a cujas reivindicações passou a vida tentando atender. A conciliação – possível, ou impossível – tornou inquieta sua navegação. O leitor poderá desfrutar das ricas paragens em que aportou: diversidade da clínica e sonhos; análise didática; acontecimentos históricos
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É médico, tendo se especializado em psiquiatria em Paris e Genebra. Posteriormente, dedicou-se inteiramente à psicanálise, sendo um dos fundadores do grupo de Brasília. É membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, de cujo Instituto é professor. Publicou Família: dinâmica e terapia – uma abordagem psicanalítica (Brasiliense, 1983), Rumor na escuta: ensaios de psicanálise (Editora 34, 2008) e Réu confesso: poemas reunidos (Ateliê Editorial, 2010).
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luiz meyer
e políticos; cinema; poesia e literatura. Marion Minerbo
navegação inquieta ensaios de psicanálise
PSICANÁLISE