Psicanálise e Neurociências

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Psicanálise neurociênciaseAdrianoMessiasPSICANÁLISE Um diálogo possível?

PSICANÁLISE NEUROCIÊNCIASE Um diálogo possível? Adriano Messias

Psicanálise e neurociências: um diálogo possível? © 2022 Adriano Messias Editora Edgard Blucher Ltda. Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Ariana Corrêa Preparação de texto Ana Maria Fiorini Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Évia Yasumaru Capa Leandro Cunha Imagem da capa iStockphoto Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Messias,PsicanáliseAdriano.eneurociências : um diálogo possível? / Adriano Messias. – São Paulo : Blucher, 2022. 70 ISBNBibliografiap.978-65-5506-462-9 (impresso) ISBN 978-65-5506-458-2 (eletrônico) 1. Psicanalise. 2. Neurociências. I. Título. 22-3420 CDD 150.195 Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br Segundowww.blucher.com.broNovoAcordo Ortográfico, conforme 6. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, julho de 2021. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da Todoseditora.os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.

1.ConteúdoAmenteemFreud 9 1.1 O que quer a neuropsicanálise? 12 1.2 Freud e a biologia 19 1.3 Corpo e mente ocupam um mesmo lugar 24 2. Podem os robôs dar o que não têm a quem não quer? 29 2.1 Consciências e mentes em migração 32 2.2 Um ponto de virada 35 2.3 Eu é um outro 39 2.4 O doente imaginário 42 2.5 A civilização em colapso 45 3. A plasticidade cerebral 49 3.1 Qual inconsciente? 57 3.2 O inconsciente não está no cérebro 61 Referências 65 Obras de Freud que estudam e discutem perspectivas científicas 69

1.

A mente em Freud

Sigmund Freud propôs que, ao falarmos de nós mesmos a outras pessoas – a chamada atividade mental consciente –, raramente conseguíamos repassar alguma ideia condizente com o que pode ríamos de fato estar sentindo e pensando. Para ele, nossas racio nalizações seriam, quando muito, vagas representações enganosas do que acreditaríamos ser ou ter, e foi nesse mesmo viés que Jac ques Lacan realizou suas empreitadas nos vários Seminários que articulou.Umdos

pontos da guinada da carreira de Freud em busca de perscrutar a “mente” humana foi com o famoso caso de Anna O., nome verdadeiro de Bertha Pappenheim, paciente histérica de Josef Breuer. O processo se baseava em ajudá-la a trazer à tona memórias traumáticas de eventos vividos. Das discussões com Breuer, Freud escreveu um texto seminal, Estudos sobre a histe ria (1893-1895), no qual propunha que determinados sintomas físicos poderiam ter sua origem em conflitos reprimidos. Mais tarde, ele ainda indagaria se todos os sintomas de um quadro de histeria eram advindos de traumas a partir de eventos reais bem

delimitados,10

Foi assim que Freud virou de vez a página da cativante teoria da sedução – que até então estabelecia que experiências sexuais reais é que desencadeavam a histeria –, para atingir um novo patamar investigatório, o que não significou, entretanto, que ele desconsi deraria os relatos de seus analisandos ou que os traumas poderiam deixar de ser produtores de patogêneses. Assim, a partir das novas formulações freudianas sobre a his teria, pode-se inferir um ponto decisivo na estruturação do pen samento psicanalítico dali em diante. Em suas ideias originais, Freud considerava a existência de pelo menos três níveis para o que a medicina chamava de “mente” naquela época, de onde ad veio o famoso modelo topográfico por meio do qual ele descreveu a estrutura e a função mentais, empregando, por analogia, a figura de um iceberg: a pequena parte emersa conteria o que ele chama va de mente consciente, enquanto tudo o mais seria o reino do in consciente, do qual ainda faria parte o pré-consciente, no limiar entre as águas e a superfície. A parte visível abrangeria os pensa mentos nos quais nossa atenção estaria focada no momento pre sente, enquanto no pré-consciente residiria o que mais facilmente viria a emergir da memória. A terceira parte, a mente inconsciente propriamente dita, regeria um grande número de nossos compor tamentos. Usando aquela metáfora do bloco de gelo, ele pôde afir mar que a maior parte do que pertenceria à mente humana não conseguiria ser “visto” com clareza: na região imersa habitariam

a mente em freud ou se vários deles poderiam ser produzidos pelo pró prio sujeito, este, por sua vez, cindido, de onde a famosa carta 69, de 21 de setembro de 1897, endereçada ao amigo médico Wilhelm Fliess (cf. Freud, 1986). Nela, o pai da psicanálise escreveu que já não acreditava mais nos relatos das histéricas que atendia (a rigor, “Não acredito mais na minha neurótica”, ou seja, em minha teoria das neuroses), quase sempre narrativas repletas de idios sincrasias que iam e vinham no decorrer do atendimento clínico.

Benasayag argumenta: Então, os corpos pensam segundo processos pré sim bólicos e participam em sua totalidade na combina tória simbólica do pensamento articulado. As idas e vindas são permanentes, mas cada nível funciona de acordo com suas próprias condições [...]. Os cére bros não pensam sozinhos; o pensamento é sempre um conjunto de múltiplos processos: corpo, língua,

2.

Fica evidente que a chamada neuropsicanálise – embalada por sua junção prefixal, que aponta à neurologia, mas também às neurociências – se aproxima não apenas das questões do huma no, mas é igualmente provocada a pensar sobre os desafios da tecnologia que flerta com a criação dos mais diversos aparatos inteligentes e “pensantes”. Ora, são os corpos que pensam, con forme propõe o psicanalista Miguel Benasayag ao olhar para os artefatos, contrariando o pensamento de Descartes de que o “bem pensar”, associado ao racional, exigiria desvencilhar-se do corpo.

Podem os robôs dar o que não têm a quem não quer?

podem os robôs dar o que não têm a quem não quer?30 época, paisagens, história...1 (Benasayag, 2010, p. 142, tradução minha) Nesse contexto, um robô funciona como um mot d’esprit, um termo genérico que inspira reflexões. Evoco não apenas a ideia clássica que nos vem à cabeça quando pensamos nessa máquina tão adorada pelo cinema, mas também sugiro uma concepção mais ampla, imantada de graça, de puro estranhamento. Uma das referências aqui pode ser o incômodo robô de rosto galáctico e confuso da série Perdidos no espaço (Lost in space, Matt Sazama, Burk Sharpless, 2018, 2019), cujas intenções nem sempre são cla ras – mais uma das metáforas sobre a humanização da IA: o garoto Will se refere a ele como “him”, jamais “it”. Para a mãe do menino, ele é só uma ferramenta; para o pai, uma ameaça; para a perversa Dra. Smith, uma arma a seu favor.

Sigo em minhas provocações a respeito do desejo de captura da mente humana. O quarto episódio da terceira temporada do se riado Black mirror, intitulado “San Junipero” (Owen Harris, 2016), apresenta uma tecnologia de upload da consciência de pessoas longevas, a qual passa a ficar acoplada a um pequeno dispositi vo. Em um comprido corredor de um centro de pesquisas, altas paredes compõem uma espécie de tabuleiro em que cada pino plugado condensa uma consciência “sugada” de um corpo poste riormente eutanasiado. Um eficiente robô parece ser o funcionário único, suficiente para se ocupar do gerenciamento dos portais co nectores “do lado de cá”, permitindo que cada consciência migre 1 No original em francês: “Les corps pensent donc selon des processus présym boliques et participent dans leur globalité à la combinatoire symbolique de la pensée articulée. L’aller-retour est permanent, mais chaque niveau fonctionne en accord avec ses contraintes propres [...]. Les cerveaux ne pensent pas seuls, la pensée est toujours un ensemble de processus multiples articulés: corps, langue, époque, paysages, histoire...”.

Comecei este livro em referência às ideias de Freud e Lacan passan do pelos trabalhos fundantes de Mark e Karen Solms e pontuan do, daqui e dali, aportes de Miquel Bassols. A neuropsicanálise é um campo delicado, novíssimo, espécie de digressão em relação à rama principal das neurociências. Estabeleci neste terceiro capítu lo um espaço para comentar o trabalho de outras figuras contem porâneas que acredito serem capazes de aguçar e clarear a cena em questão. Um dos nomes importantes é o da filósofa francesa Catherine Malabou, capaz de enlaçar com maestria a filosofia, a psicanálise e a neurologia em suas reflexões. Ela trabalha muito bem com o conceito de plasticidade cerebral, ainda que outros, como François Ansermet e Pierre Magistretti, também venham oferecendo contribuições importantes.

Conceito oriundo de Hegel, mas migrado e readaptado na biologia celular e também nas neurociências, a plasticidade ser ve como um ponto de inflexão significativo. Ela indica que uma experiência é capaz de deixar seu traço nas redes neuronais do indivíduo e, concomitantemente, modificar as conexões entre os

3. A plasticidade cerebral

O neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis relata o caso de dois pesquisadores americanos, Jon Kaas e Michael Merzenich, que, em 1983, apresentaram estudos a partir de macacos, os quais foram bem-sucedidos em evidenciar a plasticidade que parecia inerente ao cérebro dos mamíferos mediante a constatação da reorganização funcional do mapa somatópico do córtex primário: apresentando dedos médios amputados, em pouco tempo os pri matas começavam a receber estímulos táteis nos dedos indicador e anular provenientes de neurônios que estariam inicialmente envol vidos com a área física dos dedos perdidos (Nicolelis, 2011, p. 113).

Outra experiência de relevo foi a constatação de uma relação entre a quantidade de reorganização cortical e a intensidade da dor em membros fantasmas em pacientes humanos (a chamada síndrome do membro fantasma) (Nicolelis, 2011, p. 117). Tem-se aí mais uma atuação do princípio de plasticidade, dessa vez em auxílio na parceria humano-máquina, conforme Nicolelis defende, com am pla perspectiva para casos de pessoas que perderam a motilidade de alguma parte do corpo: A representação do mundo criada por populações de neurônios corticais não é fixa, mas permanece em flu xo, ao longo de toda a vida, continuamente adaptan do se em função de novas experiências e aprendizado, novos modelos de eu, novas estimulações vindas do mundo exterior e novas incorporações de ferramentas artificiais. (Nicolelis, 2011, p. 353)

a plasticidade cerebralneurônios,50 aproximando-se de uma certa ideia de singularidade.

Ou seja, no caso da espécie humana, cada sujeito se tornaria único também pelas especificidades das marcas de cada experiência so bre seu mapeamento cerebral, à semelhança de uma escrita que a vida fosse registrando no soma.

Um dos primeiros desafios reside na chamada incompatibilidade de paradigmas: é sempre mais difícil realizar trocas de conheci mentos quando os interlocutores acreditam estar falando a partir de uma mesma base conceitual, mas, na verdade, não estão.

Este livro se volta aos interessados em diálogos transdisciplinares, sobretudo estudantes de psicanálise, psicologia, comunicação, neurociências e áreas correlatas. O objetivo do autor foi discutir em que medida dois campos opostos podem ou não coincidir em suas abordagens para tentar se auxiliar mutuamente.

Ainda que pensar as neurociências – tão importantes em nossos dias por sua especial contribuição aos estudos cognitivos – em parceria com Freud e Lacan seja sedutor, um pesquisador não pode incorrer na ingenuidade de lançar a instrumentação, tanto de um lado quanto do outro, em um mesmo escopo sem saber de fato como se localizar nesses dois universos epistemológicos.

PSICANÁLISE

E aqui também se insere, como um estudo de caso, a própria “neuropsicanálise”, proposta híbrida surgida há algumas décadas.

Este é um ensaio provocador, que ressalta a necessidade de se percorrer os labirintos dos significantes quando se pretende fazer qualquer investida que pede uma pluralidade de olhares.

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