Walter Trinca

Ser ou não ser
Do niilismo ao amor à vida: ser ou não ser
© 2022 Walter Trinca Editora Edgard Blücher Ltda.
Publisher Edgard Blücher
Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Catarina Tolentino
Preparação de texto Danilo Villa Diagramação Guilherme Henrique Revisão de texto Marco Antonio Cruz Capa Leandro Cunha Imagem da capa Alexandre Trinca
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Trinca, Walter
Do niilismo ao amor à vida : ser ou não ser / Walter Trinca. – São Paulo : Blucher, 2022. 248 p.
Bibliografia
ISBN 978-65-5506-369-1
1. Psicanálise 2. Niilismo (Filosofia) I. Título 22-5908
CDD 150.195
Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
Introdução 9
Primeira parte – Niilismo, pessimismo e tragédia 17
1. O pessimismo na antiguidade greco-romana 19
2. Irrupções de desalentos sistemáticos 35
3. Culminâncias do pessimismo: Schopenhauer 51 4. Contornando os abismos 55
Segunda parte – Uma proposta psicanalítica 71
5. Um modelo da mente 73
6. A interação dos fatores 83
7. A expansão de consciência 93
Terceira parte – O pensamento trágico e a psicanálise 101
8. Pontuando a visão catastrófica 103
9. Catastrofismo e modernidade 113
10. Pessimismo e psicanálise 125
Quarta parte – O horizonte da superação 139
11. Vida e morte: princípios irreconciliáveis? 141
12. A paixão de vida 153 13. A assombrosa sinfonia universal 161
Quinta parte – A base de sustentação 169
14. Ao encontro de si mesmo 171
15. Raízes & significados 179
Sexta parte – Um passo além 189
16. Imaterialidade: os sentidos mais profundos I 191
16.1 A realidade como sonho 194
16.2 O mundo como imagem artística 196
16.3 A vida como expressão de alegria 198
16.4 A mente como alargamento 201
17. Imaterialidade: os sentidos mais profundos II 205
17.1 O Universo como perplexidade 206 17.2 A imaterialidade como estética 211
18. O que é, enfim, o amor à vida? 219
Epílogo 227
Reflexões e conclusões 229
Referências 239
Sobre o autor 247
Desde remota antiguidade, tem sido propagada uma antiquíssima lenda, que fazia parte da sabedoria popular dos gregos e exprimia o seu pessimismo. Essa lenda foi mencionada por Teognis na segunda metade do século VI a.C., tendo sido referida por Aristóteles e muitos outros, inclusive mais recentemente por Nietzsche. A lenda diz que o rei Midas perseguiu na floresta o velho Sileno, capturando-o. Considerado sábio, Sileno foi interrogado por Midas, que lhe indagou sobre o que deveria preferir na vida, ou seja, a coisa inigualável e superior a tudo, que ele, Midas, deveria buscar e encontrar. Coagido pela insistência do rei, Sileno saiu de seu mutismo e desatou a rir, dizendo que melhor teria sido não nascer, não ter visto os raios do Sol, mas como isso era impossível, melhor seria morrer e, coberto de terra, atravessar os portais do Hades o mais rapidamente possível. Essa era uma admoestação dirigida à humanidade inteira. Os filósofos, escritores e artistas saídos da modernidade não inventaram o pessimismo, ele foi gestado na aurora dos tempos humanos e costuma aparecer em contramarcha quando a mente humana dispõe de poder construtivo e criativo.
A recusa à vida e ao viver parece contrariar, em princípio, o difundido ideal clássico de serenidade e de harmonia que, com justa razão, é atribuído à filosofia, à literatura e, principalmente, à arte da Grécia antiga. A sophrosyne, que significa procura de sabedoria, equilíbrio e moderação, coexistia na civilização homérico-olímpica com todo o pensamento de desgraça, tragédia e pessimismo. Ao sorriso ingênuo desse grego, que buscava a eudaimonia,1 contrapunham-se, desde séculos anteriores à antiguidade clássica, a incerteza, a insegurança e o mal-estar pela fugacidade e impermanência da vida, quando não pelo sofrimento, injustiça e morte que ela acarreta. De tal modo que, na balança entre o luminoso e o sombrio, o peso parecia pender para o sentimento de inutilidade e vacuidade da existência, diante dos males que ela ocasiona. O contraste tornava-se flagrante se os males eram atribuídos à hybris, a desmesura e o orgulho triunfantes por ofensa aos deuses. Toda essa temática passava pelo universo dos poetas, pensadores e místicos helenos.
As contradições vivenciadas pelo espírito grego tradicional não se resumem à atitude perante a vida, mas à formulação de uma teodiceia e, mais ainda, de uma imagem do mundo baseada na teogonia. Por toda parte, as representações da dor, do conflito, da violência, da desgraça e da tragédia passam pelas relações entre o mundo humano e o mundo divino. As melhores formas dessas representações encontram-se nos mitos, para os quais, desde o passado longínquo até os primeiros filósofos pré-socráticos, converge a organização do pensamento e das emoções, em que estão contidos os ideais e os temores, as indagações e as respostas, as esperanças e as desesperanças, as forças de vida e as de morte. Os mitos têm por finalidade a elaboração das contradições e, ao mesmo tempo, dar notícias do mundo interno dos indivíduos sob a ótica do sofrimento, da perversidade, da desventura, do desencanto e do pessimismo. O
1 Termo moderno para nomear a ideia de felicidade como fundamento de toda moral.
A partir da modernidade, que começou com Montaigne e Descartes, o niilismo, o pessimismo e a visão trágica mantêm-se decididamente na história do pensamento. Poderíamos enumerar uma infinidade de pensadores do negativismo, mas, como nosso objetivo é apenas dar algumas ilustrações de certo modo de pensar, escolhemos Montaigne, Pascal, Schopenhauer, Freud, Sartre e Camus como expoentes históricos de primeira grandeza. Perpassa por todos um panorama sombrio, uma tendência ao vazio e ao nada. Nessa situação errática, predomina o nada do ser, seja por seu caráter ilusório, seja por sua perda e ausência definitiva. Por vezes, o ser dissolve-se em um nada constitutivo ou emerge de um vácuo de desamparo original, de desordem e de caos. Tudo pode acontecer sob o nada, seja ele o ponto de partida ou de chegada.
O escritor Michel de Montaigne (1533-1592) foi um humanista francês versado em estudos clássicos, especialmente nas filosofias céticas, estoicas e epicuristas, tendo realizado em sua época uma abordagem sincrética do pensamento humano por meio da auto-observação constante dos processos psíquicos. Embora fosse um
espírito tendente à melancolia, seus escritos revelam vigor e beleza incomuns, como é mostrado em seus Ensaios, um gênero literário que ele criou. É característico de Montaigne seu apelo à ligação com a vida hic et nunc, aqui e agora, situando-a neste mundo mesmo, para o usufruto das possibilidades existentes, em vez da busca de felicidade em outro mundo. Isso o fez se distanciar de todo dogmatismo teológico e, antes mesmo de Descartes, inaugurar o pensamento moderno. Neste, o que conta sobretudo é a visão relativista da verdade, que Scalfari (2012, p. 64) apontou em Montaigne: “Não há um absoluto, porque cada um dá sua própria visão da verdade e, mesmo, da divindade... Tudo muda, e o presente é um instante fugidio”. Esse é, portanto, o começo da modernidade, em que cada um concebe a realidade a seu modo.
Em sua auto-observação, o que Montaigne encontra a respeito do self? Para ele, o self é variável e impermanente, nada ali é sólido, tudo é mistura e confusão. Sendo o domínio das paixões, tudo flutua ao sabor das circunstâncias. Volubilidade e discordância jogam continuamente suas partidas, dando ao espírito uma face diferente de acordo com o lado que predominar em dado momento. Montaigne (1979a, II, p. 10) disse que “somos todos pedaços e de contextura tão informe e diversa que cada peça a cada instante faz seu jogo, e encontra-se tanta diferença entre nós e nós próprios quanto entre nós e os outros”. De tal modo que não se pode confiar nem em nós mesmos: “eu encontro dificuldades de ligar não só as nossas ações umas com as outras, como cada uma delas em particular a alguma qualidade principal, de tanto que elas são dúbias e disparatadas em diferentes manifestações” (MONTAIGNE, 1979b, III, p. 287). Em outras palavras, o self está em estado de transformação incessante, diluindo-se em lopins, infinitos pedaços, que são particulares a cada momento de sua apresentação. Daqui não se pode tirar nenhuma noção válida da natureza da realidade. Se, como afirmou Montaigne (1979b, III, p. 300), “nossa vida é composta de coisas tão contrárias
Arthur Schopenhauer (1788-1860), figura emblemática do pessimismo filosófico, foi quem levou ao extremo a visão do mundo e da vida sob o ponto de vista da tragicidade, da falta de sentido, do absurdo e do nada. Confessou ter recebido influências de Platão, de Kant e da filosofia oriental, representada pelo budismo e pelo hinduísmo, mas constituiu por conta própria um corpo filosófico original. Sua obra-prima, O mundo como Vontade e como Representação, foi originalmente publicada em 1818 quando ele tinha 30 anos de idade, podendo ser considerada uma obra de cunho metafísico, embora afirme que a existência do mundo pertence ao próprio mundo, sobre o qual Schopenhauer se debruça. Contrariamente às filosofias ditas otimistas, sua filosofia parte da visão do mal, da dor e da morte, que participam da natureza da realidade. Para ele (SCHOPENHAUER, 1941, p. 105), o mundo existe pela Vontade, “a essência íntima de todas as coisas e a substância única de todos os fenômenos”. Ela é, porém, uma força cega, irrefletida e indiferente aos seres humanos. Não sendo determinada por conhecimento ou razão, caracteriza-se pela somatória de todas as forças livres, absolutas e todo-poderosas que nela se unificam, agindo cegamente no mundo com aspirações infinitas. Ela é indestrutível, ilimitada e
eterna, necessitando de vida para nutrir-se e representar-se no mundo fenomênico. Na interpretação de Rosset (1989b, p. 12), “ela constitui o real em si: o substratum de toda realidade física, orgânica e humana. Melhor que substratum: a Vontade é o próprio mundo, despido de sua aparência fenomênica”.1 Isso significa que a Vontade, ao se objetivar no mundo, se apresenta inteiramente em cada ser individual como imagem de si mesma. São infinitas as representações, conservando em cada uma a essência da Vontade. Partindo desse princípio, não é sem motivo que Schopenhauer descreve um Universo maléfico e desprovido de sentido, em que cada ser da natureza, incluindo o ser humano, não é mais do que títere da Vontade.
Para além das aparências fenomênicas, está a suprema realidade, o em si das Ideias, que Schopenhauer, revisitando Platão, rebatizou como Vontade. Daqui surgem a diversidade e a repetição infinita das criaturas condicionadas ao tempo e ao espaço, manifestando-se pelo princípio de individuação. A aspiração da Vontade torna-se o motor da vida, que diferencia os seres entre si e cria as espécies. Mas, como cada qual é a expressão inteira da essência original, o mundo fenomênico está repleto de contradições, conflitos e guerras, que fazem dele um espetáculo de horror. O espetáculo é dirigido pelo querer-viver negativo, que se estende por toda a natureza. Schopenhauer (1941, p. 171) disse que “a natureza toda não é mais que o fenômeno e a realização da vontade de viver”. Tudo depende dessa atividade una, que se manifesta no todo e em cada uma das partes. A criação infinita dos seres por conta do querer-viver responde pelo princípio de individuação, mas, sendo um impulso cego e indiferente às criaturas, torna-as meras sombras, relegadas ao mecanismo cruel que as submete à vida, apesar delas mesmas. Ao estabelecer em cada uma a expressão do querer-viver insensato (e com isso dar prosseguimento à repetição insana), entrega-as ao sofrimento
1 Os grifos constam do original consultado.
Tendências niilistas, pessimistas e sombrias invadiram a modernidade e a pós-modernidade, tanto que até filósofos antimodernos como Heidegger preceituaram a tragicidade. Um clima de desencanto com o mundo permeia a moderna sociedade industrial e atinge a população em geral. Se a vida intelectual se alimenta de tragicidade, o mesmismo, o automatismo, a indiferença e a destrutividade, sendo aliados da concepção trágica do mundo, recobrem grande parte da dimensão fundamental da existência humana. Dissemina-se a convicção de um mundo morto na natureza, que o ser humano deve recriar como substância por intermédio dos próprios esforços. Em vez de servir ao entusiasmo construtivo, isso geralmente resulta num vácuo existencial, tendo por background a condição humana lançada num Universo desprovido de sentido. Se o pensamento trágico, na definição de Rosset (1989a, p. 106), consiste no “caráter não natural, mas de acaso de tudo o que existe”, o próprio ser da pessoa carece de referências básicas e pode ser criado ad hoc, em conformidade com as circunstâncias. Quando os valores inalienáveis de validade universal se dissolvem, aqueles que contam podem ser quaisquer
uns. O vácuo pode ser preenchido por todo e qualquer tipo de condicionamento, manipulação, apropriação e entretenimento. O background não deixa de ser, contudo, o niilismo, o pessimismo, o catastrofismo, a tragicidade e o cinismo, tomando-se ontologicamente o mundo como um lugar absurdo.
Para o psicanalista, esse é um domínio exercido pela pulsão de morte. As filosofias do absurdo insistem nas razões pelas quais se deva ou se queira eximir-se do contato com a vida. Nelas, é colocada em questão a vida mesma, como expressão requintada da existência. Se Lucrécio logrou desconstruir a natureza, Schopenhauer desconstruiu o próprio impulso original de vida, o querer-viver universal; mas isso se estende amplamente a todo pessimismo, a todo catastrofismo e a toda tragicidade. Não difere essencialmente daquilo que um psicanalista encontra em seu trabalho, quando nos pacientes a angústia se agudiza, o esvaziamento se impõe e a ação do negativo alcança índices críticos. Uma vez desconstruída no sujeito a noção de si mesmo, tudo pode ser e acontecer. Afastado o sujeito do centro de si mesmo, tudo para ele passa a ser um arranjo de objetos, se não for um vazio existencial insuportável. Mais ainda, ao retirá-lo de comunhão com a vida, sendo esta a realidade, retira-se a própria realidade. A perda de referências (na qual qualquer referência é posta no lugar) implica a bagunça da identidade.
No arranjo de objetos ao acaso pode-se fabricar a realidade? As correntes filosóficas que perpetuam a linhagem sofística perenizam a ideia disruptiva de que a realidade por si mesma não tem substrato, nem referência autônoma. Como vimos, insistem em que tudo o que a ela se refere pode ser pensado de diferentes maneiras e, assim, ela pode ser um produto fabricado pela mente. Ou seja, não haveria realidade propriamente dita, mas somente subjetividades, a partir de que os fatos são criados. Essa ideia é defendida sem restrições por Baudelaire (apud Eco, 2004, p. 355): “Todo o universo visível nada mais é do que um viveiro de imagens e símbolos aos quais a
Não há razão para se considerar desprovidas de fundamentos as críticas de Epicuro, Lucrécio, Montaigne, Pascal, Schopenhauer e muitos outros. O que se deve perguntar é se há saída para a “lógica do pior”, tomada na acepção de Rosset (1989a). O que a psicanálise teria a oferecer? Se ela se erige numa disciplina destinada à abordagem dos problemas que implicam o sofrimento e suas consequências, não basta denunciar a lógica do infortúnio, mas encontrar meios de minorá-lo, lidando-se com ele. Para tanto, o psicanalista encontra-se numa posição privilegiada, em função de seu campo de observação e dos modelos que pode criar. Isso passa primeiramente pela compreensão do que ocorre na mente: sua estrutura, seu funcionamento, seus principais fatores e elementos. Lidar com a mente torna-se uma tarefa imprescindível. Para o psicanalista, nada de evasão, de submetimento ou de impotência, e sim o enfrentamento dos conflitos, dos obstáculos e das vicissitudes. Para isso, é necessária a construção de modelos da mente, com os quais o psicanalista se sinta confortável, combinando-os seguidamente com os achados clínicos. Ao construir modelos, ele põe em evidência princípios, fatores e elementos que
auxiliam o ser humano a livrar-se de sofrimentos inúteis, numa tentativa de contribuir para a superação da infelicidade.
O modelo aqui apresentado tem por suporte a premissa de que o self é uma instância psíquica diferente do ser interior, sendo estreitas as relações entre ambos. Para a análise da mente, desempenham funções importantes os fatores denominados contato e distanciamento de contato com o ser interior, que repercutem sobre o self, assim como a constelação do inimigo interno, que é um subproduto da pulsão de morte, além da fragilidade do self e sua implicação direta, a angústia de dissipação do self. Ainda, como fatores relevantes do modelo, temos a sensorialidade, a estruturação inconsciente e a expansão de consciência, que veremos em detalhes. As principais vantagens desse modelo estão na colocação em evidência dos aspectos em que a mente se enreda, se embaraça e se confunde, de modo a criar obstáculos, impedimentos e obstruções ao contato com a realidade, ao fluir criativo e à alegria de viver. Grande parte do niilismo e do pessimismo tem origem na insuficiência de conhecimentos sobre o que se passa na mente, em especial sobre as dificuldades de análise dos processos da evolução psíquica. O modelo constitui uma tentativa de criar referências à compreensão psíquica, que não fica à deriva, e sim orientada por certas constantes relativamente bem determinadas. Elas são essenciais para a abordagem tanto das perturbações psíquicas quanto das experiências expansivas. Nosso propósito será atingido caso seja possível demonstrar que a mente não é somente um depósito de elementos desordenados, casuais e imprevisíveis, tendo sabor de absurdo, mas um campo dinâmico com leis e princípios próprios, mesmo que esteja em processo de organização e busca da boa forma.
Na descrição do modelo da mente, qual seria o lugar do self? Se se considera o que comumente se pensa a respeito, ele é um campo controvertido, que comporta múltiplas faces, sendo permeável à inconstância, à variabilidade, à impermanência e à polivalência, em
Para a compreensão da dinâmica do modelo, é necessário conhecer como se manifestam e interagem seus diferentes fatores e elementos. Sabemos que desempenham funções fundamentais, além da constelação do inimigo interno, os fatores já referidos como distanciamento de contato com o ser interior, fragilidade do self, angústia de dissipação do self, sensorialidade, estruturação inconsciente e expansão de consciência. Veremos que pela ação desses fatores o self tanto pode estar a serviço da pulsão de vida quanto da pulsão de morte, com reflexos decisivos sobre as relações da pessoa consigo própria e com o mundo externo. Se o niilismo e o pessimismo se constituem sob os efeitos do self enviesado por impregnações e saturações de componentes antivida, torna-se essencial o conhecimento dos processos envolvidos, a fim de que, na medida do possível, sejam evitadas as armadilhas instaladas no próprio self. Não se trata, no momento, de oferecer comprovações clínicas para as práticas psicanalíticas, que foram dadas em trabalhos anteriores, e sim determinar o modus operandi dos fatores em interação, a fim de compor uma visão geral dos processos mentais. Isso poderá servir à clarificação, quando tudo pende para o pior, mas também para melhor.
No modelo, como foi visto, partimos do princípio de que o contato em graus crescentes com o ser interior conduz à harmonização crescente da vida psíquica, enquanto o distanciamento de contato, que se dá também em graus, conduz à desarmonização. O distanciamento de contato pode se traduzir como fragilidade do self, de que decorre a angústia de dissipação do self ou, então, como instalação e manutenção da sensorialidade no self. Toda a dinâmica da fragilidade e da sensorialidade representa o distanciamento de contato, dando-lhe expressão no self. Esses fatores, comprovados pela experiência clínica, vêm oferecer uma dinâmica relativamente simplificada e norteadora das atividades do self e auxiliam a compreender suas macroformações, suas múltiplas tendências, seus desenvolvimentos e expansões, seus processos normais e patológicos, entre outros aspectos.
Ao se perguntar, porém, o que ocasiona o distanciamento de contato, a resposta mais imediata sublinha a constelação do inimigo interno que, como dissemos, é um subproduto da pulsão de morte. Cada vez melhor se reconhece a função central desse fator para determinar atividades destrutivas. A constelação visa atacar e eliminar a harmonia interior, pela supressão de toda forma de vinculação. Por meio de ataques, desarticulações e rupturas, ela consegue atingir tudo o que é vivo e criativo na mente, em especial pelo fomento de uma imagem interna negativa, que pode chegar aos extremos. Os relacionamentos com a natureza, a vida e o Universo são colocados em questão, por insuflamento de convicções de que tudo é obra do erro, do acaso e do absurdo, sendo inúteis quaisquer esforços pelo desenvolvimento e pela manutenção da existência. Quanto ao contato com o ser interior, por ser este o centro vital da individualidade, os ataques, quanto bem sucedidos, conseguem afastar, em graus, a influência, a presença e a ação desse ser no self. Eles ocasionam destruições variadas, que vão desde dúvidas quanto à própria identidade, autodepreciações e autoinvalidações,
Até o momento, temos nos concentrado nas particularidades do distanciamento de contato, em que prepondera a desarmonização. No entanto, além do distanciamento está o contato que verdadeiramente se realiza com o ser interior. Ao ser realizado, prevalecem as condições da harmonização, porque é no contato que se centralizam as bases da integração psíquica, decorrentes de aproximações entre o ser interior e o self. Há um estado de equilíbrio psíquico, alcançado no relacionamento “natural” da pessoa consigo própria e, quando isso acontece, tudo tende a estar no devido lugar, predominando a saúde mental. A porta de entrada da harmonização é a conscientização da noção de si mesmo, quando esta atinge o limiar da consciência de si e se torna experiência de inteireza. Deste ponto em diante, em vez de déficits de contato com o ser interior, têm-se acréscimos ao contato, que fazem ampliar a visão interior e exterior, tornando-se expansão de consciência. A influência, a presença e a ação do ser interior sobre o self podem alcançar graus elevados, sendo que quanto mais elevados forem, maiores serão, correlativamente, os graus de expansão de consciência. Assim, em um contínuo, passa-se do
modelo particular de compreensão das perturbações psíquicas para um modelo geral dos processos mentais, conforme a figura abaixo:
Experiência de inteireza
Perturbações psíquicas Contato restringido (em graus)
Expansão de consciência Contato ampliado (em graus) Ponto zero
– ∞ + ∞
Figura 7.1 Em um eixo contínuo, o contato com o ser interior aumenta ou diminui a partir da experiência de inteireza.
No modelo geral, tanto a desorganização (que conduz às perturbações psíquicas e às vivências de desajustamento), quanto a organização (que leva à expansão de consciência) são compreendidas como componentes de um todo, diferenciando-se segundo o grau do contato (TRINCA, 2007). Essa distinção se torna fundamental caso se queira estudar a mente que se volta ao pessimismo ou à superação deste por maior conscientização e abertura do espaço mental. São as emoções presentes e atuantes no self que, em última análise, vão determinar a qualidade dos relacionamentos e a atitude perante os fatos da realidade interna e externa. A distinção entre emoções sensoriais e não-sensoriais é um divisor de águas de importância crucial. Enquanto a escravidão pelas emoções sensoriais pode chegar ao máximo da crueldade, do horror e da indiferença à vida, as emoções não-sensoriais podem conduzir aos extremos da solicitude, da humanização e do amor à vida. A pessoa torna-se autoconsciente do que se passa em sua mente a partir de uma referência interna em que ela se sente, justamente, um ser. A partir daqui, consegue com propriedade ter noções de si e do que lhe diz respeito, assim como de suas relações amplificadas, inserindo-se no mundo. Se não
Visão catastrófica é aquela que se detém no pessimismo e na infelicidade, em vez de usar as dificuldades da vida como incentivos à superação. A indisposição e o ódio contra a vida estão na base da situação psíquica que sustenta o ódio ancestral da pessoa contra si mesma. Cada ser humano carrega seu núcleo mórbido de destrutividade, que se insinua em suas relações com a vida, tornando-a amarga, pesada e infeliz. Não significa que não haja dificuldades reais, mas a visão catastrófica contém o abandono da atitude de enfrentamento. Lembremo-nos de que o ódio voltado contra o ser interior cria o distanciamento de contato que, por sua vez, implica o vazio. Um vazio que pode ser traduzido como neutro, mas também como falta essencial e cataclisma do ser, no qual o contato sucumbe aos diferentes aspectos da experiência de não ser. Ao se pensar nas patologias do vazio, podemos considerá-las como consequências do distanciamento de contato, que resulta em fragilidade e, desta, em angústia de dissipação do self. É o vazio, na acepção de ausência de vinculação, que provoca a falta de sentido da vida e, em encadeamento, o absurdo, o nada e o terror que se lhe associam. Como sabemos, pode suceder que, em vez do vazio, o self venha a se saturar
de sensorialidade e, em decorrência, predomine a indiferença, o desencanto, o tédio, o automatismo, o fechamento na estreiteza e, mesmo, a excitação feérica, sob um viver desprovido de horizontes. Não deixa de engendrar uma visão de mundo em estado de desventura e de calamidade. O catastrofismo depende do estado de espírito, da forma de encarar os fatos e da maneira como se experiencia a realidade interna e externa. Ou seja, depende da natureza e da qualidade daquilo que se aloja no self. Importa sublinhar que, no alto grau do distanciamento de contato, havendo ou não a experiência de vazio, prepondera a interioridade afastada dos sentidos vivos, alijada da vida do próprio ser e banida, portanto, das relações com um Universo pululante de vitalidade e doador de vida.
As conexões entre o catastrofismo e o distanciamento de contato tornam-se evidentes quando este é ocasionado por rejeições, desqualificações e invalidações do ser interior, que deixam o self desprovido de parâmetros em que se fundamentar. Se é neutralizado ou retirado de cena o centro norteador, tudo se torna igualmente possível, a lógica insana parece ser tão verdadeira quanto a legítima e o mundo anárquico não se distingue do mundo harmonioso. A indistinção e a confusão fazem misturar as emoções e os pensamentos num cadinho em que tudo pode ser tanto válido quanto descartável. Quando não há referências alicerçadas na experiência de ser, o catastrofismo nasce da visão de mundo estabelecida pelo acaso.
Considerando-se o pensamento trágico, é necessário examinar a natureza do self a que ele se refere, assim como a dinâmica dos déficits de contato com o ser interior. Se a visão catastrófica se correlaciona com alto grau de distanciamento de contato, de que se origina o grande pessimismo, a realidade de si mesmo como ser e a realidade do próprio mundo ficam entregues ao viés de um self agrilhoado, interferido e comprometido. Se tudo parece girar ao sabor do acaso, a focalização e a análise da angústia de passagem à inexistência tornam-se uma tarefa indispensável, dado que,
Não é difícil encontrar pensadores trágicos na modernidade. Se esta é construída, basicamente, pela colocação em questão das noções previamente instituídas, pela recusa dos critérios dados de antemão para a abordagem da realidade e pelo cancelamento da ordem estabelecida na natureza, os trágicos modernos constituem legião. Se com Michel de Montaigne se iniciou a tragicidade na modernidade, ele teve o mérito de questionar a validade do self para dar sustentação ao conhecimento e para fundamentar com firmeza e constância a vida humana em geral. Já vimos quanto, para ele, o self é variável e impermanente, disparatado e feito aos pedaços. É famosa a sua afirmação de que “nós flutuamos entre diferentes opiniões, não querendo nada livremente, nem absolutamente, nem constantemente” (MONTAIGNE, II, 1979a, p. 7), que pode ser vista como um exemplo do quanto necessitamos de pontos de referências para validar nossa percepção e nossa compreensão. Sucumbidos aos domínios de um self instável, inconsistente e movediço, não vamos muito longe. Contudo, Montaigne não faz distinção entre o self e o ser interior, que determinaria diferentes funções para cada um
e a natureza das relações entre ambos. Essa indistinção parece ser a questão principal, que leva à exclusão de um ponto de referência (ou alavanca de Arquimedes), por meio do qual se possa, na interioridade, mover tudo o mais. Por essa falta, tudo gira ao sabor da ocasião, da situação e da emoção. Mas, por outro lado, Montaigne recomenda ir além das aparências, sondar a interioridade e buscar a compreensão. Para isso, cada indivíduo terá que se apoiar no centro de sustentação interna ou o ser de cada um. Ele diz textualmente: “o mais selvagem de nossos males é desprezar o nosso ser” (MONTAIGNE, III, 1979b, p. 322). Ele parece oscilar entre a convicção de haver um ser e a insegurança de não existir internamente nada em que se possa confiar. Na verdade, procede por tentativas e erros, caminhando por afirmações e refutações, até que uma síntese seja possível. Alguns críticos modernos de Montaigne viram nele apenas o lado desconstrutivista, desconsiderando sua ligação com a vida, ancorada na base de um ser. Para ele, há diferença essencial entre ser e saber. Enquanto o saber for fruto das circunstâncias, da opinião e do entendimento, não representará o ser, que constitui a identidade alicerçada numa verdade mais profunda, em permanente busca de autorreconhecimento. Nesse ponto, especialmente, clarifica-se a distinção entre o self e o ser interior. Entretanto, apesar de sua intuição magistral a respeito das noções de si mesmo, ele permaneceu oscilante o tempo todo entre a segurança ancorada no ser e a insegurança da dominação pelo self. Quanto a esta, não há porque lhe tirar as razões, uma vez que, desprovido de iluminação pelo ser interior, o self se torna regente da vida psíquica em outras bases. A ênfase das preocupações de Montaigne sobre a ação do self em tais condições faz dele um pensador trágico da modernidade.
Na modernidade, destronada a influência, a presença e a ação do ser interior no self, a ordem do mundo desarranja-se e a noção de realidade parece se esvair. Para esses pensadores, se não há uma ordem interna, não há senão uma ordem imaginária para o
A psicanálise freudiana, centralizando-se nas pressões e nos efeitos das atividades das pulsões, oferece uma imagem do ser humano em estado de constante conflito, em busca de um prazer duvidoso e em luta contra os poderes avassaladores que o dominam. Ainda que psicanalistas posteriores a Freud tenham posto ênfase nos princípios organizadores da mente, como por exemplo Spitz (1973) relativamente ao ego, permanece na psicanálise freudiana a ideia de um ego coxeante e de uma natureza humana praticamente indomável. Em Freud, a instância harmonizadora é colocada em questão a todo instante, inundada por emoções sensoriais que, muitas vezes, a tornam um barquinho de papel. Daqui nasce uma concepção de ser humano essencialmente dividido e fracionado, sendo impossível haver acordo consigo próprio. Na base dessa concepção está a dificuldade fundamental do ego de fazer face ao impulso sexual e à destrutividade, por conta da precariedade dos mecanismos de regulação e comando. Como o inconsciente rouba a cena, ele representa o que quer, a não ser que haja, segundo Freud (1996a, p. 101), “a substituição do poder do indivíduo pelo poder da comunidade”.
Nessas condições, a interioridade aparece como dimensão de desarmonia e de sofrimento, estando regida mais pelo não ser do que pelo ser. Em nossos termos, corresponde à elevação ao poder supremo de um self em grande discrepância com a influência, a presença e a ação do ser interior. As forças indomáveis, a que Freud se refere, são aquelas que se estabelecem no self justamente pelo fato de haver distanciamento de contato com o ser interior e saturação daquele por conflitos e perturbações de toda ordem.
Na esteira da modernidade, Freud subestimou a eficácia da instância integradora e superdimensionou o móvel da vida psíquica colocado nas pulsões. Na clínica psicanalítica, é possível observar, porém, que o poder das pulsões pode ser mitigado, se o paciente faz uso da harmonização que resulta do contato consigo próprio. As forças pulsionais podem ser mais bem encaradas pelo fato de haver discriminações bem-sucedidas a respeito de quem ele se sente ser. Caso o contato não se realize de modo satisfatório, o poder pulsional tende a se acentuar em virtude de a convergência das atividades psíquicas deslocar-se para o self em desacordo com o ser interior. Nesse caso, o mecanismo de recalcamento tende, também, a se intensificar. Mas, se o paciente consegue ter uma visão integradora da situação, com a consciência de si ampliada, ele tende a se acalmar, sobrevindo uma visão mais realística dos fatos. As maiores dificuldades surgem quando os comandos do self não estão afeitos à condução pelo ser profundo, em que aspectos mais primitivos podem preponderar. Quanto menos sensível for o indivíduo a seu próprio ser, mais embrutecido e selvagem tende a se revelar. Freud constatou que, desse modo, a invasão das pulsões conta com insuficiências de recursos para conter a destrutividade e a sexualidade contrárias à civilização. Isso significa que, se o ser interior não assume seu lugar, outras forças passam a atuar no self, especialmente aquelas produzidas pelas atividades pulsionais. Sem dúvida, há impulsos cegos e inconscientes que não se podem
Efetivamente, o mundo traz em seu bojo a polarização entre as forças de vida e de morte, de tal modo que possibilita uma visão unilateral e horrível, segundo a qual a perspectiva destrutiva é a única a se considerar. Já assinalamos que a oposição e a luta dos contrários está presente na filosofia de Heráclito de Éfeso (1964, p. 77), que afirmou ser “a guerra o pai de todas as coisas”, mas também em Empédocles (1964, p. 123), para quem “em todas as coisas, a reunião engendra e mata; de outra perspectiva, a desunião cresce e se dissipa”. A tragédia da existência é colocada na presença dos princípios de construção e de destruição quando o segundo predomina, transformando o primeiro em ilusão, logro e mentira. São princípios primordiais ou forças elementares que atuam no Universo e respondem pelo fato de haver criação e decomposição, expansão e retração, organização e desorganização, amor e ódio, atração e repulsão, caos e ordem, vida e morte. No panteão hindu, a vida universal é representada por Shiva, um deus simultaneamente criador e destruidor, cuja dança cósmica movimenta o mundo. A força primordial que anima a vida é responsável pela criação e está presente em toda parte no Universo, mas há algo terrível no seio deste, que luta contra sua
construção e opera em favor de seu aniquilamento. A vida do ser concorre com o aniquilamento do ser, em alternâncias que não se esgotam. O germe obscuro da vida não é somente criação, é igualmente destruição e sofrimento nos atos de criar e de dissolver. Nessa separação fundamental, o mundo como lugar de vida sofre continuamente os efeitos contrários da decomposição, da dor e da morte. Nem sempre, porém, essa distinção é concebida como dualidade. Em Anaximandro (c. 610-c. 546 a.C.) encontramos um único princípio móvel, o infinito, que, ao formar o mundo, separa no movimento eterno as forças contrárias, de que se originam a criação e a destruição. A concepção judaico-cristã coloca Deus no centro da criação, sendo o diabo apenas uma contraforça antitética criada para dar sentido à imperfeição do mundo. Importa sobretudo considerar as condições existentes no mundo, em que os processos universais estão aí como dados primordiais, nos quais a realidade se revela em sua profundidade alternadamente terrorífica e tranquilizadora.
O embate primordial entre as forças de vida e de morte encontra correspondências e expressões na mente humana, refletindo-se sobre a organização e o funcionamento do self. Isso significa que o ser humano é constituído da mesma contradição que existe em geral no Universo. Em sua interioridade atuam forças poderosas que, por um lado, dão expressão à vida universal particularizada em cada ser e, por outro, forças que operam contra a vida e se voltam ao seu aniquilamento. O self é a instância psíquica onde se dão os embates, e aquilo que predominar como resultante responderá pela natureza e pela qualidade de seu continente e de seus contidos. O ser humano passa a ser um espelho no qual se refletem, mutatis mutandis, os processos naturais de âmbito universal. Na psicanálise, essa questão é estudada na categoria das significações dos relacionamentos do indivíduo consigo próprio e com o mundo sob o prisma das pulsões primordiais de vida e de morte, como propõem Freud e Melanie Klein. Aqui se abre um imenso leque de possibilidades de análise,
Há na psicanálise um destaque dado à polarização dos opostos, representados pelas forças de vida e pelas forças de morte. De modo geral, a evolução dos fenômenos mentais depende da posição das forças antagônicas, considerando-se que se aloja na interioridade humana o mesmo princípio básico que se apresenta na natureza, composto por forças primordiais de organização e desorganização, concórdia e discórdia, criação e decomposição, vida e morte. Os dois lados da mente correspondem aos dois aspectos fundamentais da natureza. Na própria constituição do mundo interagem a feiura, a ruína, a crueldade e o caos com a beleza, o florescimento, o amor e a harmonia. As forças antitéticas não são, porém, desprovidas de sentido nem de finalidade. Elas existem para dar nascimento, manter, movimentar e fazer evoluir os fenômenos. Em Heráclito de Éfeso (1964, p. 74), vimos que não se encontra somente a luta dos opostos, mas “a bela harmonia que nasce da luta”. Os niilistas e pessimistas parecem ignorar a necessidade da contradição e minimizam a função criadora, benéfica e propulsora. Como sabemos, eles dão ênfase à destruição e ao aniquilamento em todos os planos da natureza, da
vida e do Universo, sublinhando a injustiça, o mal, o sofrimento, o horror, a desesperança e a morte. Orquestram ódio contra a vida, ainda que este não seja claramente consciente e explícito.
A uma consciência imparcial, que não esteja afetada pelas contaminações do self saturado de sensorialidade ou impregnado de esvaziamento e angústia, a visão radical de um cosmo totalmente desfavorável, iníquo e danoso não passa de viés. Desse viés compartilham grandes filósofos, como Arthur Schopenhauer e Eduard von Hartmann (1842-1906).1 Eles conceberam o mundo construído praticamente sob a impossibilidade de superação dos conflitos, turbulências e sofrimentos, onde imperam as forças tenebrosas da iniquidade sem a justiça, do desamparo sem a proteção, do desamor sem a afeição e da maldade sem a bondade. É obvia a constatação de que a vida se consome e se acaba de modo por vezes cruel, a violência espalha-se por toda parte e a natureza se torna de quando em quando cega e indiferente. Isso faria legitimar todo ataque à bondade e toda convicção em que a natureza é completamente execrável? Se a ênfase é colocada naquilo que se dissolve e se acaba, e não naquilo que se cria e se desenvolve, todo o trabalho de construção fica minimizado ou posto em xeque. Já vimos que daqui se nutre o engendramento do negativismo, o ódio à realidade e o afastamento da relação com a vida. Furtar-se à vida é um dogma por excelência das concepções filosóficas que, levadas às últimas consequências, fariam extinguir toda forma de construtividade ancorada no ser humano. Como, apesar do sofrimento e da morte, ultrapassar a destrutividade e conceber que o mundo é, também, lugar de construtividade e amor? Embora o sofrimento e a maldade não possam ser totalmente erradicados da situação humana e do plano geral da natureza, é certo que absolutizá-los faria excluir todo ato de amor e suprimir toda a fé
1 Em seu livro Filosofia do inconsciente, Hartmann trouxe a ideia de um inconsciente impessoal que move o mundo, tendo por finalidade a catástrofe e o aniquilamento total.
Até aqui, temos insistido na necessidade de se considerar a natureza em seu processamento. Isso compreende um trabalho de construção que tem nos seres vivos um anelo à melhor performance possível. Neles, se encontra a aspiração à harmonia que, no ser humano, é ditada pela tendência geral à harmonização, sendo inerente às funções do próprio ser interior em suas relações com o self. As forças propulsoras de vida tendem à harmonização no interior do jogo dialético entre construtividade e destrutividade. Cada forma de vida busca sua harmonização na luta contra processos antagônicos de desorganização, degradação, paralisação e aniquilamento. Na invenção da vida, a natureza criou um sistema básico de organização, centralizado no ser de cada indivíduo e, a partir desse fator central, foi possível promover, coordenar e sintetizar a aspiração. Ela se tornou fundamental na seleção e na composição dos comportamentos adaptativos ou não.1 Partindo da presença de um organizador interno, do confronto com desequilíbrios nasce a necessidade de equilíbrios.
1 Para um aprofundamento do papel da aspiração no plano evolutivo, cf. Morin (2017).
Todo o processamento da natureza, que tem seu ápice na emergência do ser vivo, sustenta-se na força indomável do querer-viver, responsável pelo curso da individuação. Sendo o querer-viver a força que faz gerar, manter e expandir a vida, cada organismo se esforça, no plano individual e da espécie, para a autorrealização e para o alcance de suas aspirações.
Em sua tendência à autorrealização, a aspiração central dos organismos vivos é o alcance da melhor forma que lhes seja possível. A lei de tomada de forma conduz nos organismos à lei da boa forma. Esta se define pelo máximo alcance possível da cessação das desarmonias de um evento particular em determinado sentido evolutivo. Vencidos os obstáculos e as resistências, das contradições e dos conflitos nasce a boa forma, como realização da aspiração em busca da harmonia. A vida caminha a níveis cada vez mais elaborados em sua tendência à boa forma e, ao atingi-los, pode obter a harmonia. Em face de desarmonias, anomalias, disrupções e, até cataclismos, os organismos vivos tendem ao restabelecimento da boa forma, que expressa sua coesão interna e sua inteireza; ou seja, a manutenção de sua individualização, manifesta como ser unitário. Não significa, porém, que a dinâmica se detenha nesse ponto, porque os processos contraditórios continuam em vigor, fazendo transformar a vida. Importa sublinhar, contudo, as condições admiráveis em que esta se sustenta para o alcance da melhor forma possível, exprimindo na força do querer-viver um alto grau de construtividade, mesmo que nem sempre ele seja obtido, nem possa sê-lo. No nível humano, a realização da boa forma representa o domínio sobre a destrutividade, por alto grau de contato inteiriço do indivíduo consigo próprio, que afasta a fragmentação interna.
Seja na natureza em geral, seja no ser humano em particular, há forças que tendem à ultrapassagem das condições de instabilidade, desequilíbrio e desestruturação, possibilitando resultados eficazes dos processos criativos em vencer a destrutividade, ainda que eles
Se há um aspecto central nas questões que estamos considerando é a existência e a ação do ser interior. Nas atividades clínicas do psicanalista, é possível verificar que o ancoramento no ser constitui um antídoto ao niilismo e ao pessimismo, ao ódio à realidade, à perda de vínculos significativos e ao transbordamento da tragicidade na mente. Se a modernidade retirou as bases de sustentação no ser, todo o edifício da realidade sofreu abalos e desmoronamentos em seus alicerces, restando no lugar a angústia que solapa o enfrentamento do magno problema da vida e do viver. Sem a realização no indivíduo de contato suficiente com seu ser, dissemina-se toda espécie de sofrimento. Ao se retirar o ser do centro, retira-se em primeiro lugar a estabilidade, porque tudo passa a girar ao sabor das circunstâncias e do acaso. Sem a base de sustentação, imperam primeiramente o vazio e o nada, que são experienciados nas relações com o mundo interno e externo. Geralmente, as posições niilistas, pessimistas, trágicas e catastrofistas têm origem nas dificuldades do encontro de um mundo fiável, regulamentado por leis estáveis. Um alto grau de afastamento em relação ao centro nuclear da pessoa redunda em
consequências desastrosas para a construção da via do espírito. É preciso, pois, retomar as bases da existência, a começar pelo próprio ser. Ou seja, reconstituir as bases sobre as quais se pensa a realidade, restabelecendo-se as relações com o ser e o lugar da ontologia. Se ele for reconhecido, passa ao primeiro plano a instância definidora por excelência das relações internas e externas, propiciando o retorno aos sentidos de vida. Por isso, ocupamo-nos aqui das relações, transformações e implicações do contato com o ser interior como ponto de referência para as questões humanas.
Lembremo-nos de que o ser interior é uma instância complexa, que em seus fundamentos como realidade primária define a pessoa enquanto tal, respondendo por sua existência. Ele é um foco de vida instalado na interioridade, dando à pessoa a experiência de ser ela própria, uma experiência única. A vida faz sentido a partir desse foco íntimo, em que vida e ser são indissociáveis. A vida, essa coisa imensa, sendo ponto central na interioridade, recebe sua sustentação do ser, que nos põe e nos mantém vivos. Desse modo, pode-se dizer que o ser interior é uma matriz primordial de vida, a partir do que se desenvolvem em vários níveis os processos que respondem em primeira mão pela estruturação e pela dinâmica da vida psíquica. Tomar o ser interior como foco de vida corresponde a afirmar sua consonância com os processos criativos, pois vida e criação caminham juntas. Assim, as bases em que se sustenta o ser são fundamentalmente propulsoras de criação e desenvolvimento, não se dissociando do centro de forças que impele ao crescimento e à expansão. Por meio dessa referência, constitui-se um eixo de orientação, que dá coesão à personalidade e é ponto de convergência para a unidade, centralizada no fato elementar da necessidade de manutenção e de evolução da vida. A unidade, porém, só existe na pureza não-sensorial do ser, em que a pessoa é em princípio inteira e indivisa, tendo uma existência singular e específica. Dessa maneira, o foco da presença unitária que define a existência da pessoa é experienciado na consciência,
Se é impensável o ser humano desvinculado do mundo, a inserção e a realização no mundo dependem de encontros em dupla profundidade: a profundidade do contato com o ser interior e a profundidade da relação com o mundo. Estão certamente implicados os significados das relações, mas a experiência de existência própria introduz um elemento determinante para que os sentidos se deem de dentro para fora, e não inversamente. Desse modo, criam-se condições favoráveis a que as escolhas se façam com consciência de si como sujeito, em vez de a interioridade ser tomada pela primazia do objeto externo, que se impõe em detrimento daquele. Como sabemos, é a partir de um self relativamente límpido (por presença marcante do ser profundo) que são possibilitadas experiências igualmente límpidas com o mundo. Essa situação se torna emblemática, porque nela se percebe que a realidade externa se faz transparente e significativa a um sujeito livre das interferências dos objetos. A significação emerge do encontro do mundo, havendo antes um sujeito para si. Caso este não se faça presente, o self se torna um objeto entre os objetos, e as escolhas são desfocalizadas ou aleatórias, porque, desprovidas de sujeito, são saturadas de sensorialidade.
Não se poderia afirmar, como no existencialismo, que o ser se torna o que é pela materialidade dos objetos, os quais determinam as modalidades do ser pelas escolhas existenciais (STERN, 1951). Se o ser é feito, mesmo que simbolicamente, pela sensorialidade, formando-se, configurando-se e revelando-se pelo embate com as coisas, o sujeito não se distingue do objeto externo, porque ambos se misturam e se confundem nessa construção. Também, o contato com a não-sensorialidade do ser eclipsa-se em face da absorção pela concretude do mundo. O ser deixa de se revelar como um espaço livre e aberto, cuja existência não-sensorial aspira à realização, a fim de se confundir, se substituir ou se fundir na determinação e na impregnação do mundo dos objetos, desprovidos de sujeito.
De maneira semelhante, na psicanálise é crucial a distinção que se pode fazer entre o ser e os objetos que pululam no self. Essencialmente, como vimos, os objetos internos não são o ser interior, nem com este se confundem. Eles estão no self como componentes bons ou maus para estabelecer relações, sejam construtivas ou destrutivas. Se o sujeito se relaciona com o mundo dos objetos por meio dos sistemas de introjeção e de projeção, é porque há um núcleo central preexistente. Esse fato livra o sujeito de ser apenas uma internalização de objetos. A tônica das interações é dada pelo grau de presença e ação do ser interior no self. Mesmo nos estágios iniciais do desenvolvimento psíquico, já é imprescindível, pelo contato, o reconhecimento do ser da criança pelo ser da mãe (sendo esta capaz de autorreconhecimento), a fim de que a criança se reconheça como ser. Isso se distingue claramente dos processos identificatórios, que se dão precocemente.
Pensamos que não haveria fundamento para a afirmação, tão cara a algumas correntes modernas e pós-modernas, de que o ser é totalmente criado na dimensão do encontro com o outro. O ser interior seria uma construção emergente da realidade coletiva, forjando-se a sua natureza segundo as influências compartilhadas em
Anteriormente, neste livro, consideramos a experiência de imaterialidade como uma atitude mental em cujo cerne está o contato ampliado com o ser interior no nível da expansão de consciência.1 Agora, podemos nos referir a ela como uma expressão vivencial intimamente associada à alegria. Sabemos que nessa experiência ocorre um estado espontâneo, que se mostra por leveza, fluidez e mobilidade fina, permitindo acompanhar livremente os movimentos fugazes, esguios e flutuantes da realidade interna e externa, com vivências aprimoradas de novidade, frescor, alargamento e eteridade, entre outras. Trata-se, na verdade, de um espaço mental aberto ao acolhimento e pronto para receber a experiência nova, sendo relativamente isento de saturações pela sensorialidade e de impregnações pela fragilidade, assim como distante de interferências de toda ordem sobre a percepção e a compreensão dos fatos. O desbloqueio e o deslizamento flexível da mente pode alcançar estados de quietude, silêncio, harmonia e atemporalidade, em completa liberdade interior, isto é, de modo independente da procura e da intenção de
1 Para um exame mais detalhado, o leitor poderá consultar Trinca (1991, 2014, 2019).
obter resultados. Daqui, o relacionamento com o mundo sofre uma rotação de perspectiva, em que é possível intuir, perceber, conhecer e acompanhar as feições móveis, sutis, alargadas, transformantes, evanescentes, etéreas, primordiais, assombrosas e inefáveis do próprio mundo. Este tende a se revelar em suas significações mais profundas, proporcionando, na experiência, o encontro da alegria.
Para ir ao fundo das coisas, há uma lei universal que principia, na pessoa, pela entrega à sintonia com o próprio ser, de modo que do vazio de sensorialidade emerja o encontro da realidade imaterial. As emoções passam a estar em função do contato com os abismos profundos da existência, e o sentir a serviço da captação da imaterialidade perceptível no mundo. O ser interior não-sensorial tem capacidade de penetração profunda e, em seu espaço potencial, dirige-se ao encontro dos movimentos infinitesimais da natureza, da vida e do Universo. O que sobressai pode ser a fisionomia profunda, alentadora e inspiradora da realidade. O universo imaterial repercute diretamente em nossa interioridade como imanência ao nosso alcance, alimentando nossas mais profundas aspirações.
Nunca é demais insistir no fato de que estamos comumente presos a padrões, sistemas, prismas, teorias, conceitos e outros aspectos sensoriais da mente, assim como a aflições, angústias e turbulências, que determinam ofuscamentos, encobrimentos ou desaparecimentos de nossa consciência da realidade imaterial. O ponto de partida para o atingimento da realidade imaterial está na ultrapassagem das condições aprisionantes da mente, a fim de que esta possa se pôr em harmonia. Devemos, antes de tudo, reconhecer os elementos interferentes e obstrutivos, como a destrutividade, o ódio, a inveja, o medo, o desejo e inúmeros outros. Ao lidar com eles e atingir uma região de compreensão, a mente tende a serenar, colocando em primeiro plano a experiência de imaterialidade. Essa é uma das grandes maravilhas, porque o mundo passa a dizer por si mesmo o que tem a dizer, independentemente das injunções
O que temos chamado de experiência de imaterialidade expande-se para níveis aprofundados de relacionamentos que, numa abordagem inicial, como já assinalamos, incluem a harmonia, a visão de sonhos, a presença de vida, a primordialidade, a atemporalidade e o mistério, entre outros aspectos. As descrições, aqui, não esgotam as possibilidades que ela comporta. Quando a mente se expande, os fatos colocam-se em contextos de largos horizontes e a receptividade abre-se ao desconhecido. A quietude e o silêncio vêm se instalar para a penetração nos enigmas e o acolhimento das surpresas que o mundo nos reserva. Essencialmente, quietude e silêncio expressam estados de harmonização interior, que permitem sintonia com o exterior. A experiência tende a ocorrer na tranquilidade do contato com um mundo que existe por si mesmo, em pleno despertar para nós. Como sujeitos da experiência, nós nos afastamos da sensorialidade onipresente, deixando ao fim um estado experiencial livre e disponível para perceber, pensar, sentir e compreender o que se apresenta. Desfeitos os sistemas mentais rígidos, as coisas aparecem sob novas fisionomias. Por exemplo, as flores à nossa frente habitam um mundo silencioso de palavras e conceitos; assim, elas esplendem
no silêncio de suas existências. Têm cores, formas e brilhos que fulgem em uma atmosfera fora do tempo. Alheias ao mundo humano, servem antes para ser pintadas, pois a arte tem melhores condições de representar o êxtase que refulge das coisas.
Ainda que a oposição e a luta dos contrários sejam voz corrente entre os filósofos antigos e modernos, a natureza, por vezes, alcança culminâncias de paz e silêncio, mostrando-se em patamares harmoniosos. Nesses momentos, realiza-se a síntese de várias tendências. Em vez de as leis gerais da natureza se constituírem em “baixo grau de objetivação”, como queria Schopenhauer (1941, p. 108), elas participam da harmonia a que tende no geral o Universo. A harmonia sobressai do próprio fato de a natureza conter possibilidades de ultrapassagem da polarização dos opostos. Essa é uma ocorrência verdadeiramente jubilosa, de que todo ser vivo pode participar. Já vimos que, nos processos de obtenção dos estados de melhor realização possível, que correspondem ao atingimento de sua inteireza existencial, cada ser vivo pode encontrar níveis ótimos de autoaperfeiçoamento e de autorrealização, representados por pontos culminantes de seu desenvolvimento, nos quais se revela a harmonia. São pontos em que predomina a tendência à boa forma, por cessação de resistências das forças de destruição e de morte. Nesses patamares, em que os seres manifestam culminâncias do que verdadeiramente são como seres e em que são preenchidas condições favoráveis à obtenção da harmonia, verifica-se a superação das oscilações dos opostos. Deixam de predominar, ainda que provisoriamente, os antagonismos entre a construtividade e a destrutividade, a ordem e a desordem, a vida e a antivida, o amor e o ódio. Nem sempre é possível a superação, mas, se a natureza o consegue, ela revela estados sutis e rarefeitos, que vão além da conflagração e da turbulência, mesmo que, depois,
Pelo que foi dito, importa sobretudo a alegria de viver neste mundo que, por ser um viveiro de florescimento da vida, tem tudo a oferecer – caso estejamos em sintonia com a vida, dentro e fora de nós. Torna-se desnecessário buscar além do mundo o que necessitamos. Em contraste com o mal existente (uma realidade intrínseca), a resposta está na fruição possível da vida. Isso significa enfrentamento sem escapismos. Experiências ricas e significativas com o próprio mundo trazem oportunidades existenciais profundas. Nelas, a vida passa a ter sentido por si mesma. Em vez da prisão em objetos sensoriais, passa a haver liberdade na mobilidade, na penetração e na realização do ser-no-mundo. A relação imaterial com o mundo é fonte de alegria, porque nos liga a dimensões imensas, extraordinárias e indizíveis. Saímos da concretude, do estreitamento e da subjugação para encher os pulmões de vida – grandiosa, alargada e etérea – que nos faz sentir vivos, também. É o que experimentamos quando, de repente, vemos um céu azul-sonhador, com nuvens brancas no horizonte e, mais próximo, à altura do olhar, uma única nuvem
que é, enfim, o amor à vida?
deitada, como se fosse uma pintura de El Greco.1 Nuvem-mulher espiritual, celeste, branca e luminosa nesse céu barroco faz notar a pureza, a eteridade e a simples beleza imaterial espalhadas por tudo. Saímos totalmente do mundo prosaico e cruel, passamos a outro em sonho azul e branco, tendo por fundo o infinito. A alegria brota espontaneamente desse mergulho na experiência de ser, que colhe a tarde serena, plena de luminosidade e harmonia. Brota do simples fato de sermos um fluxo de vida que encontra a liberdade de fluir em uníssono com o mundo. O que surge à consciência é um estado de frescor, novidade e mobilidade, pleno de significação: na leveza do ser, o sentimento de alegria. Um sentido vivo estabelece-se entre o ser e o mundo, de que nasce a alegria.
Desse modo, torna-se possível o resgate da alegria, em vez da desesperança em um mundo opressor. Se a grande infelicidade é aliada da escravidão a um self cheio de infortúnios, grandes pensadores em todos os tempos apontaram quase unanimemente a necessidade de atenção à interioridade, de domínio sobre as paixões, de análise da mente, de identificação real dos fatos e de descoberta de si mesmo. Isso significa que a ataraxia depende de muito trabalho interior, que se distingue claramente de toda evasão, a fim de que possamos compreender os processos pelos quais a mente opera o seu funcionamento global e também as suas particularidades.
Relembrando o percurso desta exposição, vimos que a psicanálise oferece modelos gerais da mente, centralizados em fatores considerados prioritários. Nosso modelo propõe, de um lado, o distanciamento de contato com o ser interior, que pode estar ligado à constelação do inimigo interno, implicando a fragilidade, a sensorialidade e a angústia de dissipação do self; de outro lado, a expansão de consciência, em conexão com o contato efetivamente
1 Alcunha de Domenikos Theotokopolos (1541-1614), pintor e escultor espanhol, nascido na ilha de Creta.
Lidar com o pessimismo, com o niilismo e com a tragicidade tornou-se uma tarefa difícil, diante de inúmeras propostas filosóficas, psicológicas, sociológicas e outras, que se fundamentam no catastrofismo e na renúncia ao amor à vida. O que pensar a respeito de visões da realidade que se voltam contra a natureza, a vida e o Universo? Haveria uma saída possível para a condição humana miserável e so edora? O que a psicanálise tem a oferecer em face do desalento sistemático e do desencantamento do mundo? Este livro traz uma proposta de superação, considerando os fatores e elementos que determinam o afastamento de contato com a realidade interna e externa. É função da psicanálise colocar-se do lado da vida e lutar contra a destrutividade, o aniquilamento e o caos, de que resultam visões desfiguradas dos fatos. O amor à vida sustenta-se em elaborações psíquicas, cujas bases estão no contato da pessoa com seu próprio ser.