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A obra é uma importante referência intelectual e clínica e será leitura obrigatória para psicanalistas, psicoterapeutas, antropólogos e historiadores, bem como estudantes de todas essas disciplinas.
PSICANÁLISE
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Este livro examina a construção progressiva da noção de função paterna e sua relevância para a psicanálise. A distinção entre o pai assassinado (narcísico) e o pai morto é considerada um paradigma para a compreensão de diferentes psicopatologias, bem como de obras literárias, da antropologia e de acontecimentos históricos. São introduzidos novos conceitos, como “um pai é espancado”, e uma distinção entre o après-coup descritivo e o après-coup dinâmico, inaugurando uma compreensão psicanalítica da temporalidade. O livro inclui uma reflexão sobre como os conceitos de instinto de morte e de negativo podem auxiliar a compreensão de Auschwitz, um momento que a autora caracteriza como “o assassinato do pai morto”.
Pai assassinado, pai morto
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É analista didata, supervisora e presidente (2019-2022) da Sociedade Britânica de Psicanálise. É professora visitante da Unidade de Psicanálise da University College London e membro correspondente da Sociedade Psicanalítica de Paris. É Ph.D. em Antropologia Social pela London School of Economics, University of London. Em 2006, foi selecionada como uma das Dez Mulheres do Ano pelo Conselho Brasileiro de Mulheres. Possui uma clínica psicanalítica particular em Londres.
Perelberg
Rosine Jozef Perelberg
Rosine Jozef Perelberg
Pai assassinado, pai morto Revisitando o complexo de Édipo
PSICANÁLISE
Este é um livro magnífico e profundo. A compreensão magistral de Rosine Perelberg acerca dos mais importantes escritores psicanalíticos franceses e britânicos só é superada por sua delicada e aguçada sintonia com seus pacientes, que são descritos em uma linguagem ao mesmo tempo elegante, precisa e poética. O pensamento de Perelberg é audacioso, criativo e inovador. Seu livro fornece não apenas um poderoso insight sobre uma pensadora psicanalítica importante e original, mas também um enquadre para a prática clínica moderna.
Jean-Claude Rolland
PAI ASSASSINADO, PAI MORTO Revisitando o complexo de Édipo
Rosine Jozef Perelberg
Tradução
Claudia Starzynski Lima
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Pai assassinado, pai morto: revisitando o complexo de Édipo Título original: Murdered Father, Dead Father: Revisiting the Oedipus Complex © 2015 Rosine Jozef Perelberg © 2021 Editora Edgard Blücher Ltda. Imagem da capa: iStockphoto Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Jonatas Eliakim Produção editorial Bárbara Waida, Bonie Santos, Isabel Silva, Luana Negraes Preparação de texto Ana Maria Fiorini Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Cristine Akemi Capa Leandro Cunha
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
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Perelberg, Rosine Jozef Pai assassinado, pai morto : revisitando o complexo de Édipo / Rosine Jozef Perelberg; traduzido por Claudia Starzynski Lima. – 1. ed. – São Paulo : Blucher, 2021. 344 p. Bibliografia ISBN 978-65-5506-063-8 (impresso) ISBN 978-65-5506-315-8 (eletrônico) 1. Psicanálise. 2. Freud, Sigmund. I. Título. II. Lima, Claudia Starzynski. 20-0487
CDD 150.195
Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
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Conteúdo
Agradecimentos 9 Prefácio de Gregorio Kohon
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Introdução 21 PARTE I Função paterna: considerações teóricas e clínicas
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1. Pai assassinado, pai morto: revisitando o complexo de Édipo
33
2. Um pai é espancado
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PARTE II Terceiridade e temporalidade
99
3. Função paterna e terceiridade na psicanálise e no mito: o futuro terá sido previsto?
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4. O inquietante: terceiridade e temporalidade
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conteúdo
PARTE III O complexo de Édipo é universal?
141
5. O enigma do Édipo na psicanálise e na antropologia social 143 6. A função estruturante do complexo de Édipo
185
PARTE IV O assassinato do pai morto
231
7. O assassinato do pai morto como habitus 233 Pós-escrito 265 Glossário 267 Referências 279 Índice remissivo
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Introdução
O tema do assassinato do pai permeia a obra de Freud. Ele oscilava entre tipos diferentes de interpretações, considerando-o, por um lado, um fato real ocorrido num passado distante e depois reprimido e, por outro lado, considerando esse “acontecimento” um mito (Godelier, 1996). Apresenta-se, então, um paradoxo: matar o pai é, do ponto de vista de Freud, um requisito para a criação da ordem social que, a partir daí, proíbe todos os assassinatos. No entanto, o pai só precisa ser assassinado metaforicamente: a exclusão real do pai encontra-se na origem de muitas psicopatologias, desde a violência até as psicoses e perversões. O pai primordial, segundo Lacan, é o pai anterior ao tabu do incesto, anterior ao surgimento da lei, das estruturas sociais e da cultura (Lacan, 2005). Na literatura psicanalítica, encontram-se muitos conceitos para designar esse pai primordial. Rosolato (1969), por exemplo, sugere o termo pai narcísico ou idealizado para designar o pai mítico, pré-histórico, que é todo-poderoso, possui todas as mulheres e governa por intermédio da violência. É esse pai violento e incestuoso que é assassinado no mito fundante.
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introdução
Já em 1897, Freud escrevera a Fliess, numa carta, sobre sua surpresa ao verificar que, em todos os seus casos (incluindo o seu próprio), o pai fosse acusado de perversão (Freud, 1897b). Entretanto, por meio da análise de seus próprios sonhos, Freud identificou a natureza inconsciente dos desejos universais e proibidos presentes nos seus relatos e nos de seus pacientes. Posteriormente, sugeriu que no inconsciente a ontogênese repete a filogênese. A história do assassinato do pai seria transmitida na vida inconsciente de cada indivíduo. Encontra-se na base da situação edípica.
Pai assassinado, pai morto Totem e tabu (Freud, 1912-1913) nos conta a história de uma horda primeva de irmãos, governada pelo pai narcísico, tirânico, detentor de todas as mulheres. Um dia os irmãos se reúnem para assassinar esse pai a fim de ocupar seu lugar. Renunciam, porém, ao desejo de possuir todas as mulheres para si. Essa é a origem da sociedade e da cultura. Segundo Freud, o pai morto tornou-se mais poderoso do que jamais fora enquanto vivo. Assim, esse pai morto é visto como constituindo a ordem simbólica e deve ser distinguido da pessoa real do pai. O complexo de Édipo foi descoberto gradualmente durante a segunda fase da obra de Freud, estabelecendo as diferenças entre os sexos e as gerações. No entanto, é apenas em seu último livro, Moisés e o monoteísmo (1939), que Freud introduz o termo “paternidade” (Stoloff, 2007). Nesse livro, Freud reúne algumas de suas ideias, as quais vinha progressivamente desenvolvendo, partindo da realidade da sedução pelo pai na primeira fase, passando pela fantasia de sedução na segunda, até a elaboração do conceito de complexo de Édipo, em sua assimetria entre as funções paterna e materna, que inclui ainda a complexidade do processo
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1. Pai assassinado, pai morto: revisitando o complexo de Édipo1
Este livro recupera a ideia do sacrifício da sexualidade como o elemento central e trágico da estrutura edípica, uma noção que tem sido em grande medida abandonada pela literatura psicanalítica. Freud foi elaborando progressivamente o papel do pai em sua obra. Em Estudos sobre a histeria (Freud, 1893-1895), ele enfatizou a importância de uma sedução real por parte do pai nas pacientes do sexo feminino; em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900), fantasias inconscientes são descobertas; em Totem e tabu (Freud, 19121913), ele introduziu a noção da distinção entre o pai assassinado e o pai morto; e em Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939), lançou sua noção de uma função paterna mais abstrata. Este livro traça a 1 Este título foi inspirado no livro Meurtre du père, sacrifice de la sexualité (Pai morto: sacrifício da sexualidade), editado por Maurice Godelier e Jacques Hassoun (1996), embora meus pontos de vista divirjam dos deles, como será demonstrado neste capítulo. Este artigo foi apresentado pela primeira vez no simpósio sobre “O Pai Morto”, organizado pela Association of Psychoanalitic Medicine, em Nova York, em abril de 2006. Agradeço o convite a Lila Kalinich e Stuart Taylor (ver Kalinich e Taylor, 2009). Uma versão mais curta deste capítulo foi publicada em Perelberg, 2009b.
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pai assassinado, pai morto
linha de desenvolvimento dessas transformações teóricas e clínicas e sugere que elas nos permitem compreender de forma mais abrangente o complexo de Édipo proposto por Freud. Lacan foi o primeiro psicanalista a conferir status conceitual ao termo pai morto, utilizado por Freud em Totem e tabu, estabelecendo a equação entre o pai simbólico e o pai morto.2 Essa linha de pensamento foi posteriormente desenvolvida por Rosolato (1969) ao diferenciar o pai idealizado do pai morto. Stoloff (2007) traça o desenvolvimento progressivo na obra de Freud em direção a um delineamento da função paterna (ver também Green, 2009), mas foi Jacques Hassoun (1996) quem propôs a diferença conceitual entre o pai assassinado e o pai morto explorada neste capítulo. A passagem de um a outro inaugura a lei e a genealogia (Hassoun, 1996, p. 17). Se a história de Édipo representa o primeiro, a história do pai assassinado e do parricídio como uma fantasia infantil universal, o complexo de Édipo representa o segundo – a instituição do pai morto como o terceiro simbólico. A mudança do pai assassinado para o pai morto representa a tentativa de regulamentar o desejo e institui o sacrifício da sexualidade. Daí por diante, certos tipos de parentesco ficam excluídos do campo das trocas sexuais, fato que constitui um balizador crucial da origem da cultura.3 Dentro do grupo humano, a sexualidade é social e também psíquica e 2 Lacan afirma: “As reflexões de Freud levaram-no a estabelecer uma ligação entre o surgimento do significante do Pai, como o autor da Lei, e a morte – na verdade, o assassínio do Pai – demonstrando, assim, que se esse assassinato constitui o momento fértil pelo qual o sujeito vincula-se eternamente à Lei; o Pai simbólico, na medida em que significa essa Lei, é verdadeiramente o Pai morto” (2006, p. 557). 3 Godelier (2004) desafiou as afirmações de Freud e Lévi-Strauss que vinculam incesto e exogamia. Jack Goody (2005) assinalou, no entanto, que o livro de Godelier não nega a afirmação de que o tabu do incesto é universal no aspecto de que em cada sociedade há uma categoria de pessoas excluídas do campo das trocas sexuais.
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2. Um pai é espancado1
No Capítulo 1, discuti a distinção entre o pai assassinado e o pai morto. A passagem do pai assassinado para o pai morto representa a tentativa de regulamentar o desejo e institui o tabu do incesto. Todo indivíduo do sexo masculino tem de se confrontar com o desejo de matar seu pai. Neste capítulo, sugiro que a fantasia “um pai é espancado” vem a ser uma importante aquisição na análise de alguns homens, como expressão da construção de sua escolha sexual e identificação masculina. É por intermédio da construção dessa fantasia nas vicissitudes da transferência que esses pacientes se tornam capazes de elaborar simbolicamente a agressão dirigida a seus pais e encontram seu próprio sentido de tempo na cadeia das gerações. A fantasia “um pai é espancado” pode, com frequência, aparecer na análise de alguns pacientes homens no momento da transição entre estas duas configurações – isto é, do pai assassinado para 1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada no Karl Abraham Memorial Lecture, em Berlim, em 10 de maio de 2009. Ele foi originalmente publicado no International Journal of Psychoanalysis (Perelberg, 2011a).
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um pai é espancado
o pai morto. A primeira – o pai assassinado – está presente dentro de uma estrutura anal-sádica, perversa, como descrito por Abraham (1924) e Chasseguet-Smirgel (1985), na qual o pai não tem um lugar simbólico; a segunda – o pai morto – indica a constituição do pai simbólico. Nas configurações “pai assassinado”, os pacientes acham difícil, se não impossível, conferir um sentido ao papel do pai na cena primária. Exemplos dessa configuração são pacientes que cometem atos de violência contra homens numa tentativa real de eliminá-los (ver Perelberg, 1995a). Entretanto, existem pacientes que não são ativamente violentos, mas estão encerrados em devaneios com fantasias de espancamento. Essas fantasias tendem a ter uma forma masoquista fixa e expressam a posição de desamparo desses pacientes frente aos pais, incapazes de mobilizar sua própria agressão. Neste capítulo são descritas algumas configurações perversas que expressam uma forclusão na relação com o pai e tendem a expressar uma negação das diferenças entre os sexos. Nesses pacientes, é muito pequena, se é que há alguma, a capacidade de mobilizar agressão e internalizar a função paterna. Este é um desafio para suas análises. Sugiro que, em contraste, alguns pacientes são capazes de alcançar a fantasia “um pai é espancado” ao longo de suas análises, e isso se torna uma apropriação simbólica de seu pai e da função parental (Perelberg, 2007). Buscando na literatura clássica alguma referência a essa fantasia, encontrei um exemplo, descrito por Karl Abraham (1924), no qual um sonho repetitivo na infância lembrado no transcorrer da análise pode ser interpretado como contendo tal fantasia. Enquanto em meu principal exemplo neste capítulo – o da análise de Mauro – há uma passagem em direção a uma elaboração simbólica do papel do pai, o paciente de Abraham parece apresentar uma configuração anal-sádica perversa, bem como outros pacientes que discuto brevemente neste capítulo. Nesses exemplos o pai é excluído das fantasias do paciente sobre a cena primária.
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3. Função paterna e terceiridade na psicanálise e no mito: o futuro terá sido previsto?1
O que chamamos de nosso futuro é a sombra que nosso passado projeta na nossa frente. Proust, 1918
Neste capítulo examino o Akkedah, a narrativa bíblica do Sacrifício de Isaac, e sugiro que essa história pode ser interpretada como tendo inaugurado a função paterna e a terceiridade. Se os conceitos psicanalíticos me ajudaram a examinar esse episódio bíblico de um novo ângulo, a narrativa, por sua vez, lança nova luz sobre nossos conceitos de função paterna e terceiridade. Essa história marca a passagem do pai narcísico para a lei do pai morto, simbólico, inaugurando um elo geracional que envolve ao menos três gerações: Deus, Abraão e Isaac. Possibilita que Isaac tenha seus próprios filhos e é a origem da Shlosha Avot: Abraão, Isaac e Jacó, os três
1 Uma versão anterior deste capítulo foi originalmente apresentada como Professorial Fellowship Lecture no Birkbeck College em janeiro de 2012 e publicada no Psychoanalytic Quarterly (Perelberg, 2013b).
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função paterna e terceiridade na psicanálise e no mito
pais/patriarcas presentes em tantas orações e bênçãos do judaísmo. Como assinalo, o número três acompanha Abraão em sua jornada. É essa temporalidade aberta, intergeracional, que inaugura a terceiridade, na medida em que estabelece um vínculo com outro tempo e outro espaço que não os do aqui e agora. A função paterna tem sido amplamente ignorada na teoria britânica contemporânea das relações de objeto, que tende a colocar o foco na relação mãe-bebê. Contrasta com isso a multiplicidade de artigos sobre a função paterna na tradição francesa.2 Meu próprio pensamento alterna, por um lado, entre o pré-edípico e o maternal, enfatizando a noção de uma temporalidade primitiva, arcaica, baseada em experiências corporais rítmicas e perceptivas ligadas às fantasias sobre o corpo da mãe e, por outro, a apreensão do paterno, derivada de tentativas de compreensão de aspectos da sexualidade masculina, bem como do paciente borderline e violento. O movimento entre esses paradigmas é pendular – “como um coração batendo, sacudindo e balançando”3 [para citar o filósofo Epstein no filme From Language to Language, de Nurith Aviv (2004), ao se referir à maneira como ele se move entre o francês e o hebraico]. Neste capítulo, utilizo múltiplas narrativas (o relato mítico da fundação da cultura de Freud, uma história bíblica e um relato 2 O Congrès des Psychanalystes de Langue Française (CPLF) foi dedicado à função paterna, com as memoirs de Delourmel (2013) e Villa (2013) e artigos de Beetschen (2013), Roussillon (2013), Diatkine (2013), Richard (2013), Hirsch (2013), Stoloff (2013), Khan (2013), Chervet (2013), Baldacci (2013), Canestri (2013), Kristeva (2013) e de minha autoria (Perelberg, 2013a), entre outros. Ver também Aisenstein, 2009, 2012. Dentre os psicanalistas de língua inglesa que escreveram sobre a função paterna, ver Burgner (1985), Campbell (1995), Fonagy e Target (1995), Glasser (1979, 1985) e Limentani (1989), bem como meu próprio trabalho (Perelberg, 1995a, 1999a, 1999b, 1999c, 2007, 2009b, 2011a, 2013b). 3 No original, “like a beating heart, bobbing and tossing” [N.T.].
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4. O inquietante: terceiridade e temporalidade1
O vínculo intrínseco entre a noção de terceiridade e as diferentes dimensões do tempo – um vínculo que encontra sua expressão na noção do inquietante – pode ser visto em uma sequência clínica apresentada por Christian Delourmel no Congrès de Langue Française em Paris em 2012. Além do mais, essa sequência clínica permite-me sugerir que um novo paradigma está sendo construído na teoria psicanalítica na França. O exemplo clínico apresentado por Delourmel foi o da análise de uma mulher. Farei um relato resumido desse material clínico complexo, uma vez que quero me concentrar um apenas um aspecto dele. É importante ressaltar que essa análise se deu em francês. No começo da análise, foi difícil para o analista obter um relato claro da história e da infância da paciente. O quadro que surgia era o de uma mãe que rejeitava a filha e de um pai alcoólatra, 1 Este capítulo foi originalmente apresentado ao Congrès des Psychanalystes de Langue Française em Paris, em 3 de maio de 2012. Ele foi traduzido do francês pela autora. Sou grata a Christian Delourmel por permitir que eu citasse seu material clínico.
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o inquietante: terceiridade e temporalidade
incestuoso e pedófilo, que molestou sexualmente a paciente e seus irmãos. Na análise, a paciente desenvolveu uma transferência apaixonada por seu analista, embora ele sentisse que ela era acessível a suas interpretações. A paciente já tivera duas análises anteriores, e Delourmel nos informa que ele usou a ressonância dos nomes dos analistas anteriores em suas interpretações. Por exemplo, ele sugeria o vínculo homofônico entre o nome de seu primeiro analista, Cassin, e a maneira como ela relatou a interrupção do tratamento, no final do segundo ano de análise: “Eu me quebrei” (je me suis cassée),2 bem como a idealização do segundo analista, associando seu nome, Tréhot, com “muito alto” (très haut). Delourmel utilizou também aspectos do seu próprio nome, e veremos mais sobre isso a seguir. Ele afirma que a paciente aceitava esses tipos de interpretações associativas, mas não conseguia aguentar interpretações que se referissem à camada edípica – por exemplo, referentes à sua rivalidade com outros pacientes e mesmo com o analista. O analista nos conta que as interpretações do primeiro tipo se davam numa área transicional, na qual ele fazia uso de associações e reverberações trazidas pelas palavras e sons; enquanto um segundo tipo de intervenção referia-se mais ao aqui e agora do processo analítico. A paciente tinha uma tendência a atuar3 e a sexualizar as interações com o analista – uma repetição do que aparecera nas análises anteriores. Recordamos que, para Freud, as pulsões encontram-se na raiz da atividade psíquica. Isso implica basicamente que há algo em excesso, uma sobrecarga na mente, que pode criar uma experiência de “demais” na mente do analista (Perelberg, 2003). Esse nível de atuação me faz lembrar também da afirmação de Freud em Totem e tabu de que “no começo era o Ato” 2 Casser, em francês, é “quebrar” [N.T.]. 3 Act out, no original [N.T.].
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5. O enigma do Édipo na psicanálise e na antropologia social
Bronislaw Malinowski e Ernest Jones Neste capítulo, revisito alguns debates clássicos entre a antropologia social e a psicanálise que abordam a questão da universalidade do complexo de Édipo. A relação entre a psicanálise e a antropologia social é tão antiga quanto a própria disciplina da psicanálise. Ao longo de sua obra, Freud, em sua tentativa de validar a universalidade de suas teorias, procurou estabelecer ligações entre as duas disciplinas. Totem e tabu (1912-1913) representa o exemplo mais importante desse compromisso. Nos primórdios da antropologia social, o indivíduo tornou-se excluído do campo de análise, uma herança do estabelecimento, por Durkheim, dos fatos sociais (ver Durkheim, 1893, 1897, 1924, 1938; ver também Lukes, 1973, 1977). Os antropólogos, como os sociólogos antes deles, afirmavam que o indivíduo não era objeto da sua disciplina, que focalizava o social. Isso inaugurou uma série de dicotomias, principalmente aquelas entre
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o enigma do édipo na psicanálise e na antropologia social
natureza e cultura, na tradição francesa, personalidade e cultura, nos Estados Unidos, e direitos e convicção, na Grã-Bretanha. O debate, nos anos 1920, entre Bronislaw Malinowski (18441942) e Ernest Jones (1879-1958) sobre a distinção entre o direito da mãe e o amor do pai tornou-se um exemplo clássico da diferença entre os paradigmas antropológicos e psicanalíticos. O padrão de desenvolvimento psicossexual observado por Malinowski entre os habitantes das ilhas Trobriand era diferente das descrições clássicas das sociedades ocidentais. Malinowski (1916) apontou a liberdade sexual existente entre os jovens adolescentes. Ademais, notou que, entre os trobriandeses, os pais eram afetuosos e cuidadosos, e não se creditava a eles qualquer participação na concepção de seus filhos (ver também Malinowski, 1923, 1929, 1984). Isso se dava, supôs Malinowski, para eliminar o relacionamento competitivo e de rivalidade com os filhos, como na formulação clássica de Freud do complexo de Édipo. Os trobriandeses constituíam uma sociedade matrilinear, e os sentimentos de tensão e competição tendiam a ser direcionados para os irmãos da mãe. Malinowski sugeriu que os habitantes das ilhas Trobriand desconheciam a parte desempenhada pelo sêmen na procriação. A gravidez era a consequência de um baloma – um espírito (geralmente feminino) de uma pessoa morta – inserindo o espírito de uma criança espiritual, waiwaia, no útero da mulher. Para isso, porém, era necessário que a vagina tivesse sido aberta, o que se dava pela relação sexual. Jones levantou a questão de se a ignorância “entre esses selvagens seria de fato tão genuína e completa quanto pareceria” (1925, p. 118). Argumentou que o simbolismo usado pelos trobriandeses sugere ao menos um “conhecimento inconsciente da verdade”, e citou Carveth Read (1918), que, num artigo publicado no Journal of the Royal Anthropological Institute, afirmou que “o conhecimento
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6. A função estruturante do complexo de Édipo
Os antropólogos sociais focalizaram sua atenção na “regra das regras”, a regra do incesto, que separa natureza e cultura. O tabu do incesto, em sua função estruturante, organiza cada sociedade ao longo de linhas de gênero e geração. A partir de então, os antropólogos fazem uma distinção entre aquilo que é transmitido pelas linhas matrilinear e patrilinear, entre os papéis do pai, da mãe e do irmão da mãe na estrutura familiar. Neste capítulo retornarei a alguns pontos de referência nos debates entre os próprios psicanalistas a fim de salientar como ambas as disciplinas estão lidando com questões semelhantes e universais. Embora não exista um artigo único no qual Freud delineie o panorama completo de sua conceitualização do complexo de Édipo, este é um tópico que permeia toda sua obra (ver Capítulo 1). Não podemos deixar de nos surpreender com o longo caminho percorrido por Freud na sua descoberta das dimensões completas do complexo de Édipo, desde A interpretação dos sonhos (1900) até Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905b), Totem e tabu (1912-1913) e “Análise terminável e interminável” (1937). Os
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a função estruturante do complexo de édipo
ensaios “sociológicos”, como Totem e tabu e Psicologia das massas e análise do eu (1921), bem como “O futuro de uma ilusão” (1927) e Moisés e o monoteísmo (1939), desempenham importante papel em seu percurso, um vez que Freud não apenas considerava o complexo de Édipo e a instituição progressiva da função paterna em termos do indivíduo, mas também estava especificamente interessado no seu papel na cultura. Foram necessários 26 anos, entre sua carta a Fliess de 31 de maio de 1897 e “A organização genital infantil” e “A dissolução do complexo de Édipo”, de 1923 e 1924, respectivamente, para que Freud formulasse sua teoria. O complexo de Édipo constitui a primeira estrutura simbólica, básica, e inclui uma rede de conceitos como o assassinato do pai, identificação e supereu, o estabelecimento do ideal do eu, complexo de castração, de-sexualização e sublimação (como demonstrado no Capítulo 1; Green, 1992, 2004; ver também Kohon, 2005b). O complexo de Édipo retraduz, retrospectivamente, experiências anteriores nos termos do après-coup (Perelberg, 2006). Gostaria agora de acompanhar os passos que foram necessários para Freud na elaboração do complexo de Édipo, e também rever alguns dos conceitos-chave que compõem o complexo de Édipo para a psicanálise. A seguir, tomo algumas de suas características – a interação entre identificações femininas e masculinas em relação à cena primária, a estrutura pré-edípica, a fase do espelho, o papel estruturante do falo, o complexo de castração, o supereu e a sexualidade como traumática – a fim de indicar como esses diferentes elementos em conjunto configuram uma estrutura nas formulações de Freud. Faço também uma reflexão sobre a universalidade de algumas dessas questões centrais.
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7. O assassinato do pai morto como habitus1
Deus está morto. Deus continua morto. E nós o matamos. E, no entanto, sua sombra continua pairando. Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? Nietzsche, The gay science, 1882, Seção 125
O relato e análise de Auschwitz feita por Wolfgang Sofsky, em seu livro The order of terror (1993), ganhador do prêmio Geschwister-Scholl, podem ser compreendidos, nos termos dos conceitos desenvolvidos no presente livro, como a abolição da lei do pai morto. “Deus está morto”, pelas lentes das ideias aqui desenvolvidas, refere-se ao assassinato do pai morto e ao restabelecimento da tirania do pai narcísico. Em The order of terror, Sofsky analisa os campos de concentração e extermínio implantados pela Alemanha nazista entre 1936 e 1 A versão original deste capítulo foi escrita como resposta ao convite da International Psychoanalytical Association (IPA) para que um analista de cada continente comentasse o livro de Sofsky The order of terror: the concentration camp (1993). Os artigos foram publicados na IPA Newsletter.
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o assassinato do pai morto como habitus
1945 como um sistema diferenciado de poder, baseado no “terror, na organização e na violência excessiva”, uma colônia de terror na extremidade mais remota do mundo social (1993, p. 14). Diz Sofsky: “A realidade dos campos parece explodir as fronteiras da imaginação, os recintos daquilo que é concebível. Ainda desencadeia diversas manifestações de defesa destinadas a absolver a consciência, a extinguir a memória” (p. 6). Faz, entretanto, um alerta: “se algo é rotulado como incompreensível, pode-se evitar ter de perceber seu horror em todos os seus detalhes” (p. 9). A violência ocorre em uma rede complexa que conecta variáveis históricas, sociais e psicológicas, e o psicanalista só pode tratar dessa questão de um ponto de vista específico. Embora a segunda teoria das pulsões de Freud tenha indicado o potencial para a violência em todo ser humano, ainda nos restam questões sobre as específicas condições de existência históricas, econômicas e políticas que permitem que a violência assuma, em um dado momento, uma forma institucionalizada legitimada. Sofsky sugere a noção de um habitus – um conceito proposto primeiramente por Bourdieu (1972) para indicar aquilo que liga estruturas sociais mais amplas a práxis específicas, a princípios que geram estratégias.
Pessoalidade2 e o corpo Violência tem sido definida como a “inflicção intencional de um dano corporal a outra pessoa”. (Glasser, 1998, seguindo Walker, 1970). A definição considera violência como abrangendo atos conscientes de uma pessoa sobre o corpo de uma outra pessoa. 2 No original, personhood. O sufixo hood indica condição, característica ou estado. Neste caso, refere-se ao que caracteriza o estado ou condição de ser uma pessoa [N.T.].
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A obra é uma importante referência intelectual e clínica e será leitura obrigatória para psicanalistas, psicoterapeutas, antropólogos e historiadores, bem como estudantes de todas essas disciplinas.
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Este livro examina a construção progressiva da noção de função paterna e sua relevância para a psicanálise. A distinção entre o pai assassinado (narcísico) e o pai morto é considerada um paradigma para a compreensão de diferentes psicopatologias, bem como de obras literárias, da antropologia e de acontecimentos históricos. São introduzidos novos conceitos, como “um pai é espancado”, e uma distinção entre o après-coup descritivo e o après-coup dinâmico, inaugurando uma compreensão psicanalítica da temporalidade. O livro inclui uma reflexão sobre como os conceitos de instinto de morte e de negativo podem auxiliar a compreensão de Auschwitz, um momento que a autora caracteriza como “o assassinato do pai morto”.
Pai assassinado, pai morto
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É analista didata, supervisora e presidente (2019-2022) da Sociedade Britânica de Psicanálise. É professora visitante da Unidade de Psicanálise da University College London e membro correspondente da Sociedade Psicanalítica de Paris. É Ph.D. em Antropologia Social pela London School of Economics, University of London. Em 2006, foi selecionada como uma das Dez Mulheres do Ano pelo Conselho Brasileiro de Mulheres. Possui uma clínica psicanalítica particular em Londres.
Perelberg
Rosine Jozef Perelberg
Rosine Jozef Perelberg
Pai assassinado, pai morto Revisitando o complexo de Édipo
PSICANÁLISE
Este é um livro magnífico e profundo. A compreensão magistral de Rosine Perelberg acerca dos mais importantes escritores psicanalíticos franceses e britânicos só é superada por sua delicada e aguçada sintonia com seus pacientes, que são descritos em uma linguagem ao mesmo tempo elegante, precisa e poética. O pensamento de Perelberg é audacioso, criativo e inovador. Seu livro fornece não apenas um poderoso insight sobre uma pensadora psicanalítica importante e original, mas também um enquadre para a prática clínica moderna.
Jean-Claude Rolland