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Ana Maria Azevedo Psicanalista, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e analista de crianças e adolescentes. Na SBPSP, foi presidente de 1988 a 1992, e na Associação Internacional de Psicanálise (IPA), foi secretária-geral e, posteriormente, vice-presidente por dois biênios, 1997-1999 e 2000-2002. Redatora da Revista Brasileira de Psicanálise de 1983 a 1985 e editora associada da Revista Caliban, da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal). série
Escrita Psicanalítica
Ana Maria Stucchi Vannucchi PSICANÁLISE
Coord. Marina Massi
PASSADO E PRESENTE
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Azevedo
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Os trabalhos clínicos nos trazem uma analista sensível, criativa e algumas vezes poética, sempre incluída na relação analítica, “sem pretensões a uma impossível neutralidade”. Revelam a ideia de que os escritos psicanalíticos são autobiográficos, pois na verdade “escrevemos sempre sobre o que nos interessa, e o que mais nos interessa é o que vivenciamos e precisamos elaborar”. O livro é de leitura extremamente útil aos psicanalistas e também aos iniciantes, por trazer um harmonioso equilíbrio entre teoria e prática clínica, mostrando-se um belo exemplo de pensamento clínico e uma magnífica ilustração da travessia de construção de uma identidade psicanalítica, com a liberdade de não se enclausurar num único autor e com criatividade pessoal, sem perder de vista a importante e fundamental especificidade da psicanálise.
Ana Maria Azevedo
PASSADO E PRESENTE
Ana Maria Azevedo nos oferece neste livro um panorama consistente de sua travessia pela vida e pela psicanálise. O livro é dividido em três segmentos que se relacionam dinamicamente entre si: “Reflexões teóricas”, “Trabalhos clínicos revisitados e comentários atuais” e “Trabalhos clínicos recentes”. As “Considerações finais” nos permitem um olhar retrospectivo que abarca toda a obra, ou melhor, toda a “viagem”, como nomeia a autora. Azevedo traz importantes considerações sobre a autonomia e a originalidade da psicanálise latino-americana e discute em profundidade a importância e a atualidade da noção de pulsão e suas relações com o somático, além da busca por representação e constituição do psiquismo, colocando o sonho como elemento fundamental desse processo, fruto do trabalho psíquico.
PASSADO E PRESENTE Ana Maria Azevedo
Série Escrita Psicanalítica Coordenação: Marina Massi
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Passado e presente Série Escrita Psicanalítica © 2020 Ana Maria Azevedo Editora Edgard Blücher Ltda. Publisher Edgard Blücher Editor Eduardo Blücher Coordenação editorial Bonie Santos Produção editorial Isabel Silva, Luana Negraes Preparação de texto Bárbara Waida Diagramação Negrito Produção Editorial Revisão de texto Cristine Akemi Capa Leandro Cunha Aquarela da capa Helena Lacreta Fotografia da capa Arquivo pessoal
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009. É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora. Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blücher Ltda.
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Azevedo, Ana Maria Passado e presente / Ana Maria Azevedo. – Série Escrita Psicanalítica / coordenação de Marina Massi – São Paulo : Blucher, 2020. 452 p. Bibliografia ISBN 978-85-212-1929-3 (impresso) ISBN 978-85-212-1930-9 (eletrônico) 1. Psicanálise. I. Título. II. Massi, Marina. III. Série. 20-0268
CDD 150.195
Índices para catálogo sistemático: 1. Psicanálise
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Sumário
Prefácio 11 Apresentação 17 Introdução 25 Parte I. Reflexões teóricas
31
Investigação e processo analítico
33
O modelo da colonização na psicanálise latino-americana
49
Corpo, fantasia, representação
63
A reflexão do analista: a ampliação do campo de observação em psicanálise
75
A representação das pulsões nos sonhos
87
Representação/ato: a representação e seus limites
99
A pulsão de morte
109
O presente: caesura entre o passado e o futuro
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sumário
A teoria da transferência e a compulsão à repetição
131
Considerações sobre o tempo
145
Parte II. Trabalhos clínicos revisitados e comentários atuais
169
Considerações em torno de uma experiência
171
Modelos e conjecturas: transformações do analista frente ao material clínico
193
Mudanças 215 Evoluções 255 Édipo: mito e complexo
283
O mesmo e o outro
315
A interpretação dos sonhos na validação do processo clínico psicanalítico
331
Parte III. Trabalhos clínicos recentes
359
Trauma e processos de mudança
361
A representação psíquica e o trabalho de figurabilidade no analista
383
Dor psíquica: limites do analisável
407
O barulho do silêncio
421
Considerações finais
439
Referências 443 Índice remissivo
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Introdução
O esmaecimento dessa memória é necessário, para que seja possível escrever . . . a subjetividade pode ser concebida como uma temporalidade, poder-se-ia dizer, a temporalidade da metáfora (Fédida, 1985, p. 78, tradução minha) É com o passar do tempo que nos voltamos com maior interesse para o que foi nossa vida, talvez como uma forma de tentar entender melhor quem somos agora, no futuro de nossa existência, esta muito mais curta do que poderíamos imaginar no passado. As referências ao tempo ficam difíceis, pois, muitas vezes, o distante nos parece tão próximo, e o ainda não acontecido, inimaginável! Na verdade, a escolha e a proposta deste título, Passado e presente, só podem ser concebidas e agora compreendidas se levarmos em conta a ideia de tempo. No entanto, não é desse tema que tratará este escrito, embora implicitamente ele esteja presente o tempo todo. Pois escrever se trata sempre de um “passado-presente”, uma vez que é uma
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introdução
transposição para o papel daquilo que já foi, e que é recuperado para imediatamente de novo se tornar passado. Esta é a ideia deste pequeno livro – recuperar para, ao rever o já feito, retomá-lo e dizê-lo de outra forma, remetendo-o imediatamente ao passado. Ao iniciar esta empreitada, recuperando meus escritos antigos, chamou minha atenção o primeiro deles: ao relê-lo há poucos dias, vivenciei um sentimento agradável, de surpresa e de um certo espanto! Cheguei mesmo a duvidar do exato momento dessa produção, pois sua atualidade, as preocupações que aí se delineavam, as hipóteses contidas em suas palavras diferenciavam-se pouco do que 40 anos depois, no futuro do passado, se mostraria presente nesta mesma mente, já envelhecida, mas também enriquecida pelo contato com tantas outras ideias, personagens e teorias psicanalíticas. Considerando essa surpresa e esse espanto que de mim tomaram conta na releitura das minhas origens, surgiram-me na mente as figuras de meus mentores psicanalíticos, de meus colegas e também das minhas atividades, essas últimas responsáveis por grande parte de minhas andanças pelo mundo, que sem dúvida possibilitaram que, no longo prazo, a “viagem” se tornasse interessantíssima e valiosa. No entanto, não é disso que se trata aqui, de minhas experiências de vida, de meus contatos com o mundo, que, apesar de terem sua importância, não são, nem serão, objeto de qualquer interesse dos colegas e daqueles que possam vir a se interessar, no agora, por esta tentativa de comunicação. O impacto da teoria freudiana, no meu ponto de vista, é, e foi, equivalente ao da descoberta do átomo, a menor das partículas, porém a mais importante na constituição de qualquer estrutura, de qualquer corpo existente. Percebo que hoje, após tantos anos, consigo não apenas conhecer melhor esse iniciador das minhas pretensões, Sigmund Freud, como também admirá-lo mais ainda,
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Investigação e processo analítico1
Apesar dos avanços da ciência recentemente, os métodos empregados pelo trabalho científico estão sob escrutínio crítico . . . nas ciências naturais, as teorias da mecânica quântica têm perturbado o conceito clássico de um mundo objetivo de fatos estudados objetivamente. (Bion, 1992, p. 84, tradução minha) Cem anos atrás, quem caminhasse pelo campo numa noite de verão, pouco além de Bromley, no Kent, poderia presenciar uma cena notável. Na estufa de uma das maiores e mais feias casas do bairro, veria um homem alto, com cerca de 60 anos, curvado sobre vasos de plantas. A seu lado, um homem mais moço também absorvido tocando fagote. Eram Charles Darwin e seu filho Frank fazendo uma experiência científica.
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 1990 em mesa redonda durante o XVIII Congresso Latino-Americano de Psicanálise da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL).
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O modelo da colonização na psicanálise latino-americana1
Desde cerca de dois séculos se acumulam os equívocos sobre a realidade histórica da América Latina. Nem os nomes pelos quais se pretendeu designá-la são exatos. América Hispânica, Ibero-América, América-Latina, Indo-América etc., cada um desses nomes deixa de lado uma parte da realidade. Tampouco são fiéis as etiquetas econômicas, sociais e culturais. A noção de subdesenvolvimento, por exemplo, bastante usada, pode ser aplicada talvez à economia e à técnica, porém não se aplica à arte, à literatura e à moral filosófica. Mais vaga ainda é a noção de Terceiro Mundo. Essa denominação não é imprecisa apenas, ela é também enganosa. (Paz, 1994, p. 74, tradução minha)
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2000 no XIII Congresso Latino-Americano de Psicanálise da Federação Psicanalítica da América Latina (FEPAL).
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Corpo, fantasia, representação1
Na hipótese do Objeto Original Concreto, a corporeidade, no sentido de presença ativa em sua complexa organização, dá vida ao processo mental. A expressão OOC qualifica e dá relevo à unidade constituída por um corpo no sentido físico, e por um aparato que percebe e anota. (Ferrari, 2004, p. 21) Iniciaremos este trabalho fazendo uso do modelo mental desenvolvido por Freud, para em seguida passar a apresentar e discutir o tema a partir de noções oferecidas por Bion e por Armando Ferrari, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e membro da Società Psicoanalitica Italiana (SPI), atualmente residindo em Roma, na Itália. De forma breve e
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 1994 em mesa redonda no Encontro Bienal de Psicanálise 2: O Corpo Psicanalítico e publicada em 1995 como um capítulo de Junqueira Filho; Uchôa, L. C. (Orgs.). Corpo-mente: uma fronteira móvel (pp. 393-406). São Paulo: Casa do Psicólogo.
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A reflexão do analista: a ampliação do campo de observação em psicanálise
Uma caracterização clara e definida do campo de observação em psicanálise constitui no momento uma das tarefas fundamentais que necessitam ser levadas adiante, para o prosseguimento da investigação psicanalítica tanto em seus aspectos teóricos como clínicos. Expusemos algumas de nossas ideias sobre o assunto em “Investigação em psicanálise” (Azevedo, 1990). No referido trabalho, propomos a consideração do processo clínico psicanalítico como um método de investigação da mente humana e de suas relações. Dentro de uma perspectiva que privilegia o campo da observação psicanalítica como abrangendo as áreas do pessoal e do interpessoal, salientamos a necessidade da consideração de todo aspecto que se apresenta como opaco e desconhecido como objeto de investigação. Num primeiro momento, tal posição nos pareceu ampla e suficiente. No entanto, ao pretendermos particularizar melhor o problema, percebemos que estávamos nos aproximando da questão com definições muito gerais, que permitiam apenas uma
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A representação das pulsões nos sonhos
As vozes da infância não são jamais totalmente esquecidas ou abandonadas. Cada um traz em si, à sua maneira, a totalidade de sua história. A história mais profunda, a menos esquecida, a menos superada, é aquela de nossos desejos, ancorados em nossas pulsões, impregnantes de nosso pensamento . . . O sonho nos mostra isto a cada noite. (Green, 1995, p. 305, tradução minha) A pulsão é um dos conceitos da metapsicologia freudiana bastante atacado pelos autores modernos. Contesta-se até sua utilidade, mesmo quando seu estatuto de metáfora teórica é aceito. Em 1915, o conceito como proposto por Freud referia-se a fonte, impulso, objetivo, objeto. Uma definição mais tardia que faz justiça à sua complexidade propõe estar a pulsão ancorada no somático, sendo, no entanto, um elemento que pode também alcançar o psiquismo, sob uma forma ignorada por nós. Como propõe André Green (1995), há uma espécie de intencionalidade pré-subjetiva corporal.
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Representação/ato: a representação e seus limites1
Sonhos, fantasias, seu universo comum é o da representação . . . a presença do conceito de representação é praticamente sinônimo de psíquico. O psiquismo é o espaço no qual o representável pode surgir. (Green, 1995, p. 313-314, tradução minha) É difícil quando falamos em representação não nos lembrarmos de André Green, um dos mais importantes autores da contemporaneidade. Acredito que uma teoria sobre a representação e seus limites propõe falar sobre o aspecto econômico, dinâmico e simbólico da mente, caracterizando as transformações que tornará possível à energia (penso aqui na noção de pulsão), que se encontra presente no mundo físico/psíquico, encontrar formas de manifestação e descarga.
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2015 no Evento Preparatório para o XXV Congresso Brasileiro de Psicanálise.
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A pulsão de morte1
O fenômeno da vida é muitas vezes descrito como sendo o efeito de uma interação constante entre a força de onde vem a excitação e o tumulto – a libido –, que causa o problema e que fornece ao mesmo tempo a energia a Éros, o novo princípio de coesão – e uma nova força que, enquanto instinto de morte, quer sempre desfazer e restituir aquilo que vive, ao estado inanimado. (M’Uzan, 1977, p. 54, tradução minha) A pulsão é um dos conceitos mais atacados e controversos dentro da metapsicologia freudiana. Ao falar em metapsicologia, temos em mente quase sempre os trabalhos de Freud de 1915. No entanto, uma concepção mais tardia do autor sobre a pulsão, que leva em conta sua complexidade, propõe que esta, ancorada no somático, está já presente no nível do psíquico desde o começo da vida, 1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2015 no V Fórum Teórico-Clínico.
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O presente: caesura entre o passado e o futuro
. . . investiguemos a caesura, não o analista, não o analisando, não o inconsciente, não o consciente, não a sanidade, não a insanidade, e sim a caesura, o vínculo, a sinapse, a (contra)transferência, o estado transitivo-intransitivo. (Bion, 1989, p. 57, tradução minha) Bion realizou várias visitas a São Paulo, proferindo conferências e oferecendo seminários e supervisões clínicas a um grande número de colegas. A atmosfera na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), até a chegada de Bion, era caracterizada por um clima polêmico entre as ideias freudianas e a forte influência kleiniana. Basicamente, acreditamos que o objetivo era e ainda é a tentativa de encontrar na confrontação nossa identidade própria. Como psicanalista membro desse grupo fortemente influenciado pela presença e pelas ideias de Wilfred Bion, posso dizer que a turbulência produzida pelo impacto dessa presença foi tão intensa e profunda que seus efeitos continuam a ser sentidos até hoje. Bion é uma personalidade viva e marcante entre nós, está na base
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A teoria da transferência e a compulsão à repetição1
. . . a compulsão à repetição a que geralmente estão submetidos o desejo inconsciente e a exigência pulsional é substituída na análise por uma compulsão à representação . . . (Rolland, 1999, p. 180) Em seus primeiros trabalhos sobre técnica, Freud se preocupa em definir e considerar a relação analítica desenvolvida pela dupla analista-analisando como um aspecto importante a ser observado e pesquisado na relação analítica. Para o autor, em todas as relações terapêuticas, e a psicanálise é uma delas, desenrola-se o que ele denomina transferência positiva em relação à figura do médico, o que se constituirá em elemento importante no processo de cura (Freud, 1977/1903, 1977/1905, 1977/1910, 1977/1913, 1977/1914a).
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada no colóquio Dai
fenomeni di conversione alla funzione organizzatrice della corporeità, em Roma, e publicada no livro homônimo editado por Paolo Bucci e Massimo Romanini (2010).
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Considerações sobre o tempo1
Será que Freud se ocupou alguma vez em toda a extensão de sua obra com alguma outra coisa que não o tempo? (Green, 2000, p. 23, tradução minha) Enquanto o tema do “espaço” foi e vem sendo bastante trabalhado pela psicanálise atual, pouca coisa tem sido dita em relação ao “tempo”. Só para trazer alguns exemplos das ideias que foram se desenvolvendo sobre o “espaço”, cito as colocações de Winnicott (1975b) e de Bion (1965), o primeiro introduzindo as noções de “espaço transicional” e “espaço potencial”, e o segundo, ao propor a ideia de continente-contido, lançando uma forma espacializada que marcará as relações de objeto tanto internas quanto externas. Winnicott, como Bion, abriu inúmeras possibilidades para a consideração da ideia de um espaço abstrato, possibilitando o desenvolvimento de teorias a partir de vários eixos. Outro analista 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 2011 com o título “Algumas considerações sobre o tempo” no Jornal de Psicanálise, 44(81), 67-84.
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Considerações em torno de uma experiência1
O “duplo” converteu-se num objeto de terror, tal como após o colapso da religião, os deuses se transformam em demônios. (Freud, 1977/1919) Utilizarei neste texto um material da minha experiência clínica com uma paciente, em torno do qual tentarei tecer algumas considerações sobre a clínica e as teorias subjacentes a esta. Esta paciente, que denominarei Raissa, tem desenvolvido um trabalho que me parece bastante significativo. A meu ver, alcançou já certo desenvolvimento, e com isso me refiro principalmente ao fato de que já podemos começar a dialogar. Penso ser interessante fornecer alguns dados sobre a minha visão dessa moça. Raissa é uma mulher jovem, bonita e inteligente, chamando muita atenção a maneira delicada e atenciosa com que se conduz, sua expressão ingênua e meiga. Seu relacionamento 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 1978 no Jornal de Psicanálise, 10(24), 31-35.
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Modelos e conjecturas: transformações do analista frente ao material clínico1
Freud nos mostra que, ao mesmo tempo que leva em conta a crença em um Deus como uma ilusão, ele não tem dúvidas quanto à realidade dessa ilusão. Nesse ponto em particular, eu penso que a interpretação (em oposição à construção) da onipotência é particularmente infeliz. Esta diminui a conjunção constante que é, muitas vezes, a realidade representada inadequadamente pelo termo onipotência, ou pela versão simétrica de onipotência-desamparo. A história de Palinuros “oferece uma construção” melhor que qualquer interpretação ou outra invenção que vise juntar os elementos quando a “onipotência” está em questão. (Bion, 1989, p. 34, tradução minha)
1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 1985 na Revista Brasileira de Psicanálise, 19(4), 489-504.
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Mudanças1
A observação de que “mudanças” ocorrem durante uma psicanálise é comum a todos nós que nos dedicamos a esse trabalho. A natureza dessas mudanças, suas características, sua intensidade e sua duração têm sido motivo de meu interesse e minha indagação. Tenho em mente a ideia de que “mudanças” são acontecimentos inerentes à própria condição do ser humano como pessoa viva, em movimento e, portanto, em constante transformação. Não é, pois, privilégio da psicanálise, mas é característica desta propiciar certas mudanças. O objetivo aqui é tentar observar, num trabalho desenvolvido por um período de cinco anos, alguns aspectos que poderia afirmar que sofreram transformações, modificaram-se. O material, por ser extenso e variado, é complexo, permitindo ser observado de vários ângulos e perspectivas; no entanto, pretendo deter-me apenas em considerações sobre mudanças que pude observar nas 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 1986 na Revista Brasileira de Psicanálise, 20(4), 567-600.
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Evoluções1
Em qualquer sessão a evolução tem lugar. Do escuro e do sem forma, algo evolve; essa evolução pode ter uma semelhança superficial com a memória, mas assim que ela tenha sido experimentada, jamais será confundida com esta. Compartilha com os sonhos a qualidade de estar totalmente presente ou de ser imediata e subitamente ausente. É essa evolução que o psicanalista precisará estar pronto para interpretar. (Bion, 2000, pp. 392-393) Bion usa o termo “evolução” para se referir à emergência na situação psicanalítica da realidade psíquica. Esse termo, bem como o termo que eu havia escolhido para o trabalho anterior, “mudanças”, parece salientar o aspecto dinâmico e mutável da experiência emocional, referindo-se de certa maneira às “transformações” tanto do analisando como do analista, sem, no entanto, fixar numa “forma” o aspecto em questão. 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 1987 na Revista Brasileira de Psicanálise, 21(4), 475-97 e em 1996 na Revista Latinoamericana de Psicoanálisis, 1(2), 187-96.
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Édipo: mito e complexo1
Uma das contribuições mais originais e importantes que Freud nos legou diz respeito à concomitância do desenvolvimento psíquico com o desenvolvimento da sexualidade. Freud concebeu a ideia de um desenvolvimento psicossexual, chamando assim nossa atenção para os processos que, em diferentes níveis e com características particulares, se desenvolvem de forma interdependente e inter-relacionada. A atenção a essa dualidade (pensamento-sexualidade) é o que encontramos no centro da experiência psicanalítica, que, longe de pretender representar a essência humana apenas em termos biológicos, centra-se no estudo do psíquico, em todas as suas expressões, suas manifestações e suas dificuldades. Referimo-nos a Édipo e não ao complexo de Édipo, tentando dessa forma diferenciar as noções das sexualidades biológica e psicopatológica, visando privilegiar uma concepção de sexualidade 1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 1996 no I Encontro do Grupo de Estudos de Psicanálise de Ribeirão Preto.
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O mesmo e o outro1
Imóvel, deitado no leito, vendo meus próprios olhos, Você me olhava com eles. Morrer! Esse desejo é tão sem palavras que poderia acreditar Que sou eu mesmo que morro! (József, citado por Bak, 2001, p. 78, tradução minha) Rita é psicóloga, casada há pouco mais de dois anos, e pretende ser psicanalista. Sempre se caracterizou pelo que eu chamaria de “uma boa menina”; talvez por ser a primeira filha de um casal com muitos filhos, desde cedo aprendeu a esperar, concordar e não exigir muito. É assim em seu casamento, e foi assim em sua infância.
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2018 em mesa redonda no I Simpósio Bienal da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP).
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A interpretação dos sonhos na validação do processo clínico psicanalítico1
Debalde erra ao redor da ciência o aluno. Cada um aprende apenas o que pode aprender. (Goethe, 2004/1808, p. 195) Acreditamos que é como processo terapêutico e como método de investigação que a psicanálise precisa ser considerada e pensada. Nossa proposta de que os sonhos e sua interpretação são elementos importantes na tentativa de validação do processo clínico psicanalítico será considerada na apresentação do material clínico. Posteriormente, tentaremos correlacionar nosso ponto de vista às outras posições e teorias psicanalíticas. Em outros momentos, 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 1994 com o título “Validation of the psychoanalytic clinical process: the role of dreams”, em The International Journal of Psychoanalysis, 75(5/6), 1181-92 e apresentada em 1995 na International Journal of Psycho-Analysis 75th Anniversary Celebration Conference. Outra versão foi publicada em 1994 com o título “Validação do processo clínico psicanalítico: o papel dos sonhos” na Revista Brasileira de Psicanálise, 28(4), 775-96.
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Trauma e processos de mudança1
Falar sobre trauma e processos de mudança pareceu-me instigante, mas também difícil. Para tanto, vou apresentar um material clínico de uma paciente que esteve vários anos comigo, uma moça que tinha na época 35 anos e a quem atendi em análise quatro vezes por semana. Denominarei essa paciente Helen. Quando iniciamos o trabalho psicanalítico, Helen procurou-me por estar vivendo um momento difícil após a separação de seu marido, muito angustiada e assustada por se ver sozinha com três filhos quase adolescentes, sentindo que sua vida profissional havia se estancado e vendo seu desempenho, tanto fora como dentro de casa, de forma muito crítica. Queixava-se também de ser tomada, quando em público, por sentimentos muito intensos e inexplicáveis de muito medo e vergonha.
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2009 com o título “Trauma: será que ainda precisamos deste conceito?” na Reunião Científica. Outra versão foi apresentada em 2005 com o título “Trauma” no 44º Congresso Internacional de Psicanálise.
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A representação psíquica e o trabalho de figurabilidade no analista1
Não acontece nada, porque nunca sobra espaço para mim! (Antônia) Antônia é uma mulher de 40 anos, mãe de quatro filhos, separada do marido, com quem mantém um relacionamento bastante próximo, estando atualmente em sua terceira experiência de análise comigo. Após tantos anos de convivência e de trabalho com essa moça, é para mim quase impossível relatar dados de nossa história e de sua vida sem estar lançando mão de minhas lembranças, minhas vivências e fantasias. Talvez seja sempre assim e, apesar da tentativa muito frequente entre nós de uma busca de objetividade, 1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2009 com o título “Representação psíquica e trabalho de figurabilidade do analista” no 46º Congresso Internacional de Psicanálise, em Chicago; outra versão foi publicada em coautoria com Jean-Claude Rolland em 2010 na Revue Française de Psychanalyse, 74(2), 467-481, com o título “Représentation psychique et travail de figurabilité chez l’analyste”.
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Dor psíquica: limites do analisável1
. . . o que para mim é mais enigmático é o fato de que a dor pode estar lá e ser desconhecida do eu inconsciente, violentamente contrainvestida e orientada para a inibição fria de toda a vida afetiva. (Rolland, 2015, p. 71, tradução minha) A ideia de limite como um conceito psicanalítico foi uma grande contribuição de André Green, pois nos permite pensar clinicamente tanto os limites internos do paciente, do analista e da dupla analítica como as questões geradas por situações externas, muitas vezes inaceitáveis para o psicanalista e para a psicanálise. Acredito que seja na clínica que possamos encontrar situações que melhor demonstrem limites, seja do analisando, seja da análise, portanto, apresentarei um caso clínico que, em meu ponto de vista, fala com intensidade do tema proposto.
1 Uma versão anterior deste capítulo foi apresentada em 2013 no 48º Congresso Internacional de Psicanálise, em Praga.
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O barulho do silêncio1
Quando, após algumas reflexões, decidi escrever sobre o silêncio, me veio à mente uma lembrança de muitos anos atrás: eu ainda estava em análise, passando por momentos difíceis de silêncio, sem saber o que dizer ou como conversar naturalmente. Num certo dia durante uma sessão, minha mente é tomada por uma frase que surge acompanhada de uma imagem: “O silêncio desses espaços infinitos me assusta”. Eu sabia que a frase era de Blaise Pascal, embora nunca tenha sido uma leitora assídua de filosofia. A imagem que concomitantemente tomava minha mente se relacionava à ideia de espaço, aproximando-se ao apresentado no filme 2001: Uma odisseia no espaço. Impactada pela situação, relato o que me acontece a meu analista, e me surpreendo quando este me responde: “E não acha que essa lembrança a ajuda?”. Na verdade, eu não conseguia compreender bem o que ele poderia estar querendo dizer com aquilo, mas eu 1 Uma versão anterior deste capítulo foi publicada em 2016 na Revista Brasileira de Psicanálise, 50(4), 65-76.
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Considerações finais
Do tempo só conhecemos os sinais. Alguns deles aprendemos a interpretar. Outros, criados por nós, indicam apenas as manifestações do tempo, nunca o tempo. O senso comum pode ajudar a dar significado ao tempo e assim . . . podemos distinguir o passado do futuro. (Ferrari, 2004, p. 19) Passou o tempo, passaram-se os anos, agora é o tempo do término, do final desta viagem que empreendemos; uma viagem que nada mais foi senão “a vida”, um caminho percorrido, que nos remete novamente ao tempo dos começos. Passado e presente foi o título de nossa escolha para esta coletânea de trabalhos, título do primeiro trabalho escrito, talvez escolhido em virtude da espantosa descoberta dos primeiros anos de análise, de que na verdade estamos sempre às voltas com o começo de nossas vidas, com os primeiros amores e com as primeiras decepções.
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Ana Maria Azevedo Psicanalista, analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) e analista de crianças e adolescentes. Na SBPSP, foi presidente de 1988 a 1992, e na Associação Internacional de Psicanálise (IPA), foi secretária-geral e, posteriormente, vice-presidente por dois biênios, 1997-1999 e 2000-2002. Redatora da Revista Brasileira de Psicanálise de 1983 a 1985 e editora associada da Revista Caliban, da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal). série
Escrita Psicanalítica
Ana Maria Stucchi Vannucchi PSICANÁLISE
Coord. Marina Massi
PASSADO E PRESENTE
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Os trabalhos clínicos nos trazem uma analista sensível, criativa e algumas vezes poética, sempre incluída na relação analítica, “sem pretensões a uma impossível neutralidade”. Revelam a ideia de que os escritos psicanalíticos são autobiográficos, pois na verdade “escrevemos sempre sobre o que nos interessa, e o que mais nos interessa é o que vivenciamos e precisamos elaborar”. O livro é de leitura extremamente útil aos psicanalistas e também aos iniciantes, por trazer um harmonioso equilíbrio entre teoria e prática clínica, mostrando-se um belo exemplo de pensamento clínico e uma magnífica ilustração da travessia de construção de uma identidade psicanalítica, com a liberdade de não se enclausurar num único autor e com criatividade pessoal, sem perder de vista a importante e fundamental especificidade da psicanálise.
Ana Maria Azevedo
PASSADO E PRESENTE
Ana Maria Azevedo nos oferece neste livro um panorama consistente de sua travessia pela vida e pela psicanálise. O livro é dividido em três segmentos que se relacionam dinamicamente entre si: “Reflexões teóricas”, “Trabalhos clínicos revisitados e comentários atuais” e “Trabalhos clínicos recentes”. As “Considerações finais” nos permitem um olhar retrospectivo que abarca toda a obra, ou melhor, toda a “viagem”, como nomeia a autora. Azevedo traz importantes considerações sobre a autonomia e a originalidade da psicanálise latino-americana e discute em profundidade a importância e a atualidade da noção de pulsão e suas relações com o somático, além da busca por representação e constituição do psiquismo, colocando o sonho como elemento fundamental desse processo, fruto do trabalho psíquico.