A psicanálise nas políticas públicas

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Adriana Simões Marino

A psicanálise nas políticas públicas

Bem-estar e mal-estar social

A PSICANÁLISE NAS POLÍTICAS PÚBLICAS

Bem-estar e mal-estar social

Adriana Simões Marino

A psicanálise nas políticas públicas: bem-estar e mal-estar social

© 2024 Adriana Simões Marino

Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Eduardo Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenador editorial Rafael Fulanetti

Coordenação de produção Andressa Lira

Produção editorial Ariana Corrêa

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Capa Laércio Flenic

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Marino, Adriana Simões

A psicanálise nas políticas públicas: bem-estar e mal-estar social / Adriana Simões Marino. - São Paulo: Blucher, 2024. 344 p.: il.

Bibliografia

ISBN 978-85-212-2451-8

1. Psicanálise 2. Políticas públicas 3. Política social I. Título

24-1840

CDD 150.195

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

3.

6. Por uma política pública não-toda

Não-todo na política

8. Considerações finais

1. A psicanálise fora e dentro do Estado

Neste primeiro capítulo, faremos um percurso sobre a inserção da psicanálise nas políticas públicas, levando em consideração dois aspectos que, a princípio, conferem-lhe uma posição negativa no interior da pólis: seu estado de não regulamentação profissional pelo Estado e seu caráter de profissão impossível. Não obstante as tentativas feitas ao longo do tempo para sua inscrição como profissão regulamentada por leis estatais, a psicanálise encontra-se embrenhada em equipamentos públicos e privados de atenção psicossocial, saúde, educação, assistência social e justiça, principalmente por meio da atuação de profissionais da Psicologia e em detrimento das possíveis diferenças articuladas nos termos desta profissão, com seus respectivos Código de Ética Profissional, Conselhos Regionais, Conselho Federal e sindicato. Sem pretender aprofundar as discussões em torno da regulamentação e das possíveis diferenças com relação à categoria da Psicologia, meu interesse, neste momento, é pensar a psicanálise nas políticas públicas a partir de um recorte histórico preciso, a saber, os impasses relativos à psicanálise tomada como política pública ainda no período freudiano.

Este primeiro capítulo está organizado em dois eixos. O primeiro discute, sob um ponto de vista histórico, o prenúncio da inserção da psicanálise como política social de saúde pública a partir dos textos freudianos e, especialmente, da conferência realizada em Budapeste no ano de 1918, por ocasião do V Congresso Internacional de Psicanálise. Nesse momento, Freud pretendia inscrever a psicanálise como um direito assegurado pelo Estado em função das demandas oriundas de neuroses de guerra. Veremos como a aspiração da psicanálise como direito e dever do Estado pode engendrar problemas em relação às questões presentes no âmbito da própria formação psicanalítica, à condição de sua não regulamentação pelo Estado e mesmo como ciência cujo objeto condiz com processos inconscientes.

É nessa mesma conferência que o autor se referiu à psicanálise fora do setting tradicional – para neuróticos de guerra e para os pobres – como uma terapêutica que comportaria possíveis diferenças em relação ao “ouro” da análise propriamente dita, isto é, aquela realizada no setting tradicional. O autor trouxe a hipótese de uma necessária adaptação por meio da ideia de um “cobre” situado pelo emprego da sugestão nesses casos, aproximando a psicanálise nesses contextos às práticas educativas, de mestria e auxílios assistenciais.

No entanto, como pretendo chamar a atenção, apesar desta hipótese sobre o cobre da sugestão, Freud não proferiu uma palavra final sobre essa psicanálise adaptada às políticas públicas, chamando atenção para uma dimensão ética na qual se manteria o mesmo rigor e o caráter não tendencioso inerente aos fundamentos psicanalíticos.

Depois de nos aproximarmos das questões suscitadas com esse prenúncio da psicanálise nas políticas públicas, ao mesmo tempo dentro e fora do Estado, avançaremos para o segundo eixo deste capítulo. A proposta é aproximar a posição cautelosa do autor em relação à psicanálise no contexto dessas políticas por meio dos desdobramentos localizados na segunda tópica do aparelho psíquico, especialmente com relação à acentuação da instância do Eu/Ego em termos

a psicanálise nas políticas públicas 45 de educação, adaptação à realidade, conscientização e maturação ou desenvolvimento do indivíduo. Afinal, é nesses mesmos termos que Freud, em 1918, dizia que se encontrava o cobre da sugestão em comparação com o ouro da análise, colocando possivelmente em xeque os próprios fundamentos da psicanálise.

Faremos uma leitura atenta desses termos, levando em consideração o caráter revolucionário da descoberta do inconsciente. É a partir do que o autor desenvolveu sobre o cobre da sugestão, como adaptação da psicanálise às políticas públicas, da concepção de uma não separação exata entre as instâncias psíquicas do Eu/Ego e do Isso/Id – conforme a segunda tópica – e sobre a análise das resistências como um processo de construção em análise, que encontraremos um caminho possível para fazer avançar as discussões a respeito do lugar do(a) psicanalista nessas políticas. Ao final do capítulo, apresentarei mais esquematicamente os próximos passos deste livro, tendo como norte certa confluência entre as políticas públicas e a psicanálise, ao levar em conta seus impossíveis, respectivamente, de governar e psicanalisar.

O cobre da psicanálise na política pública

Se a psicanálise, ao lado de sua significação científica, tem valor como procedimento terapêutico, se é capaz de fornecer ajuda àqueles que sofrem em sua luta para atender às exigências da civilização, esse auxílio deveria ser acessível também à grande multidão, demasiado pobre para reembolsar um analista por seu laborioso trabalho. Freud, 1923/1996k, p. 319

Nos tempos que antecederam ao término da Primeira Guerra, Freud encontrava-se abatido pela fome, mas animado com a possibilidade da realização do V Congresso Internacional de Psicanálise em Budapeste, na Hungria (Gay, 2012). O congresso ocorreu nos dias 28 e 29 de setembro de 1918 quando, pela primeira vez, Freud (1919/2010d)

2. Estado e políticas públicas na visada do bem comum

Nesse momento, faremos um percurso mais específico em políticas públicas, ressaltando uma característica comum dessas políticas com a noção de Estado: ambas se referem à coisa pública permeada pela ideia de bem comum. Conforme abordou o cientista político, Theodore Lowi (1972), “as políticas públicas determinam a política”, isto é, determinam a direção política de um Estado, sendo que essas determinações são condizentes com a noção de Estado como res publica, uma coisa voltada idealmente ao bem comum, tendo como norte o bem-estar da coletividade (p. 299).

Após uma breve apresentação conceitual e uma introdução do surgimento das políticas sociais, abordarei a concepção desse bem comum específico da pólis. Para tal abordagem, trarei o que alguns filósofos clássicos, como Platão e Aristóteles, pensaram sobre esse tema. Posteriormente, no interior de certa concepção sobre a democracia, será possível acompanhar como essa forma de governo se apresentou inicialmente sob uma face liberal e, posteriormente, mais próxima das questões sociais, ampliando o escopo das políticas sociais. Como veremos, no entanto, ambas pretendiam alcançar o bem comum. Enquanto no Estado Liberal esse bem seria um resultado não

e políticas públicas na visada do bem comum

premeditado das iniciativas individuais, no Estado Social, o bem seria alcançado graças às intervenções do Estado.

A ideia de Estado remete a uma criação humana cujo objetivo é organizar o fenômeno do político no interior de uma comunidade, sendo um ente público. Essa coisa pública que o Estado representa pode se manifestar de diferentes formas e são essas diferenças que impactarão na sua forma de agir, o que quer dizer, na configuração de suas políticas públicas. No interior de certa concepção sobre a democracia, fundamentada nos princípios da liberdade e igualdade, depreende-se que a liberdade não significa a mera não interferência do Estado – dimensão que o filósofo político Isaiah Berlin (1981), na esteira de outros autores, chamou de “liberdade negativa”.1 A democracia implica, ao mesmo tempo, uma dimensão intervencionista do Estado (“liberdade positiva”), especialmente voltada às questões das desigualdades socioeconômicas, reconhecendo que a fronteira entre a vida privada e a pública é bastante tênue. Essa questão da abstenção ou intervenção do Estado se desdobra em diferentes formas de políticas públicas.

É comum a confusão no emprego dos adjetivos bom e mau e dos advérbios bem e mal – que são termos empregados para qualificar o tema deste estudo. No interior da tradição social-comunitarista e, em muitos casos, social-republicana, a concepção de bem comum (bonum comune) condiz com o bom governo, e o bem privado com o mau governo. Por outro lado, na tradição liberal e, geralmente,

1 O termo faz menção à distinção entre as concepções de liberdade dos antigos e a dos modernos, tomada a partir de Benjamin Constant (1985). A primeira faz referência à liberdade política exercida diretamente, ou seja, à custa da submissão individual em prol do todo social, condicionada à existência do escravismo no mundo antigo: “entre os antigos, o indivíduo, quase sempre soberano nas questões públicas, é escravo em todos seus assuntos privados.” (p. 11). O segundo é marcado pela liberdade contida nos direitos individuais, no gozo das atividades privadas, na liberdade civil, marcado historicamente pelo advento do sistema comercial e dado pela representação política.

a psicanálise nas políticas públicas 73 liberal-republicana, o bem próprio (bonum propium) é o que caracteriza o bom governo, e o bem comum representa o mau governo. É no esteio histórico do Estado Social, no qual se inseriu o Welfare State, que encontraremos um acento ao papel interventor do Estado, dado por meio de políticas sociais públicas fundamentadas no ideário do bem comum e dirigido idealmente ao bem-estar de todos.

A articulação entre bem comum e bem-estar remonta a uma tradição clássica em filosofia política. Presente desde a República platônica e na Ética aristotélica, o “bem” encontrava seu fundamento na virtude (areté) de governantes e governados(as) voltados aos interesses coletivos. Trata-se de uma questão inaugural da filosofia que fala sobre a qualidade moral, o caráter humano que, no interior do organicismo grego, implicava um processo de burilamento da subjetividade para o que se considerava ser a boa vida na pólis. Desse modo, nossa atenção recai sobre o bem comum e o bem-estar, cuja articulação pode ser preciosa para abordarmos esses bens, posteriormente, em psicanálise.

Em meio aos impasses entre público e privado, Estado e mercado, figuram aqueles(as) que apontam para as desigualdades socioeconômicas como um resultado da própria estrutura do capitalismo, considerando que as políticas sociais contribuem para o crescimento econômico. E, do outro lado, aqueles(as) que advogam que essas políticas provocam crises, inibem o crescimento e o laissez feire, sendo custosas ao Estado e desestimulantes à inserção no mundo do trabalho. Veremos como o Welfare State se inscreveu como uma proposta de equilibrar esse antagonismo, situando-se nas abordagens integradas sobre o desenvolvimento socioeconômico por meio da formulação e implementação de políticas públicas.

Ao nos aproximarmos do final deste capítulo, apresento os impactos do neoliberalismo na reconfiguração dessas políticas e, mais precisamente, da colocação em xeque da garantia de direitos sociais historicamente conquistados. Nesse percurso, então, faremos um trajeto

3. Os impossíveis nas políticas públicas e em psicanálise

Neste capítulo, trarei duas versões sobre o impossível. De um lado, um recorte efetuado no âmbito das métricas de satisfação com relação às políticas públicas, a partir dos desenvolvimentos teóricos de Amartya Sen. Do outro, a forma com que a psicanálise freudo-lacaniana aborda a noção de impossível no que tange as (in)satisfações públicas e privadas. A partir da apreensão de que encontramos em ambos um impasse quanto à possibilidade de satisfação em termos do bem-estar para todos, entendo que seja um ponto de articulação para uma abordagem entre políticas públicas e psicanálise de modo a contribuir para pensarmos o lugar da psicanálise nessas políticas.

Em Desenvolvimento como liberdade, de 2010, e A ideia de justiça, de 2011, Sen desenvolveu uma relação entre fatores socioculturais, políticos, econômicos e individuais complexos, no âmbito de suas reflexões sobre formulação, implementação e avaliação de políticas públicas. Sen possui um vasto conhecimento sobre as dinâmicas político-econômicas internacionais, é um erudito em pesquisas empíricas na área, cunhou termos e desenvolveu teorias sui generis no amplo espectro de seus estudos. Suas investigações examinam genéricos rankings mundiais e as retóricas presentes em conexões causais comumente encontradas nesse campo.

os impossíveis nas políticas públicas e em psicanálise

Conforme desenvolve, existe uma querela sobre as avaliações na área das políticas públicas. Isso se dá especialmente quanto às métricas de satisfação em termos de bem-estar presentes no utilitarismo, cuja fragilidade metodológica se revela nos próprios elementos considerados e mesmo nas comparações interpessoais e sociais realizadas. As tradicionais avaliações dessas políticas envolvem sempre uma seleção de informações que produzem uma parcialidade à compreensão do fenômeno estudado. Veremos como o autor concebe uma forma de avaliação que visa um consenso sobre pesos e conjunto de pesos a ser admitido numa avaliação, o que envolve uma ampla gama de informações, sem perder de vista o caráter parcial quanto aos critérios de satisfação pública e privada. Conforme apresenta, a concepção de uma justa métrica na análise de políticas públicas é permeada pela “incompletude” – termo empregado pelo autor e que permitirá aproximar esta concepção ao campo psicanalítico (Sen, 2011, p. 134).

Ao reconhecer que são duas epistemologias distintas, com linguagens próprias, penso ser necessário um recorte muito preciso e cuidadoso para que este trabalho não culmine em terrenos de difícil alcance. Por esse motivo, e especialmente no âmbito das análises de políticas públicas, o recorte que adotei se centra nas elaborações sobre algumas métricas de satisfação e a solução que o autor propõe para dar conta dos impasses que podem ser depreendidos. Como ressalta, diante do impossível da plena satisfação, a política pública deve visar uma “arte do possível” (Sen, 2010, p. 175).

Na sequência, trarei alguns desenvolvimentos sobre o tema da satisfação/insatisfação e dos impossíveis em psicanálise, ressaltando o conceito de castração estendido ao campo sociocultural e político. Por meio do conhecido aforismo freudiano sobre o “rochedo da castração”, nos debruçaremos sobre o impossível da plena satisfação pública e privada, tomando-o no cerne do que o autor desenvolveu sobre o mal-estar na civilização. Diante da impossibilidade de uma plena satisfação matematicamente verificável, como trarei com Sen,

a psicanálise nas políticas públicas 111

encontra-se uma aporia que a psicanálise permite apreender por meio do conceito de pulsão. Veremos como, em função do rochedo da castração, a pulsão que compõe o desejo do sujeito humano está condenada a uma satisfação sempre parcial – um fenômeno que Sen, em seus trabalhos, também pôde constatar e reconhecer a seu modo.

Para abordar os impossíveis em psicanálise, trarei o que Lacan (1969-1970/1992b) desenvolveu sobre os laços de discurso, como formas de aparelhamento do gozo pela linguagem. Sua teoria dos discursos faz referência às promessas impossíveis descritas anteriormente por Freud (1937/1996b), sobre governar, educar e psicanalisar, ao qual Lacan acrescentou o impossível de fazer desejar no discurso histérico. No contexto de uma confluência dos impossíveis em políticas públicas e em psicanálise, destaco os impasses de governar e psicanalisar que permitem uma articulação possível à abordagem deste livro. Caberá aos momentos finais deste capítulo refletir sobre como cada uma dessas áreas trata seus impossíveis e, assim, pensar sobre o impossível da psicanálise no impossível das políticas públicas.

A métrica da satisfação impossível

O poder de fazer o bem quase sempre anda junto com a possibilidade de fazer o oposto. Sen, 2010, p. 11

Amartya Sen (2010) parte de uma concepção sobre desenvolvimento socioeconômico que integra indivíduo, sociedade, economia e política por meio de uma ideia de liberdade que envolve escolhas pessoais e oportunidades sociais. Essa noção pondera o que tradicionalmente se adota em termos de critérios de análise, como a hierarquia das necessidades, as comparações de bem-estar e o acento dado à renda, para uma acepção mais larga de liberdade. Para ele, liberdade é tanto um meio ou instrumento que integra uma série de direitos,

4. Uma verdade recalcada

Este bem não evita o retorno do pior, o retorno do real excluído pela política do bem-estar. Fingermann e Dias, 2005, p. 52

Neste capítulo, vamos nos debruçar sobre o bem a partir da psicanálise freudiana e lacaniana, buscando ampliar a reflexão sobre o tema deste livro. Afinal, a psicanálise “se ocupa muito especialmente do que não funciona”, a saber, “do real” (Lacan, 1974/2005c, p. 63). Para iniciar as reflexões sobre isso que não funciona – levando em conta, por exemplo, a pesquisa apresentada no prólogo sobre os índices de insatisfação acerca do bem-estar público (Ibope, 2014) –, avançarei as discussões sobre a posição de impotência do sujeito diante da impossibilidade da plena satisfação.

Como desenvolverei a partir da teoria psicanalítica, o bem é justamente aquilo que o sujeito interpreta como o que lhe falta, acredita poder completá-lo, mas que, paradoxalmente, encaminha-o na contramão de seu desejo. Veremos que é nesse sentido que a psicanálise apresenta-se orientada por uma “política da falta” (Quinet, 2009, p. 46), já que um(a) psicanalista é aquele(a) que estaria advertido(a) dos engodos oriundos do “serviço dos bens”, conforme trouxe Lacan

(1959-1960/1997a, p. 381), antes das formulações sobre o objeto a. É por essa razão que o autor referiu que todas as promessas de se atender às demandas por bens se encontram em uma posição de “trapaça”, tendo em vista o desejo inconsciente (p. 364). No entanto, será importante discutir como o discurso do capitalismo denega a castração, a falta constitutiva do desejo, fazendo crer que seria possível satisfazer, por meio desses bens, uma promessa de plenitude de gozo.

Como abordei anteriormente, as políticas públicas apresentam-se insuficientes à plena satisfação, inserindo-se imaginariamente como suposto remédio para saldar o mal-estar na civilização. Como sintoma disso, emergem não apenas infindáveis demandas por mais políticas impossíveis de satisfazer, mas também, um possível gozo contido em políticas que são feitas para que nada funcione, de modo que se mantenha a insatisfação. Tendo isso em vista, é possível pensar em políticas concebidas para satisfazer a insatisfação? Para investigar esse possível paradoxo, tomarei como hipótese uma verdade recalcada no interior da política, de modo que políticas públicas possam se oferecer à impotência de satisfazer. Essa suposta verdade, entendida em referência a uma insistência liberal na política, é oriunda do fenômeno que pude extrair no segundo capítulo, ao abordar as políticas sociais sob um eixo histórico, especialmente com a derradeira emergência do new welfarism, do neoliberalismo nessas políticas.

Vale ressaltar que não se trata de uma novidade apreender certos fenômenos histórico-culturais e políticos por meio dos fenômenos inconscientes. Freud mesmo, ao longo de sua obra, especialmente nos textos considerados sociológicos, teceu elaborações nesse sentido. Em Moisés e o monoteísmo, por exemplo, fez uma longa investigação, sintetizando o que apreendera desde Totem e tabu, ao ressaltar o fenômeno do retorno do recalcado na emergência das religiões judaica e cristã e, no que me interessa mais diretamente neste livro, a constatação do progresso estar aliado à barbárie, como um efeito de retorno

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do recalque do assassinato do pai da horda primitiva – fenômeno que vimos também no segundo capítulo com a teoria da anaciclose.

Ao retomar a figura do herói nesse trabalho, Freud (1939/1996g) enfatizou esse “rebelde contra o pai” que, após assassiná-lo, engendrou o retorno do recalcado, mesmo que na forma da “‘culpa trágica’ do herói do teatro” (p. 101). Com isso, acentuou o que desenvolveu no sentido de uma não separação entre uma psicologia individual e outra social, entre as dimensões privada e pública. Desse modo, o impulso contido no conteúdo reprimido é transmitido através das gerações por meio do simbólico da linguagem, como uma herança arcaica transmitida pelas tradições, ou ainda como na experiência do inquietante (Unheimlich), isto é, sobre aquilo que deveria ter ficado esquecido, mas que retornou como insistência em termos de uma necessidade de elaboração.

Aprendemos das psicanálises de indivíduos que suas impressões mais primitivas, recebidas numa época em que a criança mal era capaz de falar, produzem, numa ou noutra ocasião efeitos de um caráter compulsivo, sem serem, elas próprias, conscientemente recordadas. Acreditamos que temos o direito de fazer a mesma presunção sobre as experiências mais primitivas da totalidade da humanidade. (Freud, 1939/1996g, p. 144)

Desse expediente freudiano, depreende-se um projeto ambicioso, porém incoercível, da psicanálise em extrair fenômenos do inconsciente de certos fenômenos sociais, históricos e políticos, especialmente por meio do conceito de recalque. Nessa mesma passagem de Moisés e o monoteísmo, o autor ainda asseverou que uma ideia que “traz um retorno do passado” “deve ser chamada de verdade” (p. 144). Pôde, enfim, formular que as verdades históricas são atravessadas

5. Tendências políticas da pulsão

A semelhança entre o processo de civilização e o desenvolvimento libidinal do indivíduo tinha que se fazer evidente para nós. Freud, 1930/2010f, p. 59

Para a psicanálise, o humano encontra-se dividido subjetivamente, sujeito aos conflitos de sua ambivalência constitutiva e mobilizado pelas paixões do inconsciente que se revelam resistentes aos interesses racionais e às motivações da consciência. Sua natureza pulsional conflitiva encontra-se entre uma tendência gregária, como manifestação de amor (Eros), do ímpeto de unir-se ao outro, ao mesmo tempo que uma tendência agressiva o impele contra essa unidade, sob a prevalência da pulsão de morte (Tânatos). A civilização, resultante das ligações libidinais, encontra uma poderosa oposição oferecida pelo gozo de uma tendência à entropia. Freud (1930/2010f), contudo, no final de O mal-estar na civilização, observa que se trata de uma “luta” que constitui “o conteúdo essencial da vida” (p. 91).

Neste capítulo, pretendo avançar algumas questões trazidas no capítulo precedente, sobretudo quanto ao que desenvolvi sobre uma

insistência liberal-conservadora na política – e manifesta nas políticas públicas, como na emergência do new welfarism. Trata-se, como pretendo, de fazer trabalhar a advertência de Lacan (1969-1970/1992b):

É exatamente esta a dificuldade daquele que tento aproximar tanto quanto posso do discurso do analista – ele deve se encontrar no polo oposto a toda vontade, pelo menos confessada, de dominar. Disse pelo menos confessada não porque tenha que dissimulá-la mas porque, afinal, é sempre fácil voltar a escorregar para o discurso da dominação, da mestria. (Lacan, 1969-1970/1992b, p. 72)

A proposta, neste momento, é buscar referências na metapsicologia psicanalítica que possam contribuir à reflexão sobre o problema apresentado. E para retomar a questão, a partir da afirmação lacaniana de que o inconsciente é a política, a qual ideologia o inconsciente poderia trazer uma correspondência? Na medida em que seria fácil escorregar para o discurso da dominação, haveria uma tendência liberal-conservadora inconsciente?

Para essa investigação, trarei algumas reflexões sobre as tendências descritas por Freud, em 1920, sobre as pulsões de vida e morte como tendo direções semelhantes ao que encontramos inclusive nos embates políticos-ideológicos presentes na cultura. Afinal, como Freud (1930/2010f) também observou, se existe uma “semelhança entre o processo de civilização e o desenvolvimento libidinal” (p. 59), o que essa semelhança pode evidenciar sobre nosso próprio inconsciente?

Considero importante circunscrever alguns termos que contornam essas discussões. Para isso, pauto essa discussão em Bobbio (1995), com quem aprendemos que existem liberais, progressistas,

a psicanálise nas políticas públicas 195 conservadores e autoritários de direita e esquerda. Esses termos referem-se a denominações descritivas, históricas, axiológicas (de valores positivos ou negativos) e ideológicas presentes na linguagem política e popular, que vão além da dicotomia: capitalismo versus comunismo. No entanto, para esse autor, há critérios elementares que permitem apreender a razão da distinção entre direita e esquerda,1 tendo em vista que elas “indicam programas contrapostos com relação a diversos problemas cuja solução pertence habitualmente à ação política, contrastes não só de ideias, mas também de interesses e valorações a respeito da direção a ser seguida pela sociedade” (p. 33).

Assim, a esquerda encontra-se atrelada à conquista histórica de direitos sociais, concentra-se no ideal da igualdade, valoriza a diversidade e é considerada mais progressista e emancipatória. Trata-se de dirimir as desigualdades sociais e reduzir o impacto negativo das desigualdades naturais. Já a direita tende à iniquidade em função do peso atribuído à liberdade individual e é considerada mais conservadora por valorizar o status quo. No entanto, não é possível garantir a liberdade preconizada pela direita sem garantir a igualdade valorizada pela esquerda. Portanto, é preciso uma articulação entre direitos de liberdade e direitos sociais: “Se o fim é a igualdade, a liberdade, como meio, está subordinada à igualdade” (p. 118).

1 A distinção entre esquerda e direita pode ser encontrada quando não se inscreve em outras configurações intermediárias, como as de centro (à esquerda e à direita), desde versões moderadas a radicais, e mesmo em abordagens de Terceira Via, como aquelas identificadas em termos de um liberal-socialismo ou socialismo-liberal. No que tange aos termos que revelam posicionamentos políticos, encontramos também em Bobbio (2003) a conhecida distinção entre “extrema esquerda” que contempla aspectos igualitários e autoritários, a “centro-esquerda” de caráter igualitário e libertário, a “centro-direita” de corrente libertária, mas não igualitária (por ser conservadora) e, por fim, a “extrema direita” antiliberal e anti-igualitária.

6. Por uma política pública não-toda

Neste momento do trabalho, apresento uma política pública finlandesa de saúde mental chamada Open Dialogue (Diálogo Aberto). Ela é considerada mais eficaz, eficiente e satisfatória em comparação aos métodos tradicionais de tratamento encontrados nesse país. A justificativa para abordar essa política é trazer um exemplo no qual uma política pública que não pretende ser eficaz, eficiente e satisfatória pode ser, paradoxalmente, mais eficaz, eficiente e satisfatória que aquelas que carregam essa pretensão. O objetivo é também o de não reduzir nossas reflexões a uma política pública ou prática coletiva na qual se localize uma espécie de atuação ímpar de psicanalistas. Afinal, uma experiência de análise permite questionar, inclusive, a própria psicanálise.

Como indico a partir do exemplo dessa política finlandesa, é possível localizar uma série de políticas, programas e serviços nos quais se encontram trabalhadores(as) com posições clínicas, éticas e políticas que funcionam contrariamente aos dispositivos de poder do Estado. Isso permite manejos e soluções diferentes daqueles que redundam na impotência frente ao impossível e, nesse sentido, contrapõem-se aos discursos que engendram o poder de governar e educar, condizente com o que desenvolvi a partir dos discursos do mestre e universitário.

A escuta de servidores(as) públicos e trabalhadores(as) em diferentes contextos de inserção em práticas públicas e coletivas me permitiu constatar a mobilização de certo desejo, no dia a dia do trabalho, distante da pretensão de se “querer o bem” do outro. Um desejo que, enfim, tem força de resistência frente aos discursos hegemônicos, normatizantes e potencialmente totalitários, em prol dos empuxos a eficácia, eficiência e plena satisfação. É por reconhecer o empenho desses(as) trabalhadores(as) e, inclusive, com saberes e práticas diferentes da psicanálise, que abordo uma política pública que não se reduz à inserção de psicanalistas.

Ao final deste capítulo, pretendo concluir parcialmente a questão sobre o lugar de um(a) psicanalista nessas políticas como condizente a um “diálogo aberto” a uma série de discursos, experiências e fundamentos teórico-epistemológicos estrangeiros à própria psicanálise. Isso porque, conforme desenvolvo neste capítulo, se a política da falta em psicanálise condiz com o não-todo – como é possível também pensarmos a própria democracia –, isso nos indica uma posição de abertura.

Nesse contexto argumentativo, será possível desenvolver que a psicanálise não advoga o fim de toda e qualquer ilusão, conforme os desdobramentos em relação ao inconsciente como um não-todo liberal-progressista, mas que coloca em questão, justamente, o excesso de ilusões como aquilo que produz reiteradamente desilusões. Trata-se, portanto, de fazer algo diferente com a impossibilidade de acomodar ou harmonizar as exigências públicas e privadas no interior do pacto da civilização, e fazer algo diferente do que aquilo que redunda na impotência frente à castração.

Teríamos, nesse caso, uma forma de ilusão tola, não totalmente ilusória. Algo que se aproxima do que Lacan (1960/1998o) abordou em relação a uma valorização da douta ignorância no âmbito de um saber sobre a verdade inconsciente, que remete à divisão subjetiva, a um saber sobre a castração. Daí a aposta em uma política marcada

a psicanálise nas políticas públicas 237

pela potência subversiva do sujeito do desejo. Nessa hipótese, e talvez em função dessa constatação, Lacan (1959-1960/1997a) tenha preferido abordar o herói, presente na obra freudiana, pela perspectiva do feminino, ressaltando a figura de Antígona. Afinal, é também por meio dessa personagem que o autor tencionou uma direção clínica e um debate igualmente subversivos.

O Open Dialogue finlandês

O Open Diologue1 é uma política pública de saúde mental desenvolvida originalmente no Hospital Keropudas, localizado em uma província da Lapônia Ocidental na Finlândia, voltada para casos psiquiátricos considerados graves, especialmente de psicoses. A política assenta-se em princípios construtivistas, antropológicos e dialógicos, especialmente da tradição epistemológica e do pensamento sistêmico de Gregory Bateson.2 A estratégia utilizada nessa política implica uma rede de trabalho e uma abordagem assentada na linguagem, visando a comunicação entre pacientes, familiares, trabalhadores(as) da saúde e pessoas da comunidade no contexto do tratamento psiquiátrico e especialmente em intervenções nos primeiros episódios de crise psicótica (Seikkula & Olson, 2003; Seikkula et al., 2003).

São dois os níveis de análise desenvolvidos pelo psiquiatra e psicoterapeuta Marcelo Pakman. O primeiro é poético e inclui a tolerância

1 Todos os termos conceituais e as citações referentes ao Open Dialogue foram traduzidos livremente.

2 Bateson desenvolveu a double-bind communication (“comunicação de duplo vínculo” ou “dupla ligação”) e publicou, junto com outros autores da Escola de Palo Alto, na Califórnia, sobre o tratamento de psicóticos e seus familiares, empregando estratégias da comunicação nas ciências humanas. A “abordagem sistêmica” recebeu influências da cibernética, ressaltando uma causalidade de natureza circular em que a singularidade intrapsíquica é abandonada, em prol de um sistema aberto de interações. Também valorizou a comunicação, entendendo que os problemas de comunicação produzem sintomas e psicopatologias (Beauchesne, 1989).

7. Não-todo na política

Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Lacan, 1953/1998h, p. 322

Este capítulo apresenta três eixos que buscam, cada um a sua forma, tecer alguns desenvolvimentos finais a este livro. Enquanto o primeiro e o terceiro estão organizados em um estilo mais conclusivo, o segundo apresenta-se em um tempo para compreender. Seu estilo imprime-se em uma série de questões em aberto, cujas articulações teóricas se apresentam tateantes. Ainda assim, há uma aposta de que o exercício desse segundo subcapítulo seja importante ao abrir para o imprevisto que comparece no estado atual dos meus argumentos, causando, quem sabe, um desejo de saber, que resta por não se saturar.

Inicialmente, trarei os desenvolvimentos da psicanálise lacaniana sobre a lógica do não-todo. A partir das fórmulas da sexuação, ressalto como a referida lógica pode contribuir para fundamentar o lugar de analista e, a partir desse lugar, em sua inserção nas políticas públicas. Abordo o não-todo na política e recupero a ilusão tola, não totalmente ilusória, por estar advertida de seu caráter utópico. Essa advertência

contribui para que um(a) analista não incorra no risco de se encontrar capturado pelo discurso do mestre, como nos empuxos das demandas dirigidas aos(às) “psis” em sua inserção nas políticas públicas. Desse modo, apreendemos como um(a) psicanalista pode funcionar enquanto contradispositivo no interior dos dispositivos de poder do Estado.

O terceiro subcapítulo apresenta uma discussão sobre o percurso de uma análise como condizente com um processo que perpassa uma série de revoluções – e, para isso, retomo a noção dos giros discursivos –rumo à subversão do sujeito em uma análise. Como pretendo desenvolver, essa direção que vai da revolução à subversão desponta como uma direção clínica, onde quer que se ache um(a) psicanalista. Da clínica à sua inserção nas políticas públicas, como que contrabandeando o discurso analítico nos dispositivos de poder do Estado, um(a) analista encontra-se como aquele(a) que fará infiltrar o discurso analítico, ressaltando a singularidade subjetiva e apontando para uma subversão.

No segundo subcapítulo, aproximamo-nos de algumas reflexões atravessadas pela psicanálise sobre a política, especialmente no que tange à democracia e ao comunismo. A proposta é trazer algumas referências que permitam uma reflexão sobre essas formas de governo, da produção de formas de vida mais condizentes com aquilo que uma psicanálise pode visar em termos de subversão. Cabe ressaltar que não se trata de situar uma forma de governo dada pela psicanálise, de aventar uma espécie de “analiticocracia”. Trata-se de tatear, ainda assim, como por artifício, articulações sobre os efeitos que uma análise pode produzir, na medida em que um sujeito que passa por uma análise, não passa sem se posicionar de outra forma também na pólis.

A lógica do não-todo

As relações contidas nas fórmulas da sexuação trazidas por Lacan na década de 1970, especialmente nos seminários De um discurso que não fosse semblante, …ou pior e Mais, ainda, permitem apreender o

a psicanálise nas políticas públicas 277 que vimos acompanhando com a expressão “não-todo”. Uma noção às voltas com o impossível oriundo das incursões do autor no campo da lógica. Como observa Dunker (2015), essas fórmulas partem das afirmações freudianas sobre a universalidade do falo, apreendido como função, e a existência da bissexualidade humana, uma teoria elaborada por um contemporâneo parceiro de Freud, Wilhelm Fliess.

As dimensões de universalidade e existência em Lacan – oriundas da lógica formal aristotélica – seguem uma lógica diferente da tradicional, na qual “da universalidade de um conjunto deduz-se a existência de seus elementos, assim como da negação de um conjunto deduz-se a inexistência de elementos e da negação dos elementos deduz-se o vazio.” (p. 391). Lacan lançará suas investidas teóricas em uma lógica que inclui a contradição, na medida em que o inconsciente não reconhece a negação, a contradição e o tempo cronológico. Essas fórmulas foram pensadas de modo a contemplar uma teoria sobre a sexualidade, incorporando a noção de posições masculina e feminina em seus diferentes semblantes, formas de gozo e constituição da fantasia.1

Quanto ao que nos interessa neste livro, o não-todo apresenta-se segundo uma lógica suscitada pela posição feminina, na qual a mulher estaria não-toda submetida/inscrita na função fálica. Esta função seria oriunda da castração constitutiva do sujeito e determinaria a ordenação fálica do desejo do sujeito humano. Freud abordou a diferença entre os sexos por meio do “ter o falo”, na posição masculina, e seu correlato no medo de perder; e do “não ter o falo”, da posição feminina, e o correlato da inveja do pênis (penisneid). A partir disso,

1 Atualmente, psicanalistas têm se dedicado a repensar e destituir o binarismo, o falocentrismo e o eurocentrismo analíticos, isto é, termos e desenvolvimentos teórico-clínicos que serviram de pilares na psicanálise, de modo que os referidos lados “homem”, “masculino” e “mulher”, “feminino”, também presentes na teoria da sexuação lacaniana, têm sido devida e tardiamente questionados. Manterei-os aqui, pois os desenvolvimentos que apresento permitem dar lugar à sua contribuição para o tema deste livro e, ao mesmo tempo, apontam suas limitações.

8. Considerações finais

Neste livro, busquei investigar as implicações do mal-estar nas políticas de bem-estar social, a partir de uma articulação entre a psicanálise e as políticas públicas. A partir disso, problematizei o lugar do(a) psicanalista nessas políticas, considerando uma confluência de impossíveis nesses campos. Isso porque tanto as políticas públicas quanto a psicanálise encontram-se às voltas com o impossível da plena satisfação pública e privada. Ao considerar os discursos do mestre e de analista, destrinchei como cada uma dessas áreas trata seus respectivos impossíveis: de governar e psicanalisar. Com isso, circunscrevi o lugar da psicanálise, em sua orientação ética, clínica e política e, desde esse lugar, nas políticas públicas, a funcionar como um contradispositivo no interior dos dispositivos de poder do Estado. Trouxe uma tensão sobre o ouro e o cobre em psicanálise, desde a conferência freudiana em Budapeste, para pensar o caráter revolucionário e subversivo que orientam um(a) psicanalista. Trata-se de uma leitura que ressaltou um movimento que vai dos giros revolucionários à queda localizada em termos de uma subversão do sujeito. Desse modo, onde quer que se ache um(a) psicanalista, sua função implica na localização das brechas dos discursos de poder, contrabandeando o

discurso analítico para dentro de espaços onde há empuxos de fechamento esférico, plena satisfação ou mestria. Marquei o risco calcado no poder dessa mestria, não só como aquilo que pode condicionar a manutenção de um status quo entrópico nas políticas públicas, como também na clínica psicanalítica e, especialmente, como advertência para um(a) psicanalista no interior das políticas de Estado.

Quando Lacan (1973/2003c) disse que “Só existe analista se esse desejo lhe advier, que já por isso ele seja rebotalho [rébut] da dita (humanidade)”, apreendemos que há uma aposta em termos de uma transformação das formas de nos relacionarmos com nossas tendências pulsionais inconscientes, rumo a alternativas mais inventivas sobre como lidamos com o próprio mal-estar na civilização (p. 313). Esse desejo inédito e impuro de analista, ensejado no um a um, encontra-se como resultado dessa transformação. Ao encarnar a rachadura de sua divisão subjetiva e sua própria queda (objeto a), condiciona efeitos de transformação em seu modo de gozo, o que remete à plasticidade mesma da pulsão. Afinal, é possível tratar o mal que nos causa para pôr um fim à série que nos resigna na impotência.

Os impasses entre bem-estar e mal-estar social se encontram quando se pretende impor o bem-estar por sobre um mal-estar estrutural. Não tanto por má-fé, mas pelos excessos de uma ilusão insabida de seu caráter ilusório. As políticas sociais, enquanto parte fantasmática do bem comum, são dotadas de uma dimensão simbólica, importantes à vida na pólis. Portanto, não se trata de abrir mão dessas políticas, mas de atentar para sua tendência entrópica. Não se é mais de todo tolo(a) a ignorar nossas tendências inconscientes, ao mesmo tempo que uma abertura pode se dar, conduzindo a uma valorização de nossas bobagens cotidianas. Assim é que algo se extrai da impossibilidade de não nos curarmos do inconsciente: aproveitá-lo em uma economia outra.

O ato que permite incorrer na castração, rumo ao advento da experiência do não-todo, permite um abalo na rocha da castração. Desse

a psicanálise nas políticas públicas 315

modo, em uma experiência radical condizente a um abalo do si mesmo narcísico e da lógica fálica, produz-se o ato de uma abertura ao inédito. Dessa transformação, encontra-se a possibilidade para também ocupar-se de uma psicanálise, onde quer que se ache um(a) psicanalista.

Neste livro, o aforisma lacaniano: “o inconsciente é a política” foi tomado literalmente, ao pé da letra. Isto é, remetendo-o ao inconsciente como discurso do Outro, portanto, às coordenadas que determinam excessivamente o sujeito, na medida em que se constitui pela linguagem transmitida pelo Outro. Como trabalhei a partir da observação de Freud (1930/2010f) sobre uma “semelhança entre o processo de civilização e o desenvolvimento libidinal”, extraí o que essa semelhança pode evidenciar sobre nosso próprio inconsciente (p. 59). Sustentei uma insistência liberal na política e uma tendência pulsional cuja visada conservadora lhe é correlata, como um fenômeno que tende à repetição daquilo que é objeto de um rechaço.

Para além de uma possível contribuição da psicanálise ao campo das políticas públicas, que não foi uma pretensão deste trabalho, ressalto o referido paradoxo à advertência de um(a) psicanalista nos espaços públicos e, mais precisamente, em uma política pública. Digo do empuxo à dominação pela emergência do discurso do mestre. Mas o inconsciente, a partir do discurso analítico, pode advir a um não-todo liberal-progressista, isto é, nem à condição de um liberal-conservadorismo nem, estritamente, a um progressismo-iludido. Seu lugar é sempre marginal, à esquerda da esquerda e em um mais-além que descortina o que a direita recalca. É por essa via que um(a) analista pode encontrar-se suficientemente advertido(a) do retorno da sugestão, como na hipnose, e ocupar um lugar de resistência aos fechamentos totalitários.

Uma ousadia a mais para reconhecer que “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro” (Nietzsche, 1886/2001, aforismo 146). Então, ousemos uma esquerda que permita dirimir as injustiças que, concordamos, não precisam nem devem

Não é novidade a articulação da psicanálise com os Estados e suas políticas públicas. No entanto, é algo que não cessa de ser esquecido, ou colocado em segundo plano. Este trabalho de Adriana Simões Marino é uma excelente ocasião de recolocar e elaborar tais articulações, possíveis e impossíveis. O fulcro deste debate, sustentando ora por rigoroso trabalho teórico, ora por considerações históricas, é a potencial reprodução, por parte das políticas públicas, daquilo que elas pretendem combater. Para elaborar isso, a autora não poupa a psicanálise, sua história, instituições e teoria, das críticas pertinentes, sem perder as potencialidades emancipatórias dela. Tampouco deixa de lado as articulações da psicanálise com o liberalismo ideológico e econômico, especialmente quando ela pode trazer brechas e críticas a esse modelo hegemônico. Dessa forma, estamos aqui diante de um texto que traz vivo o cerne conflitivo entre psicanálise e políticas públicas, recomendado para todes não satisfeitos em ver a psicanálise reduzida ao consultório privado.

Augusto Coaracy

PSICANÁLISE

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