Práticas Psicanalíticas na Comunidade

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Sonia Terepins Silvia Bracco

organizadoras

Práticas psicanalíticas na comunidade

Relatos em dois atos

PSICANÁLISE

PRÁTICAS PSICANALÍTICAS NA COMUNIDADE

Relatos em dois atos

Sonia Terepins

Silvia Bracco Organizadoras

Práticas psicanalíticas na comunidade: relatos em dois atos © 2022 Organizadoras Sonia Terepins e Silvia Bracco Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher

Editor Eduardo Blücher

Coordenação editorial Jonatas Eliakim Imagem da capa Felipe Ferraz

Colaboradores

Adriana Nagalli de Oliveira Alice Lekowicz Ana Laura Huitizil Ana Rozenfeld

Eduardo de São Thiago Martins Fryné Santisteban Pablo Dragotto

Luiz Moreno Guimaraēs Reino Margarita Cervantes Monica Sá Susana Balparda

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4º andar 04531-934 – São Paulo – SP – Brasil Tel.: 55 11 3078-5366 contato@blucher.com.br www.blucher.com.br

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, Academia Brasileira de Letras, março de 2009.

É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios sem autorização escrita da editora.

Todos os direitos reservados pela Editora Edgard Blucher Ltda.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Práticas psicanalíticas na comunidade: relatos em dois atos / organizado por Sonia Terepins, Silvia Bracco. – São Paulo : Blucher, 2022. 406 p.

Bibliografia ISBN 978-65-5506-474-2 (impresso)

1. Psicanálise 2. Comunidade I. Terepins, Sonia II. Bracco, Silvia 22-2xxx

CDD 616.852

Índice para catálogo sistemático: 1. Psicanálise

Conteúdo

Prefácio – A democracia excludente e a clínica psicanalítica em tempos de neoliberalismo 9 Bernardo Tanis

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Introdução 17 Sonia Terepins e Silvia Bracco

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

0. Para esboçar um diálogo entre psicanálise e ciências sociais: mudanças sócio-históricas e subjetividades 23 Marcelo Viñar

Associação Psicanalítica do Uruguai

Parte I – Clínica na comunidade 29

1. Sofrimentos à espera de simbolização 31

Da psicanálise como intervenção no campo social: as dificuldades de simbolização, seu primeiro ponto de entrada Alejandro Beltrán

Sociedade Psicanalítica do México

prisões e liberdades: tornar-se sujeito

2. Prisões e liberdades: tornar-se sujeito 69

Des-marcando limites

Fernando Orduz

Sociedade Colombiana de Psicanálise

3. A transferência em novos cenários: WhatsApp e redes sociais 95

Encontros Terapêuticos

Ana Cristina de Araújo Cintra Camargo Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo

Parte II – Clínica DA comunidade 129

4. Escuta e atendimento em grupo: novos dispositivos e desafios 131

Confiança nas lentes, não nos olhos

Jorge Bruce Sociedade Peruana de Psicanálise

5. A psicanálise a serviço dos educadores e profissionais da saúde 157

Microinstituições e trabalho civilizatório

Marion Minerbo Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Parte III – Abismo social 213

6. O mecanismo de negação e a psicanálise na desconstrução do racismo estrutural 215

Psicanalistas em comunidade: expandindo fronteiras

Alberto César Cabral Associação Psicanalítica Argentina

6

7. Reinventar para intervir: psicanálise em contextos de vulnerabilidade 241

Políticas públicas e psicanálise Carmen Rodriguez

Doutora em educação pela UNER Argentina, Psicóloga pela UDELAR Uruguai e Análise Institucional e Psicologia Social pela TAIGO Uruguai

Parte IV – Pandemia 271

8. Recriando uma clínica possível na pandemia 273

Os girassóis de Van Gogh Magda Guimarães Khouri

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

9. Profissionais de saúde: escuta e resistência 299

Uma ética de cuidado em tempos pandêmicos Maria Elizabeth Mori

Sociedade de Psicanálise de Brasília

10. Luto e isolamento 335

O incêndio e o relato Mariano Horenstein

Associação Psicanalítica de Córdoba

Violinistas nas salinas 351 Pablo Alberto Dragotto Associação Psicanalítica de Córdoba

Sobre os autores 381

práticas psicanalíticas na comunidade 7

Parte I

Clínica na comunidade

1. Sofrimentos à espera de simbolização1

Da psicanálise como intervenção no campo social: as dificuldades de simbolização, seu primeiro ponto de entrada

Alejandro Beltrán

Sociedade Psicanalítica do México

El sufrimiento, ¿Es derrota o es batalla?

Juan Gelman

A título de introdução

Sugiro abordar estes trabalhos de intervenção comunitária com a mesma escuta que me proponho com o material analítico. Por esse motivo não pedi às editoras do presente livro nenhum esclareci mento sobre o contexto e o programa institucional por trás de cada intervenção. Sem sombra de dúvida perde-se clareza sociológica com este método, mas eis a minha aposta, coloca-se no centro o

1 O artigo que abre este capítulo, de Alejandro Beltrán, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Alicia Beatriz Dorado de Lisondo e Claudia Janette Boutros Carvalho, de Campinas, São Paulo; Grácia Maria Fenelon e Delza Maria da Silva Araújo, de Brasília; e Cristiane Paracampo Blaha Rangel, do Rio de Janeiro. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

tipo de perspectiva e instrumentos que a psicanálise oferece para entender um grupo institucionalizado. Os exemplos que constituem meu objeto, e se apresentam como dificuldades na simbolização, são paradigmáticos na medida em que o processo em questão é o próprio centro da humanização do infans. A forma de abordá-lo pelos analistas aqui é visto então como detonador que evidencia o princípio básico pelo qual se constrói a subjetivação do indivíduo.

Evidentemente, não podemos ignorar então o primeiro ponto que sustenta essa perspectiva:

1. O princípio do inconsciente como dimensão imprescin dível para compreender as relações intersubjetivas. Já aqui temos que enfrentar um desafio disciplinar. Da pers pectiva das ciências sociais, nós psicanalistas passamos rápido demais, sem uma organização teórica e metodológica minuciosa, do inconsciente como explicação intra-subjetiva para a sua ampliação como fator decisivo das relações so ciais. É evidente que nessa consideração não podemos nos esquecer do êxito que os textos considerados antropológicos de Freud tiveram por várias décadas, e que é indispensável retomar como fonte, referência e inclusive como recurso atual na reflexão da psicanálise comunitária. A sociologia, a antropologia, a etnografia, a história das mentalidades e inclusive a filosofia do século XX tiveram influência de diversas correntes da psicanálise e, por sua vez, a forma em que a própria psicanálise pode entender o social e o comunitário pode ser explicitada com base nesse diálogo que já é centenário (Pasqualini, 2016). Por isso, é necessário esclarecer que:

2. É preciso tornar consciente as raízes disciplinares que sustentam a perspectiva psicanalítica da comunidade. As fontes e encruzilhadas do diálogo e do debate entre a

sofrimentos à espera de simbolização32

2. Prisões e liberdades: tornar-se sujeito1

Des-marcando limites

Fernando Orduz Sociedade Colombiana de Psicanálise

Introdução

Marca é uma noção que já foi usada para delimitar e diferenciar territórios, por isso surgem palavras como comarca ou demarcação. Também deu origem ao nome dos indivíduos aos quais se encarregava o cuidado de tais marcas, os marqueses.

Existem marcas históricas muito importantes, como a Marca Hispânica que diferenciou o território andaluz do império carolíngio,

1 O artigo que abre este capítulo, de Fernando Orduz, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Alicia Beatriz Iacuzzi, da Argentina, e Pilar Raffo, do Peru. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

ou a marca que traçou o Tratado de Tordesilhas pelo qual portugueses e espanhóis se dividiram os territórios recém conquistados.

Marca também dá sentido à palavra marco2, a qual remete àqueles bastiões que sustentam a tela pintada, e que de alguma forma se associa à palavra que tanto usamos na nossa técnica: enquadramento. Marcos, que tanto na arte como na nossa técnica, foram pouco a pouco atravessados e transbordados pelas vanguardas artísticas modernas do século XX e pelas forças de muitos movimentos sociais que foram denunciando a insuficiência de tais perímetros para conter suas formas, suas diversas identidades, suas múltiplas representações.

Toda institucionalidade se sustenta sob o cuidado das marcas. Os Marqueses e inquisidores têm a função de supervisionar e controlar os limites do território, para sancionar aquele sujeito, grupo ou ideia que transgrida com alguma ação, fala ou pensamento o limite continente do território e, portanto, excluir, extraditar, marginalizar qualquer representante-representativo que se oponha às identidades que marcam o território.

Há conceitos que se associam a essa ideia de marca, como a pala vra limite ou a palavra borda. A noção de limite tem uma procedência particular, refere-se ao caminho que separa duas propriedades, que contorna seus territórios e que não é posse de ninguém como tal, permitindo a circulação daqueles que compartilham um bairro. O limite não teria posse, separa dois proprietários, mas é em si mesmo um território sem dono.

Essa ideia de limites nos leva a uma concepção de espaço onde sempre nos moveremos entre dois. Cada vez que marcamos uma linha limítrofe dá-se existência a uma divisão, como quem abre com um bisturi a pele, expondo dois tegumentos, duas lâminas. Mover -se no limite é um vislumbre da compreensão de outros territórios.

2 N.T. “Marco” em espanhol quer dizer “moldura (de um quadro ou pintura)”.

prisões e liberdades: tornar-se sujeito70

3. A transferência em novos cenários: WhatsApp e redes sociais1

Encontros Terapêuticos

Ana Cristina de Araújo Cintra Camargo Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo

O exercício da liberdade de pensar e criar pode apenas ser… praticado. (Luís Cláudio Figueiredo, em prefácio de A Face Estética do Self, de Gilberto Safra)

Ao nos debruçarmos em muitos trabalhos de cunho psicanalítico realizados durante os tempos de pandemia do Sars Covid 19, depa ramo-nos com uma infinidade de dispositivos criados e efetivos no atendimento e cuidado com pacientes e também em instituições e/ou projetos sociais. Para que possamos tecer considerações a respeito de muitas destas iniciativas, é importante ressaltar conceitos e formas de entender a clínica psicanalítica e a utilização de suas ferramentas. Deste modo, devemos nos deter em cada demanda que se apresente. Nesse cenário, o conceito de clínica extensa, da forma proposta por Fabio Hermann em muito nos auxilia. Este autor recupera

1 O artigo que abre este capítulo, de Ana Cristina Cintra Camargo, foi elaborado com base nos trabalhos dos colegas Andrés Gautier, da Bolívia, e Mirta Itlman, da Argentina. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

o conceito de clínica, de uma postura, um inclinar-se diante de um fenômeno sobre o qual se quer realizar uma investigação. As demandas exigem investigações e cada uma delas é específica e produz conhecimentos próprios a ela. São investigações de uma determinada cultura, de um certo campo e por que não dizer, de um certo momento, de determinada época.

Hermann entende a Psicanálise como o método psicanalítico em ação, e que ele tanto pode servir à sua mais tradicional aplicação, a clínica de consultório, quanto a formas diversas de contato terapêu tico ou ainda como instrumento para análises da cultura, literatura, dos mitos e possui uma amplitude de utilização incomparavelmente maior do que comumente chamamos de técnica (associação livre, atenção flutuante, interpretação transferencial…). Para ele, uma simples entrevista pode ser um método psicanalítico em ação.

Desde sua obra inaugural, Andaimes do real; uma revisão crítica do método da Psicanálise (Hermann, 1979), empreendeu o esforço de recuperação do método da psicanálise e compreensão do ato de interpretar. Buscou por em evidência o método psicanalítico de investigação e cura – a interpretação de sentidos e a construção de psicanálises possíveis. Ele identifica o método como responsável pelos efeitos da psicanálise e explica seu interesse pelo sentido eti mológico da palavra oriunda do grego metá (para além de) e hodós (caminho). Método é, pois, uma maneira de caminhar para atingir determinado fim, superar um obstáculo.

O sofrimento psíquico, tanto individual quanto grupal, se cris taliza na forma de sintomas. Com o sintoma instalado, o método psicanalítico seria uma das alternativas para o rompimento de al gumas de suas engrenagens criando condições para o exercício da função terapêutica. Função terapêutica é o conceito que sustenta a extensão da clínica: cuida, cura, amadurece e flexibiliza, possibili tando assim um melhor trânsito dos sentidos que se formam nas

a transferência em novos cenários96

Parte II

Clínica DA comunidade

4. Escuta e atendimento em grupo: novos dispositivos e desafios1

Confiança nas lentes, não nos olhos

Jorge Bruce Sociedade Peruana de Psicanálise

Au fond de l’inconnu pour trouver du nouveau! Baudelaire (Le Voyage)

Há algum tempo, dei uma aula sobre a dinâmica do racismo, de uma perspectiva psicanalítica, no instituto da Sociedade Peruana de Psicanálise. Apesar de ser um dos problemas mais prementes, na acepção primitiva da palavra, da sociedade peruana – e não só da peruana –, tal questão não é abordada de maneira sistemática na maioria dos institutos da esfera psicanalítica. De maneira que

1 O artigo que abre este capítulo, de Jorge Bruce, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Sofía Arbeláez, da Colômbia; Luiz Moreno Guimarães Reino e Eliana Caligiuri, de São Paulo; e Luis Bibbó e Silvana Hernández, do Uruguai. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

aproveitei com entusiasmo a ocasião que me foi oferecida. Voltare mos sobre este encontro, mas antes queria dizer que observo com imenso respeito os esforços de muitos colegas do nosso continente em levar a psicanálise para além das fronteiras dos consultórios e das sociedades: Psicanálise a Céu Aberto – iniciativa da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal) promovida pela minha amiga Magda Khouri –; Extramuros, da da Asociación Psicoanalítica del Uruguay (APU), Psicoanálisis en Salida, na Colômbia, ou, por exemplo, as atividades organizada entre analistas da da Sociedade de Psicanálise de São Paulo e a ONG União de Núcleos e Associações de Vizinhos de Heliópolis e Região (UNAS). Essas são algumas das experiências criativas adotadas por colegas que admiro e aprecio. Devido à pandemia, essas saídas a campo – expressão não isenta de ambiguidade – se multiplicaram, como no caso de Psicólogos Contigo, experiência liderada pela minha sociedade, a Sociedade Peruana de Psicanálise (SPP), premiada no congresso da Associação Psicanalítica Internacional (IPA) em Londres.

No entanto, tenho a impressão de que é preciso uma mudança não só metapsicológica, mas também técnica. Não se trata somente de levar nossas caixas de ferramentas para onde não costumam chegar, seguindo o modelo de médicos sem fronteiras. Antes, penso na necessidade de permitir que a problemática da nossa região, descrita cada vez mais nos trabalhos de colegas latino-americanos, transforme as raízes de nossa prática. Pergunto-me se não devemos fazer uma refundação conceitual. Para isso, é preciso deixar que as situações dramáticas de desigualdade, fragmentação e violência que normalmente acontecem em zonas distantes dos nossos consultórios, entrem e nos confrontem, nos obriguem a repensar nossa atividade.

O caminho foi – e continua sendo – feito ao andar, como nos convidava Machado, desde o começo do século XX por vanguar das como o movimento antropofágico brasileiro. Seu Manifesto

escuta e atendimento em grupo132

5. A psicanálise a serviço dos educadores e profissionais da saúde1

Microinstituições e trabalho civilizatório

Marion Minerbo Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

Introdução

Recebi um bloco com quatro breves relatos que descrevem interven ções psicanalíticas extramuros. Três dos relatos são sobre intervenção com educadores; o quarto aborda um trabalho com cuidadores de uma instituição geriátrica. Três delas foram realizadas online durante

1 O artigo que abre este capítulo, de Marion Minerbo, foi elaborado com base nos trabalhos dos colegas Alejandro Begue, Olga Cartañá, Rosalia Beatriz Alvarez, Maria Cristina Fernandez, Sonia Sandleris, Vivian Secco, Claudia Borensztejn, Laura Orsí e Gabriel Finquelievich, da Argentina; Denise Lahude, de Porto Alegre; Any Trajber Waisbich e Rosana Zakabi, de São Paulo; e Isabel Mansione, Diana Zac e Santiago Hector Carballo, da Argentina. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

a pandemia com o objetivo de “dar algum suporte” às pessoas que estavam na linha de frente.

Apenas uma das intervenções é anterior à pandemia e se deu de forma presencial.

Em todas as situações relatadas, o pano de fundo das interven ções é o traumático. Em três delas temos a sobreposição de dois “tipos” de traumático: um crônico, já que as populações atendidas estão em situação de grande vulnerabilidade psíquica e social; e um agudo: a pandemia. A presença do psicanalista na comunidade se justifica pela necessidade de se oferecer um suporte transferencial para sustentar, e relançar, os trabalhos psíquicos necessários para elaborar algo desse duplo traumático.

Em todas as intervenções observa-se que, no início, os partici pantes e os analistas se sentem esmagados pelo peso de uma realidade desesperadora. Aos poucos, sustentados pela transferência, acabam encontrando pequenas saídas e soluções criativas para o que parecia não ter jeito. Basta isso para que sintam algum alívio e, ainda que temporariamente, empoderados.

No entanto, como o traumático continua lá, atacando o pa raexcitação – o escudo protetor – dos educadores e cuidadores, é inevitável que o psiquismo volte a ficar intoxicado/ inundado de angústia. O grupo, então, submerge novamente no desespero de não ver saída. Por isso o trabalho com comunidades em estado de grande desamparo e vulnerabilidade tem que ser constante, tal qual o paciente renal crônico precisa de diálise semanal.

Em todos os grupos, as soluções encontradas pelos partici pantes não são grandiosas. Não é nada que resolva, ou modifique, a dura realidade com a qual estão confrontados. O que muda é a posição subjetiva dos participantes: de assujeitados a um destino

a psicanálise a serviço dos educadores158

Parte III Abismo social

6. O mecanismo de negação e a psicanálise na desconstrução do racismo estrutural1

Psicanalistas em comunidade: expandindo fronteiras

Alberto César Cabral Associação Psicanalítica Argentina

Acho mais do que oportuna a iniciativa da Diretoria de Comunidade e Cultura da FEPAL de compilar e divulgar os depoimentos sobre a chamada “prática em comunidade”. Esse livro faz com que eles entrem – de pleno direito – no patrimônio diversificado de expe riências clínicas que impulsionam os nossos colegas e entesouram as nossas instituições.

1 O artigo que abre este capítulo, de Alberto César Cabral, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Silvia Bracco e Karina Santos da Silva, de São Paulo; e Heloísa Tonetto, Ivani Bressan, Josênia Heck Munhoz, Luciana Aranha Secco, Magali Fischer, Maria Elisabeth Cimenti, de Porto Alegre. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

Esse é um passo importante para promover uma reflexão ampla em torno dessas práticas que circulam com frequência na surdina, toleradas com relutância por um “discurso oficial” que tende a menosprezar tudo que se distancia dos moldes clássicos nos quais se desdobrou (ou se dobrou?), historicamente, a nossa disciplina. Questionar essa condição periférica, fronteiriça e até sub-oficial permite recuperar a sua aptidão para confrontar a arrogância de um centro que imaginariamente poderia decretar com precisão (e de antemão) aquilo que é e aquilo que não é psicanálise.

Em um vídeo de divulgação para o nosso Congresso anterior da FEPAL compartilhei algumas das reverberações que tinha para mim o eixo escolhido naquela ocasião: “Fronteiras”. Insistia ali no fato de que as zonas de fronteira eram zonas nas quais “passa vam2 coisas...” em vários sentidos. Como zonas privilegiadas de intercâmbio, passam por elas bens, mercadorias e pessoas. Mas também mudanças idiomáticas, que fazem com que a língua falada nas fronteiras seja particularmente híbrida... assim como as pautas culinárias e culturais em geral, que costumam fazer parte de uma mestiçagem normalmente enriquecedora.

As fronteiras configuram, também, zonas mais desregradas: apesar dos esforços dos Estados, a mão comprida da Justiça não chega a mandar com plenitude nos confins, impregnados de um clima transgressor que lhes dá um ar inquietador. É que neles “pas sam coisas”, também, no sentido de que “ocorrem” acontecimentos – menos frequentes em âmbitos “normais” – que os convertem em cenários privilegiados para ficções policiais ou de espionagem.

Acontece que a nossa disciplina também tem fronteiras, que delimitam a sua jurisdição e as suas áreas de incumbência. Fronteiras que – se adotamos um olhar “de águia” (Nietzsche, 1881), estendido

2 N.T. O verbo “pasar” em espanhol tem o duplo sentido de “acontecer” e “passar”.

o mecanismo de negação e a psicanálise216

7. Reinventar para intervir: psicanálise em contextos de vulnerabilidade1

Políticas públicas e psicanálise

Carmen Rodriguez Doutora em educação pela UNER Argentina, Psicologa pela UDELAR Uruguai e Analise Institucional e Psicologia Social pela TAIGO Uruguai

Nós, que trabalhamos em políticas públicas em contextos de vul nerabilidade social, às vezes atravessamos a fronteira em sentido contrário à forma como a atravessaram uma boa quantidade de psicanalistas (incluindo os que participam deste livro), os quais, partindo da psicanálise, ingressaram no campo das políticas pú blicas e se interessaram pelas funções da psicanálise fora do setting

1 O artigo que abre este capítulo, de Carmen Rodriguez, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Julia Alonso, do Uruguai; Teresa Lirio e Maria de Lourdes Teodoro, de Brasília; e Sarah Barretto Prado, de Ribeirão Preto, São Paulo. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

tradicional que deu origem e sustentação às práticas psicanalíticas. Partimos das políticas públicas e vamos ao encontro da psicanálise.

Por quê?

Há perguntas que valem pelo caminho que abrem na postergação das suas respostas, não existem para serem respondidas de imediato e menos ainda de maneira definitiva. Ao contrário, seu valor está no que colocam em andamento, no trabalho que promovem nas tentativas de resposta provisórias, hipotéticas. Perguntamos para saber, mas o (bom) saber mantém sempre viva a relação com o não-saber, com aquilo que o coloca em tensão e o leva a percorrer os caminhos do não sabido, não pensado, não entendido. Parecem-se com esses “por quê?” dos primeiros anos, das crianças pequenas: e por quê, por quê e por quê. Mais próximos do gesto espontâneo da investigação, que dos saberes pacatos que, apavorados pelo não sabido, clausuram as perguntas com respostas arrogantes e esnobes. E penso que os “por quê” na relação entre as políticas públicas e à psicanálise são epocais e, portanto, suas respostas também o são.

Abrimos então uma zona de oscilações e vacilações que nos permitem relançar as perguntas acerca dessa relação fronteiriça entre as políticas públicas e a psicanálise, particularmente no contexto de uma América Latina contemporânea, injusta, desigual e colonizada.

Por que a psicanálise? Pergunta-se Alenka Zupancic2 (2013) do outro lado do mundo, sugerindo que a questão é se perguntar o que é exatamente o campo propriamente psicanalítico e como a psicanálise tende a “se mover por todos os lugares” e como existem objeções frequentes que poderiam se expressar assim “se ficasse só em seu feudo, no pedaço que lhe foi designado, proporcional ao seu reconhecimento social!” (p. 11).

2 Filósofa eslovena, professora e pesquisadora do Instituto de Filosofia da Aca demia Eslovena de Ciências e Artes.

reinventar para intervir242

Parte IV Pandemia

8. Recriando uma clínica possível na pandemia1

Os girassóis de Van Gogh

Magda Guimarães Khouri Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

“A ficção não é o lugar dos sonhos onde se vai des cansar dos aborrecimentos da vida ordinária. Ela é a negação radical dessa vida ordinária, é a verdadeira vida, aquela a que é preciso se de dicar inteiramente.” (Rancière, 2021, p. 43)

1 O artigo que abre este capítulo, de Magda Guimarães Khouri, foi elaborado com base nos trabalhos das colegas Karla Zárate, do México; Caroline Milman, Carmen Nogueira, Giuliana Chiapin, Helena Surreaux, Janine Severo, Rodrigo Boettcher, Sandra Fagundes, Siana Pessin Cerri, de Porto Alegre; e Graciela Maldonado Loch e Manoel Mariano da Rocha Neto, de Pelotas, Rio Grande do Sul. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

Frestas na pandemia

Conectada com o seu tempo, a atual Diretoria de Comunidade e Cultura da FEPAL (2020-2022) desenvolveu o projeto Psicanálise em trânsito. Gestão que, de ponta a ponta, foi atravessada pela pandemia, conseguindo, por meio de suas frestas, manter um debate vivo sobre temas sensíveis ao momento, tais como, clínica emergen cial na América Latina e o pensamento psicanalítico no trabalho extramuros, agora registrados na presente publicação.

Agradeço muitíssimo Sonia Terepins, Silvia Bracco e toda a equi pe pela oportunidade de dialogar sobre as extensões da psicanálise, que ao ampliar seu espectro de ação, faz revisar, criticar e renovar o nosso campo de conhecimento. Iniciativas como esta são aquelas que promovem recuperar o lugar da psicanálise fundada por Freud, ou seja, exercer um olhar clínico sobre o mundo.

Os três relatos clínicos dos colegas, que habitam diferentes cantos de nossa América Latina, se referem às suas experiências durante a pandemia, que explodiu no mundo no início de 2020 e se estende até hoje. Não poderia ser de outra maneira. O cotidiano de todos nós vem se pautando, por todos os lados, pelos movimentos da crise sanitária instaurada pela covid-19.

Neste contexto os textos apresentados colocam em evidência como os psicanalistas foram convocados a trabalhar de diferentes formas para acolher o sofrimento psíquico gerado pela atual crise. O que demanda refletir, cada vez mais, sobre settings, modalidades de intervenção, assim como os conceitos psicanalíticos e seus vínculos com momentos históricos e culturais nos quais estamos inseridos.

recriando uma clínica possível na pandemia274

9. Profissionais de saúde: escuta e resistência1

Uma ética de cuidado em tempos pandêmicos

Maria Elizabeth Mori2 Sociedade de Psicanálise de Brasília

1.689.000 mortos. 69 milhões contaminados. Segundo a agência Reuters3, estes são os números contabilizados da população latino -americana e caribenha afetada pelo novo coronavírus até o mês de maio deste ano. O primeiro caso de covid-19, doença causada pelo SARS-Cov-2, foi diagnosticado na cidade de Wuhan (China),

1 O artigo que abre este capítulo, de Maria Elisabeth Mori, foi elaborado com base nos trabalhos dos colegas Roosevelt Cassorla, de São Paulo; Marina Moroni e Silvia Silvestrini, de Campinas; e Viviana Valz Gen do Peru. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

2 Psicanalista, Membro e Diretora da Diretoria de Comunidade e Cultura (DCC) da Sociedade de Psicanálise de Brasília (SPBsb). Psicóloga, Mestre e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB).

3 https://graphics.reuters.com/world-coronavirus-tracker-and-maps/pt/regions/ latin-america-and-the-caribbean/

em novembro de 2019, e identificado na América Latina quase dois meses depois.

Nestes mais de dois anos de pandemia a população mundial vive tempos de transitoriedade e incertezas pelas dimensões complexas que envolvem a doença, causada por um micro-organismo que produz a síndrome de insuficiência respiratória aguda grave. Desde então, os estudos científicos e clínicos evoluíram e constata-se que os casos mais graves podem levar o infectado à morte por ter tido outros sistemas atingidos, além do respiratório: vascular, hematoló gico, renal, cardíaco, hepático, vascular cerebral e outros. Embora a enfermidade se apresente, na maioria dos casos, com sintomas leves ou moderados e os contaminados se recuperem sem necessidade de tratamento, havendo muitos casos assintomáticos, os diferentes modos individuais de adoecer ainda causam surpresa.

Vivemos, no momento, a 4ª onda de contaminação. Por isso, sem saber o que pode nos acontecer, a maioria de nós vive, ainda, uma guerra contra um inimigo que se mostra com muitas forças, bem aparelhado para sua replicação. Daí se explica as diversas reações emocionais individuais e coletivas diante da pandemia, causadora de um mal-estar na atualidade.

Passamos a viver um cotidiano traumático, um novo normal caracterizado por mudanças subjetivas e sociais no modo de ocupação do espaço público, que iniciaram (e se mantém) com as indicações preventivas da Organização Mundial de Saúde (OMS) de distancia mento social (restrição do contato entre pessoas que não habitam na mesma residência e coibição de aglomerações de muitas pessoas), uso permanente de máscaras e álcool-gel e lavagem das mãos. O desafio de hoje, mesmo após a disponibilização de vacinas pela comunidade científica, tem sido o de enfrentar a pandemia, evitando o aumento de contaminações e mortes nos quatro cantos do planeta. Grande parte da população mundial ainda não foi vacinada, seja por falta

profissionais de saúde300

10. Luto e isolamento1

O incêndio e o relato

Mariano Horenstein Associação Psicanalítica de Córdoba I

Em “O fogo e o relato”, Giorgio Agamben (2016) resgata uma história contada por Gershom Scholem:

1 Diferentemente dos anteriores, este capítulo conta com dois artigos iniciais, dos psicanalistas Mariano Horenstein e Pablo A. Dragotto. Eles foram elaborados com base nos trabalhos dos colegas Roosevelt Cassorla, de São Paulo; Alicia Lisondo, Patricia L. de Oliveira, Teresa Cristina Peixoto, Ivana Marino, Sancha M. Benvindo Lopes, de São Paulo; Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo, Maria Tereza Labate Mantovanini, Raul Gorayeb, Silvia Martinelli Deroualle, também de São Paulo; e Emílio Salle e Renato Piltcher, de Porto Alegre. Os respectivos trabalhos também compõem este capítulo.

Quando o Baal Shem, fundador do hassidismo, tinha de resolver uma tarefa difícil, ia a determinado lugar na floresta, acendia um fogo, pronunciava as orações e aquilo que ele queria se realizava. Quando, uma gera ção depois, o Maguid de Mazritch se encontrou frente a um problema semelhante, dirigiu-se a esse mesmo lugar na floresta e disse: ‘Não sabemos acender o fogo, mas podemos pronunciar as orações’, e tudo aconteceu de acordo com seus desejos. Uma geração depois, Rabi Moshe Leib de Sasov se encontrou na mesma situação, foi até a floresta e disse: ‘Não sabemos como acender o fogo, não sabemos pronunciar as orações, mas conhecemos o lugar na floresta, e isso deve ser suficiente’. E, de fato, foi suficiente. E quando, passada outra geração, Rabi Israel de Rischin teve de enfrentar a mesma tarefa, permaneceu em seu castelo, sentado em seu trono dourado, e disse: ‘Não sabemos acender o fogo, não somos capazes de recitar as orações e nem sequer conhecemos o lugar na floresta: mas de tudo isso podemos contar a história’. E, mais uma vez, com isso foi suficiente.

Agamben se serve desse relato para pensar, em termos alegó ricos, a literatura. Eu, no entanto, com minha mania de encontrar a psicanálise por todos os lados, não posso evitar lê-lo com base nos meus próprios interesses. Assim, os elementos do conto – o lugar, o fogo, as orações, a história se apresentam para mim como quatro conceitos fundamentais da psicanálise, que servirão não para repensar os fundamentos teóricos da nossa disciplina, mas como coordenadas de uma leitura, contemporânea e situada.

luto e isolamento336

Este livro, organizado por Sonia Terepins e Silvia Bracco, nos propor ciona uma resposta inquestionável sobre as indagações acerca do futuro da psicanálise, trazendo a diversidade de contextos e interven ções a partir de uma escuta psicanalítica estendida, demostrando assim o potencial transformador da atuação psicanalítica.

As organizadoras solicitaram breves relatos de intervenções na comu nidade em diferentes cenários e práticas variadas. Se sucedem em seus capítulos situações em múltiplos contextos de so imento psíqui co. Os relatos solicitados foram agrupados em quatro eixos: Clínica na comunidade, Clínica da comunidade, Abismo social e Pandemia. A esse primeiro momento dos relatos deram o nome de Primeiro Ato. Posteriormente foram convidados notáveis analistas de diferentes países latino-americanos para tecer reflexões teórico-clínicas sobre cada um dos relatos, denominado Segundo Ato.

9 786555 064742 PSICANÁLISE
ISBN 978-65-5506-474-2

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