Entre Garotos

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Copyright © 2015 Pablo Torrens Nenhuma parte desta publicação pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios existentes sem autorização por escrito da editora. Este livro é uma obra de ficção. Nomes, personagens, empresas, organizações, lugares e acontecimentos descritos são produto da imaginação do autor ou usados de modo ficcional. Qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, datas, acontecimentos ou lugares reais é mera coincidência. 1a Impressão CAPA Atlan Coelho REVISÃO Nicole Trentini Felipe Colbert DIAGRAMAÇÃO Equipe CADMO Este livro está em conformidade com o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. ____________________________________________________________________________ Torrens, Pablo Entre garotos / Pablo Torrens – São Paulo, SP : Editora Cadmo, 2015. ISBN: 978-85-68758-02-1 1. Ficção brasileira I. Título. CDD-869.93 ____________________________________________________________________________ Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção: Literatura brasileira 869.93 Impresso no Brasil Printed in Brazil 2015 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA CADMO São Paulo — SP www.editoracadmo.com.br


Agradecimentos A todos os meus amigos pessoais e virtuais que leram, opinaram e elogiaram. Especialmente ao Paulo Braccini, por ter sido o primeiro a pagar pela versão do livro em ebook. Leandro Schmitz, Jefferson Andrey Wehmuth, Bruno Arins, Simara Huddler, Nicole Trentini e ao meu companheiro Jozias Machado, por ter me dado todo apoio desde o início. Agradeço também ao meu mentor Felipe Colbert, que me auxiliou com seus conselhos e comentários profissionais.



CAPÍTULO 1 Quando o Bispo Azevedo me pediu para acompanhá-lo até a sua

sala, eu o segui relutante, enquanto meu pai aguardava no sofá em frente à porta do bispado. Atrás de uma mesa de mogno escura que separava as duas únicas cadeiras da sala, reparei alguns quadros — o presidente da Igreja dos Santos dos Últimos Dias, Thomas S. Monson, e seus dois conselheiros, Henry B. Eyring e Dieter F. Uchtdorf. As expressões deles nas fotos com cara de poucos amigos me davam calafrios. — Sente-se, Elder — o bispo me disse, apontando para a cadeira. — Fique à vontade. Eu obedeci. Segurava o Livro de Mórmon tão forte em minhas mãos que chegava a deixar marcas de suor na capa de couro. Sabia que esse momento viria, mas meu corpo trêmulo avisava-me que não estava preparado psicologicamente. Finalmente havia chegado o dia da minha entrevista para começar o processo de me tornar um missionário. Servir à missão significava dedicar dois anos batendo de porta em porta e ensinando as crenças da Igreja Mórmon. Dentro da minha religião, é de praxe que todo jovem depois dos dezoito anos completos deva fazer. O bispo perguntou se eu poderia oferecer uma oração antes de iniciar a entrevista. Eu ajeitei a gravata e postulei. — Elder — ele começou a procurar alguma coisa na gaveta da escrivaninha —, estou muito feliz pelo seu desejo em ser um missionário para o Pai Celestial. Como se eu tivesse muita escolha, pensei. Dei um sorriso bem aberto, o melhor que pude. — Você sabe que essa é a única e verdadeira igreja, certo?


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Não entendi se ele estava fazendo uma afirmação por mim. — Claro... — pronunciei lentamente. Ele fez uma careta estranha com minha indecisão e arregalou os olhos, como se eu tivesse acabado de confessar um assassinato. O bispo retirou da gaveta uma ficha com muitas anotações escritas em azul. Repousou os cotovelos à mesa e entrelaçou os dedos como se fosse rezar, mas não fechou os olhos. O jeito duro com que observava minha face dava a impressão de que eu escondia alguma coisa. Comecei a respirar com dificuldade. — Você sabe que Joseph Smith é um profeta de Deus, certo? — Sim. Ele passou a mão no queixo e subitamente senti uma gota de suor escorrer em minha nuca até a gola da camisa social. — E que o Livro de Mórmon é a palavra de Deus? Balancei a cabeça em afirmativo, sem saber se era outra pergunta retórica. Ele finalmente deu atenção ao papel. — Vejo na minha ficha que você passou por todas as etapas... Enquanto ele narrava meus feitos na igreja, me ajeitei na cadeira e cruzei os braços olhando fixo para a mesa escura. Eu sabia que não deveria desistir da missão por dois motivos: o primeiro, que meu avô havia sido um missionário, depois meu pai, e agora, eu. Uma tradição em nossa família. O outro era que encarava tudo isso como uma forma de gratidão pelo perdão concedido pelo meu pai no ano passado, quando eu havia feito a maior burrada da minha vida. Eu e meu primo Tiago pegamos o único carro da família sem ele saber e partimos para a praia, em Florianópolis. Na metade do caminho, estacionamos para curtir um pouco, quando fomos assaltados e os bandidos levaram o automóvel. Não tínhamos um tostão para voltar para casa e a polícia nunca recuperou o veículo. Meu pai ficou tão furioso que quase me deserdou. Se não 8


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fosse o apoio de minha mãe, eu nunca teria conseguido contornar a situação. Ele me deu uma segunda chance, mas com a condição de ir à igreja e cumprir o chamado de todo jovem mórmon. — Você sente que está pronto? — o bispo me indagou. Talvez fosse melhor eu ser sincero comigo mesmo e dizer a ele que me sentia encostado na parede com uma arma apontada para minha cabeça. Mas sei que meu pai ficaria louco da vida, então engoli em seco: — Sim — limpei a garganta —, estou. — Confiamos em você. — Ele finalmente sorriu e me cumprimentou. Eu me levantei da cadeira num salto e retribuí o aperto de mão sem conseguir olhar nos olhos dele. A única coisa que eu queria era fugir dali, mas minhas pernas não deixavam, pareciam cravadas no chão. Quando o Bispo Azevedo abriu a porta, comecei a andar em passos lentos para não perder o equilíbrio. Do lado de fora da sala, meu pai saudou-o e depois me deu um meio abraço. Ao voltarmos para casa, fiquei em silêncio olhando pela janela do carro. Normalmente nós dois não éramos o que se chamaria de pessoas falantes, então esperei que meu pai desse o primeiro passo. — Elder — disse ele —, estou muito orgulhoso de você, filho. Eu sabia que era verdade e inclinei a cabeça em sinal de agradecimento. Ainda bem que meu pai não podia notar minha falta de ar e o meu rosto quente. Numa tentativa de puxar ar fresco, quase deixei escapar um som que estava engasgado em minha garganta, mas superei e me recompus.

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CAPÍTULO 2 Mal havia retornado da Igreja e já me lembrava de que precisa-

va ler as escrituras, conforme recomendado para todos os futuros missionários. Passei pela cozinha onde minha mãe estava preparando meu prato favorito, temaki de salmão com cebolinha. Não somos descendentes de japoneses nem nada parecido, mas quando me viciei em comida oriental, minha mãe pensou que eu estava gastando muito dinheiro indo a restaurantes e decidiu por si mesma fazer um curso de culinária típica. Melhor para mim. Como gratidão, assim que entrei, dei um beijo na bochecha dela. Ela me olhou com os olhos brilhando de ansiedade, provavelmente esperando a grande novidade. — Deu tudo certo? Soltei um pequeno suspiro e respondi sendo o mais convincente que consegui: — Por que não daria? — Estou fazendo a sua comida predileta — ela disse. — O jantar sai logo. Agradeci mais uma vez com um abraço de lado. Fui para o meu quarto, o único lugar onde me sentia em refúgio. Arranquei a roupa social que usei para ir à entrevista na igreja. Peguei a Bíblia e sentei-me à escrivaninha. Enquanto lia, procurava colorir as frases e versículos que achava interessantes ou inspiradores. Durante a leitura, meus olhos pesaram. Ao bocejar, esbarrei em algumas fotos que havia esquecido jogadas ali em cima. As imagens refletiam o último acampamento com meus amigos de alguns anos atrás. Minha cabeça foi preenchida pelas lembranças dos bons tempos. Alguns deles me visitavam com frequência para


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passar o tempo. Naquela época meu pai não se importava, mas minha mãe parecia aflita com a presença deles e ficava me perguntando quando iriam embora. Na certa, tinha receio de que me influenciassem com más amizades. Meus pais pouco sabiam que, ultimamente, as conversas com meus amigos não tinham o mesmo rumo. Enquanto eles falavam das garotas com que ficavam nos fins de semana ou de alguma vizinha gostosa, minhas preocupações eram com o meu futuro, o medo de ficar sozinho ou de outras coisas que eu não sabia muito bem definir. Retomei a leitura um pouco inquieto. No capítulo de Marcos, li que Deus fez o homem e a mulher, e que os dois devem se unir e ser uma só carne. Pausei a leitura e fechei meus olhos tentando imaginar como seria o rumo da minha vida. Casado? Com filhos? Sempre que tentava repassar o futuro em minha mente, meu estômago se retorcia e eu ficava deprimido. Queria saber o motivo da minha melancolia, mas não tinha jeito, a tristeza me abatia e me deixava inapto para chegar a qualquer conclusão. As letras desordenadas eram sinal de que não conseguia mais me concentrar. Então pressionei os olhos para não cair nenhuma lágrima e tive vontade de jogar a Bíblia contra a parede. Ao invés disso, respirei fundo. E fiz uma prece para Deus, pedindo paz.

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CAPÍTULO 3 Eu participava da equipe de vôlei da escola e estava treinando du-

rante as férias, muito cedo. Tiago, além de ser meu primo, era um dos companheiros de equipe. Me cumprimentou assim que terminei de me alongar para entrar no jogo. — E aí? — disse ele, esticando a palma da mão aberta. Retribuí o cumprimento batendo minha mão na dele. Ele se aproximou do meu ouvido e comentou discretamente: — Temos um substituto do garoto que se machucou semana passada. — Ele indicou com o queixo. Disfarcei ao olhar. Era um rapaz grande, barba por fazer, não parecia ter a mesma idade que a nossa, talvez nem fosse do terceiro ano. — Tome cuidado com esse cara — advertiu. — Dizem que ele é um pouco agressivo no jogo. Meu primo deu uns tapinhas nas minhas costas e entrou na quadra. Eu também entrei, alguns passos depois. Logo que começamos a jogar, notei que o saque do substituto era realmente poderoso. Recebi a bola e dei um passo para o lado, perdendo o equilíbrio pelo impacto que tive em meus braços. Em outro passe, meu primo deu um corte intenso, quebrando o bloqueio do time adversário. Um pouco mais de jogo e percebi que o garoto substituto estava me encarando havia um bom tempo, incomodando-me um pouco. Chacoalhei a cabeça para organizar meus pensamentos quando senti a bola explodir do lado esquerdo da minha face. Com o impacto, tropecei e quase caí para trás. Quando consegui entender o que acontecia, o substituto deu uma boa gargalhada.


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Meu primo veio imediatamente perguntar se eu estava bem. Eu anuí com a cabeça em sinal de positivo. Ele advertiu mais alguma coisa sobre o novo garoto, mas meu ouvido estava zumbindo. Então, acreditei tê-lo ouvido dizer, do outro lado da rede: — Foi mal, viadinho... Os garotos do outro time começaram a rir, enquanto minha equipe ficou em silêncio. Por que ele implicou comigo?, ponderei enquanto me recuperava do baque. Eu devia ofendê-lo também, mas só reagi com uma pergunta, para me certificar do que havia escutado: — Como é? O que você falou? O garoto levantou o queixo, estufou o peito e respondeu: — Foi mal... viadinho. Rapidamente, todo o pessoal do meu time se reuniu num círculo ao meu redor. Começaram a me instigar. Alguns empurravam meu ombro, pediam por uma briga. Somente Tiago tentou me acalmar: — Venha, Elder. Vamos sair daqui. O garoto novo impediu minha saída, colocando-se à minha frente. Meu primo gritou: — Qual é o seu problema, Rambo? Rambo, pensei comigo mesmo. Um excelente apelido para um troglodita. — Que lindo — o cara disse, cruzando os braços. — Os dois são namoradinhos. Um calor borbulhou em meu estômago e rapidamente fechei meus punhos. Antes que eu pudesse bloquear aquela raiva repentina, desferi um soco de esquerda no meio do nariz dele. O murro acertou em cheio e o efeito foi maior do que eu esperava. Rambo caiu como uma tábua na quadra de vôlei. Seus pés e suas mãos estremeceram umas duas vezes e o rosto pendeu para 14


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o lado, fazendo meu coração gelar. Um fio de sangue escorreu do nariz dele, e eu comecei a me sentir muito mal. Péssimo, corri para fora do ginásio, mas não o deixei de imediato. Acompanhei de longe os primeiros socorros ao rapaz e pus a mão na boca, trêmulo. Percebi que havia perdido completamente o controle. Se eu não tivesse reagido assim, o que os outros pensariam de mim por ter aceitado aquilo? Talvez fosse melhor voltar e assumir minha culpa perante a todos. Porém, sabia que era um pensamento vago, porque eu não queria fazer isso de fato. Então saí depressa e corri por três quarteirões. Quando cheguei em casa, meu peito ofegava demasiadamente. Tomei um banho rápido e deitei na cama. Fiquei vários minutos imóvel, com a lembrança da briga passando pela minha mente como um trem que descarrila várias vezes. Aquela ofensa havia me deixado excessivamente perturbado, de uma forma estranha, quase inédita. E quando finalmente consegui me acalmar, ouvi meu nome em um grito. Era a voz do meu pai. 

Atendi o chamado imediatamente. Fui para a cozinha, onde ele me esperava para o café. Peguei uma tigela, depois a caixa de cereais que estava em cima do balcão. O leite já estava na mesa. Acomodei-me na cadeira, e servi-me uma porção generosa do meu cereal favorito, enquanto ele me encarava. E quando mergulhei a colher na tigela para comer, ele perguntou, sério: — O que aconteceu? — Um vinco profundo apareceu no meio do seu cenho. — Levei uma bolada no rosto — respondi olhando para a tigela. 15


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Minha mãe encostou-se do lado dele e analisou meu rosto inchado. Abriu a boca em sinal de espanto. Imediatamente, foi até a geladeira pegar gelo. Meu pai não se deu por satisfeito. — É só isso? Não vai me contar mais nada? Fiquei quieto tentando decifrar aquela preocupação repentina. Meu pai nunca agiu assim comigo, tão atencioso aos meus problemas. — Seu primo mencionou que alguém falou mal de você — revelou ele, persuasivo, para que eu continuasse. Eu me perguntei como ele sabia disso. Eu havia acabado de chegar em casa. Será que Tiago havia telefonado para meu pai? Ele não teria coragem de comentar sobre o xingamento daquele garoto. Olhei para minha mãe. Seus olhos pesados me deixaram um tanto arrependido e me encolhi na cadeira. Então suspirei e tentei, sem sucesso, colocar um pouco de convicção na minha voz: — Ele... me chamou de pereba do vôlei. — E o que mais? — meu pai insistia, olhando fixo em meus olhos. Mas por que ele parece tão curioso? — Eu dei um soco na cara dele, porque não me pediu desculpas — minha resposta soou vazia, até para mim. Meu pai fez uma carranca e se inclinou para trás na cadeira, deixando os braços penderem ao lado do corpo. — Tiago comentou que o garoto está bem — ele finalmente revelou, enquanto minha mãe esfregava o gelo em meu rosto. — E você, pegou duas semanas de afastamento. Senti meus músculos superiores relaxarem, aliviado em saber que não o tinha machucado de verdade. Continuei calado, mergulhando a colher no prato de cereais e leite sem a mínima vontade de comer nada, quando minha mãe perguntou se eu estava realmente bem. Eu menti, balançando a cabeça positivamente. Manter 16


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meus pais longe de preocupação era o único motivo para todo esse esforço. Não demorou muito, pedi licença aos dois, dizendo que precisava descansar. O interrogatório havia me deixado nauseado, e eu estava prestes a me engasgar com o próprio ar que respirava. Além disso, queria procurar e passar algum gel que pudesse amenizar o inchaço do meu rosto. O estojo de medicamentos ficava no banheiro, e me dirigi para lá. Acima do espelho, o quadro com a mensagem do nono presidente da igreja mórmon “Nenhum sucesso compensa o fracasso no lar” fez-me refletir por um momento. Eu acreditava em muitas coisas, mas passava a desacreditar em tantas outras. Aquilo tudo pressionou meu peito. Eu precisava tomar um ar fresco. E assim que saí de casa, observei que alguém me aguardava na calçada da entrada.

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