Graciliano Nº 1

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Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Macei贸 - Ano I - N潞 1 - Set. 2008

Gracilian Homenagem da Imprensa Oficial Graciliano Ramos


Artigos “Luciana” e “Minsk”: Contos exemplares do mestre Graciliano Ramos Enaura Quixabeira Rosa e Silva

Meninos que revelam Edilma Acioli Bomfim

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A coerência na literatura infantial de Graciliano Ramos Maria Heloisa Melo de Moraes

A Universidade das personagens de Graciliano Ramos Jezuí Tomaz

Passagens de Graciliano na Maceió dos anos 30 Simone Cavalcante

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A prisão de um comunista que provavelmente não militava Luiz Sávio de Almeida

A resistência suave do algodão em rama Vera Romariz

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Relatórios*

/20 Publicado no Diário Oficial em 16/01/1930 /28 Publicado no Diário Oficial em 24/01/1929

Reportagem Jornalismo na vida e na obra de Graciliano Ramos Mário Lima

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Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Governo do Estado de Alagoas

Teotonio Vilela Filho Governador de Alagoas Júlio Sérgio de Maya Pedrosa Moreira Secretário de Estado do Planejamento e do Orçamento

Marcos Kümmer Diretor-presidente CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Direção de arte / projeto gráfico: Fernando Rizzotto (Org.)

Direção cultural: Luiz Sávio de Almeida (Org.)

Produção cultural: Viviani Duarte

Coordenação literária: Maria Heloisa Melo de Moraes (Org.)

Assistente de produção: Raffaela Gomes

Coord. editorial da Imprensa Oficial: Mário Lima

Ilustração da quarta capa por Aldemir Martins, modificada por Rizzotto

*Os Relatórios foram reproduzidos do Diário Oficial do Estado de Alagoas, respeitando-se os originais.

colaboradores Edilma Acioli Enaura Quixabeira Jezuí Tomaz Maria Heloísa Melo de Moraes Simone Cavalcante Vera Romariz


No dia 31 de maio, há 78 anos, Graciliano Ramos assumia a Direção da Imprensa Oficial de Alagoas. Tal fato seria apenas uma troca de dirigentes, algo corriqueiro na administração pública, não fosse o Diretor aquele que viria a ser um dos maiores escritores do Brasil, e cuja literatura ultrapassou nossas fronteiras, para torná-lo conhecido mundo afora. Em dezembro de 1931 demite-se do cargo. Não foi essa, porém, sua primeira experiência na administração pública. Em 1928 toma posse como Prefeito de Palmeira dos Índios, renunciando dois anos depois. São desse período seus Relatórios, publicados posteriormente no livro Viventes das Alagoas, nos quais já se evidencia sua inegável verve literária. Ressaltamos a necessidade, nunca contestável e nunca demasiada, de se homenagear aquele que é considerado o maior escritor alagoano de ficção. Esta é a razão desta publicação, composta por trabalhos teóricocríticos e reportagem sobre a obra do Mestre Graça, e bem-vinda numa terra que parece estar começando a olhar para si mesma e podendo ver-se grandiosa histórica e culturalmente, em contraste com a sua pequenez geográfica, e a despeito dos números estatísticos negativos tão fortemente enfatizados pela mídia. Esta publicação é um exemplo disso. Nela, em sete artigos e uma reportagem, professores universitários e jornalistas atuantes na produção cultural alagoana tratam de vários aspectos da obra de Graciliano, cada um seguindo sua linha de pesquisa e área de estudos. Atenta à importância dos Relatórios do Graciliano político e administrador, quando de sua gestão à frente da prefeitura de Palmeira dos Índios, a professora Vera Romariz discorre sobre o diálogo entre o texto informativo e o literário presente em tais documentos, nos quais a face do administrador não consegue esconder o estilo e a proposta ideológica que o tornariam um dos maiores romancistas da moderna literatura brasileira. Edilma Bomfim discorre sobre outro aspecto da obra de Graciliano: a personagem criança, ou melhor, o “menino”. Ao longo de

seus principais romances, a pesquisadora identifica aspectos relevantes da temática do romancista alagoano nos vários “meninos” inominados que povoam sua ficção, para, finalmente, na obra Infância, estabelecer uma relação entre tais personagens e o próprio escritor, com seu temperamento ensimesmado e sofrido, conforme ele relata em suas obras autobiográficas. No artigo de Enaura Quixabeira é abordado um aspecto nem sempre conhecido do grande público, acostumado a associar mais facilmente Graciliano Ramos a seus romances ou a sua obra Memórias do Cárcere – mais que um livro de memórias, um retrato de uma época. Trata-se do Graciliano contista. Os contos focalizados, segundo a autora, revelam um narrador carregado de ternura e compreensão pelo humano, face não muito salientada na obra do escritor alagoano. Também pouco difundida – se considerarmos, proporcionalmente, a grande fortuna crítica existente sobre suas obras de ficção – é a literatura de Graciliano voltada para crianças e adolescentes. É sobre essas produções que trata o artigo da professora Maria Heloisa Melo. O humor e o aproveitamento de contos folclóricos nordestinos presentes nessas histórias ratificam o envolvimento do autor com a sua terra, mesmo sendo o público destinatário diferente daquele das suas demais obras. A variedade de aspectos com que tratamos da obra do Mestre Graça evidencia-se ainda no artigo da professora e psicanalista Jerzuí Tomaz. A partir da relação entre psicanálise e literatura, a autora destaca a universalidade da obra de Graciliano Ramos e o interesse do romancista pela sondagem psicológica de suas personagens, revelado na forma como o autor trata, em seus romances, das relações afetivas entre elas. O artigo de Simone Cavalcante acrescenta aos aspectos literários dos demais a contextualização do ambiente cultural da Maceió dos anos 30, no qual Graciliano aparece ao lado de outros intelectuais – alagoanos ou não – que terão destaque na vida nacional, como José Lins do Rego, Jorge de Lima, Theo Brandão e outros.

A visão histórica do artigo de Luiz Sávio de Almeida traz para o painel aqui apresentado notas sobre a formação da esquerda e da direita em Alagoas, situando o processo político à época da prisão de Graciliano, na medida em que é acusado de comunista. O Partido Comunista era organicamente situado em Alagoas desde 1928. A prisão de Graciliano ocorre após a Intentona Comunista, 1935. Mário Lima escreve reportagem sobre Graciliano e redações de jornais, recortando, também, elementos do cotidiano do escritor em Palmeira dos Índios e no Rio de Janeiro; aporta, além disso, informações sobre a Casa de Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios. Por fim, reproduzimos os famosos Relatórios, que haviam sido publicados em nosso Diário Oficial. Certamente os estudos que compõem esta publicação, pela própria característica desta – exigüidade de espaço, público diversificado –, não pretendem um aprofundamento das questões neles aventadas. A nossa proposta é, a partir do “mote” de comemorar a data que marca a relação de Graciliano Ramos com a Imprensa Oficial de Alagoas, contribuir um pouco mais, mesmo que de maneira simples e despretensiosa, para a divulgação do nome deste alagoano que tanto nos honra. É a cultura de seu povo, as vidas secas de seus Fabianos e de suas Sinhas Vitórias, a força do homem nordestino em seus perenes embates com natureza adversa que Graciliano espalha pelo mundo. Com suas personagens densas e dramáticas, Graciliano exterioriza o sentimento do homem comum, às voltas com as relações de poder, as mazelas políticas, os sentimentos de frustração e revolta, lado a lado com o orgulho e a honradez. Graciliano Ramos difunde Alagoas pelo que ela tem de melhor. Por tudo isso, nossa reverência ao Mestre Graça, a quem a Imprensa Oficial de Alagoas teve entre seus pares. A Imprensa Oficial do Estado de Alagoas e sua Editora sentem-se honradas com esta possibilidade de somar no esforço da preservação da obra e da memória de Graciliano Ramos.

Apresentação

Uma merecida homenagem


Artigo

4 | Graciliano | Imprensa Oficial Graciliano Ramos

“Luciana” e “Minsk”: contos exemplares do mestre Enaura Quixabeira Rosa e Silva, Dra. Graciliano Ramos inicia a carreira literária escrevendo sonetos, publicados sob o pseudônimo de Feliciano de Olivença. Em 1915, no Rio de Janeiro, trabalha como revisor em três jornais: Correio da Manhã, A Tarde e O Século. Nesse mesmo ano, incursiona pela narrativa por meio de vários contos inéditos. De volta a Alagoas, evolui e transforma-se no romancista que honra a literatura brasileira com textos romanescos extraordinários como São Bernardo (1934), Angústia (1936) e Vidas secas (1938). Na obra Insônia (1947), composta por treze narrativas curtas, destacam-se dois contos “Luciana” e “Minsk” que revelam um narrador carregado de ternura e compreensão pelo humano. Colocados um na seqüência do outro, os contos trazem como personagem principal uma criança, uma menininha de tenra idade, que ainda não sabe ler, nem alcança o ferrolho da porta, mas que, segundo tio Severino, “sabe onde o diabo dorme”. E a palavra de tio Severino tem peso de lei. Luciana gosta de imitar as senhoras que usam sapatos altos. Por isso, prende cordões em uma caixa vazia que transforma em bolsa, com um pedaço de pau simula uma sombrinha, ergue-se nas pontas dos pés, e, assim, “aparelhada”, diz o narrador, “chama-se D. Henriqueta da BoaVista” e conversa com amigas invisíveis. O conto penetra o psiquismo infantil, descortinando o mundo imaginário das crianças, com toda sua riqueza e ludicidade. A expressão “sabe onde o diabo dorme”, bem típica do vocabulário nordestino, refere-se à esperteza, à capacidade de invenção, à criatividade, tão próprias do universo infantil, e tão negada pelos adultos. A personagem Luciana

contrasta com Maria Júlia, sua irmã, “encolhida e pálida”, segundo o narrador, muito bem comportada, correspondendo ao gosto e às expectativas da família. A protagonista, antecipando a visão do moderno conto de fadas, recusa o comportamento das princesas e não se fixa nas estrelas e “se largaria pelo mundo, importante, os calcanhares erguidos, em companhia de seres enigmáticos que lhe ensinariam a residência do diabo” diz o narrador e, acrescentamos, que lhe poderiam ensinar a viver. O outro conto de Insônia, intitulado “Minsk”, traz os mesmos personagens: a mãe, o papai, tio Severino, Maria Júlia, a cozinheira, Seu Adão, o carroceiro contador de histórias, Luciana, naturalmente, e um novo personagem Minsk, um periquito grande, com manchas amarelas, que andava torto, inchado, e fazia: “Eh! Eh!”, presente de tio Severino. O narrador de Graciliano continua investindo na exuberância do imaginário infantil ao narrar que Luciana vive “no mundo da lua, monologando, imaginando casos romanescos, viagens para lá da esquina, com figuras misteriosas que às vezes se uniam, outras vezes se multiplicavam”. A chegada de Minsk modifica tudo isso. A personagem esquece as amigas invisíveis, a performance de D. Henriqueta da Boa-Vista, as escapadas, as aventuras na carroça de Seu Adão. Minsk, o amigo concreto, tudo substitui. O exercício do amor e da troca estabelece-se entre a menina e o animalzinho. Ela lhe apresenta o seu pequeno mundo e, ele, de espírito dócil e compreensivo, mas

disposto às aventuras e à liberdade, descortina para a protagonista o afeto e a doçura. A mãe, sempre preocupada em poupá-la dos cortes, arranhões ou ossos quebrados, diminui “as arrelias, censuras, cocorotes e puxões de orelhas”. O clímax do conto acontece quando, ao exercitar sua habilidade de andar de olhos fechados e de costas, Luciana pisa e esmaga Minsk, involuntariamente. Há uma profunda identificação entre a protagonista e a “trouxa de penas ensangüentadas” em que o pequeno animal se transforma. Parece que era ela mesma que se tinha pisado e morria. Luciana se confronta com a dor abismal da perda do objeto amado. O mundo adulto se preocupa sempre em preparar as crianças para a dor das quedas, das esfoladuras, que somem com pomadas e compressas. No entanto, nada é capaz de nos advertir para o desastre da perda de alguém que amamos, com quem nos identificamos e que é de fundamental importância para nossa vida. A narrativa graciliânica representa essa dor de forma magistral na repetição do nome do ser amado – Minsk – pela personagem-menina em diferentes entonações que vão do grito dilacerante do inesperado até o sussurro da despedida e do apelo desesperado: “– Não morra, Minsk.” O diálogo entre a protagonista e o periquito agonizante que responde por movimentos débeis se traduz na mais bela representação da perda na contística da literatura brasileira.


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Graciliano Ramos

Enaura Quixabeira Rosa e Silva

Quem é

Depoimento Conheci Graciliano Ramos pela leitura de Memórias do Cárcere. Estudei o romancista em Vidas secas, São Bernardo e o memorialista em Infância. Mas, o escritor entrou em minha vida quando li Angústia e, sobretudo, Insônia. O contista me seduziu e revelouse, realmente, um mestre da ficção. Na narrativa condensada do gênero conto, Graciliano deixa aparecer toda a sua humanidade e tentativa de adentrar o humano de cada ser. É o homem talhado pelo sofrimento, desejando penetrar, tão profundamente quanto possível, a dor humana. E o escritor consegue isso, magistralmente, para júbilo de seus leitores.

Nascida em Maceió, filha de Possidônio e Áurea Quixabeira. Conclui o Mestrado em Literatura Brasileira na Universidade Federal de Alagoas, defendendo a dissertação em 1994, ano em que ascende, por concurso público, ao corpo docente da UFAL. Em 1995, publica A alegoria da ruína: uma análise de Crônica da casa assassinada, agraciado com o Prêmio Tércio Wanderley, concedido pela Academia Alagoana de Letras. Doutora-se, com a tese “A condição humana na obra de Lúcio Cardoso: entre Eros e Tânatos, a alegoria barroca brasileira”, diante de banca composta paritariamente de doutores brasileiros e franceses, em 1999. É membro da Academia Alagoana de Letras, da Academia Maceioense de Letras, da Academia de Letras e Artes do Nordeste, da SOBRAMES e do Grupo Literário Alagoano. Em 2001, no Centro Cultural da Academia Brasileira de Letras, recebeu o Diploma do Mérito Cultural da União Brasileira de Escritores. Possui as comendas Graciliano Ramos, Nise da Silveira, o grau Mérito Ouro Ministro Silvério Fernandes de Araújo Jorge, a Láurea Arnon de Mello e a medalha do Mérito Cultural Leda Collor de Mello. Livros publicados: Prazer mortal: lições de literatura brasileira (1997). La condition humaine dans l’oeuvre de Lucio Cardoso: entre Eros et Thanatos, l’allégorie baroque brésilienne. France (2001). Sonata de outono para cordas doloridas e Lúcio Cardoso: paixão e morte na literatura brasileira. (2004). Angústia: 70 anos depois. (2006). Em co-autoria. Hora e vez de José Geraldo W. Marques: a travessia mágico poética. (2000). Dicionário Mulheres de Alagoas – ontem e hoje. (2007).


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Edilma Acioli Bomfim

Menin Edilma Acioli Bomfim, Dra.

Quem é Edilma Acioli de Melo Bomfim é natural de Murici-AL, onde nasceu em 13 de maio de 1952. É Doutora em Letras pela Universidade Federal de Alagoas onde durante muitos anos lecionou a disciplina Literatura Alagoana. Preocupada com a escassez de fortuna crítica sobre a obra de alagoanos/as, centra seus estudos e publicações em livros, capítulos de livros, revistas e jornais nessas obras, procurando suprir, de alguma maneira, a grande lacuna da crítica literária em Alagoas. Publicou entre outros: A escritura do desejo: estudo sobre a prosa-poética de Arriete Vilela; Razão mutilada: ficção e loucura em Breno Accioly, A poesia em Alagoas e O conto em Alagoas, em có- autoria com Carlito Lima; “A poesia em Alagoas: um percurso lírico e histórico”. In: Poesia alagoana hoje, coletânea organizada por Maria Heloisa Melo de Moraes.

Depoimento A primeira vez que ouvi falar em Graciliano Ramos foi através de meu pai. Morávamos na cidade de Murici-Al onde nasci e lá havia muitos cachorros abandonados, magros e famintos perambulando pelas ruas em busca de alimentos. Sempre que um se aproximava de nossa casa, papai logo gritava: - Sai, Baleia! Xô Baleia! Cuidado, não cheguem perto de Baleia. Eu achava muito esquisito meu pai confundir um cachorro – animal tão comum na cidade – com uma baleia, que nunca tínhamos visto. Um certo dia, falei prá ele: - Isto não é uma Baleia; é um cachorro. Baleia é bem grandona e mora no mar. Aí foi que ele explicou: Eu chamo todo cachorro faminto e magro de Baleia por que tem um livro de um escritor de Palmeira dos Índios (sic) chamado Graciliano Ramos que conta a história de uma família de sertanejo que tem uma cachorra Baleia que morre de fome. Corri para a pequena biblioteca da cidade, achei o livro, chorei bastante e fiquei muito aborrecida com o Autor por ter matado justamente Baleia, a grande motivação da minha primeira leitura de Graciliano.

Os comentários que apresento neste texto são resultantes de uma conversa informal que tive com uma orientanda a respeito da aridez na construção das personagens em Graciliano Ramos. A mestranda apontava a inexistência de famílias, crianças ou da infância (excetuando o livro autobiográfico Infância) na obra do escritor. Posteriormente, refletindo sobre esta colocação, observei em vários dos romances de Graciliano que é justamente no “menino” (do sexo masculino, sempre) excluído, vilipendiado, desamado, vivendo uma infância nada luminosa, nada colorida, uma infância que em nada lembra “a saudosa aurora da vida, a dos anos que não voltam mais”, como cantou Casimiro de Abreu, que reside o fio condutor que tece a amargura, a solidão, a agressividade e a rudeza de que se revestem as feições e a alma de suas personagens centrais. É o próprio Graciliano que revela em Infância que “datam desse tempo as minhas mais antigas recordações do ambiente onde me desenvolvi como um pequeno animal”. Assim, revendo o romance São Bernardo, publicado em 1934, vejo que o enredo trata da ascensão social de um “menino” pobre, guia de cego, abandonado, criado pela velha Margarida doceira, até o fazendeiro Paulo Honório, dono da fazenda São Bernardo. O narrador, personagem principal, registra numa escritura o que consegue configurar em nível de consciência, a trajetória de um homem que, tendo conquistado a duras penas um lugar ao sol, absorveu na sua jornada toda a agressividade latente de uma infância de exclusão social e afetiva. O “menino/filho” que teve com Madalena não o enche de afetos; ao contrário, mais uma vez


os que revelam o “menino”, tal como o pai, é um ser jogado, escanteado, culpabilizado por uma suposta traição. Após a morte de Madalena, quando o silêncio é o único companheiro de um “homem arrasado”, a personagem, envolta em um grande sentimento de culpa, diz:“Se ao menos a criança chorasse... Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria!”. A São Bernardo seguira-se Angústia, em 1936. No romance tem-se o relato da solidão de Luís da Silva. Solidão que se arrasta da infância de “menino” infeliz à vida medíocre do adulto condenado a esgueirar-se nas pensões poeirentas que habita. A personagem é um pequeno funcionário com veleidades literárias, mas seus artigos são assinados pelo patrão, negação da sua autoria e da sua identidade como homem-escritor. Todo o romance é cortado na sua horizontalidade por flashbacks alusivos à sua infância. Não reconheço nesse retorno ao passado apenas um mero recurso estilístico, mas um propósito autoral de revelar ou deixar entrever por essas reminiscências uma espécie de justificativa à impossibilidade de uma saída vitoriosa para a personagem. A existência de Luís da Silva arrasta-se na recusa e na análise impotente da miséria moral do mundo e, não tendo outra saída, resolve-se pelo crime e pela autodestruição. Talvez, por isso, o Autor optou por contemplar a narrativa com o discurso escrito na primeira pessoa (como ocorrera em São Bernardo) e centrado na figura do personagem-narrador, construindo-o com as marcas da mediocrização do homem, desde a sua infância oprimida, resultando em um adulto sufocado pela conjuntura social.

Dois anos depois, em 1938 publica Vidas Secas. Os incidentes que compõem o todo da narrativa revelam os problemas pessoais de cada um dos membros da família. Nele temos duas personagens “meninos” não nomeados, denominados como sendo “O menino mais velho” e “O menino mais novo”. Essas crianças reproduzem o ritual dos retirantes, descendentes de avós e pais vaqueiros, só tendo um único destino: tornar-se vaqueiro. Tanto é assim que o sonho do Menino mais novo é repetir a figura do vaqueiro, simbolizado pelo pai. Para tanto, resolve montar em um bode, mas os pulos do animal foram tantos que ele acabou caindo, rasgando a camisa e sendo motivo de chacota do irmão mais velho e do olhar de reprovação da cachorra Baleia. Sem ter com quem dividir sua decepção (tema presente na obra de Graciliano) só resta à criança sonhar que um dia seria como o pai: ”Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na catinga como pé de vento, levantando poeira”. A falta de comunicação entre os pais que não sabiam se expressar e a fantasia que norteia o universo infantil faz da vida dessas crianças retirantes um naufrágio de sonhos. Já no primeiro capítulo do livro, com fome, sede e cansado da longa caminhada sob um sol causticante, o Menino mais velho interrompe a jornada e põe-se a chorar. Fabiano, seu pai, impotente diante da situação penosa e injusta que vive, xinga o filho, fustiga-o com a bainha da faca de ponta, dá-lhe algumas pancadas e pensa em deixar o filho para trás, para que morresse. A atitude paterna caracteriza o determinismo perverso que marca a vida do sertanejo, a ponto de quando o Menino mais velho perguntar à

mãe o significado da palavra “inferno” e receber como resposta um cocorote (ela não sabia explicar), o menino imaginar que inferno é um lugar onde “as pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas e pancadas com bainha de faca”. Finalizando esse nosso percurso de apenas quatro livros, chego à leitura de Infância, publicação de 1945. A gênese de toda a produção de Graciliano, a saga dos “meninos” que ele construiu ao longo dos outros romances citados, parece residir nesta obra. A personagem Paulo Honório volta a compor esse novo texto, a falta de diálogo da família de Fabiano reproduz o silêncio revelado nessas memórias e muitas das recordações de Luís da Silva coincidem com as reminiscências da infância: “Meu pai e minha mãe conservaram-se grandes, temerosos, incógnitos. Revejo pedaços deles, rugas, olhos raivosos, bocas irritadas e sem lábios, mãos grossas e calosas [...] Medo”. Assim, percebo nessa autobiografia o relato das sensações e experiências de uma vida infantil marcada pela opressão. E vejo, principalmente, no sofrimento da criança oprimida, castigada e surrada – “batiam-me porque podiam bater-me” – a mesma dor, o mesmo caráter ensimesmado, a mesma ausência de perspectiva e afeto que caracteriza cada criança/menino (re)criado ao longo da obra de Graciliano como se fora o alter ego do grande romancista alagoano. O próprio Graciliano referenda essa minha colocação quando, respondendo às indagações da crítica literária sobre o conteúdo de seus livros autobiográficos, disse: “As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos”.

Artigo

Imprensa Oficial Graciliano Ramos | Graciliano | 7


Artigo

8 | Graciliano | Imprensa Oficial Graciliano Ramos

A coerência na literatura infa de Graciliano Ramos Maria Heloisa Melo de Moraes, Dra. Referido sempre como um escritor de linguagem enxuta, despojada, Graciliano Ramos representa para a literatura brasileira uma literatura adulta, voltada para a temática da condição humana, universalizando-se a partir de personagens e cenários regionais. O autor de romances como Vidas Secas, Angústia, São Bernardo, com personagens densos e marcantes, é, no entanto, pouco citado como autor de histórias para crianças. Suas produções voltadas para o público infanto-juvenil, porém, apresentam uma proposta ideológica que em nada difere do que caracteriza sua literatura para adultos: a opção por temas universais, as questões sociais, a apresentação do ser humano com suas verdades, suas mazelas, seus medos. Em 1937, logo que sai da prisão, Graciliano escreve A terra dos meninos pelados, que recebe neste mesmo ano o prêmio de literatura infantil do MEC. É publicado em 1939, pela Editora Globo. Em 1944 publica Histórias de Alexandre (Editora Leitura), apresentado como literatura infanto-juvenil. Em 1962, a Livraria Martins lança Alexandre e outros heróis, reunindo estas duas obras e mais a inédita História da República, sátira à História do Brasil. Vamos focalizar os dois primeiros livros. Alexandre e outros heróis é uma coletânea de pequenos contos baseados no folclore nordestino, nas quais o humor é o traço marcante. Nela o autor alagoano faz sua incursão pelos contos folclóricos, que lhe serviram de inspiração, aproximando-se assim da literatura mais popular. Nele o linguajar nordestino predomina. Destaca-se também nessa obra o humor, contrastando com a sisudez, marca definidora do estilo de Graciliano em

suas obras mais conhecidas. É esse humor, a veia satírica, aliada a uma linguagem leve, embora ainda econômica e enxuta, que dá a esse livro um direcionamento para o público infanto-juvenil. É em A terra dos meninos pelados, porém, que encontramos um Graciliano desconhecido para muitos de seus leitores, aqueles que se ativeram a suas obras mais conhecidas. É o Graciliano do nonsense, da fantasia onírica, do lirismo simbólico. Aliados a uma linguagem clara, a uma narrativa rigorosamente cronológica, tais elementos dão a essa obra uma leveza e, ao mesmo tempo, uma profundidade temática que a incluem na literatura infantil brasileira de qualidade. Diríamos mais: Graciliano, assim como Monteiro Lobato, antecipa em algumas décadas o direcionamento estético-ideológico que seria a referência da atual literatura brasileira para crianças e adolescentes: o questionamento dos valores sociais, a proposta crítica. O livro conta a história de Raimundo, menino calvo, com um olho azul outro preto, e que por isso era maltratado em sua cidade. Autodenominando-se Dr. Raimundo Pelado, ele, porém, cansa de ser alvo constante de chacotas por ser diferente. Certo dia, mesmo tendo uma lição de geografia para estudar, resolve ir procurar Tatipirun, um lugar “que ele tinha adivinhado, mas nunca tinha visto”, onde todos os meninos são calvos e têm um olho azul outro preto. Encontra uma terra onde os morros aplainam-se e as curvas estiram-se “como uma linha” para ele passar; uma terra que se altera para lhe dar conforto, não há noite, não faz calor nem frio, e as pessoas o tratam como igual. As crianças o aceitam e não o vê-

em como um diferente. Embora, como todas as crianças, discutissem e discordassem, em Tatipirun todos tinham voz e direito de serem ouvidos. Depois de vivenciar tais experiências em um mundo de inclusão, Raimundo retorna a sua terra, Cambacará, pois tinha de estudar sua lição de geografia, mesmo sabendo que lá voltaria a conviver com a intolerância e a discriminação. Temos aí o papel exercido pela literatura infantil: as crianças fogem do real através da imaginação, mas precisam retornar à realidade, que nem sempre se coaduna com o imaginário por elas experimentado. O que vemos nessa obra, todavia, é muito mais que um livro infantil questionando os valores sociais. Nela encontramos, de forma simples e acessível, a coerência ideológica de um autor cuja literatura expressa sua indignação com as injustiças, com uma sociedade que discrimina, menospreza os direitos e a cidadania. Se Pasárgada foi para Bandeira o lugar utópico do prazer realizado, do qual o eu-lírico não fala em voltar, a Tatipirun de Graciliano é a visão da felicidade possível só no imaginário, a qual tem de ser abandonada em nome de uma realidade que precisa ser enfrentada. Mas é também, para o leitor infantil, a percepção de que a realidade pode ser mudada, e um mundo melhor pode existir. Raimundo Pelado é o Patinho Feio que volta a suas origens, diferentemente do de Andersen. A leitura dessa obra de Graciliano Ramos, pela coerência com a sua literatura adulta, apresenta-se, pois, para o leitor criança, como uma importante iniciação para a leitura posterior desse grande escritor.


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ntil Maria Heloisa Melo de Moraes

Quem é Nascida em Palmeira dos Índios (AL), aos 5 anos foi morar em Santana do Ipanema. Em Maceió continuou seus estudos até chegar à UFAL, onde fez o curso de Letras. Foi professora estadual até 1991, quando ingressa, por concurso, no quadro de docentes da Universidade Federal de Alagoas. Em 1993 conclui o Mestrado em Literatura Brasileira na UFAL, com dissertação sobre o humor na literatura infanto-juvenil. Em 2000 conclui o Doutorado em Literatura Brasileira, também na UFAL, com a tese Cor, som e sentido a metáfora na poesia de Djavan, posteriormente publicada pela Editora HDV – Curitiba (2001). Publicou ainda o livro Poesia Alagoana hoje: ensaios (org.), pela EDUFAL, em 2007, além de artigos em diversos periódicos. Suas principais áreas de pesquisa são a literatura infantojuvenil brasileira e os estudos teóricos sobre a poesia, com prioridade para os estudos sobre a poesia alagoana.

Depoimento Graciliano Ramos me chegou por influência do meu pai, Aloísio Costa Melo, amante da literatura, que me fez conhecer Graciliano e José Lins do Rego quase que ao mesmo tempo. Ainda adolescente, a literatura enxuta de Graciliano Ramos era um desafio para alguém fascinado pela poesia. No entanto, o choque entre os gêneros, a inevitável comparação entre a objetividade da escrita de Graciliano em contraste com a linguagem fugidia e metafórica do texto poético apenas aguçou meu sentimento do literário, e certamente me predispôs ao que eu viria a ser: professora de literatura, apaixonada por Graciliano e pela moderna poesia brasileira. E a continuidade da leitura de ambos – a obra de Graciliano, sempre relida, e a poesia –, ao lado do aprofundamento teórico proporcionado pela minha profissão, apenas me fizeram ver o quanto há de poesia na aparente rudeza da escrita do Mestre Graça.


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A uni Jerzuí Tomaz

Quem é Jerzuí Tomaz tem graduação em psicologia. É psicanalista membro do Centro de Estudos Freudianos do Recife, primeira instituição psicanalítica brasileira a estudar a obra de Jacques Lacan. Possui mestrado em literatura brasileira (UFAL) com dissertação sobre o escritor mineiro Lúcio Cardoso, publicada pela Editora Companhia de Freud com o título Trilhamentos do Feminino (2001). Sua tese de doutorado denominase Marcadores afetivos e inscrições corporais no universo feminino de Lya Luft (2007), pesquisa também ligada ao Programa de Pós-Graduação em Letras e Lingüística da UFAL. Seus interesses de estudo acadêmico abrangem a interface literatura/psicanálise e educação/psicanálise, com enfoque nos seguintes temas: feminilidade, estruturas psíquicas, função materna, o declínio da função paterna e seus reflexos nos processos educacionais e corpo erógeno. Atua como professora adjunta do Centro de Educação da UFAL. Integra o Grupo de Pesquisa Multidisciplinar Mare&Sal.

Depoimento Meu encontro com Graciliano Ramos ocorreu na préadolescência com a leitura do romance Vidas Secas, recomendada por meu pai, amante da literatura e professor de filosofia, Jerônimo Tôrres. Logo me senti fascinada pela linguagem aparentemente simples do escritor alagoano em contraste com o tom implacável com que discorre sobre os temas que elege. Ao longo do tempo, a admiração pelo literato que parece ter a “alma enrolada em arame farpado” só cresceu. Mestre Graça nos deixa um grande testemunho do poder da arte de transcender o tempo, o espaço e o irremediável desamparo, tão próprio ao humano.


versalidade das personagens de Graciliano Ramos Jerzuí Tomaz, Dra. Sabe-se que nada se diz sobre a condição humana sem alguma narrativa. E a literatura tem como matéria-prima a existência humana, todo o campo das possibilidades do ser, isto é, tudo que um sujeito pode se tornar, tudo de que ele é capaz. O escritor tem a coragem de deixar falar o inconsciente, produzindo um texto-tecido que dissimula, que mascara o seu sentido. Neste ponto, entrecruzam-se os caminhos entre a ars poietica e a psicanálise. A errância e o traço libertário dos escritos psicanalíticos encontram no caráter insubordinado da literatura – locus do desafio à racionalidade que vigia toda e qualquer produção textual – um ponto de ancoragem para a subversão que propõem ao entendimento da psique. O inconfundível tom estilístico de Graciliano Ramos tem como foco a urdidura psíquica das personagens, revelando o interesse do romancista pela sondagem psicológica. Tal traço o aproxima de Machado do Assis, já que o literato alagoano exibe o incontornável mal-estar do existir, a insuficiência da condição humana, tematizando, fundamentalmente, a indistinção entre o Bem e o Mal, a luta incessante entre Eros e Tânatos. Nos seus romances, a ação se passa no psiquismo, em destemidas incursões no interior das personagens, na busca obstinada das motivações para atos, gestos, escolhas. Mestre Graça revela-se, assim, um refinado analista das relações afetivas que se estabelecem entre os seres de sua ficção.

Em Angústia (1936), obra de plena maturidade, se observa o requinte da elaboração subjetiva. Na voz em primeira pessoa do protagonista Luís da Silva o passado irrompe no presente da criação artística, tornando-se problemático distinguir o que é inventado e o que é recordado. Luís da Silva, Marina e Julião Tavares portam-se como exemplos paradigmáticos da divisão humana, do encurralamento do sujeito alienado de seu desejo, confrontando o leitor com a miséria, o desamparo, a loucura, o crime, os sofrimentos múltiplos, as desigualdades sociais. Denota-se que o caminho literário de Graciliano Ramos expõe o caráter trágico das escolhas humanas ao dar destaque a seres oprimidos, humilhados, prenhes de abandono, seja devido ao lugar social ou à inadaptação para o arriscado jogo da vida. Vale destacar, no conjunto da obra do autor, a força que assume o crime/transgressão para a auto-afirmação do sujeito, o que se coloca como uma via de escape da fraqueza e da humilhação, tema central da própria vida do homem Graciliano.

Conclui-se que, ao criar atmosferas angustiantes, depressivas, marcadas pelo pessimismo, nas quais momentos de tensão desestabilizam as personagens, o escritor dános um testemunho do poder da palavra e da força do imaginário. Se ao humano é inevitável o deslocamento, a errância, a condição de exílio, o desconhecimento de si, a arte oferece, em contrapartida, a possibilidade de dizer o indizível, representar o irrepresentável. Resta ao leitor da obra literária produzir escritura em decorrência do desequilíbrio que o encontro com o texto suscita, escrita que se configura, sempre, como um ato amoroso, índice do belo ou do terrível que somos capazes de suportar.

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Divulgação

Passagens Simone Cavalcante

Quem é Simone Cavalcante é jornalista, designer gráfica e escritora. Autora do livro Literatura em Alagoas e de textos do universo infanto-juvenil, atualmente se dedica ao mestrado em Literatura Brasileira.

Depoimento Lembro nitidamente do dia em que meu professor de literatura propôs a leitura do romance Vidas Secas, bem como a exibição do filme sobre a obra. Daquele momento prazeroso em diante, venho realizando várias incursões pelo universo simbólico de Graciliano Ramos.


de Graciliano na Maceió dos anos 30 Simone Cavalcante , Jornalista A passagem de Graciliano Ramos por Maceió durou seis anos e, nesse período, muitos episódios podem ser alinhavados para revelar o mosaico cultural dos anos 30. Os trilhos dos bondes, os itinerários dos canais e das lagoas e os automóveis conduziam uma população, com pouco mais de cem mil habitantes, revelando seus costumes de época − os bate-papos nos cafés e nas praças, os banhos de mar e de bica, as matinês no cinema, as apresentações das sociedades dramáticas e dos folguedos natalinos. É nesse ambiente, em plena ebulição, que o escritor se estabelece com a família. Maceió dos anos 30 começava a assistir à vitória do meio urbano sobre o rural e ainda enfrentava problemas antigos: funcionamento precário da educação e da saúde pública; abastecimento deficiente de água e fornecimento de luz elétrica; amontoamento de edificações mal planejadas; enfim, havia uma desordem na ocupação da urbe. As condições desfavoráveis, no entanto, não impediram a efervescência da produção cultural e a formação de um ambiente literário com grande repercussão no contexto local e nacional. Se, por um lado, havia as carências sociais e de infra-estrutura, por outro, coube a um segmento da sociedade a oportunidade de vencer a aridez do meio, construindo universos simbólicos, com os esquadros da renovação e do espírito crítico. Pelas ruas, becos e vielas dessa cidade caótica, Graciliano trafegou inúmeras vezes, enquanto trabalhava, escrevia em jornais e dava vazão à sua criação literária. Entre os lugares que costumava freqüentar, estava um café atraente, o Ponto Central, localiza-

do na esquina do cruzamento da Rua do Comércio com a Livramento. Nesse ambiente, fez amizade com um grupo de escritores e intelectuais ainda hoje referenciados, entre os quais se destacam Jorge de Lima, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, Rachel de Queiroz, Manuel Diégues Júnior, Carlos Paurílio, Valdemar Cavalcanti, Théo Brandão, Jayme de Altavila, Alberto Passos Guimarães e Santa Rosa. Alguns desses jovens nem ao menos haviam atingido a maioridade, e já movimentavam a vida cultural da capital, com a fundação de agremiações, como o Cenáculo Alagoano de Letras e o Grêmio Literário Guimarães Passos; a organização de encontros para celebrar os ventos do Modernismo, como a Festa da Arte Nova e a Canjica Literária; a realização de palestras sobre a arte moderna, como fez a Liga contra o empréstimo de livros; e a criação de revistas literárias, das quais se destaca Novidade, que atingiu a marca histórica de mais de vinte números publicados. Confundidos em meio à clientela de estudantes, intelectuais e trabalhadores do comércio, eles participavam de distraídos bate-papos e, tomados pelo clima de renovação, compuseram seus escritos da época. Os romances Menino de Engenho, Doidinho e Bangüê (José Lins), João Miguel (Rachel), Caetés, São Bernardo e Angústia (Graciliano) e o livro O mundo do menino impossível (J. Lima), marco da adesão do poeta ao Modernismo, são frutos, por exemplo, da época em que seus autores viveram em Alagoas.

E essa produção foi decisiva para inscrever esses escritores do Nordeste no cenário da literatura brasileira. O chamado Grupo de 30, como ficou conhecido, não se aglutinou em torno de um único projeto literário politicamente consolidado, ainda que algumas obras carregassem o gérmen de uma possível revolução da humanidade. Como ilhas dispersas, cada qual trilhou um estilo individual de ficcionar, poetizar e refletir os problemas sociais, políticos e econômicos do seu tempo. Depois de anos de convivência, a maioria desses escritores e intelectuais migrou, por diversos motivos, para outros estados, num movimento denominado hoje de “diáspora caeté”, e tiveram visibilidade em importantes espaços políticos e culturais do país. Nessa leva, Graciliano deixa Maceió e segue para o Rio de Janeiro. Um ano depois, em liberdade, vai substituindo o ambiente literário do Café Ponto Central pelos encontros na Livraria José Olympio. Mas os tempos difíceis e a mudança de ambiente não conseguiram apagar de sua trajetória algumas convicções definitivas: a prática de valores éticos, a fidelidade aos amigos, como Jorge de Lima, Rachel de Queiroz e José Lins do Rego, e a liberdade de criar mundos, capazes de denunciar as fragilidades da condição humana. E é nesse chão histórico, de linhas tortas, que a obra do mestre Graça se inscreve como um clássico da literatura mundial.

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A prisão de um comunista que provavelmente não militava Luiz Sávio de Almeida, Dr. É praticamente demonstrado que o Partido Comunista se estruturou em Alagoas a partir de 1928, somando antigos anarquistas de 1919 e novos componentes. É em 1928 que se funda a primeira célula, na rua São José, residência de Américo Sapateiro que, posteriormente, irá pertencer à Ação Integralista. Antes, ocorriam contatos a partir de Recife e Bahia, sendo possível que Américo tenha realizado a coordenação que resultou na célula em sua casa. Após a greve de Jaraguá e dos demais acontecimentos que marcaram a história da esquerda em Alagoas nos finais da segunda década do século passado, o movimento operário, segundo apreciação de um jornal de feição comunista (editado esporadicamente, desde 1927) havia perdido força, especialmente após o controle – aduzimos - policial das reuniões operárias e do

pacto entre maltistas e democratas para a derrota do socialismo, comungado após Jaragua. Este socialismo deveria ser liquidado em nome dos valores da civilização cristã ocidental. O Proletário falava na necessidade de se retomar o movimento e mencionava o sucesso eleitoral de Otávio Brandão no Rio de Janeiro. O fato é que surge a célula na residência do Américo Sapateiro cuja militância é conhecida desde 1910, quando pertencia aos quadros da Federação dos Trabalhadores. A célula era denominada AA e dela fazia parte Sérgio Pueirame, Presidente do Sindicato dos Trapicheiros e velho militante na esquerda, José Costa Neto que dirigia O Proletário, Olympio Santana também antigo militante. Posteriormente, o Partido cresce o suficiente para que se tenha a eleição do

Arquivo público do Estado de Alagoas

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primeiro Comitê Regional. Nesta oportunidade, tem-se um grande problema interno, pelo fato de que Américo Sapateiro perde a secretaria para Horácio Gomes de Melo, afasta-se da organização mas continua aliado. Olympio Santana será tesoureiro e são montadas comissões: Juventude, Agrária, Mulher Trabalhadora. Horácio era também sapateiro; paulatinamente Américo se afasta, passa a ligar-se ao sindicalismo governamental e posteriormente vai se filiar à Ação Integralista, fazendo parte de sua polícia secreta. A vida do Partido vai ser abalada em razão da Revolução de Trinta, mas ele tem condições de vida orgânica e secreta, emergindo com poder de fogo político no ano de 1932, período de intensa disputa na área trabalhista pelas implicações da política governamental na área sindical, em choque com comunistas e independentes. É por inspiração de governo que nasce em 1932 a Federação dos Trabalhadores de Alagoas, mas surge, também, a União Geral dos Trabalhadores que no dia 1º de Maio faz passeata. Em dezembro de 1932 começam as greves e os movimentos que levarão a outra formidável ação policialesca, com o tradicional prende-prende e deportação de liderança. O Partido se retrai, continua a vida clandestina e viverá o clima de 1935. Antes, contudo, a vida política de Alagoas ganha complexidade, quando se organiza em Maceió, pela iniciativa de José Lins do Rego, a Ação Integralista. O encontro de Plínio Salgado, com a platéia alagoana foi realizado na Perseverança, presidido por Domingos Fazio Sobrinho, falando Moacir Palmeira e José Lins do Rego. Evidentemente, os confrontos eram

A luta contra o integralismo. Pichação. Década de 30


Ailton Cruz

Luiz Sávio de Almeida

Quem é Professor Dr. em Historia Social e Professor Emérito da UFAL

Depoimento Meu primeiro contato com Graciliano foi através de Memórias de Cárcere. Depois fui lendo devagar uma coleção editada, caso não me engane, pela José Olympio. Estava nos 17 para a frente. Anos depois, utilizava seus romances para debater com os alunos temas de sociologia rural. Evidentemente, a escrita não reproduz a realidade das vidas, mas Graciliano mergulha de tal maneira no cotidiano que suas contradições surgem e foi a tensão presente na sua fala sobre a realidade que a ele até hoje me prendeu.

permanentes e é no clima que se delineia depois de 1935 que vai se dar a prisão de Graciliano Ramos. Em nenhum momento, o nome de Graciliano aparece nas lutas políticas. Os nomes de intelectuais que se diziam ser comunistas eram Alberto Passos Guimarães e Waldemar Cavalcanti. Em longas conversas comigo, Alberto jamais mencionou o nome de Graciliano Ramos como militante. Nem a Raquel de Queiroz (trotskista à época) falou de qualquer atividade partidária do Graciliano, e mantivemos alguns bons papos sobre Ma-

ceió, embora ela detestasse recordar aquela época pelo imenso sofrimento pessoal que viveu. Num dos papos, conta as versões corridas sobre prisão de Graciliano e lança: “Meu filho, somente diga estas coisas depois que eu morrer!”. Fiquei embaraçado, ela notou e arremessou o torpedo: “Fique tranquilo menino, eu morro logo!”. Começamos a rir e falei: “Então não me interessa saber. A conversa não tá gravada, como é que vou provar que você disse? Pode guardar para você as suas coisas!”. E rindo terminamos este telefonema.

Na verdade, ela desejava fazer alusão ao que circulava: a) prisão por natureza política ideológica; b) prisão em face da fofoca política ou perseguição pessoal; c) prisão em face de problemas pessoais. Quem sabe tudo não se mistura numa aura que parece misteriosa? O fato é que o pessoal, o político ou ambos conspiraram para que surgisse um texto que representaria as vidas de encarcerados, numa referência à memória dos que eram ditos portadores de pensamento ilegal. O fato é que, com relação à sua prisão, Graciliano contou o que desejava fosse sabido.


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A resistência suave do algodão autoria e crítica nos Relatórios de Graciliano Ramos Vera Romariz, Dra. Os dois relatórios do escritor Graciliano Ramos, publicados no livro Viventes das Alagoas (1992), foram produzidos entre 1929 e 1930, traindo um diálogo entre o texto informativo e o literário, com discreto hibridismo de discursos. Emerge dessas poucas páginas o relato de sua vida pública, fugaz mas significativa, com traços esparsos de uma crítica da realidade social que jamais o abandonou; e os vetores críticos de seu texto são o humor e uma subjetividade ácida, anti-institucional, incomuns em documento de convenção tão normatizada pelas instituições, cuja tradição cultural o modela. Relatar supõe construir uma “narração, ou descrição verbal ou escrita, ordenada e mais ou menos minuciosa do que se viu, ouviu e observou”, segundo o velho dicionário de Aurélio Buarque. Nesse sentido, a natureza do relatório privilegia o documental e aproxima, no maior grau possível, palavra e coisa representada, apesar de tal esforço se afigurar infrutífero no texto ficcional, que reinventa sentidos e dá de costas para essa documentação precisa dos fatos. A autoria de Graciliano despregou-se da rigidez do relato e encontrou brechas saudáveis que tornaram famosos os relatórios de sua gestão municipal; se neles o escritor atende ao poder do Estado (o que se infere do destinatário explícito do relatório, (“Exmo. Sr. Governador”), sua natureza autoral consciente inclui o outro social, sempre. E é a acidez crítica e o humor do relato que conduzem o texto, dividido entre a convenção (coletiva) e o estilo individual, modelados pela tradição realista, que impõe visibilidade ao discurso do autor, como propõe Philippe Hamon (1984). No humor dos relatórios, detec-

ta-se uma atitude crítica anti-institucional, que expõe as falhas e vícios dos poderosos, como o da propaganda excessiva dos atos realizados; assim, descreve em tom jocoso o vício de redigirem telegramas em excesso (“porque se deitou uma pedra na rua — um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela — um telegrama”). De forma sutil, Graciliano também critica a velha retórica, como o fez em Caetés, quando abomina a velha gramática e a verborragia, vícios que reiteram uma tradição lingüística autoritária de assimetria social e simbólica. O autor produz um parágrafo na abertura do primeiro relatório, em 1929, em que já se anuncia uma subjetividade crítica, autoral; nele, afirma, referindo-se aos trabalhos executados em sua gestão, que “Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o município se achava, muito me custaram”. Na inversão estilística sutil, o autor atribui caráter de pessoa humana a suas obras (“insensíveis”), utilizando a primeira pessoa do singular (“muito me custaram”), com uma liberdade estilística materializada já no primeiro subtítulo do relatório (“Começos”); neste, para descrever a teia de poder que enreda o município, brinca de forma auto-irônica com o termo “prefeito” (“Havia em Palmeira dos Índios inúmeros prefeitos: o cobrador de impostos, o Comandante do Destacamento, os soldados”). Sua subjetividade crítica, que não se confunde com pessoalidade lírica (à moda romântica), transgride a forma impessoal do relato, no sentido de desvelar faces inusita-

das dos objetos, descritos (representados?) com um tratamento irônico incomum. Assim, ainda nesse primeiro relatório, referindo-se às dificuldades para instaurar “alguma ordem” no município, afirma: “[...] Lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela – dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama; fora, uma campanha sorna, oblíqua, carregada de bílis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós”. No uso da metáfora “algodão”, e dos epítetos “suave” e “mole”, o autor representa a resistência do meio conservador ao novo; sua palavra de literato, então, se mescla à do homem público, e o uso do léxico deslocado surpreende o leitor e ilumina a autoria e o ponto de vista, categorias silenciadas em documentos similares. No segundo relatório, de 1930, reiterase o estilo acima exemplificado, e retorna a preocupação social inclusiva; nesta, surge a alusão ao êxodo nordestino, como dolorosa conseqüência da seca, levando-o a afirmar que “A população minguada, ou emigrava para o sul do país, ou se fixava nos municípios vizinhos. [...] Vegetavam em lastimável abandono alguns agregados humanos”. Nos textos, a necessidade documental, detectada em romances de temática social, como os de 30, alia-se ao tom crítico-criativo do autor, gerando um produtivo hibridismo de documento da realidade (“a população emigrava para o sul”) e representação (“vegetavam”, “agregados humanos”), o que gerou grandes romances ocidentais como Germinal, de Emile Zola, ou o próprio São Bernardo, de Graciliano.


Ricardo Lêdo

em rama: Vera Romariz

Relatarei com pormenores os planos [...] quando eles estiverem executados.[...] O município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos (RAMOS, 1992, p. 191).

A hibridização de formas discursivas, consolidada no século XX, contribuiu para compor no século XIX uma face transgressora do Romantismo, que desarticulou a estruturada convenção dos gêneros literários clássicos, abrindo espaço para uma reformulação no modo de dizer e na própria relação forma/conteúdo. Essa cristalização dos gêneros sempre inquietou grandes autores; daí Goethe, o escritor alemão, dizer que isto de gênero não é cela, isolada e fechada, mas uma espécie de compartimento aberto a outras (importantes) transgressões. Graciliano acompanhou a evolução formal dos gêneros, apreendendo a rebeldia romântica e utilizando-a em sua consistente tradição realista; daí ter feito esses saborosos relatórios, misto de discurso instituído e crítica às mesmas instituições que modelaram as palavras oficiais. As regras da redação oficial mudam muito lentamente, porque seu objetivo cristalizado é a informação clara, objetiva, precisa, que não dá margem à leitura mais transversal e oblíqua, terreno dos criadores; mas o discurso literário é algodão macio, bicho manhoso.

Nele há sempre frestas onde se pode entrar até a arca dourada de uma multiplicidade de sentidos, o que fez o prefeito Graciliano utilizar, como escritor, a liberdade compositiva do avanço do gênero, para fincar um conteúdo social com forma híbrida. Escrevendo relatórios com os conteúdos ideológicos que permearam toda sua obra, quer a memorialística, quer a ficção, o autor rompe estereótipos lingüísticos, jogando com o texto (e com o leitor); nesse ludismo produtivo, sua palavra ora remete ao superior hierárquico, ora remete aos conteúdos sociais que assinalaram sua obra, painel de uma gente deslocada e invisível aos olhos do Estado. Surge, então, mesclado de sociabilidade, o estilo individual do velho Graça, com um tom que parece abominar a velha retórica patética e sentimental, inscrevendo-se em uma longa tradição realista, em que a legibilidade é arte preciosa, o que não quer dizer clareza estereotipada, repleta de clichês que pouco acrescentam aos textos. Sua autoria dribla a suposta imparcialidade dos documentos oficiais, e instaura, “como bílis”, o ponto de vista, a perspectiva da autoria individual.

Quem é Vera Romariz nasceu em Maceió, em 1950. É escritora e professora universitária aposentada da UFAL, onde orientou pesquisas de mestrado e doutorado em Literatura Brasileira. Publicou 3 livros de Crítica literária, 3 de poesia e 1 de crônica.É consultora cultural do CESMAC.

Depoimento Graciliano integra o imaginário da adolescente que fui nos anos 60, que lia sem entendêlo bem, até deslumbrar-se com São Bernardo – romance que associa, como poucos, densidade psicológica e social em sua composição. Motivei-me a lê-lo, também, pelo relato de meu pai, João Romariz, que conheceu o autor na prisão, encontro documentado em Memórias do cárcere.

Em 1947, o escritor paraibano Allyrio Meira Wanderley, com o pseudônimo de Monte Brito, escreveu em O Jornal, do Rio de Janeiro, que na ficção de Graciliano a forma está sempre vinculada à matéria e que a primeira “[...] cai, rígida e certeira, carregada de veneno e maciez, sobre a sociedade que condenou e retrata”. É o que me vem à mente quando releio seus relatórios, documento e criatividade modelada com a resistência suave, de algodão em rama, de alguém que conta e sabe contar nossas histórias.


Relatórios

Detalhe da fachada da prefeitura em Plameira dos Índios


Fotos dos relatórios: Tércio Cappello

Os dois Relatórios são bem mais do que um encargo administrativo. Eles expressam densamente termos da vida do agreste, do cotidiano administrativo interligado ao cotidiano do povo. Apesar de se referirem diretamente a Palmeira dos Índios enquanto unidade política territorial, transcendem este limite desmistificando a ordem do poder local, pelo senso dialético do processo histórico e social, inclusive, dessacralizando o cerimonial e a solenização sobre e do poder. Foi, justamente, esta falta de limite que nos levou a ilustrar os textos, somando Palmeira dos Índios, Quebrangulo e Viçosa, cidades fundamentais na biografia do escritor, em que se entrelaçam espaços diferentes da vida alagoana que ele tão bem entendeu e demonstrou em obras como Vidas Secas e São Bernardo.


PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRA DOS INDIOS Relatorio ao Governador do Estado de Alagoas

são necessarios, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a elles. Não sei se a administração do Municipio é boa ou ruim. Talvez pudesse ser peor. Receita e despesa

Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Excia. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Indios em 1928. Não foram muitos, que os nossos recursos são exiguos. Assim minguados, entretanto, quasi insensiveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Municipio se achava, muito me custaram.

A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o anno ter sido pessimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem applicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com intelligencia e porque fiz despesas que não faria se ellas não estivessem determinadas no orçamento.

Começos

Despendi com o poder legislativo 1:616$484 pagamento a dois secretarios, um que trabalha, outro aposentado, telegrammas, papel, sellos.

O Principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira innumeros prefeitos: os cobradores de impostos, o commandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar. Cada pedaço do Municipio tinha a sua administração particular, com prefeitos coroneis e prefeitos inspectores de quarteirões. Os fiscaes, esses, resolviam questões de policia e advogavam. Para que semelhante anomalia desapparecesse luctei com tenacidade e encontrei obstaculos dentro da Prefeitura e fóra della dentro, uma resistencia molle, suave, de algodão em rama; fóra, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bilis. Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor, que administra melhor do que todos nós; outros me davam tres mezes para levar um tiro. Dos funccionarios que encontrei em Janeiro do anno passado restam poucos: sahiram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma. Os actuaes não se mettem onde não

Poder legislativo

Illuminação A illuminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contracto com a empresa fornecedora de luz. Obras publicas Gastei com obras publicas 2:908$350, que serviram para construir um muro no edificio da Prefeitura, augmentar e pintar o açougue publico, arranjar outro açougue para gado miudo, reparar as ruas esburacadas, desviar as aguas que, em epocas de trovoadas, inundavam a cidade, melhorar o curral do matadouro e comprar ferramentas. Adquiri picaretas, pás, enxadas, martellos, marrões, marretas, carros para aterro, aço para brocas, alavancas, etc. Montei uma pequena officina para concertar os utensilios estragados.


Oficial Graciliano Ramos | Graciliano ImprensaImprensa Oficial Graciliano Ramos | Graciliano Revisado | 21

Janelas da Prefeitura de Palmeira dos Ă?ndios


22 | Graciliano | Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Cemitério de Palmeira que foi preocupação de Graciliano quando Prefeito


Eventuaes Houve 1:069$700 de despesas eventuaes: feitio e concerto de medidas, materiaes para aferição, placas. 724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Municipio. Os litros aqui tinham mil e quatrocentas grammas. Em algumas aldeias subiam, em outras desciam. Os negociantes de cal usavam caixões de kerozene e caixões de sabão, a que arrancavam taboas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhos publicos. Cemiterio No cemiterio enterrei 189$000 pagamento ao coveiro e conservação. Escola de musica A philarmonica 16 de Setembro consumiu 1:990$660 ordenado de um mestre, aluguel de casa, material, luz. Funccionarios da justiça e da policia Os escrivães do jury, do civel e da policia, o delegado e os officiaes de justiça levaram 1:843$814. Administração A administração municipal absorveu 11:457$497 vencimento do prefeito, de dois secretarios (um effectivo, outro aposentado), de dois fiscaes, de um servente; impressão de recibos, publicações, assignatura de jornaes, livros, objectos necessarios á secretaria, telegrammas. Relativamente á quantia orçada, os telegrammas custaram pouco. De ordinario vai para elles dinheiro consideravel. Não ha vereda aberta pelos matutos, forçados pelos inspectores, que prefeitura do interior não ponha no arame, proclamando que a coisa foi feita por ella; communicam-se as datas historicas ao governo do Estado, que não precisa disso; todos os acontecimentos politicos são badalados. Porque se derrubou a Bastilha um telegramma; porque se deitou uma pedra na rua um telegramma; porque o deputado F. esticou a cannela um telegramma. Dispendio inutil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós chorámos e que em 1556 D. Pero Sardinha foi comido pelos Cahetés. Arrecadação As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos. Eu disse ao Conselho, em relatorio, que aqui os contribuintes pagam ao Municipio se querem, quando querem e como querem. Chamei um advogado e tenho seis agentes encarregados da arrecadação, muito penosa. O Municipio é pobre e demasiado grande para a população que tem, reduzida por causa das seccas continuadas.


LIMPEZA PÚBLICA - ESTRADAS No orçamento limpeza publica e estradas incluiram-se numa só rubrica. Consumiram 25:111$152. Cuidei bastante da limpeza publica. As ruas estão varridas; retirei da cidade o lixo accumulado pelas gerações que por aqui passaram; incinerei monturos immensos, que a Prefeitura não tinha sufficientes recursos para remover. Houve lamurias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintaes; lamurias, reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamurias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças. POSTO DE HYGIENE Em falta de verba especial, inseri entre os dispendios realizados com a limpeza publica os relativos á prophylaxia do Municipio. Contractei com o Dr. Leorne Menescal, chefe do Serviço de Saneamento Rural, a installação de um posto de hygiene, que, sob a direcção do Dr. Hebreliano Wanderley, tem sido de grande utilidade á nossa gente. VIAÇÃO Concertei as estradas de Quebrangulo, da Porcina, de Olhos d’Agua aos limites de Limoeiro, na direcção de Canna Brava. Foram reparos sem grande importancia e que apenas menciono para que esta exposição não fique incompleta. Faltam-nos recursos para longos tractos de rodovias, e quaesquer modificações em caminhos estreitos, ingremes, percorridos por animaes e vehiculos de tracção animal, depressa desapparecem. É necessario que se esteja sempre a renoval-as, pois as enxurradas levam num dia o trabalho de mezes e os carros de bois escangalham o que as chuvas deixam. Os emprehendimentos mais serios a que me aventurei foram a estrada de Palmeira de Fóra e o terrapleno da Lagoa. ESTRADA DE PALMEIRA DE FORA Tem oito metros de largura e, para que não ficasse estreita em uns pontos, larga em outros, uma parte della foi aberta em pedra. Fiz cortes profundos, aterros consideraveis, valletas e passagens transversaes para as aguas que descem dos montes. Cerca de vinte homens trabalharam nella quasi cinco mezes. Parece-me que é uma estrada razoavel. Custou 5:049$400. Tenciono prolongal-a á fronteira de Sant’Anna do Ipanema, não nas condições em que está, que as rendas do Municipio me não permittiriam obra de tal vulto.


Casa rural com características da época

OUTRA ESTRADA Como, a fim de não inutilizar-se em pouco tempo, a estrada de Palmeira de Fóra se destine exclusivamente a pedestres e a automoveis, abri outra parallela ao transito de animaes. TERRAPLENO DA LAGOA O espaço que separa a cidade do bairro da Lagoa era uma coelheira immensa, um vasto acompamento de tatús, qualquer coisa deste genero. Buraco por toda a parte. O aterro que lá existiu, feito na administração do prefeito Francisco Cavalcante, quasi que havia desapparecido. Em um dos lados do caminho abria-se uma larga fenda com profundidade que variava de tres para cinco metros. A agua das chuvas, impetuosa em virtude da inclinação do terreno, transformava-se ali em verdadeira torrente, o que augmentava a cavidade e occasionava serio perigo aos transeuntes. Além disso outras aberturas se iam formando, os invernos cavavam galerias subterraneas, e aquillo era inaccessivel a vehiculo de qualquer especie. Emprehendi aterrar e empedrar o caminho, mas reconheci que o solo não fendido era inconsistente: debaixo de uma tenue camada de terra de alluvião, que uma estacada sustentava, encontrei lixo. Retirei o lixo para preparar o terreno e para evitar fosse um monturo banhado por agua que logo entrava em um riacho de serventia publica. Quasi todos os trabalhadores adoeceram. Estou fazendo dois muros de alvenaria, extensos, espessos e altos, para supportar o aterro. Dei á estrada nove metros de largura. Os trabalhos vão adiantados. Durante mezes mataram-me o bicho do ouvido com reclamações de toda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de contos de réis, dizem. Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as pyramides do Egypto, contudo. O que a Prefeitura arrecada basta para que nós não resignemos ás modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. Até agora as despesas com os serviços da Lagoa sobem a 14:418$627. Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais util se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu; em todo o caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc., sempre procedo melhor que se o distribuisse com os meus parentes, que necessitam, coitados. (Os gastos com a estrada de Palmeira de Fora e com o terrapleno estão, naturalmente, incluidos nos 25:111$152 já mencionados).


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Edificação da antiga estação de trem de Palmeira dos Índios


DINHEIRO EXISTENTE Deduzindo-se da receita a despesa e accrescentando-se 105$858 que a administração passada me deixou, verifica-se um saldo de 11:044$947. 40$897 estão em caixa e 11:004$050 depositados no Banco Popular e Agricola de Palmeira. O Conselho autorizou-me a fazer o deposito. Devo dizer que não pertenço ao banco nem tenho lá interesse de nenhuma especie. A Prefeitura ganhou: livrou-se de um thesoureiro, que apenas serveria para assignar as folhas e embolsar o ordenado, pois no interior os thesoureiros não fazem outra coisa, e teve 615$050 de juros. Os 40$897 estão em poder do secretario, que guarda o dinheiro até que elle seja collocado naquelle estabelecimento de credito. LEIS MUNICIPAES Em Janeiro do anno passado não achei no Municipio nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anachronicas, do tempo das candeias de azeite. Constava a existencia de um codigo municipal, coisa inattingivel e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quasi a recorrer ao espiritismo, convenci-me de que o codigo era uma especie de lobishomem. Afinal, em Fevereiro, o secretario descobriu-o entre papeis do Imperio. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com apparencia de primeiro livro de leitura do Abilio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sêbo. Com ellas e com outras que nos dá a Divina Providencia consegui aguentar-me, até que o Conselho, em Agosto, votou o codigo actual. CONCLUSÃO Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só ha curvas onde as rectas foram inteiramente impossiveis. Evitei emmaranhar-me em teias de aranha. Certos individuos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos. Não me entendi com esses. Ha quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anonymas, e adoeça, e se morda por não ver a infallivel maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que della se servem como assumpto invariavel; ha quem não comprehenda que um acto administrativo seja isento da idéia de lucro pessoal; ha até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei ou ouvidos, deixei gritarem arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguem. Devo ter commettido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem, foram erros da intelligencia que é fraca. Perdi varios amigos, ou individuos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Ha descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por esses dois annos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade. Palmeira dos Indios, 10 de janeiro de 1929.


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Detalhe dos trilhos da estrada de ferro em Palmeira dos Ă?ndios


GABINETE DO GOVERNADOR Prefeitura Municipal de Palmeira dos Indios. Relatorio ao Governador de Alagoas. Snr. Governador: - Esta exposição é talvez desnecessaria. O balanço que remetto a V. Excia. mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Indios. E nas contas regularmente publicadas ha pormenores abundantes, minudencias que excitaram o espanto benevolo da imprensa. Isto é, pois, uma reproducção de factos que já narrei, com algarismos e prosa de guarda-livros, em numerosos balancetes e nas relações que os acompanharam. RECEITA 96:924$985 No orçamento do anno pasado houve suppressão de varias taxas que existiam em 1928. A receita, entretanto, calculada em 68 :850$000, attingiu 96 :924$985. E não empreguei rigores excessivos. Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam delles e puz termo ás extorções que afflingiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exactores. Não me resolveria, é claro, a pôr em pratica no segundo anno de administração a equidade que torna o imposto supportavel. Adoptei-a logo no começo. A receita de 1928 cresceu bastante. E se não chegou á somma agora alcançada, é que me foram indispensaveis alguns mezes para corrigir irregularidades muito serias, prejudiciaes á arrecadação. DESPESA 105:465$613 Utilizei parte das sobras existentes no primeiro balanço. ADMINISTRAÇÃO 22:667$718

Figuram 7:034$558 despendidos com a cobrança das rendas, 3:518$000 com fiscalisação e 2:400$000 pagos a um funccionairo aposentado. Tenho seis cobradores, dois fiscaes e um secretario. Todos são mal remunerados. GRATIFICAÇÕES 1:560$000 Estão reduzidas. CEMITERIO 243$000 Pensei em construir um novo cemiterio, pois o que temos dentro em pouco será insufficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessarios aos vivos, não me permittiram a execução de uma obra, embora util, prorogavel. Os mortos esperando mais algum tempo. São os municipes que não reclamam. ILLUMINAÇÃO 7:800$000 A Prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contracto para o fornecimento de luz. Apesar de ser negocio referente a claridade, julgo que assignaram aquillo ás escuras. É um bluff. Pagamos até a luz que a lua nos dá. HYGIENE 8:454$190 O estado sanitario é bom. O posto de hygiene, installado em 1928, presta seriços consideraveis á população. Cães, porcos e outros bichos incommodos não tornaram a apparecer nas ruas. A cidade está limpa. INSTRUCÇAO 2:880$180 Instituiram-se escolas em tres aldeias: Serra da Mandioca, Anum e Cannafistula. O Conselho mandou subvencionar uma so-


ciedade aqui fundada por operarios, sociedade que se dedica á educação de adultos. Presumo que esses estabelecimentos são de efficiencia contestavel. As aspirantes a professoras revelaram, com admiravel unanimidade, uma lastimosa ignorancia. Escolhidas algumas dellas, as escolas entraram a funccionar regularmente, como as outras. Não creio que os alumnos aprendam ali grande coisa. Obterão, comtudo, a habilidade precisa para ler jornaes e almanaques, discutir politica e decorar sonetos, passatempos accessiveis a quasi todos os roceiros. UMA DIVIDA ANTIGA 5:210$000 Entregaram-me, quando entrei em exercicio, 105$858 para saldar varias contas, entre ellas uma de 5:210$000, relativa a mais de um semestre que deixaram de pagar á empresa fornecedora de luz. VIAÇÃO E OBRAS PUBLICAS 56:644$495 Os gastos com viação e obras publicas foram excessivos. Lamento, entretanto, não me haver sido possivel gastar mais. Infelizmente a nossa pobreza é grande. E ainda que elevemos a receita ao dobro da importancia que ella ordinariamente alcançava, e economizemos com avareza, muito nos falta realizar. Está visto que me não preoccupei com todas as obras exigidas. Escolhi as mais urgentes. Fiz reparos nas propriedades do Municipio, remendei as ruas e cuidei especialmente de viação. Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pittorescas, que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem valles de maneira incrivel. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original producto de engenharia tupi, tem logares que só podem ser transitados por automovel Ford e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentavel desperdicio concertar semelhante porcaria. ESTRADA PALMEIRA A SANT’ANNA Abandonei as trilhas dos cahetés e procurei saber o preço duma estrada que fosse ter a Sant’Anna de Ipanema. Os peritos responderam que ella custaria ahi seiscentos mil réis ou sessenta contos. Decidi optar pela despesa avultada. Os seiscentos mil réis ficariam perdidos entre os barrancos que enfeitam um caminho attribuido ao defuncto Delmiro Gouveia e que o Estado pagou com liberalidade; os sessenta contos, caso eu os pudesse arrancar ao povo, não serviriam talvez ao contribuinte, que, apertado pelos cobradores, diz sempre não ter encommendado obras publicas, mas a alguem haveriam de servir. Comecei os trabalhos em Janeiro. Estão promptos vinte e cinco kilometros. Gastei 26:817$980.


Quebrangulo, fachada tĂ­pica da ĂŠpoca: antiguidade e reforma


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Quebrangulo, fachada típica da época: residência


TERRAPLENO DE LAGOA Este absurdo, este sonho de louco, na opinião de tres ou quatro sujeitos que sabem tudo, foi concluido ha mezes. Aquillo, que era uma furna lobrega, tem agora, terminado o aterro, um declive suave. Fiz uma galeria para o escoamento das aguas. O pantano que ali havia, cheio de lixo, excellente para a cultura de mosquitos, desappreceu. Deitei sobre as muralhas duas balaustradas de cimento armado. Não ha perigo de se despenhar um automovel lá de cima. O plano que os technicos indigenas consideravam impraticavel era muito mais modesto. Os gastos em 1929 montaram a 24:391$025. SALDO 2:504$319 Addicionando-se á receita o saldo existente no balanço passado e subtrahindo-se a despesa, temos 2:504$319. 2:365$969 estão em caixa e 138$350 depositados no Banco Popular e Agricola de Palmeira. PRODUCÇÃO Dos administradores que me precederam uns dedicaramse a obras urbanas; outros, inimigos de innovações, não se dedicaram a nada. Nenhum, creio eu, chegou a trabalhar nos suburbios. Encontrei em decadencia regiões outr’ora prosperas; terras araveis entregues a animaes, que nellas viviam quasi em estado selvagem. A população minguada, ou emigrava para o sul do Paiz ou se fixava nos municipios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguesugas. Vegetavam em lastimavel abandono alguns aggregados humanos. E o palmeirense affirmava, convicto, que isto era a princeza do sertão. Uma princeza, vá lá, mas princeza muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada. Favoreci a agricultura livrando-a dos bichos criados á toa; ataquei as patifarias dos pequeninos senhores feudaes, exploradores da canalha; supprimi, nas questões ruraes, a presença de certos intermediarios, que estragavam tudo; facilitei o transporte: estimulei as relações entre o productor e o consumidor. Estabeleci feiras em cinco aldeias. 1:156$750 foram-se em reparos nas ruas de Palmeira de Fóra. Cannafistula era um chiqueiro. Encontrei lá o anno passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco. Desappareceram. E a povoação está quasi limpa. Tem mercado semanal, estrada de rodagem e uma escola.


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À esquerda, casa de Graciliano em Quebrangulo. À direita, o que sobrou de sua casa em Viçosa


MIUDEZAS Não pretendo levar ao publico a ideá de que os meus emprehendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas. Mas afinal existem. E, comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco differentes dessas invisiveis sem grande esforço de imaginação ou microscopio. Quando iniciei a rodovia de Sant’Anna, a opinião de alguns municipes era que ella não prestava porque estava boa demais. Como se elles não a merecessem. E argumentavam. Se aquillo não era pessimo, com certeza sahiria caro, não poderia ser executado pelo Municipio. Agora mudaram de conversa. Os impostos cresceram, dizem. Ou as obras publicas de Palmeira dos Indios são pagas pelo Estado. Chegarei a convencer-me de que não fui eu que as realizei. BONS COMPANHEIROS Já estou convencido. Não fui eu, primeiramente porque o dinheiro despendido era do povo, em segundo lugar porque tornaram facil a minha tarefa uns pobres homens que se esfalfam para não perder salarios miseraveis. Quasi tudo foi feito por elles. Eu apenas teria tido o merito de escolhel-os e vigial-os, se nisto houvesse merito. MULTAS Arrecadei mais de dois contos de réis de multas. Isto prova que as coisas não vão bem. E não se esmerilharam contravenções. Pequeninas irregularidades passam despercebidas. As infracções que produziram somma consideravel para um orçamento exiguo referem-se a prejuizos individuaes e foram denunciadas pelas pessoas offendidas, de ordinario gente miuda, habituada a soffrer a oppressão dos que vão trepando. Esforcei-me por não commetter injustiças. Isto não obstante, atiraram as multas contra mim como arma politica. Com inhabilidade infantil, de resto. Se eu deixasse em paz o proprietario que abre as cercas de um desgraçado agricultor e lhe transforma em pastio a lavoura, devia enforcar-me. Sei bem que antigamente os agentes municipaes eram zarolhos. Quando um infeliz se cançava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica: encommendava-se a Deus e ia á capital. E os prefeitos achavam razoavel que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretario do Interior, por intermedio da policia.


REFORMADORES O esforço empregado para dar ao Municipio o necessario é vivamente combatido por alguns pregoeiros de methodos administrativos originaes. Em conformidade com elles, deveriamos proceder sempre com a maxima condescendencia, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem protecção, diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funccionarios, que ninguem vive sem comer, deixar esse luxo de obras publicas á Federação, ao Estado ou, em falta destes, á Divina Providencia. Bello programma. Não se faria nada, para não descontentar os amigos: os amigos que pagam, os que administraram, os que hão de administrar. Seria optimo. E existiria por preço baixo uma Prefeitura bode expiatorio, magnifico assumpto para comerages de lugar pequeno. POBRE POVO SOFFREDOR É uma interessante classe de contribuintes, modica em numerro, mas bastante forte. Pertencem a ella negociantes, proprietarios, industriaes, agiotas que esfolam o proximo com juros de judeu. Bem comido, bem bebido, o pobre povo soffredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer hygiene. É exigente e resmungante. Como ninguem ignora que se não obtêm de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitavel classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros. PROJECTOS Tenho varios, de execução duvidosa. Poderei concorrer para o augmento da producção e, consequentemente, da arrecadação. Mas umas semanas de chuva ou de estiagem arruinam as searas, desmantelam tudo - e os projectos morrem. Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos. Ha pouco tempo, com a illuminação que temos, perfida, dissimulavam-se nas ruas serias ameaças á integridade das cannelas imprudentes que por ali transitassem em noites de escuro. Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e damnificaram na viagem braços, pernas, cotellas e outros orgams apreciaveis. Julgo que, por enquanto, semelhante perigos estão conjurados, mas dois mezes de preguiça durante o inverno bastarão para que elle se renovem. Empedrarei, se puder, algumas ruas. Tenho tambem a idea de iniciar a construção de açudes na zona sertaneja. Mas para que semear promessas que não sei se darão fructos? Relatarei com pormenores os planos a que me referi quando elles estiverem executados, se isto acontecer. Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que encetei. É uma pretenção moderada, realizavel. Se se não realizar, o prejuizo não será grande. O Municipio, que esperou dois annos, espera mais um. Mette na Prefeitura um sujeito habil e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos. Paz e prosperidade. Palmeira dos Indios, 11 de Janeiro de l930.


Quebrangulo: Igreja Matriz


Reportagem

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“Que é que essa gente de Maceió sabe a respeito de minhas resoluções? Não quero emprego no comércio – antes ser mordido por uma cobra. Sei também que há dificuldades em se achar um emprego público. Também não importo com isso. Vou procurar alguma coisa na imprensa, que agora, com a guerra, está boa a valer, penso. Portanto... os amigos que guardem suas opiniões”, Viçosa, em 21 de agosto de 1914 Graciliano Ramos, em carta ao pai, Sebastião Ramos , aos 22 anos Mário lima / Repórter

O romancista Graciliano Ramos (1892-1953), mais contemporâneo que nunca, volta em 2008 com a força de sua obra, nos 70 anos de Vidas Secas, com direito a reedição histórica do livro pela Record, no segundo semestre, e o grande homenageado da 20ª edição da Bienal do Livro, em agosto. Na pauta também está o relançamento dos filmes Vida Secas e Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos. O mestre Graça dedicou-se à literatura, à política, administração da educação, mas também era um grande jornalista. Foi no batente dos jornais - no Rio de Janeiro e em Alagoas - com sua linguagem enxuta e sintética que Graciliano pode ter obtido mais fermento para sua obra. O então governador Álvaro Paes, impressionado com os dois relatórios de prestação de contas de sua administração (1929 e 1930), como prefeito de Palmeira dos Índios, convida Graciliano Ramos para dirigir a Imprensa Oficial do Estado. Os relatórios, escritos de forma impecável e em linguagem literária ficaram famosos e integram o corpo do livro Viventes das Alagoas; depois foram publicados separadamente. O intelectual aceita o convite e renuncia ao cargo de prefeito e muda-se com a família para Maceió. O orçamento do órgão é raquítico, mas mesmo diante das dificuldades faz uma boa administração. Adota uma gestão rigorosa quanto à presença dos servidores; é perfeccionista na revisão do Diário Oficial. A Imprensa Oficial onde Graciliano Ramos atuou tinha sede na rua Boa Vista, centro de Maceió, em um belo casarão de dois anda-

res construído pelo governador Clodoaldo da Fonseca, em 1912. Um fato curioso do surgimento da Imprensa no Estado, registrado pela Associação Brasileira de Imprensas Oficiais, é que o decreto que criava a instituição tornava obrigatória a assinatura do Diário Oficial para todos os servidores públicos na ativa. Recuperar o prédio da antiga Imprensa Oficial, no centro de Maceió, que foi alienado e vendido em leilão pelo governador Mano Gomes de Barros, seria um bom presente para marcar as comemorações em torno dos 78 anos do Mestre Graça, no D.O., sugere Petrúcio Vilela, um estudioso do nosso Diário Oficial. No tempo em que Graciliano Ramos dirigia a Imprensa Oficial, Aurélio Buarque de Holanda era o revisor de textos, e morava na capital o romancista paraibano José Lins do Rego, a cearense Raquel de Queiroz. Jorge de Lima atendia em sua clínica médica e já acendia seus lampiões em versos sobre paisagens alagoanas. E a turma avançava com Théo Brandão, Manuel Diegues Júnior, Raul Lima, Carlos Paurílio, Alberto Passos Guimarães, Valdemar Cavalcanti, Aluísio Branco, Cipriano Jucá, alguns deles com passagens pela Imprensa Oficial. Crônicas da sobrevivência A gestão de Graciliano na Imprensa Oficial do Estado é rápida. Ele assume em 31 de maio de 1930, e fica até 26 de dezembro de 1931. Desgostoso com a vida de burocrata da imprensa, ele volta para Palmeira dos Índios, onde escreve os primeiros capítulos de São Bernardo, entre cafés, cachaças e cigarros, na sacristia da Igreja Matriz. Mas é convidado

pelo interventor do Estado de Alagoas, capitão Afonso de Carvalho a assumir a direção da Instrução Pública, hoje seria um Secretário Estadual de Educação. Graciliano aceita e deixa definitivamente Palmeira dos Índios para morar em Maceió. Como responsável pela educação, faz visitas-surpresas às escolas e sabatina professores, estabelece a merenda escolar na rede pública. Em 1936, três anos após sua posse na Educação, é demitido e preso, acusado de subversão, em sua casa na rua da Caridade, na Pajuçara. Graciliano, como grandes escritores de sua época, ingressou no serviço público para complementar a renda, já que o mercado editorial – ainda hoje – estava concentrado no Sudeste e Sul do país e os direitos editoriais eram uma utopia. O próprio Graciliano Ramos menciona a situação, em trecho reproduzido no artigo “Graciliano: literatura e engajamento” do professor e jornalista Dênis de Moraes, autor do livro “O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos”: “Como a profissão literária ainda é uma remota possibilidade, os artistas em geral se livram da fome entrando no funcionalismo público” afirmou Graciliano, que compôs um time dos sonhos dos jornalistas-escritores, cerrando fileira em textos oficiais e governamentais: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, Murilo Mendes, Antonio Callado, Otto Lara Resende, Otto Maria Carpeaux, Paulo Mendes Campos, Rubens Braga e Joel Silveira, que virou amigo de Graciliano Ramos no semanário literário Dom Casmurro, onde também trabalhavam Jorge Amado, Cecília Meireles e Carlos Lacerda.


Dom Casmurro Uma pérola sobre sua passagem pelo jornal Dom Casmurro está na crônica de Graciliano, Os Sapateiros da Literatura, rebatendo um outro artigo de Mário de Andrade, em Linhas Tortas: Afinal, quem são os rapazes do D. Casmurro? Os sapateiros da literatura. Não se zanguem, é isto. Somos sapateiros, apenas. Quando, há alguns anos, desconhecidos, encolhidos e magros, descemos as nossas terras miseráveis, éramos retirantes, os flagelados da literatura. Tomamos o costume de arrastar os pés no asfalto, freqüentamos as livrarias e os jornais, arranjamos por aí ocupações precárias e ficamos na tripeça, cosendo, batendo, grudando ... Enfim as sovelas furam e a faca pequena corta. São armas insignificantes, mas são armas.

Jornalismo na vida e na obra de Graciliano mestre Graça dedicou-se à literatura, à política e À educação PÚBLICA, mas também foi um grande jornalista E MILITANTE DA IMPRENSA nos estados de alagoas e rio de janeiro


Controvérsia: Graciliano nunca teria escrito em máquina, mas com lápis e caneta tinteiro

O menino jornalista Com 12 anos, em Viçosa, escreve seus primeiros textos. Foi na Viçosa onde nasceu de fato a verve de escritor e jornalista, quando conheceu o agente dos Correios, intelectual e dono da maior biblioteca da cidade, Mário Venâncio. Além de professor de Geografia, Venâncio era editor do periódico O Dilúculo (crepúsculo matutino, algo como: A Tarde), de publicação bimensal. Graciliano trabalhou até o fechamento do jornal, um ano depois, com a morte de Venâncio. Foi devorando os livros de Venâncio e na convivência alegre com outros jovens viçosenses, que Graciliano tomou gosto pela literatura. O jornalista alagoano Audálio Dantas, autor e curador da maior exposição sobre a vida e a obra do escritor – O Chão de Graciliano, que depois se transformou em um livro reportagem - é quem fala desse rito de passagem de Graciliano em Viçosa: Ele passou a ler tudo, de jornais velhos a folhinhas e almanaques. A cidade esqueceu que foi ali, entre os sobradões imponentes que resistem em suas ruas centrais, que iniciou a sua formação o escritor que marcaria a literatura brasileira do século XX. Em 1909 inicia sua colaboração no Jornal de Alagoas, sob pseudônimos, Almeida Cunha e Lambda. Em Palmeira dos Índios, Graciliano também colaborou como cronista de O Índio, assinando com o pseudônimo

J. Calisto. Em agosto de 1914, aos 22 anos, embarca para o Rio de Janeiro no vapor Itassupê, e continua sua carreira de jornalista como revisor dos jornais cariocas Correio da Manhã, A Tarde, O Século, e periódico fluminense Paraíba do Sul. No final do ano, Graciliano volta para Palmeira dos Índios, onde passa a fazer jornalismo e política; é eleito prefeito (1928—1930), e escreve duas obras: Caetés (1933) e São Bernardo (1934). Depois de passar quase 11 meses preso pelo governo getulista, Graciliano é libertado em janeiro de 1937, quando decide se estabelecer de forma definitiva no Rio de Janeiro. Passa a escrever crônicas, contos e artigos para jornais e revistas, e pelas mãos de seu amigo José Lins do rego, é apresentado à vida literária da capital. Em sua monografia “Crônica: Jornalismo em Graciliano”, para a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, o jornalista Thiago Mio Salla, resume a relação de Graciliano com o jornalismo: Ele expõe as limitações da imprensa, critica o academicismo literário, enfoca o patriarcalismo e o poder oligárquico da estrutura política e destaca a hipocrisia de certas práticas da Igreja Católica. Pratica o discurso irônico como forma de argumentação e reflexão, buscando a conivência do receptor em novas leituras de velhos episódios.

A casa-museu de Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios, será reformada e ampliada pelo IPHAN


Fotos: Edson Silva

É preciso reabrir o museu do Mestre Graça

O Instituto do Patrimônio Histórico Nacional (Iphan) assumiu o financiamento do projeto de recuperação da Casa-Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios; no entanto, o local permanece intocado, com obras amontoadas e guardadas em pequeno quarto, sem climatização ou a devida proteção, apesar do esforço do guardião: João Tenório. As obras estão com 90 dias de atraso e setores da vida de Palmeira acusam a empresa que ganhou a licitação de não iniciar as obras. A casa onde morou Graciliano virou museu; espera por uma restauração que vai custar cerca de R$ 190 mil ao Iphan. A reportagem teve acesso ao museu, e encontrou relíquias sobre a vida e sobre a obra de Graciliano, tal como sua máscara mortuária feita pelo artista Honório Peçanha, com a face de Graciliano ao lado de seus personagens em Vidas Secas, o vaqueiro Fabiano, sua mulher Sinhá Vitória, os dois meninos e a cachorra Baleia. Também fazem parte do acervo edições raras das obras publicadas em países como a Ucrânia, textos datilografados e revisados por Graciliano à mão – há controvérsias sobre o fato de que Graciliano não teria escrito seus textos em máquinas, mas com lápis ou caneta-tinteiro. Do armário saem peças inusitadas e atuais, como uma foto de Zélia Gattai – mulher de Jorge Amado, recentemente falecida - com dedicatória de 1961, no Rio, enquadrando o marido, Jorge, e a viúva de Graciliano, dona Heloísa, com a neta de ambos, Fernanda Ramos Amado, filha de Luiza Ramos Amado, única filha viva do Mestre Graça, que mora em Salvador e é casada com James Amado, filho de Jorge. Luiza fez Jorge Amado e Graciliano formarem laços de família. E é Jorge Amado, em um prefácio que escreveu para a edição portuguesa de Vidas Secas, que retrata um belo perfil do alagoano Graciliano Ramos: Esse homem seco e difícil, seco de carnes, econômico em sua literatura da qual eliminou qualquer gordura, cuja amizade era moeda de câmbio alto, reservada para alguns, que começou a escrever já maduro (aos quarenta e poucos anos de idade) e que morreu cedo, em plena força criadora. Esse Graciliano Ramos [...] foi um dos homens mais doces e ternos que conheci, um dos mais fiéis amigos. A lealdade era sua virtude fundamental. Graciliano honrou as raízes alagoanas, falou sobre nós e nossa vida. Soube encontrar em nosso cotidiano, os traços da humanidade. Merece que seja respeitado em sua casa e que Alagoas valorize os seus guardados e as novas gerações honrem sua memória.


Um homem

Lourival, morador da casa onde Graciliano passou sua infância. Ele encontrou Graça, já doente, no Rio

Na clínica de Jorge de Lima O contador Lourival Neto Soares, de 78 anos, que mora na casa onde Graciliano passou sua adolescência com seu pai Sebastião Ramos de Oliveira, travou contato com Graciliano. Lourival morava no Rio, final de 1953, e era um dos coordenadores de um grêmio literário. Em uma das freqüentes visitas que fazia

ao amigo, o poeta alagoano e médico, Jorge de Lima, lá estava Graciliano no consultório, magro e abatido. “Ele tinha acabado de chegar de Buenos Aires, gravemente enfermo, onde fizera uma operação para tentar se salvar do câncer no pulmão. Ele estava sentado, muito abatido. O

Jorge me apresentou, mas falou muito pouco, foi seco comigo”, conta Lourival. Em 20 de março de 1954, Graciliano falece na Casa de Saúde e Maternidade São Vítor, no bairro de Botafogo. Lourival lembra que Graciliano voltou pela última vez a Palmeira, em 1934, para o enterro de seu pai, Sebastião.

O padre, o boêmio e mestre Graça O fazendeiro aposentado Davi Muniz Almeida, de 88 anos, tinha oito anos quando Graciliano foi prefeito, mas sua memória é implacável com relação ao mestre Graça. “Como cultura ele foi nota dez, mas como político ele não parecia que morava na cidade, só

falava com umas duas pessoas, era intratável”, diz. Ele conta uma conversa que Graciliano tivera com o pároco local, o e padre Macedo, que ao ver o folclórico Chico Nunes das Alagoas saindo, bêbado, de um cabaré, e dirigindo-se ao encontro dos dois, o padre

ameaçou excomungá-lo, quando Graciliano interveio. - Padre, mas ele também é filho de Deus! Não adiantou muito, pois ao chegar Chico Nunes desatou um rosário de versos pornográficos ao padre (recitados por Davi, mas impublicáveis).


Imprensa Oficial Graciliano Ramos | Graciliano | 43

e suas muitas vidas Graciliano, como toda e qualquer pessoa que vai além do seu tempo, tem tantas vidas quanto o imaginário coletivo pode criar. Ele será sempre um inusitável múltiplo de si mesmo, aparecendo em histórias e mais histórias e todas elas verdadeiras, pois a criação sobre os heróis não tem limite. Não importa se fantásticas ou não, são histórias que existem, fazem parte do tempo e falam sobre este mesmo tempo. Vejamos algumas que circulam, mantendo Graciliano vivo no cotidiano de Palmeira.

José Anadia, 98 anos, o engraxate que polia os sapatos de Graciliano

Engraxate de Graciliano conta sua vida com o mestre De passinho em passinho, andando serelepe pelas ruas e praças de Palmeira dos Índios, não é difícil ficar cara a cara com uma das figuras mais conhecidas da cidade, e que até hoje, aos 98 anos, exerce sua profissão de engraxate. José Anadia Miguel dos Santos é uma figura lendária na cidade, e tem a fama de ter sido o menino que polia os sapatos de Graciliano Ramos e comprava pacotes de fumo de rolo, que o escritor fumava em cachimbos, nas noites de insônia e de pura literatura e inspiração. José Anadia não pára em casa, vive de seu ponto, no antigo açougue,

na Praça Central de Palmeira, e na padaria do calçadão, onde compra o pão. Ele já deu entrevistas até mesmo para equipes de TV do exterior, e costuma sair nas páginas dos jornais locais como o menino de recados do mestre Graça. Relembra o engraxate: Aquilo que era um homem de bem. Chorei quando ele foi embora, pois era um pai para mim. Ele me dava dois mil réis por semana para fazer seus serviços, comprar cigarros e fumo de rolo, lavar seu cachimbo e comprar pão na padaria. Anadia lembra do chefe sempre com muita

emoção, e diz que Graciliano adorava passarinhos, principalmente galos de campina e sabiás. “Mas o negócio dele mesmo era escrever e me pedir: Zezinho vai comprar isso, Zezinho vai comprar aquilo!’. Seu José Anadia diz também que o escritor era um senhor elegante que gostava de usar colete sobre a camisa, e pouco saia de casa. Sua convivência com o mestre, segundo ele, se deu durante a década de 1920, antes dele ser o prefeito da cidade. Zezinho mora com a mulher e sete filhos numa casa agradável, com uma renda fixa de R$420 de sua pensão do INSS.


Imprensa Oficial Graciliano Ramos


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