Graciliano Nº6

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um mergulho no

:: rio sรฃo francisco :::

CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Maceiรณ - Ano II - Nยบ 6 - JUN 2010

ISSN 1984-3453


:: Reportagem

:: Ensaio

Marcas do tempo | 4

Verger em Alagoas: uma viagem para não esquecer | 26

Milena Andrade

Douglas Apratto Tenório e Cármen Lúcia Dantas

Tolda, um símbolo resgatado | 12

Tesouros do Chico que Pedro não viu | 36

Mário Lima

Helena Sampaio

Terra Sonâmbula | 50

Mergulho são-franciscano | 44

Milena Andrade

Celso Brandão

Sabores do São Francisco | 58

Estrada de Ferro Paulo Afonso - Memória para quê? | 64

Nide Lins

Evelina Antunes F. de Oliveira

O adivinhador de árvores | 68 Guilherme Lamenha

O naufrágio do Comendador Peixoto | 80 Mário Lima

:: Poesia Espiral | 42

:: Artigo

Mário Aloísio

Rio São Francisco: um manancial de riquezas | 20 Pedro Flores e Alejandro Muñoz

:: Trilha sonora

São Francisco: o rio da resistência | 22

Opara | 48

Eduardo Jorge de Oliveira Motta

Stanley Carvalho e Gustavo Gomes

Apelo em favor de um velho amigo | 24 Anivaldo Miranda

Os tesouros do Chico que Pedro viu | 40 Sérgio Moreira

:: Depoimento

Por que te chamam Pão de Açúcar? | 62

A experiência de olhar além do rio | 72

Álvaro Antônio Machado

Maria Amélia Vieira e Dalton Costa

:: Entrevista Conversa de pescador | 74 Vanessa Mota

Governo do Estado de Alagoas Teotonio Vilela Filho Governador de Alagoas José Wanderley Neto Vice-governador de Alagoas Álvaro Machado Secretário-chefe do Gabinete Civil Júlio Sérgio de Maya Pedrosa Moreira Secretário de Estado do Planejamento e do Orçamento

Moisés de Aguiar Diretor-presidente da CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Milena Andrade Coordenadora editorial

Fernando Rizzotto Direção de arte / Projeto gráfico

José Roberto Pedrosa Diretor administrativo-financeiro

Revisão: Marli Josefina

Estagiários: André Santos, Arthur de Almeida, Mariana Belo e Vanessa Mota

Hermann de Almeida Melo Diretor comercial

Conselho editorial: Moisés Aguiar Milena Andrade Sérgio Moreira Guilherme Lamenha Simone Cavalcante

Contatos: (82) 3315.8303 editora@cepal-al.com.br

ISSN 1984-3453

Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor. Fotos da capa e quarta capa: Celso Brandão


::: apresentação :: : Um mergulho no rio São Francisco. É esse o convite que a sexta edição da revista Graciliano faz aos seus leitores. Extremamente rico, o tema nos permitiu diferentes abordagens, que vão da polêmica da transposição aos encantamentos das inúmeras paisagens que marcam o trajeto do rio em solo alagoano; do rico artesanato popular da região à nostalgia das antigas embarcações e da estrada de ferro. Abrimos esta edição propondo uma viagem no tempo. Um retorno de dez mil anos na região de Xingó, local povoado por tribos nômades que cruzaram continentes para habitar o Baixo São Francisco. Artefatos, esqueletos e pinturas rupestres unem-se numa espécie de livro a céu aberto sobre a préhistória são-franciscana. As reportagens seguem com duas belas histórias contadas por Mário Lima. A primeira narra o apogeu e decadência da canoa de tolda, embarcação-símbolo do rio, e o desaparecimento dos mestres carpinteiros; a segunda descreve o lendário naufrágio do imponente Comendador Peixoto, em Penedo. Os depoimentos daqueles que viram e viveram o auge da hidrovia são de emocionar.

Assim como também emociona a vida do artesão seu Fernando, da Ilha do Ferro, testemunhada pela sua filha, na matéria “O adivinhador de árvores”, de Guilherme Lamenha, que nos mostra também a singular beleza do bordado boa-noite. A reportagem gastronômica de Nide Lins evoca os cheiros, as texturas e os sabores dos peixes, do pirão, do pitu e dos doces típicos da região de Piranhas. Já a matéria “Terra Sonâmbula” propõe um olhar diferente sobre o isolado povoado de Pixaim, um lugar inacreditavelmente belo e inquietante situado entre o Atlântico e a Foz do São Francisco. Seu Toinho Pescador, uma das maiores lideranças na defesa da preservação e recuperação do rio, fala, em entrevista a Vanessa Mota, sobre sua relação com o São Francisco e as mudanças que viu ocorrer ao longo dos anos. Temos ainda artigos que falam do impacto das barragens, do potencial produtivo do Baixo São Francisco e mais uma incursão histórica sobre uma curiosidade – de onde vem o nome Pão de Açúcar? A socióloga mineira Evelina Antunes, uma apaixonada pelo rio São Francisco, nos pre-

senteia com uma viagem pela estrada de ferro de Paulo Afonso e a antropóloga Helena Sampaio nos conta quais foram os tesouros do rio que o imperador D. Pedro II não viu em sua famosa viagem por essas bandas. Já o artigo de Sergio Moreira nos mostra justamente o que Pedro viu aqui em Alagoas. Para um deleite ainda maior, esta edição traz belíssimas imagens do Baixo São Francisco pelo olhar do fotógrafo Pierre Verger sob a análise do historiador Douglas Apratto e da museóloga Cármen Lúcia Dantas – e de Celso Brandão, cujas duas das fotografias de seu ensaio se transformaram na capa e quarta capa da revista. Maria Amélia Viera e Dalton Costa assinam depoimento sobre os artistas populares do São Francisco e Alex Barbosa fala de sua especial relação com o mestre seu Fernando, da Ilha do Ferro. E na poesia Espiral, o arquiteto Mário Aluizio celebra a grandiosidade e beleza do exuberante Opara. E é isso. Esperamos que gostem desta edição da Graciliano, que é a mais extensa que já preparamos, e que o seu conteúdo esteja à altura do que representa o rio São Francisco para os alagoanos.


: ::: reportagem ::


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Marcas do tempo As margens do são francisco guardam uma história de 10 mil anos narrada por pinturas, artefatos e esqueletos

de bacia do São Francisco foi centro de atração e caPara além de tudo que representa o rio São Francisco, em minho natural de diversos suas feições míticas, ambientais e econômicas, suas margrupos desde o final do pegens também guardam verdadeiros tesouros da pré-históríodo pleistoceno. ria nordestina. As marcas de um tempo em que as divisas Os primeiros pesquisaentre os estados inexistiam ainda estão lá submersas em dores chegaram à região suas águas, inscritas em vermelho ocre nas paredes de inicialmente por indicação suas grutas e cravadas na terra de seu solo. da própria comunidade. Descobriu-se, então, no município de Canindé do São Esses fascinantes registros, descobertos Francisco (SE), o sítio de registros gráficos nos anos oitenta durante a construção da hi- numa fazenda. Eram pinturas em blocos de drelétrica de Xingó, estão localizados entre rocha. Em 1987, a Companhia Hidrelétrica do os estados de Sergipe e Alagoas e apontam São Francisco (Chesf) começou a construir para um povoamento que teria começado há uma nova barragem no local e foi aí que esse aproximadamente onze mil anos - a gran- longínquo passado se descortinou. Milena Andrade

Estava ali, exatamente no lugar que seria inundado pela obra, uma inestimável preciosidade histórica – 56 sítios foram localizados com esqueletos completos, marcas de ritos fúnebres, restos de cerâmica e artefatos, ossos de animais e desenhos que nos dão pistas sobre o imaginário do homem do Baixo São Francisco naquele tempo. Os dois sítios mais importantes são o Justino, localizado em Canindé, e São José II, localizado na desembocadura do riacho Talhado, em Olho d’Água do Casado (AL). O salvamento arqueológico durou quatro anos e importantes descobertas já foram feitas, mas ainda há muito sobre o que se debruçar. Nada menos que 230 esqueletos foram resgatados do local que se tornou o segundo


Fábio Farias

: ::: reportagem :: Pinturas rupestres no Sítio São José, em Olho d’Água do Casado


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maior cemitério indígena do País. Além disso, estavam lá nas praias do rio São Francisco artefatos em pedra [material lítico, lascado e polido]; panelas inteiras e fragmentos de cerâmica; ossos de répteis, aves, roedores e peixes, restos de fogueira, além de muitos adornos em osso e pedra. Na fazenda Mundo Novo e no riacho do Talhado estão as pinturas rupestres. Segundo a coordenadora de exposição do Museu de Arqueologia de Xingó, a geógrafa Railda Nascimento, em diferentes épocas numerosos grupos habitaram as margens do Baixo São Francisco. As pesquisas apontam datações de 1.200 a até 9 mil anos antes do presente. “Os esqueletos são um marco na arqueologia do País. Após vinte anos do salvamento, o que podemos dizer é que esse trabalho mostra a importância da região Nordeste inclusive na pré-história”, afirma. Mas quem eram exatamente esses homens e mulheres? De onde vieram e como chegaram aqui esses nossos antepassados que podem ter sido os primeiros habitantes não só do Baixo São Francisco, como dos estados de Alagoas e Sergipe? Os primeiros homens que chegaram a essa região pertenciam a grupos mongolóides e de outras levas arcaicas. Esses grupos de paleoíndios certamente chegaram pelo Alto São Francisco, numa migração encosta-interior, e o acesso ao continente deu-se pelo estreito de Bering. Os esqueletos encontrados em Xingó mostram que sua altura média era entre 1,64 e

1,70 e sua vida média era de 45 anos. “Esse homem pode ter migrado pela região, o rio permitia essa migração e o seu tempo médio de fixação variava de acordo com a disponibilidade de alimento”, observa Railda Nascimento, que é mestre em Geografia. Esses homens viviam em grupos de, no máximo, cem integrantes que habitavam os terraços e as prainhas do rio. Não há registros dessa ocupação nos platôs. As inúmeras fogueiras para assar os animais capturados e os artefatos líticos encontrados mostram que eles eram essencialmente pescadores-caçadores-coletores. Em seu livro sobre a cultura Canindé, o arqueólogo Fernando Lins de Carvalho conta que esses homens caçavam animais de pequeno porte, como mostram os registros rupestres. Faziam parte da sua alimentação capivaras, veados, tatus, macacos, peixes e um grande número de aves. “Os grupos de caçadores-coletores que se instalaram no Baixo São Francisco, no holoceno, exploraram as potencialidades do ecossistema da região. A proximidade da água, com a presença da piracema nas corredeiras, com a fácil proteína animal obtida do peixe, a fauna disponível e constatada a partir de vestígios arqueológicos em fogueiras, a possibilidade de contatos interétnicos pelo rio tornaria os terraços do São Francisco, aparentemente, local ideal para a instalação de grupos de tecnologia simples e economia extrativista”, diz Carvalho. Mas quem pensa que a vida no Baixo São Francisco era fácil e farta há dez mil anos está enganado. Ao mesmo tempo, o rio também Fernando Lins de Carvalho representava perigos a esarqueólogo sas comunidades na época

As imagens rupestres compreendem o primeiro livro de história do Baixo São Francisco

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O salvamento arqueológico mostra a importância da região Nordeste na pré-história Railda Nascimento Coordenadora de exposição do MAX

das cheias, que chegavam a atingir até 25 metros do nível normal. Além disso, esses homens precisavam sobreviver numa condição climática ainda mais difícil do que a que vemos hoje no Sertão. Segundo Railda Nascimento, a temperatura naquela época era mais alta e o calor da região impunha um contexto de dificuldades que tinha que ser transposto diariamente pelo homem pré-histórico que habitava o rio. “O convívio com essas adversidades mostra que não há impedimento à sobrevivência do nordestino no Semi-Árido. Somos descendentes dessa resistência”, observa. CERÂMICA Os estudos já realizados sobre os artefatos em cerâmica encontrados nos sítios de Xingó mostram uma produção singular que não possui ligação com a tecnologia das tradições aratu ou tupi-guarani. Foram encontrados – e estão expostos no museu – cachimbos, pesos de rede, vasos, panelas, prendedores de cabelo, entre outros. As panelas de cozinha eram utilizadas para o preparo de carnes, aves e pirões. As tigelas de areia e argila serviam para confeccionar beijus e torrar farinha. Os vasos grandes armazenavam água ou aguardente de milho. A maior incidência de vestígios encontrados nos sítios arqueológicos é de artefatos. Há fragmentos, lascas utilizadas para cortar e perfurar, raspadores e artefatos polidos confeccionados em granito, arenito e amazonita.


: ::: reportagem ::

Esculpindo o tempo Os sítios Justino e São José II abrigam valiosos registros do homem pré-histórico. Foram estudados 15 sítios de arte rupestre, entre pinturas e gravuras. Quatorze deles estão localizados ao longo dos afluentes do rio São Francisco, em canhões rochosos cavados nos arenitos e conglomerados entre Sergipe e Alagoas. Segundo a diretora do Museu de Arqueologia de Xingó, diferente de outros registros encontrados na região Nordeste, os conjun-

tos apresentam poucas figuras antropomorfas que não compõem cenas, nem indicam movimento. Esses registros gráficos podem ser encontrados em abrigos sob rochas. A cor vermelha é predominante e os temas são geométricos e figurativos. Não há conjuntos, os grafismos são colocados isoladamente. Entre as pinturas estão aves, pirogas Lua, Sol, mãos e abstrações geométricas. Para o arqueólogo Fernando Lins de Carvalho, esses grafismos são uma espécie de

primeiro livro da região do Baixo São Francisco. “Na medida em que os registros rupestres são um testemunho do homem xingoano em suas origens, desde sua relação com o ecossistema até suas emoções mais elevadas e, na medida, em que a imagem é um signo tão eloquente quanto a escrita, podese afirmar que tais registros compreendem o primeiro livro da história da região. Mas trata-se, evidentemente, de um testemunho ambíguo e insondável”, diz em seu livro “A Pré-História Sergipana”. Fotos: Fernando Rizzotto

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| 1: As abstrações geométricas e as gravuras encontradas não formam conjuntos | 2: Vaso de cerâmica utilizado para armazenar água ou aguardente de milho | 3: Sepultamento de homem adulto junto com esqueleto de animal | 4: Reprodução de desenho de animal da região


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:: Graciliano :: 9 Fernando Rizzotto

Railda Nascimento, coordenadora de exposição do Museu de Xingó


: ::: reportagem ::

Rituais fúnebres A maior parte dos esqueletos encontrados na região de Xingó estava em cemitérios no Sítio Justino, em Canindé do São Francisco. Lá estavam 163 ossadas humanas completas com idade entre 1,2 mil e 8,9 mil anos antes do momento presente. Os indivíduos dessas tribos eram enterrados em covas rasas e pequenas, em diversas posições, inclusive fetal. Faziam parte do mobiliário funerário vasos em cerâmica [por vezes, um vaso cobria o rosto e a pelve], enfeites feitos de ossos ou minerais, como prendedores de cabelo, pilões, fogueiras e restos de alimentos. Em alguns casos, há presença

de animais enterrados juntos aos indivíduos. Não se sabe se esses animais eram de “estimação” ou se havia algum aspecto religioso ligado à prática. No Sítio São José, na margem alagoana do rio, foram encontrados 28 esqueletos humanos completos com idade entre 4 mil e 5 mil anos atrás. Aqui os homens eram enterrados com flores, conchas, fogueiras e alimentos. Para alguns estudiosos, a presença de objetos junto aos esqueletos reforça uma possível crença em outra vida. Porém, há estudos etnohistóricos que mostram que os utensílios estavam ali por pertencerem ao morto e que dariam má sorte a quem os usasse.

Em relação às principais causas de morte ou se há evidências de assassinatos entre os grupos, a geógrafa Railda Nascimento conta que há um único esqueleto encontrado no sítio com uma perfuração no crânio que poderia indicar a ação de outro homem, mas que também pode ter sido resultante de uma queda. Algumas análises da equipe de arqueólogos do salvamento apontaram nos esqueletos sinais de artroses em algumas vértebras, fraturas de clavícula e doenças dentárias. A cicatrização de fraturas e ferimentos indicam que esses grupos de homens cuidavam de seus doentes. Fernando Rizzotto

Os indivíduos eram enterrados em diversas posições, inclusive a fetal


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:: Graciliano :: 11 Fernando Rizzotto

O Museu de Arqueologia de Xingó possui mais de 50 mil peças

Memória preservada Criado há dez anos, o Museu de Arqueologia de Xingó guarda verdadeiros tesouros da pré-história da região. A estrutura foi criada para permitir a continuidade das pesquisas do material descoberto durante o salvamento arqueológico. O museu abriga um acervo de mais de 50 mil peças e vestígios. O espaço tem como objetivo estudar, preservar e divulgar o conhecimento sobre a pré-história do Nordeste e os grupos que chegaram aqui muito antes de os portugueses desembarcarem no Brasil.

No local, uma unidade Museológica mostra os principais resultados das pesquisas aos visitantes e uma área de exposição permanente mostra as instigantes pinturas rupestres dos grupos indígenas que habitaram o rio São Francisco, o material lítico, o cerâmico e o malacológico, que são as conchas e ossos. Há ainda um setor dedicado aos enterramentos que mostra como esses grupos préhistóricos realizavam o sepultamento de seus mortos.

Infelizmente, o museu – apesar de ter uma visitação considerável – ainda é pouco conhecido e frequentado pelos alagoanos. Um outro fato a se lamentar é que há um imenso volume de material a ser estudado por especialistas. As dificuldades para manter a cara estrutura do museu funcionando são inúmeras e quando se trata de pesquisa e análise de material os entraves são ainda maiores. A consequência dessa falta de apoio financeiro é o silêncio de boa parte de nossa história.


: ::: reportagem ::

Told Neno Canuto

SĂ­mbolo de uma era de prosperidade no baixo sĂŁo francisco, a canoa de tolda virou ra


da ridade no rio

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um símbolo resgatado

uma canoa de tolda tirada do fundo do rio, e que hoJá que não se pode trazer volta os navios a vapor, ultraje emoldura o porto da cipassados pelo tempo, cujo combustível foi o desmatamendade, com suas velas trato generalizado e criminoso da Mata Atlântica do Vale do pezoidais de lonas brancas. São Francisco, o Baixo resgatou as tradicionais e quase O secretário de Cultura extintas canoas de tolda, em tamanho bem menor que as José Cláudio Pereira, o Caimponentes Alagoana e Marialva, que o baixo calado do rio cau, adianta que o procesimpediu a navegação. so de tombamento começou, mas ainda terá um longo caminho, como foi o caso Um das cidades mais atingidas pela deca- da Luzitânia, que só foi tombada como Patridência do transporte fluvial em massa foi a mônio Nacional pelo Instituto do Patrimônio cidade de Piranhas, que ganhou impulso co- Histórico e Artístico Naciomercial com a navegação a vapor pelo Bai- nal depois de oito anos, em xo São Francisco, e mais a implantação da dezembro de 2008. Estrada de Ferro Paulo Afonso, que fazia a De acordo com Cacau, a ligação praia-Sertão do lado alagoano e per- canoa de Piranhas, construnambucano do Baixo. ída na década de 1930, teO início desse ciclo de desenvolvimento ve um primeiro restauro em se deu ainda com o imperador Dom Pedro 1955, quando foi comprada II, que também visitou Piranhas, em 1859, e pela prefeitura, estava praassinou lei imperial que criou a Estrada de ticamente acabada e afunFerro de Paulo Afonso (EFPA), cuja primeira dada. Em 2006, passou por estação fica na cidade, hoje a única conser- um novo reparo, que levou vada. A EFPA foi desativada em 1964. um ano e dois meses para Porém a cidade de Piranhas trouxe à to- ser concluído. A chegada em na, literalmente, um exemplar reformado de Piranhas foi uma festa. Mário Lima

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O barco foi totalmente reconstituído pelo mestre Natalício, da Ilha do Ferro, que usou madeiras “legalizadas”, de acordo com Cacau, de braúnas, pau d’arco, cedro e jaqueira. As velas também são novas, e ganharam nova cor, perderam o ocre amarelado tradicional das toldas, e ganharam o branco alvejado. Para evitar o desaparecimento da profissão de canoeiro, a Prefeitura de Piranhas tem projeto para a criação de uma escola de aprendiz, para que os velhos mestres possam repassar seus métodos e seus segredos na arte da navegação fluvial.

O rio acabou. A embarcação acabou. Agora o povo só quer lancha de plástico e motor Pedro de Aristides Mestre carpinteiro


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Seu Aurélio: o guardião canoeiro Criado em popa de canoa, seu Aurélio de Janjão, 68 anos, é pau para toda obra. Ele é reconhecido em todo o Baixo São Francisco como o melhor, um dos únicos e derradeiros mestres de canoa de tolda. Ele foi o comandante da Expedição Barra a Barra, com a canoa Luzitânia, de Brejo Seco (SE) a Piranhas, em novembro de 2007, restabelecendo a linha de longo curso no Baixo São Francisco, que não acontecia desde a década de 1970. Ele diz com orgulho que foi notícia no Jornal Nacional, da Rede Globo. Seu Janjão, pai de Aurélio, usou os trilhos da EFPA, em 1959, para embarcar – toda montada – sua canoa de tolda para Juazeiro do Norte, na Bahia. “As coisas ficaram apertadas tivemos que vender nossa canoa”. Mas a luta continuava para quem começou a navegar aos 14 anos. Fugia das aulas,

não queria estudar. O pai dava bronca, até que decidiu contar os segredos da profissão ao filho. “Já que você quer vou ensinar”. “O segredo está na posição dos panos (em dois mastros), que dependem do vento. Se tiver no Sul o pano vem para o lado do Norte, se tiver no Norte vai para o Sul”, ensina mestre Aurélio. O mestre diz conhecer o Baixo São Francisco com a palma da mão, sabe os locais de melhor acesso e tráfego, e os perigos das croas e das pedras ao longo do corredor. “O rio aqui embaixo mudou muito. O que era raso é onde está o canal, tem muitos baixios, não vá. Tem que procurar as costas dos lados de Sergipe e Alagoas. Pelo meio você vai se enganchar nos baixios”, explica. Depois do desaparecimento da canoa, a frustração se abateu sobre seu Aurélio. Até

O segredo da canoa de tolda está na posição dos panos, que dependem do vento

que chegou um dos dias mais felizes de sua vida. O prefeito de Pìranhas, Inácio de Loyola, lhe contrata, em 2006, para buscar a canoa de tolda reformada em um estaleiro em Propriá. “Eu pensei que nunca mais na vida eu ia ver outra vez a canoa de tolda, e mais ainda navegar a bichinha toda nova, de Propriá a Piranhas”, diz seu Aurélio. A surpresa ainda foi maior quando chegou ao Porto com a canoa restaurada, e o prefeito lhe deu uma nova missão: cuidar da canoa por toda sua vida, “até quando der”. É ele quem recebe os turistas, exibe a canoa, bordeja de um lado a outro, mostra sua arte e explica os detalhes da centenária canoa: as velas, o moitão, a própria tolda (cabine), o leme e a taboa de bolina, uma barbatana de madeira lateral, que dá a orientação do barco.

Eu pensei que nunca mais ia ver outra vez a canoa de tolda e ainda mais navegar a bichinha

Aurélio de Janjão

Aurélio de Janjão

Mestre de canoa

Mestre de canoa


::: reportagem :: :

Neno Canuto

Seu Aurélio de Janjão é um dos derradeiros mestres da canoa


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Neno Canuto

Um dos Ăşltimos exemplares da canoa de tolda estĂĄ em Piranhas


“A canoa de tolda é o símbolo da prosperidade no Baixo Chico. Havia cem, duzentas canoas aqui para cima e para baixo, todas eram de tolda e chatas. A chata era uma canoa menor um pouquinho, sem cabine na proa. A canoa carregava o arroz, o barro, as pessoas, os recados. Levava dinheiro para cima e para baixo, enfim, ela era a força, o símbolo da economia local, e pode vir a ser de novo o grande fator de agregação da comunidade ribeirinha”, afirma o presidente da Sociedade Canoa de Tolda, Carlos Eduardo Ribeiro Junior. O biólogo e administrador do Museu do Mar, Paulo César Werner, é outro fã de carteirinha da nau. Foi ele que, depois de rodar quase mil quilômetros de automóvel e embarcações pelo rio e seus afluentes, conseguiu adquirir um raro exemplar para o museu, hoje uma de suas atrações. “Fui para o Baixo São Francisco atrás de uma embarcação que era tida como desaparecida, a canoa de tolda, que é de origem holandesa. Percorri cerca de mil quilômetros no Vale do São Francisco atrás dessa embarcação e consegui um exemplar para o museu. Contratei um prático do rio e navegamos dois dias com essa canoa até Penedo para facilitar o acesso do caminhão. Foi meu presente de

Natal de 2000. Navegar com uma canoa de tolda pelo rio São Francisco é uma coisa que certamente pouquíssimas pessoas fizeram nesses últimos tempos, foi um momento de verdadeiro deleite”, contou Werner. Mas foi a Sociedade Canoa de Tolda que marcou ponto na história da região do BSF, ao retomar as navegações entre o Sertão – separado por um cinturão de caatingas, estradas pedregosas e rocha areníticas - e a foz. A ONG restabeleceu, ainda que de forma parcial, as ligações entre as comunidades sertanejas (é notório o isolamento de comunidades em um sobrevoo na região) e a tradicional navegação do Baixo Chico. “Hoje, nós conseguimos fazer toda essa trajetória de 10 anos para botar essa embarcação de volta na água sem um tostão de dinheiro público, apenas com mobilização pessoal, carregando tudo na cabeça, vontade de fazer. E, claro, as pessoas na comunidade que ajudaram”, diz Carlos Eduardo. Para ele, além da falta dos grandes mestres da carpintaria naval do Velho Chico, outro sério problema dificulta ainda mais novas cópias, o desmatamento de espécies nobres de madeira. “A madeira acabou. As embarcações eram feitas, totalmente, com madeira local, braú-

Fui para o Baixo São Francisco atrás de uma embarcação tida como desaparecida, era a tolda

na, pau d’arco, cedro, e tudo isso se acabou, você não tem mais madeira na beira do rio. A economia mudou, a função da canoa, que era transportar carga, deixou de ter valor, porque não havia mais carga, Dessa forma, a canoa deixou de ter valor, só o valor afetivo, que é muito forte”, diz. Ele lembra outro fato importante na retomada da navegação do Baixo São Francisco: a relação feminina com os barcos e canoas do rio. “Não conheço no Brasil um lugar onde as mulheres tenham essa ligação com embarcação. Aqui as mulheres gostam de andar de barco, sabem pilotar a embarcação, mesmo quem era só passageira se lembra do nome das embarcações”. A canoa de tolda só existe no Brasil e é um modelo muito particular, na verdade as toldas eram embarcações enormes. “A nossa é pequena, tem apenas 16 metros de casco, 25 metros com o mastro, e são perfeitamente adaptadas para descer, sobe a favor do vento, com o pano aberto e vem bordejando de lá cima para cá . Ela tem várias influências, holandesa, portuguesa, oriental, das colônias portuguesas em Macau, ela juntou uma série de experiências que deram certo. É a embarcação perfeita para o Baixo São Francisco”, acredita Carlos Eduardo.

Não conheço no Brasil um lugar onde as mulheres tenham essa ligação com a embarcação

Paulo César Werner

Carlos Eduardo

Gestor do museu do mar

Dirigente da ong canoa de tolda

::: reportagem :: :

Refazendo a história


Neno Canuto

: ::: reportagem :: Mestres carpinteiros estão perdendo a corrida contra o tempo

Tradição da carpintaria naval está no fim Apesar de pontuar pequenos estaleiros artesanais ao longo dos 208 quilômetros de costa doce, os mestres carpinteiros navais do Baixo São Francisco estão perdendo a corrida contra o tempo. Não há mais embarcações para se fazer, o PVC substituiu a madeira e o rio perdeu um grande volume de água a partir da construção das barragens e das usinas hidrelétricas nos anos 1960, e os últimos mestres veleiros não são incentivados a repassar seus conhecimentos aos aprendizes. A construção de novos modelos não está tão fácil como parece, pois não se trata de linha de montagem, mas a pura arte de ofício dos velhos construtores de canoas, que já não são mais os mesmos, e hoje alcançam

o peso da idade. Como o mestre carpinteiro e canoeiro Pedro de Aristides, que com 84 anos terminava sua última canoa, como ele ressaltou, numa tarde de fevereiro de 2010, em um estaleiro artesanal do Porto de Penedo. Seu Aristides participou da reforma e da reestruturação de dezenas de canoas de toldas, até o quanto pôde. Foi ele que levantou dois dos três únicos exemplares da canoa de tolda existentes no mundo: a Luzitânia, recuperada pela ONG Sociedade Socioambiental Canoa de Tolda e a da Prefeitura de Piranhas. A terceira canoa está no Museu Nacional do Mar, em Santa Catarina. “Hoje não tem nem imitação do passado. O rio acabou. A embarcação acabou. Hoje o

povo só quer lancha de plástico e motor. Mas existem ainda grandes mestres em Pão de Açúcar. Mas a canoas acabaram. O Porto de Penedo não cabia de tanta, eram umas 400 para cima e para baixo”, lembra Aristides. Ele lembra que foi numa canoa de tolda que transportou do navio para a margem do porto as quatro torres metálicas de energia da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf) que chegava a Penedo. “Antigamente não tinha rodagem, hoje qualquer biboca tem estrada”, desconversa seu Aristides. Ele promete, tão logo acabe sua última canoa, que vai começar a fazer miniaturas das famosas embarcações. “Vou começar a procurar os paus”, projeta seu Aristides.


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GLAMOUR E DECADÊNCIA

Reprodução

Se antes, desde o império, passou pelo esplendor dos anos 1920 até 1950, e resistiu até os anos 1960, hoje as navegações de carga e passageiros feitas por navios vapores, barcaças, lanchas e canoas de todos os tipos, estão em plena e irrefreável decadência. O Porto de Penedo, por exemplo, irradiava saúde financeira, movimentando um esplendoroso volume de negócios – existia até mesmo uma alfândega, agência da Loyd Brasileiro e Capitania dos Portos – em mercadorias e matérias-primas como algodão, madeiras de lei, cerâmica, produtos agrícolas, animais e até peles tipo exportação. E lá estavam os navios da Loyd; da Companhia Penedense de Navegação, do grupo Peixoto, os oceânicos Luso Brasil e Brasil Luso; os da Companhia Industrial Penedense CIP-

As numerosas embarcações eram símbolo de prosperidade econômica

que incluía as duas maiores canoas de tolda do Baixo, a Alagoana e a penedense Marialva. As lanchas Tupã, Tupi, Tupigy e Moxotó, que ficou famosa pelo seu naufrágio, e os navios a vapor Comendador Peixoto, Penedinho e Jiquitaia. Duas datas históricas marcam a relação entre a navegação no Baixo e a cidade do Penedo. Em 5 de março de 1637, a frota do governador-geral do Brasil Holandês, Maurício de Nassau, cerca os portugueses e conquista Penedo, onde começa a construção do Forte Mauritz, após sucessivas vitórias sobre as forças lusitanas desde Porto Calvo, onde morre o irmão mais moço de Nassau, Carlos von Nassau. Já em outubro de 1859, passada a dominação holandesa, o jovem imperador Dom Pe-

dro II, aos 34 anos, desembarca em Penedo e faz uma viagem antológica pelo Baixo São Francisco, incluindo os municípios ribeirinhos alagoanos - de Piaçabuçu até a Cachoeira de Paulo Afonso, em Delmiro Gouveia. O monarca atravessou parte dessa epopeia muitas vezes montado em lombo de burro ou a bordo da frota de navios a vapor do Império. Hoje, já não existe mais o glamour das grandes navegações, e Penedo e todas as cidades do Baixo, incluindo os dois estados ribeirinhos – Alagoas e Sergipe – só se enfeitam de verdade nas comemorações da centenária festa do Bom Jesus dos Navegantes, o maior evento religioso e profano do Baixo São Francisco, que acontece todo começo de janeiro, com a procissão fluvial conduzida por centenas de embarcações de todos os tipos.


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Rio São Francisco: um manancial de riquezas Pedro Flores* e Alejandro Muñoz** O rio São Francisco, com seus aproximadamente 240 quilômetros de extensão na sua parte alagoana, apresenta uma impressionante diversidade ambiental, paisagística e cultural que fazem dele, na visão da Cooperação Espanhola, uma das regiões com mais encanto do Brasil. O Velho Chico se apresenta para o trabalho da Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento como um terreno fértil com enorme potencial para o desenvolvimento sustentável do setor turístico em vários de seus segmentos de mercado, tais como o turismo de aventura, o esportivo e o ecoturismo, entre outros. Apesar do aumento nos últimos anos do turismo em Alagoas, e de ser este Estado, na atualidade, um dos principais destinos turísticos de sol e praia no Brasil, o setor não está suficientemente desenvolvido no São Francisco e grande parte do seu potencial ainda não foi aproveitado. Consequentemente, a expansão do turismo dentro de uma estratégia de segmentação de qualidade e de baixo impacto ambiental pode gerar incrementos da renda da população local a partir da criação de pequenos negócios, representando um grande potencial para a diversificação econômica da região. Porém, como acabamos de citar, o modelo de turismo do Estado está baseado no tradicional produto de sol e praia, apesar de contar com inúmeros atrativos turísticos que podem ajudar a criar produtos diversificados e segmentados.

Exemplo desta riqueza é o formidável e pitoresco conjunto monumental da cidade de Piranhas, com sua antiga estação de trem que virou Museu do Sertão e a tradicional canoa de tolda, que já foi o principal meio de transporte dos ribeirinhos. No município de Delmiro Gouveia, destaca-se a Usina do Angiquinho, a primeira hidrelétrica do Nordeste, já na divisa com a Bahia. E não poderíamos esquecer o Cânion, com a maravilhosa Gruta do Talhado e a imponente Hidrelétrica do Xingó, na divisa com o Estado de Sergipe. Mas não só existem belezas paisagísticas nesta zona alagoana do Velho Chico, também encontramos artesanato, como os bordados da comunidade de Entremontes, a gastronomia, com o delicioso pitu e as manifestações folclóricas referentes ao Cangaço, exemplos da variedade de atrativos turísticos desta região. Descendo o rio, nos deparamos com a cidade de Pão de Açúcar, onde vale a pena observar do seu mirante a região, conhecer as praias fluviais e o artesanato da Ilha do Ferro.

Já próximo da foz, o exuberante patrimônio histórico-cultural da cidade de Penedo, que com suas igrejas e palácios nos transportam ao passado do Brasil Colonial. Por último, no município de Piaçabuçu, na mesma foz, as praias, dunas, mangues e coqueiros nos deixam deslumbrados no encontro do rio São Francisco com o Oceano Atlântico. Por outra parte, o São Francisco representa um potencial enorme no que se refere à pesca sustentável e à aquicultura, especialmente a esta última atividade, já que se estima que no Delta existam mais de 14.000 hectares adequados para o cultivo de peixes.


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É preciso salientar que a piscicultura encontra-se ainda num estado incipiente na região, se destacando o cultivo da tilápia (Oreochromis niloticus), do tambaqui (Colossoma macropomum) e do surubim (Pseudoplastystoma fasciatum), entre outros, havendo capacidade de ampliar o número de espécies e pesquisar outras, especialmente nativas, susceptíveis de serem cultivadas de forma sustentável. Apesar destas excelentes oportunidades que oferece o Velho Chico a seu passo por Alagoas como acabamos de ver, os municípios desta região apresentam um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) relativamente baixo. Como exemplo disto, sobressai o município de Traipu, com um IDH de 0,479 (baixo desenvolvimento humano) e outros como Olho d’Água do Casado, Belo Monte, Porto Real do Colégio e Igreja Nova, todos com um IDH inferior a 0,6 (dados ano 2000). São estes os motivos que fizeram a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), aceitar, em 2007, colaborar com diversas instituições alagoanas para o desenvolvimento desta região. Desta forma foram iniciados os projetos “Dinamização do Turismo e Sustentabilidade Ambiental do Rio São Francisco”. O objetivo é aumentar a renda das comunidades com menor poder aquisitivo dedicadas ao setor turístico, fomentando a diversificação e fortalecendo seu quadro econômico por meio do desenvolvimento do turismo sustentável. Pretende-se que o setor do turismo alagoano atue como ferramenta de desenvolvimento socioeconômico, integrando neste crescimento, de maneira especial, suas populações mais carentes.

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O segundo dos projetos pretende melhorar a qualidade de vida das comunidades dedicadas à pesca, à mariscagem e à aquicultura em Alagoas, superando as carências econômicas e sociais que lhes impedem de alcançar um nível de bem-estar adequado. A finalidade do terceiro é o de contribuir ao desenvolvimento socioeconômico do Estado de Alagoas através da modernização empresarial das pequenas e microempresas e da diversificação produtiva. Para conseguir isto já se criou a Agência de Fomento de Alagoas (AFAL), que fomenta o desenvolvimento econômico das micro e pequenas empresas inovadoras e das famílias de baixa renda por meio da inserção produtiva. Desta maneira, este projeto complementa os dois descritos anteriormente. Com tais ações, a Cooperação Espanhola espera contribuir na melhora das oportunidades e das capacidades da população desta região do Velho Chico, por meio do aproveitamento de forma sustentável dos inumeráveis recursos que possui. *Pedro Flores é coordenador-geral da Cooperação Espanhola no Brasil **Alejandro Muñoz é diretor de Projetos da Cooperação Espanhola no Brasil.


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São Francisco: o rio da resistência Eduardo Jorge de Oliveira Motta* Uma época em que a preservação ambiental no planeta passa a ser o grande desafio da humanidade - no sentido de garantir a manutenção da biodiversidade e dos recursos naturais - exige de forma inadiável a mudança de postura na forma de consumo da sociedade, em todos os níveis de governo, e na forma de exploração econômica levada a efeito pela iniciativa privada, como também pelos estados e suas instituições. Apesar de suas controvérsias e de diferenças de números, há na comunidade científica um consenso a respeito das mudanças climáticas em curso no nosso planeta. Os efeitos dessas mudanças no clima já são sentidos em todos os continentes e na maioria dos países. No Brasil, a chuva torrencial acima da média histórica, que tem levado destruição, prejuízos e mortes ao Sul e Sudeste, a constância de tornados em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, o aumento do período de estiagem na Amazônia e no Nordeste, como também o avanço do mar na costa brasileira são alguns exemplos que podem ser comprovados. Por outro lado, no quadro da desigualdade regional ainda existente no País, destaca-se o nível de pobreza da população nordestina, cujo índice de carência se acentua onde há menor disponibilidade de recursos hídricos de superfície.

Neste quadro, o Nordeste, com mais de 47 milhões de habitantes, possui cerca de 3% das águas nacionais, representado principalmente pelo rio São Francisco. Em comparação, a bacia Amazônica detém aproximadamente 70% das águas fluviais brasileiras, onde residem menos de 13 milhões de

A resistência possui um símbolo, o farol do Cabeço, outrora localizado no povoado que existia no município sergipano de Brejo Grande

pessoas, ou seja, cada uma dessas regiões, respectivamente, correspondente a 28,1e 7,6% da população brasileira. Portanto, diante da importância estratégica do rio São Francisco para o Nordeste e para a nação, desde os primórdios da civilização brasileira, tanto pela forma de ocupação de suas terras quanto pela interligação do Sul/Sudeste com o Nordeste/Norte,

o rio passou a ser conhecido como “rio dos currais, da unidade nacional e da integração nacional”. No entanto, apesar de seu grau de importância para o desenvolvimento regional, a partir do uso de seus recursos hídricos com destaque para a agricultura irrigada, pecuária, indústria, hidroeletricidade, abastecimento e turismo -, o modelo de ocupação e de exploração adotado resultou em grandes impactos ambientais e sociais que precisam ser reparados. Neste contexto, ressalta-se a relevância do Programa de Revitalização da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco ora em execução pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), o qual se faz necessário que seja incrementado e dado continuidade, para que o rio receba o tratamento de que vem carecendo há décadas. Importantes projetos começam a ser executados pelo Ministério da Integração Nacional por meio da Codevasf, a exemplo de obras de saneamento e de esgotamento sanitário, elaboração de planos de manejo de unidades de conservação, recuperação de matas cilia-


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res, monitoramento liminológico e da pesca, recomposição da ictiofauna, educação ambiental, dentre outros. Porém, diante da magnitude da degradação ambiental no Vale, ocasionada pela ação humana desde a época das Capitanias Hereditárias, cabe à sociedade e aos governos federal, estaduais e municipais contribuirem para a sua conservação e implementação de projetos de desenvolvimento sustentáveis que venham garantir a sobrevivência das futuras gerações e a do próprio rio. O Vale do São Francisco, atualmente, constitui-se em um laboratório a céu aberto que, a partir dos resultados alcançados pelo programa de revitalização, deverá ser estendido para as demais bacias hidrográficas do Brasil que, quase na sua totalidade, também necessitam ser recuperadas. É importante ressaltar que a vegetação natural do cerrado brasileiro, região onde nasce a maior parte dos grandes rios nacionais, começou a ser destruída mais intensamente a partir de meados da década de 1950, quando começou sua transformação em carvão vegetal para o uso doméstico e, principalmente, como fonte de energia para a operação das siderúrgicas. Essa destruição, que na década de 1970 já atingia patamares da ordem de 300 mil hectares por ano, adicionada, posteriormente, à expansão da criação de gado e do cultivo de grãos, chegou a atingir anualmente cerca de um milhão de hectares. Em decorrência dessa devastação da floresta nativa do cerrado, nascentes de vários afluentes que formam as principais bacias hidrográficas brasileiras, como a do São Francisco, Araguaia, Tocantins, Xingu, Paraná, Parnaíba, dentre outras, estão secando, o

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que poderá, no futuro, levar essas riquezas naturais ao colapso. Nessa perspectiva, o rio São Francisco, apesar da degradação, em decorrência da construção de grandes barragens, desmatamento, assoreamento, poluição, irrigação, pesca predatória, caça clandestina, isolamento ou ocupação de lagoas marginais etc., continua vivo e perene, podendo assim, ser considerado o rio da resistência. Essa resistência possui inclusive um símbolo, o farol do Cabeço, outrora localizado no povoado que existia no município sergipano de Brejo Grande, na confluência do São Francisco com o oceano Atlântico. O farol, que se situava em terra firme dentro do povoado, hoje se encontra a centenas de metros mar a dentro, enquanto o povoado original foi totalmente engolido pelo oceano, a partir de um processo erosivo costeiro jamais visto na região. Esse fenômeno erosivo passou a acontecer desde que o rio foi regularizado pela construção de uma série de barragens, perdendo com isso velocidade, além de reter os nutrientes que eram carreados em grande quantidade para o oceano, levando ao declínio um dos maiores bancos de camarão e de peixes existentes no País, o do Peba em Alagoas. O rio, enfraquecido desde suas nascentes até a foz, agoniza, pela ganância e exploração de seu próprio povo. Exige-se, portanto, da sociedade e do Estado mobilizarem-se com o objetivo de adotarem medidas amplas e eficazes que venham a regenerar e preservar o vale do São Francisco e, por extensão, contribuir com a manutenção do único planeta do universo onde a vida é conhecida, a Terra. *Engenheiro de Pesca


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Apelo em favor de um velho amigo Anivaldo Miranda* Quando o governo federal começou a impor, de forma autoritária como é da nossa cultura política centralista, o projeto da transposição das águas do rio São Francisco, procurou, paralelamente, minimizar as repercussões negativas do fato através de uma sistemática manipulação do fluxo de informações relativas ao assunto. Para os que acompanharam mais de perto a polêmica suscitada pelo projeto, ainda está bem viva na memória a insistência com que os porta-vozes do Palácio do Planalto asseguravam que o projeto da transposição em nada iria afetar a geração de energia oriunda das hidrelétricas que, a partir das águas do Velho Chico, garantem – em sistema nacional integrado - a oferta de energia para a região Nordeste. Passados, porém, os momentos mais tensos da queda de braço provocada pela transposição, o governo sente-se agora mais confortável para apresentar uma nova fatura ao já combalido rio São Francisco: quer erguer em seu leito mais três barramentos (um deles à altura do município de Pão de Açúcar, em Alagoas) e, quem sabe, dependendo de estudos em andamento, conveniências e articulações políticas, água para viabilizar o funcionamento de uma central nuclear. Como para bom entendedor duas palavras bastam, não é difícil concluir que os defensores oficiais da transposição simplesmente mentiram para o País. O projeto megalôma-

no vai realmente afetar o potencial energético do São Francisco e é por essa razão que as novas barragens e a central nuclear estão sendo idealizadas como saída para reequilibrar, em futuro próximo, os impactos da transposição, muito embora, em algum momento o incremento do crescimento econômico nordestino venha a reclamar maiores investimentos na oferta de energia. Como se sabe, o rio São Francisco é já um paciente grave. Porém, apesar dessa evidência, os governos e usuários de suas águas tratam de ignorar completamente, digamos assim, esse péssimo estado de “saúde ambiental” que, além do mais, apresenta reais perspectivas de agravamento com o avanço dos processos do aquecimento global. Em nome da ideologia do crescimento a qualquer custo, as demandas pelo uso econômico da água crescem a um ritmo acelerado, enquanto as políticas de revitalização do ecossistema que garante a existência do rio caminham a passo de tartaruga. Um sintoma claro desse descompasso está no aumento da frequência com que o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a

Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e a Agência Nacional de Águas (ANA) têm se combinado para reduzir constantemente a vazão mínima de restrição na foz do São Francisco como compensação às manobras do sistema nacional integrado de distribuição de energia e aos efeitos das estiagens nas barragens do rio (Sobradinho em primeiro lugar), um claro e preocupante sinal do choque entre oferta e demanda de água no contexto das condições cada vez mais cambiantes do clima. O que foi dito acima configura apenas alguns dos muitos exemplos de conflitos de uso da água já existentes e passíveis de agravamento depois que os canais da Transposição estiverem a pleno vapor levando as águas do São Francisco, a um custo absolutamente astronômico, para viabilização dos projetos


do agronegócio de exportação de frutas tropicais e criatório de camarões no Nordeste Setentrional, leia-se, viabilização unilateral e privilegiada dos interesses do grande capital agroindustrial e exportador do Ceará e Rio Grande do Norte, principalmente.

Nada está mais longe da verdade do que essa recorrente afirmação oficial que pretende apresentar o megaprojeto da Transposição como uma suposta redenção para o sertanejo nordestino sedento. Se, de fato, fossem os sertanejos o alvo dos bilhões que serão gastos, o projeto e as obras seriam outros. Que o diga o projeto “Atlas Nordeste” que, usando apenas metade dos recursos da Transposição, estaria apto, com soluções muito mais baratas (adutoras, cisternas, barragens subterrâneas etc.) e mais rápidas, a dar solução imediata à escassez hídrica da miríade de pequenas comunidades abandonadas no Semiárido brasileiro.

A Transposição é, na prática, um projeto que dará segurança hídrica, sobretudo no contexto do seu Eixo Norte, às bacias do Nordeste Setentrional que já têm essa segurança em horizonte razoável. Geopoliticamente trata-se de um projeto concentrador de renda, parido de uma concepção equivocada de desenvolvimento que prospera desde o tempo da Ditadura Militar. Não é uma coisa para pobres. Poluído, assoreado, obrigado a espremerse em suas margens crescentemente erodidas, triste por haver perdido a navegabilidade em extensos trechos, agredido no regime de suas águas pelos inúmeros barramentos, incomodado pela perda de sua vegetação ciliar, angustiado pela decadência de muitas de suas cidades ribeirinhas, chacoteado pelo Oceano Atlântico que adentra a cunha salina das águas do mar muito além de sua foz, empobrecido em sua biodiversidade, o Velho Chico clama por socorro. Resta saber se seus filhos e filhas vão querer escutar seus lamentos e tomar as dores de sua tragédia. *Anivaldo Miranda é jornalista e representa o Fórum de Defesa Ambiental (FDA) no Comitê do São Francisco.


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Verger

Douglas Apratto Tenório* e Cármen Lúcia Dantas**

Em 2005, durante o “Ano do Brasil, na França”, a programação “Bresil, Bresils” trouxe um grande ganho para a cultura brasileira no exterior, favorecendo a imagem do nosso país na Europa em toda a sua diversidade,

riqueza e criatividade. Em 2009 foi a vez de o Brasil retribuir. A França foi apresentada em nosso território como um país aberto, de grande riqueza cultural, moderno. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, houve uma série

de eventos que consolidaram a amizade das duas nações que, embora afastadas geograficamente, compartilham os mesmos valores democráticos e sociais e a mesma visão da indispensável diversidade cultural.

*Dougras Apratto é historiador **Cármem Dantas é museóloga


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em Alagoas:

uma viagem para n達o esquecer

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O projeto Pierre Verger em Alagoas: uma viagem para não esquecer, idealizado por mim e Cármen Lúcia Dantas, colega de outros trabalhos culturais, pretendia inserir Alagoas nesse circuito nacional, ao lado de outras unidades federativas, através de um calendário sobre essa viagem quase desconhecida do antropólogo franco-baiano, que foi publicado em outubro de 2009 e esgotado em menos de um mês - para tristeza dos solicitantes que disputavam a posse daquele material. O projeto não se encerrava com o calendário, que já é uma tradição anual no mundo cultural e científico de Alagoas. Programava ainda a publicação de um livro de arte e um álbum ilustrado, que está em fase final de execução, sobre o assunto, valorizando a passagem por Alagoas, na década de 1950, desse destacado artista e cientista social de renome internacional.

Verger captou as representações históricas, antropológicas, individuais e coletivas que os homens constroem sobre o mundo

O estudo desse período apresenta fotos e situações inéditas de Alagoas em meados do século XX, uma era de grandes transformações na estrutura social, política e econômica do Estado, revelando cidades e lugares esquecidos do interior alagoano, ressaltando o importante episódio da construção da Chesf, a Companhia Hidrelétrica do São Francisco, e valorizando, através das lentes mágicas de Pierre Verger, o cotidiano, o homem e a paisagem alagoana. Sem contar algumas poucas cidades do Sertão e do Agreste, Verger retratou basicamente a peculiar região do Baixo São Francisco, tendo como base a antiga Pedra, hoje Delmiro Gouveia, pois presenciou a odisséia da construção da mega-hidrelétrica no can-

teiro que tinha o lado baiano de Paulo Afonso como polo, mas que mantinha laços estreitos com a margem alagoana, de onde vinha boa parte do abastecimento de gêneros e de pessoal ávido por ganhar a vida no novo eldorado em que se tornou a região, semelhante à febre que grassa nas cidades onde são descobertos ouro e pedras preciosas. O território são-franciscano foi por ele percorrido: a lapinha Piranhas, a barroca Penedo, a interessante Traipu, Pão de Açúcar - a bela espelho da lua, como a chamavam os indígenas -, Piaçabuçu e os encantos da foz, com suas imensas dunas, todo um continente mágico que seduz o viajante com seus costumes, tradições, folclore, gastronomia e um patrimônio artístico e histórico tão variado quanto a multiplicidade dos povos formadores de sua gente. Todo esse encantamento encontra-se distribuído nos onze municípios de suas margens e barrancas, em um mundo fascinante onde cada paisagem, cada vila, cada lugarejo, cada lenda e cada história, a flora, a fauna, a religião e a arte, os momento da vida de seus moradores se ritualizam e envolvem ondas de encanto e mistério, desde o nascimento até a morte, do nascer ao pôr-do-sol de cada dia, do trabalho agrícola na terra até a pesca em suas águas generosas. A viagem de Verger é um presente para Alagoas. Ele deu visibilidade ao lugar, não só à natureza exuberante, mas ao homem alagoano do São Francisco, assim como ao do Sertão, na espontaneidade do cotidiano. O francês, que foi fotógrafo, etnólogo e escritor, tinha larga experiência de campo desde 1932, pois durante catorze anos viajou pelo mundo, por diversos países e continentes, registrando paisagens e pessoas para jornais e revistas europeias e americanas. Colaborou nesse período com o Museu do Homem e obteve o título de doutor em Estudos Africanos pela Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Paris. Foi membro do Museu Nacional de História Natural e diretor do Centro Nacional de Pesquisa Científica. Ver um mestiço local sem nenhuma produção preparatória, sem qualquer pose artificial, um jangadeiro arrumando sua em-

barcação para sair rumo à pescaria, um trabalhador em breve descanso de sua lida barrageira, uma cabocla contando pencas de banana em plena feira interiorana, mulheres cachimbando em agradável diálogo, a religiosidade popular nas procissões e nas cruzes erigidas nas caatingas é uma prova inconteste de que a técnica fotográfica se integra definitivamente como instrumento de preservação da história e da identidade dos povos.

A viagem de Verger é um presente para Alagoas. Ele deu visibilidade ao lugar, não só à natureza exuberante, mas ao homem alagoano

Um mestre da fotografia como Verger, que tinha uma visão antropológica do mundo, pôde tirar de breves instantes, que poderiam ficar desatualizados alguns anos depois, imagens que estão muito à frente de seu tempo. Seu périplo de descobertas pelo território alagoano, do velho Opara indígena à hinterlândia sertaneja, trouxe uma descrição densa de uma sociedade extremamente miscigenada. Ele teceu com seu instrumento de trabalho uma gama de representações e observações possíveis, com recomposição dos tipos humanos integrados à natureza da região, com toda sorte de significados socialmente possíveis que o apreciador de suas imagens possam obter, ontem, hoje e em qualquer época do futuro. Ali, onde o índio se transformou em vaqueiro, onde o negro sofreu o azedume da escravidão e se transformou em canoeiro (e é chamado de boêmio do Sertão), os curtidores, os tangerinos, os roceiros, as lavadeiras e as artesãs têm um diferencial na vida livre, mais solta, numa sociedade diferente da senhorial e mais hermética do litoral canavieiro, Verger captou as representações históricas, antropológicas, individuais e coletivas que os homens


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Verger capta a transformação no ar, mas não reproduz apenas o que vê, transmite perfis, valores, ação, preconceitos, medos, sonhos, alegrias

constroem sobre o mundo. Assim como ele se tornou um franco-baiano em toda a plenitude, não só morando em Salvador, mas se integrando como um cidadão soteropolitano, no Sertão e nas barrancas são-franciscanas ele pôde atingir a gratificante sensação de se apoderar das sensações, das experiências alheias, individuais ou coletivas, que poderiam ser dele próprio. A identidade é um processo de acumulação de práticas que afloram frente as mais diversas conjunturas. A identificação social tem sido tratada como um padrão genérico, cultural, nacional, regional, mas o certo é que existem partes da identidade que conformam além do cultural, do sociológico, do histórico, unidades, traços psicológicos e psíquicos da mesma. E isso o mestre francês sabia muito bem e utilizava em suas incursões de trabalho. Em um diálogo mudo entre duas mulheres perto de um poste de luz, na expressão de admiração de um passante sobre um jovem tropeiro em uma feira, no trabalhador que por um breve momento de cansaço apoia a mão no estrado de madeira, no olhar sobre o infinito do rio do canoeiro de torso desnudo, no grupo que se reúne em torno de uma cruz imensa ou no homem que carrega um balaio de macaxeira para venda na rua da cidadezinha, temos a expressão do desejo do homem em se identificar com aquilo que ele não é, como o seu caminho para a plenitude, com a magia humana de tornar-se um com o todo da realidade que o cerca através da arte. Ela que permite essa união do indivíduo com o universo em que está e que expõe, de forma clara, a extraordinária capacidade humana em circular experiências e ideias. O período que Verger passou por Alagoas é de grandes transformações no Estado e no Brasil. É a era do mundo bipolarizado, de cicatrizes mal curadas, do capitalismo norteamericano contra a ameaça soviética e a cortina de ferro, em que os ecos da grande guerra contra o fascismo e o nazismo ainda ressoam em todos os ouvidos. Getúlio Vargas continua um mito, adorado e odiado na mesma proporção e a efervescência política da redemocratização de 1945 chega com intensidade a todos os estados.

A década de 50 começa com a vitória surpreendente do jornalista Arnon de Melo contra os invencíveis irmãos Góis Monteiro. O bloco populista em alta não dá trégua aos novos donos do poder e brilha a figura de um líder novo, oriundo da defesa do movimento sindical, o ex-delegado do Trabalho, Muniz Falcão. Na eleição seguinte à sua escolha como governador do Estado, por diferença mínima, mostra não só a irrupção de um nova era, mas o confronto político radicalizado que leva a violência para todas as regiões. O que mais sintetiza essa transformação visceral é o crescimento urbano populacional que começa a superar o rural e a elevada taxa das correntes migratórias locais que vão fornecer mão de obra para estados sulinos. A industrialização é tema dominante, a descoberta de petróleo em Alagoas dá razão aos pioneiros que pagaram caro com o descrédito de suas ideias. A influência norteamericana suplanta os padrões europeus e Verger assiste, no recôndito do Sertão alagoano, não só ao projeto de um estado desenvolvimentista com a construção de Paulo Afonso, mas também o início de uma sociedade cosmopolita e urbana, que dilui, sem retorno, a velha sociedade patriarcal rural. As ondas concêntricas do american way of life chegam ainda sem a força da capital, mas a Coca-Cola, o cinema, o rádio, as revistas, o jeans e as rodovias de asfalto já chegam como mostra de ruptura com uma sociedade agrária e rústica, onde a presença de um automóvel ou de uma marinete é uma festa; onde o horário é ditado pelo nascer e pôr do sol; onde as pessoas vão buscar água nas margens do rio com potes na cabeça. Verger capta a transformação no ar, mas não reproduz apenas o que vê, transmite perfis, valores, ação, preconceitos, medos, sonhos, alegrias, dúvidas. Como um pintor do Renascimento, época igualmente forte em mudanças, registra o que vê em sintonia fina com aquele mundo, captando imagens sem retoques de uma região do Brasil onde o homem é o personagem principal no grandioso painel natural do ninho de culturas que é o Baixo São Francisco.


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No início do livro Sobre Fotografia a americana Susan Sontag (1933-2004) escreve: “Colecionar fotografias é colecionar o mundo”. Seguindo o raciocínio de Sontag e de tantos outros teóricos da imagem, podemos dizer que fotografar é, de certa forma, apropriarse de diferentes mundos. No caso do Nordeste brasileiro a apropriação pela via da fotografia rendeu imagens primorosas que revelam tipos, características e costumes regionais marcantes. Rendeu também estereótipos que eternizam aos olhos do mundo a estética da pobreza e do subdesenvolvimento. A alternância entre realidade e mito, história documental e turismo de ocasião tem sido uma constante na fotografia de temática nordestina ao longo dos últimos dois séculos. No II Império, por determinação pessoal do imperador, a Cachoeira de Paulo Afonso foi

Aqui, Verger, de certa forma, passou ao largo da religiosidade, característica de seu trabalho, para se fixar na estética e nos costumes

içada à condição de objeto obrigatório de documentação. Dom Pedro II encantou-se pelo espetáculo natural após sua célebre viagem pelo São Francisco. E com o objetivo de conhecer um pouco mais sobre o lugar, incumbiu o fotógrafo Augusto Stahl, em 1860, de registrar o fenômeno. Marc Ferrez, no final do século, fez o mesmo. Já no século XX, inúmeros fotógrafos (brasileiros e estrangeiros) interessados e voltados para aspectos peculiares da região, percorreram caminhos diferentes. O cenário e a estética tropicais se colocavam como objetos imperativos. Dentre os mais conhecidos, podemos citar Marcel Gautherot, Stuckert e Pierre Verger. O legado desses profissionais constitui acervos representativos da história

de Alagoas - da capital às cidades do interior - num determinado espaço de tempo. No caso específico de Pierre Verger (19021996), fotógrafo habituado a documentar diferentes culturas ao redor do mundo, o contato com a região situada às margens do rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, nos revela aspectos diferenciados de sua obra. Aqui, Verger, de certa forma, passou ao largo da religiosidade, característica de seu trabalho, para se fixar na estética e nos costumes diários daquela região. Não se sabe ao certo se Verger chegou ao Estado por Delmiro Gouveia ou por Piaçabuçu. O certo é que percorreu toda a área sãofranciscana, da Cachoeira de Paulo Afonso até a foz, registrando o que lhe parecia interessante. Tomei conhecimento dessa viagem em 2005, quando fui convidada pela Fundação Pierre Verger (ver box), detentora do acervo de seu patrono, para escrever um texto sobre a passagem do fotógrafo pelo Baixo São Francisco, e que seria um dos capítulos do livro O Brasil de Pierre Verger, publicado em 2006. Até então a viagem e o material fotográfico proveniente dos registros feitos por Verger eram desconhecidos do grande público, pois estavam circunscritos ao acervo da Fundação. Diante do conhecimento acerca da importância e da representatividade desse material, inédito em Alagoas, dividi a informação com o professor e historiador Douglas Apratto Tenório. Inicialmente, o tema foi abordado por sugestão do próprio historiador na edição 2009 do Calendário Cultural Fapeal, projeto que realizamos em parceria anualmente sobre diferentes temas. Numa pesquisa mais apurada do segmento relativo a Alagoas encontramos fotografias feitas em Palmeira dos Índios, União dos Palmares e outros municípios, mas é na viagem pelo São Francisco que Verger nos revela o apuro de sua sensibilidade no enfoque sociocultural em cenas que constituem um precioso documentário sobre a região, em meados do século passado. E, como costumava dizer: “Sou francês, em parte, porque fui formado à francesa, como uma espécie de lógica, talvez verdadeira, talvez falsa, mas com uma

necessidade de explicar as coisas em vez de se deixar levar por elas”. Assim o fez durante a viagem por Alagoas. Adepto da estética espontânea, flagrou e explicou por meio de suas imagens a naturalidade dos tipos regionais, pescadores, canoeiros, tropeiros, lavadeiras, artesãs, vaqueiros e sertanejos, tostados pelo sol causticante, entregues distraidamente aos seus afazeres cotidianos.

As canoas utilizadas naquela época exerceram um fascínio especial sobre o fotógrafo que dedicou a elas parte de sua atenção

O conjunto dessa obra nos mostra a autossuficiência dos moradores das margens na troca de mercadorias e na prática do artesanato para a confecção de objetos de uso doméstico e do trabalho na roça e no rio. Para além da fotografia em si, o sentido documental do trabalho é reiterado pelo fato de que boa parte dos costumes registrados por Verger sofreu mudanças significativas nas últimas décadas. No campo do artesanato, por exemplo, as matérias-primas utilizadas pelos ribeirinhos, como o barro, a palha, a taboca, as redes e rendas não são mais os mesmos. Muitas dessas peças mudaram de função, saindo do uso comunitário para a produção em maior escala. Poucas continuam sendo usadas pela própria comunidade que as produzem. As canoas utilizadas naquela época exerceram um fascínio especial sobre o fotógrafo que dedicou a elas parte de sua atenção. Verger mapeou diferentes tipos de embarcação com ênfase para as de velas abertas. E nesse quesito temos novamente elementos para fazer um comparativo entre o ontem e o hoje. Basta observarmos as canoas de tolda, as maiores e mais confortáveis do Baixo



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A estética e o movimento corporal dos ribeirinhos também constituem um rico capítulo do material deixado por Verger sobre Alagoas

São Francisco, hoje raras, com apenas duas remanescentes: uma no Porto de Piranhas e outra no de Piaçabuçu. Os registros, no entanto, não se limitam às embarcações em si. Vão até o movimento dos passageiros no transporte de mercadorias entre uma margem e outra. O mapeamento feito por Verger identifica ainda a relação entre as cidades, vilas e povoados. Temos imagens representativas da época, como as fotos que mostram o vapor Penedinho chegando ao Porto de Penedo com as novidades vindas da Bahia, o que reforça o intercâmbio interestadual. A estética e o movimento corporal dos ribeirinhos também constituem um rico capítulo do material deixado por Verger sobre Alagoas. Um dos exemplos que ilustram esse aspecto do trabalho pode ser confirmado na série de imagens que mostram homens e mulheres sobre uma prancha estreita de madeira que se estende da canoa à margem durante o embarque/desembarque. Atento a detalhes, chegou às minúcias da natureza no jeito de ser são-franciscano. A religiosidade, a estética, a força física e o modo de vida compõem o acervo que representa importante fonte de pesquisa para aqueles que se dedicam ao estudo dos aspectos sociológicos da região. Nessa perspectiva, Penedo foi um campo fértil para o francês.

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Verger evidencia a cidade com seu campus arquitetônico secular, suas igrejas e casario. Misturou-se com os feirantes na Rua da Praia, por entre vasos de cerâmica, esteiras de piri-piri, covos de tabocas, cestos de cipó e tudo mais que chegava dos povoados próximos para o grande acontecimento público que é, ainda hoje, a feira dos sábados. E se por um lado deparou-se com a imponência barroca e neoclássica do centro histórico e com uma cultura farta de costumes tradicionais, por outro percebeu a simplicidade da gente que circulava nesse cenário. Com a agudeza de sua percepção, tirou partido desse contraponto reiteradas vezes em suas fotografias. Em resumo, podemos dizer que o trabalho realizado pelo fotógrafo é inequivocamente um documento dos costumes, paisagem e tipos humanos e a partir dele temos como estabelecer parâmetros entre um tempo e outro. Novamente recorro a Susan Sontag para reiterar que “...uma foto não é apenas o resultado de um encontro entre um evento e um fotógrafo...Após o fim do evento a foto ainda existirá conferindo ao evento uma espécie de imortalidade (e de importância)...que de outro modo ele jamais desfrutaria...”. Sendo assim, não temos como negar que Pierre Fatumbi Verger eternizou aspectos importantíssimos da cultura alagoana.

A Fundação Pierre Verger Instalada desde 1988 na casa onde o fotógrafo morou, na Ladeira da Vila América, nº 6, na capital baiana, preserva o legado cultural de Verger. O acervo está disponível aos pesquisadores para consultas, assim como também as publicações e informações sobre exposições realizadas. O espaço e os projetos sociais oferecidos pela Fundação à comunidade são mantidos pelo recolhimento dos direitos autorais referentes às fotos e livros publicados mundialmente.

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Ganhar a corrente do rio sem tocar nas pedras ou sem ter a âncora nelas agarrada como a teve o Pirajá, que a abandonou depois de aproar com a corrente trazida para bordo por gente de um barco do rio que a desprendeu a força de braços, foi a aventura do imperador Pedro II[1], em meados do século XIX, quando partiu de Piranhas rumo a Entremontes. Deste povoado o imperador zarpou para Pão de Açúcar, levando pouco mais de duas ho-

ras na viagem que, ainda de acordo com o seu relato, teve bastante vento, “que tornou o rio um mar buliçoso, mostrando o Pirajá desejos de dançar”[2]. Na falta do Pirajá, embarcação imperial, você pode contratar os serviços do barqueiro de Angico – lá mesmo, onde Lampião e seu bando caíram na emboscada – famoso na região por conhecer cada pedra do rio. Ele deslizará pelo São Francisco num rafting

rústico e improvisado. O trajeto até Entremontes, saindo de Piranhas, leva cerca de meia hora. Para continuar no itinerário de D. Pedro II, siga para Pão de Açúcar e inclua em seu roteiro uma visita à localidade de Ilha do Ferro, pertencente àquele município, feito que o imperador não fez. O percurso de Pão de Açúcar até Ilha do Ferro, que contrariando o nome não é ilha, dura em média 20 minutos.

Tesouros do Chico Pedro não viu Helena Sampaio*

Ao chegar a Entremontes - ou Armazém, como também já foi chamado este distrito de Piranhas - talvez nenhum descendente do comerciante Anacleto de Jesus Maria Brandão, dono da casa onde o imperador jantou na noite de 22 de outubro de 1859, esteja lá para recebê-lo; para compensar, uma dezena de crianças o cercarão curiosas tentando adivinhar o motivo da visita. Os motivos para conhecer Entremontes são vários, mas não constam do diário do imperador. Nas 25 linhas dedicadas à sua passagem pela localidade, D. Pedro II limitou-se a dois registros: que a população será de 300 habitantes (estimativa de seu anfitrião para um futuro breve) e que o comércio do povoado era menor que o de Piranhas; e uma breve no-

ta sobre a visita que fez à capela recém-construída por um morador “como cumprimento de voto pelo seu restabelecimento de cóleramorbo”[3], como era costume na época. Se também esperamos encontrar no diário de D. Pedro II algum comentário acerca de manifestações de cultura material, que pudessem distinguir os moradores do Baixo São Francisco, ficaremos frustrados. Mas não é caso de censurá-lo por eventual indiferença aos saberes do povo. O bordado rendendê - hoje patrimônio cultural de Entremontes - só teria chegado à região na primeira metade do século XX pelas

mãos de freiras ou de familiares de padres de origem européia, em particular belgas, que lá atuavam[4]. Desde então, o bordado foi disseminado por muitas cidades alagonas e sergipanas[5], distribuídas ao longo de uma linha que corre paralela ao rio São Francisco e que se adentra um pouco o interior. Nessa região, é comum o rendendê e o ponto de cruz aparecerem associados numa mesma peça. Isso acontece porque am-


1. Pedro II, imperador do Brasil. Via-

gens pelo Brasil. Bahia, Sergipe e Alagoas – 1859. Rio de Janeiro: Letras e expressões; Bom Texto, 2003.

2. Idem, pág. 142. 3. Idem, pág. 141. 4. Essa informação sobre a origem do

que

rendendê na região remete à tradição oral de bordadeiras sergipanas da década de 1970. Góez, Beatriz. “Rendeiras de Poço Redondo – Vida e arte de mulheres que batem bilros no sertão do São Francisco”.(Cadernos do Cendop 3, Sergipe, 2002).

5. A incidência da prática do renden-

dê, segundo Góez, foi constatada em 48 dentre 59 localidades visitadas no final do século XX por uma equipe de pesquisadores. Góez, Beatriz. “Alinhavos de histórias, debruxos de formas.” In Rendas e Bordados no Brasil. São Paulo: Artesanato Solidário, 2004.


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bos têm um elemento comum em sua técnica de execução: a contagem de fios de tecido. É por isso também que eles costumam ser feitos em tecidos que mostram os fios, uma vez que a técnica utilizada acompanha sua direção[6]. Espécie de limiar entre o bordado e a renda, o rendendê é cortado com motivos e cortes sempre geométricos (quadrados, retângulos, triângulos e figuras derivadas), Em Entremontes, floresceram o rendendê e o ponto de cruz. Em Ilha do Ferro, na mesma época, surgiu o bordado boa-noite, nome de uma singela flor da região. Sua técnica consiste em desfiar o tecido e reconstituí-lo em faixas com motivos florais[7]. Reunindo pontos do rendendê e princípios da técnica

Esses tesouros que o imperador compreensivelmente não viu foram resgatados, em 1999, pelo Programa Artesanato Solidário

do labirinto, o bordado boa-noite revela um hibridismo bastante comum em se tratando de cultura material, Esses tesouros que o imperador compreensivelmente não viu (somente cerca de meio século depois de sua viagem de 1859 seriam disseminados pelas margens do rio tornando-se parte do saber fazer das mulheres ribeirinhas) foram resgatados, em 1999, pelo Programa Artesanato Solidário[8] no âmbito de suas ações de ampliar as alternativas de geração de trabalho e renda em regiões pobres do País por meio da valorização do artesanato de tradição. Ao refazer o percurso do imperador pelo rio São Francisco, a equipe do Artesanato Solidário conversou com muitas mestras e bordadeiras de rendendê e de ponto de cruz, em Entremontes, e do bordado boa-noite, em Ilha do Ferro. O fato de as mulheres serem a quinta ou sexta geração a preservar com seu

trabalho essa tradição pouco repercutia em suas vidas em termos materiais: desvalorizadas, ganhavam pouco e muito esporadicamente com a venda dos trabalhos no decorrer dessas décadas e gerações. Observamos também nessa viagem de diagnóstico que os bordados eram bastante desiguais em termos de qualidade, revelando diferenças entre as mulheres no que diz respeito ao domínio da técnica tradicional e ao capricho na execução dos pontos. Além disso, as peças ressentiam de serem executadas em tecidos de pouca qualidade e, algumas vezes, até de não prezarem pelo acabamento. Apesar disso, não havia dúvidas para a equipe do Artesanato Solidário de que a prática disseminada dos bordados, e todos os aspectos simbólicos que envolvem esse saber fazer, representava a riqueza local capaz de fazer frente à situação de pobreza dessas localidades, onde, além da pesca, restavam bem poucas alternativas de trabalho e de obtenção de renda aos seus moradores. Tomado como um ativo local - e com incentivos adequados - os bordados já enraizados em Entremontes e em Ilha do Ferro promoveriam não só oportunidades imediatas de geração de renda para os ribeirinhos, como desencadeariam experiências associativas e solidárias, tornando as artesãs protagonistas de seu próprio desenvolvimento. Numa tradução livre das recomendações da Unesco, o Artesanato Solidário apostava nos bordados, como expressões da cultura, como um recurso para promover o desenvolvimento local. Os projetos do Artesanato Solidário em Entremontes e em Ilha do Ferro foram desenvolvidos ao longo de mais de dois anos e envolveram diversos parceiros nacionais, regionais e locais[9]. De acordo com a tecnologia social do Artesanato Solidário[10], o primeiro passo nessas localidades foi incentivar as mestras a repartir com as mais jovens o seu saber, o que aprenderam com suas mães e avós ao longo das gerações. Passo solidário e necessário em direção à formação do grupo de produção. A segunda providência foi o fornecimento, pelo Artesanato Solidário, de matéria-prima.

Isto foi importante porque permitiu a formação de um estoque inicial de produção cuja venda se reverteu em capital de giro para os grupos de artesãs, assegurando-lhe futuras compras de tecidos e linhas e, claro, a regularidade da produção. Essa também foi uma forma de introduzir em Entremontes e em Ilha do Ferro matérias-primas de qualidade superior, visando à inserção das peças em mercados consumidores mais amplos e exigentes. Mas para chegar aí, as artesãs participaram de uma série de oficinas de capacitação, com novos aprendizados. Nas oficinas para a melhoria do produto, por exemplo, instrutores contratados pelo Artesanato Solidário e artesãs cuidaram do acabamento,

A prática disseminada dos bordados representava a riqueza local capaz de fazer fente à condição de pobreza dessas localidades

das bainhas delicadas, das medidas-padrão, alertando-as sobre a importância de terem uma qualidade que lhes garanta vender seus produtos em qualquer lugar do mundo, tendo com referência a qualidade. Realizamos também com as bordadeiras de Ilha do Ferro e de Entremontes oficinas para a criação de novos produtos, buscando sempre a atualização das peças para atender ao mercado consumidor – para toalhas de banquete há menos clientes que para jogos americanos, por exemplo. Paradoxalmente, perpetuar bordados significa tê-los permanentemente em uso. Oficinas voltadas para a formação de preço e para a embalagem dos produtos completaram a capacitação das bordadeiras de Ilha do Ferro e de Entremontes e foram decisivas para a sua qualificação. Outro conjunto de ações empreendidas pelo Programa Artesanato Solidário em Entremontes e na Ilha do Ferro envolveu o tema


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do associativismo e o do empreendedorismo, no âmbito do que reconhecemos hoje como economia solidária e economia criativa. Mais de dez anos se passaram do encontro entre o Programa Artesanato Solidário com as bordadeiras alagoanas que vivem às margens do rio São Francisco. Desde então, vimos constatando com muita alegria que além de saber bordar, as mulheres têm muitos outros talentos: iniciaram solidariamente repassando seus saberes, em seguida repartem lucros e compartilham a cidadania. Duas organizações de artesãs, estimuladas pelo Artesanato Solidário, estão consolidadas: a associação Cia de Bordados de Entremontes e a Cooperativa dos artesãos da Ilha do Ferro - Art-Ilha. A primeira reúne hoje cerca de 60 mulheres e funciona em uma centenária casa localizada na praça principal; é para lá que as crianças certamente levam os viajantes que aportam no povoado. Logo na entrada da sede da associação uma “bordadoteca” abriga a memória de ofício das artesãs locais. Abrindo suas gavetinhas, dificilmente o visitante não se encanta com os amarelados paninhos bordados desde a época da introdução do rendendê na região. Na parede, um quadro lembra a escala de trabalho das mulheres no mês, revelando organização e observância do trabalho coletivo. Com técnicas cada vez mais aprimoradas sobre tecidos nobres, essas artesãs executam o bordado rendendê com uma delicadeza sem igual no País. Os produtos - lençóis, toalhas de mesa, jogos americanos, toalhas de mão e de lavabo etc. - já conquistaram lojas sofisticadas dos grandes centros urbanos e recebem com frequência a atenção da mídia, de designers nacionais e internacionais e até de “celebridades” que ao comprá-los contribuem para a sua divulgação. A Cooperativa Art-Ilha, em Ilha do Ferro, congrega pouco mais de 30 mulheres; de sua sede, erguida pouco acima do nível da água, avistam-se as duas margens do rio com uma ilhota plantada ao meio. Na cheia, o rio rouba a varanda e parte da sede, onde três gerações de mulheres costumam se reunir diariamente para organizar a produção, distribuir entre

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6. Góez, Beatriz (2004). 7. Trata-se de um figurativismo rigorosamente geométrico, o qual acompanha a trama dos tecidos. Apresentase em quatro composições: boa-noite simples, boa-noite cheio, boa-noite de flor e ainda uma variação do boa-noite cheio. Bordados da Ilha do Ferro. Brasília: Programa Artesanato Solidário/Conselho da Comunidade Solidária, 2001.

8. O Programa Artesanato Solidário à época era uma iniciativa do Conselho da Comunidade Solidária em parceria com Sebrae, Sudene, Caixa Econômica Federal e Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular.

9. Os projetos desenvolvidos em Entremontes e na Ilha do Ferro contaram com a parceria local da Prefeitura Municipal de Piranhas, do Programa Xingó e o apoio do Sebrae/AL e do Pronager/ Sepre/FAO.

10. Sampaio, Helena. “Herança renovada” In Rendas e Bordados no Brasil. São Paulo: Artesanato Solidário, 2004.

si a matéria-prima e as encomendas. Além do aprimoramento técnico, do conhecimento das medidas padronizadas das peças, do desenvolvimento de novas, as artesãs estão cada vez mais exigentes com o ofício, valorizando ainda mais o bordar que só é bordado lá. Como vê, são muitos os motivos para que você, ao ganhar a corrente do rio São Francisco sem tocar nas pedras, visite as artesãs de Entremontes e de Ilha do Ferro e descubra por si o tesouro que hoje repartem. *Helena Sampaio é antropóloga. Foi coordenadoraexecutiva da organização da sociedade civil Artesanato Solidário de abril de 2002 a abril de 2009.


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Os tesouros do Chico que Pedro viu Sergio Moreira* A República é um considerável avanço sobre as formas iniciais de governo criadas pela humanidade. Ainda que imperfeita, tal como idealizada por Platão e experimentada já em Roma antes de Cristo, é um legado da evolução civilizatória e significou um triunfo da razão sobre o absolutismo e o familiarismo. Portanto, longe aqui de se defender a monarquia muito menos expressar saudosismo a ela. Para se falar do São Francisco, resgatemos o olhar privilegiado de um chefe de Estado que exerceu o Poder Moderador no Brasil por quase seis décadas, Dom Pedro II, a quem o historiador Renato Lemos chamou de rei filósofo e cientista. Para outros, rei sábio. O príncipe teve a sorte de ser encaminhado nos seus primeiros estudos tendo como tutor um dos maiores homens de seu tempo, José Bonifácio de Andrada e Silva, estadista e cientista. Contam que estudou história, geografia, filosofia, desenho, aritmética, geometria, trigonometria, pecuária e técnicas agrícolas, mineralogia, ornitologia, retórica, direito canônico, teologia, artes plásticas e canto e que aprendeu inúmeros idiomas: português, latim, francês, alemão, inglês, italiano, espanhol, grego, árabe, hebraico, sânscrito, chinês, provençal e tupi-guarani. Em 1891, quando de seu falecimento, foi chamado pelo The New York Times como o mais preparado monarca do século. Sábio ou não, Dom Pedro II era um monarca diferenciado, porquanto eterno aprendiz e estudioso. Para estudar o rio São Francisco, contratou o engenheiro alemão Henrique Halfeld para realizar exaustivo levantamento do rio que depois foi editado magnificamente como “Atlas e Relatório concernente à

exploração do rio de São Francisco, desde a Cachoeira da Pirapora ao Oceano Atlântico”. De posse desse minucioso estudo e vasto material, em 1859, Pedro II empreende uma missão de investigação do rio. Por mais de duas semanas, a bordo de um vapor oceânico que o conduziu até Penedo, em embarcações menores até Piranhas e cavalgando até as cachoeiras de Paulo Afonso, o imperador descobriu e cascavilhou o Baixo São Francisco. O resultado mais visível desta expedição foi a estrada de ferro que ligava Jatobá (hoje Petrolândia) a Piranhas, intervenção logística que visava um intermodal que levasse o passageiro ou a carga transportada do interior de Minas Gerais ao Oceano Atlântico. Pedro II enxergou à frente e foi capaz de plantar uma semente para o futuro. Acentuese que o que ele fez – uma ferrovia em pleno Sertão – é obra de um visionário. Contudo, há um tesouro igualmente valioso e quase desconhecido resultado dessa viagem: um diário, de próprio punho - detalhado e detalhista - no qual o imperador usa o seu apurado olhar investigativo para traduzir as impressões sobre a paisagem humana e da natureza.

Foi munido dessa incansável curiosidade e de um apurado senso científico que o imperador percorreu os caminhos que o rio São Francisco desenha em Alagoas. Ao seu estilo austero, crítico e comedido com os elogios, mesmo quando fica patente seu deslumbramento perante uma paisagem, Pedro II constrói o que pode ser chamado de primeiro roteiro turístico do Baixo São Francisco.


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Há forma mais persuasiva de se vender um destino do que em testemunhos como o que o imperador faz sobre a cachoeira de Paulo Afonso? “É belíssimo o ponto que se descobrem sete cachoeiras que se reúnem na grande, que não se pode descobrir daí, e algumas grandes fervendo água em caixão de encontro à montanha, que parece querer subir por ela acima; o arco-íris produzido pela poeira de água completava esta cena majestosa. Tentar descrever a cachoeira em poucas páginas, e cabalmente, seria impossível, e sinto que só me permitisse tirar esboços muito imperfeitos”, escreveu em seu diário. A singularidade do Baixo São Francisco em termos de recursos naturais, humanos e culturais chama a atenção do imperador em toda a sua viagem. Não é à toa que ele passa os dias anotando, observando e retratando em desenhos a exuberância das cidades ribeirinhas, do povo simples e acolhedor, da fauna e da flora do rio.

Vale lembrar que nessa época, quando suas águas ainda não eram alvo de disputa, o rio São Francisco se constituía na principal via de comunicação do País, no início da colonização. Era por aqui que se chegava aos sertões de Minas Gerais porque os portugueses não conseguiam transpor a Serra do Mar. D. Pedro II viu que mais do que um rio que transportava pessoas e mercadorias o São Francisco fixou comunidades que geraram culturas, economias, modos de vida, formas de expressão e um povo único, fruto da troca das culturas exógenas, como a afro, a portuguesa e a indígena.

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Ao descortinar o Baixo São Francisco o imperador se deslumbrou e, por vezes, criticou a arquitetura de cidades, a intervenção do homem na paisagem local. Pedro também se apaixonou por Penedo e deixa isso claro ao dizer em seu diário que ali poderia muito bem ser a capital de Alagoas, antecedendo, assim, em um século, Alceu Amoroso de Lima [Tristão de Athaíde], que dizia que Penedo era a mais bela cidade brasileira e que deveria ser a capital do País. Nos dias de hoje, a viagem do imperador continua a ser fonte de inspiração. Quantos de nós, alagoanos, descortinamos - como Pedro II fez há mais de 150 anos - o véu de tesouros que o Baixo São Francisco abriga? E esses tesouros não são poucos: o encontro grandioso do rio com o Oceano Atlântico em Piaçabuçu, a pequena e calma Entremontes no fim de tarde, com suas rendeiras sentadas à sombra das árvores, os povos indígenas, as ilhas e os canyons, a arte popular ribeirinha e a gastronomia de peixes, pitus e frutas exóticas. Refazer os Caminhos do Imperador pode e deve tornar-se uma via de (re)descobrimento do Baixo São Francisco por meio de um turismo sustentável, de baixo impacto e requintado. Quem sabe, no futuro, o nosso rio e suas riquezas não possam ser descortinados por todo o mundo, como acontece com o Nilo? Não falamos aqui de uma exploração óbvia, mas, sim, de um descobrir/fruir sofisticado que seja capaz de conduzir o visitante a um mergulho na nossa cultura e história. Exatamente como fez Pedro II. *Sergio Moreira é formado em Direito e entusiasta do roteiro “Caminhos do Imperador”


Espiral Mario Aloisio

Fernando Rizzotto

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Água e vida Círculo vicioso de transformação. Círculo, curva, Onde acaba a curva? Na borda do rio, do mar? Espiral de Água Um rio não nasce na foz como um dia marcou Vespúcio dia de São Francisco. Um rio não nasce no borbotão de água do ventre da terra como disse o povo. Nasce do círculo vicioso. Água sobe, cai, mergulha, renasce rio. Espiral de Vida Afluentes, quantos? Vinte ou mais. Contribuintes caudalosos ou mesquinhos varando sertões. Solenes cursos da seiva da vida que saem da terra como raios de luz. Traipu, Ipanema, Moxotó, Pajeú, Curaçá, Macururi, Pontal Salitre, Jacaré, Preto Grande, Paramirim, Corrente, Carinhanha, Verde Grande, Urucuia, Paracatu, Pacuaí, Jequitaí, Rio das velhas, Paraopeba. Conjunto majestoso. Registro de gente, culturas e bichos. Registro de uma nação generosa, caudalosa, solene, bela. Rio São Francisco Infinito espiral

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mergulho s達o-franciscano por celso brand達o


: ::: ensaio ::


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Fernando Rizzotto

Opara

Stanley Carvalho e Gustavo Gomes

: ::: trilha sonora ::


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Desce a Canastra Se arrasta a caminho do mar, Luta se exausta, Por pedras e lentas cascatas, Rogando pra desaguar. Por Januária, Juazeiro, Orocó, Sinimbu, Carrapicho e Piaçabuçu... São Francisco, Velho Opara. Curimatá, Bagre, chira, Acará, surubim Sarapó, pacamã e mandim Agonizam, - quanta mágoa! Pedem vida, Pedem água... Deus, é o fim!

Volte à Canastra E peça Que os Xupunhuns Fechem as matas, Pois branco A tudo devasta Não tem sentimento algum Vem Tuxás Jaconãs, Tupimbás, Guarapós, Kiriris, Kimbiwas, Caripós, Traz Tupã, Chama Iara. Paraopeba, Pardo, Bode, Aboré, Pajuí, Garangá, Moxotó, Piauí, Salvem Chico, Tragam água, Dêem-lhe vida Velho Opara... Dá dó em mim! Desce a Canastra Procura o caminho do mar...

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Fernando Rizzotto

Terra sonâmbula entre o atlântico e o são francisco, as dunas de pixaim descortinam um cenário de sonho e histórias de resistência Milena Andrade

“Se dizia daquela terra que era sonâmbula. Porque enquanto os homens dormiam, a terra se movia espaços e tempos afora. Quando despertavam, os habitantes olhavam o novo rosto da paisagem e sabiam que, naquela noite, eles tinham sido visitados pela fantasia do sonho”. A antiga crença dos habitantes de Matimati contada por Mia Couto em seu livro “Terra Sonâmbula” é a mais perfeita alegoria da onírica Pixaim, comunidade isolada pelas douradas e inquietas dunas onde um lamacento rio São Francisco encontra um Atlântico verde e bravio.


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Só pode ser sonho! É esse o primeiro pensamento que vem à mente de quem aporta na falsa ilha que abriga Pixaim e logo se depara com uma fila de imensos coqueiros, antecipados por uma várzea e tendo logo atrás um paredão de areia que irá descortinar um belíssimo cenário de deserto. Como o universo que se descortina para os andantes perdidos Tuahir e Muidinga no romance de Mia Couto, a estrada que leva ao povoado alagoano não se entrecruza com outra nenhuma. “Está mais deitada que os séculos, suportando sozinha toda a distância”. Para quem ouve falar na comunidade de Pixaim sem nunca ter ido lá o lugar soa como algo longínquo, perdido no meio de qualquer coisa, em que para chegar é preciso ter conhecimento de algum atalho misterioso. Na verdade, a famosa comunidade nômade que se desloca ao bel prazer dos ventos e das areias está bem mais próxima e acessível do que se pensa. Do pequeno povoado de Pontegy é possível seguir a pé, cruzando algumas várzeas e mangues. Saindo de Piaçabuçu, basta entrar num barco que qualquer pescador sabe de cor o curto caminho.

Porém, quando se chega lá a sensação é de estar mesmo num “meio de mundo”, de ter entrado numa espécie de portal e ter chegado num lugar onde o tempo parou ou onde a noção de passagem de tempo inexiste. Passado, presente e futuro fundidos. A própria eternidade de Jorge Luís Borges. Paraíso perdido, refúgio perfeito onde um grupo de pessoas vive feliz em comunhão com a natureza. São essas as definições que muitos dão ao lugar. Porém, essa história pode ser contada de outra forma. Pixaim é um lugar dominado pela nostalgia de uma época que nunca mais se repetirá. É também um lugar de poucos jovens conformados e anciãos tristes que não conseguiram se desprender de um passado afortunado. O líder comunitário, Seu Aladim Calixto dos Santos, de 76 anos, é exemplo vivo e claro desse espírito. No jardim de sua pobre casa feita de palha e barro, ele se deita numa velha esteira para descansar da “quentura” do sol de final de manhã e fala como chegou ao povoado e do tempo de fartura quando as plantações de arroz dominavam a paisagem do rio São Francisco.

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Ele não sabe o que levou os seus pais a se mudarem para as dunas da Foz do rio São Francisco quando tinha apenas um mês de idade, nem quando ou como surgiu o isolado povoado que há muito pouco tempo abrigava cerca de 300 pessoas e hoje conta com pouco mais de 60 moradores. “Vim pra cá logo que nasci. Isso aqui era bem diferente, era tanta gente, tantas famílias. Agora só tem a minha aqui, quase todo mundo que mora aqui é minha família, ou é filho, ou sobrinho, ou irmão, ou neto. O resto foi tudo indo embora. Todo mundo vivia bem do arroz, mas depois que o mar entrou acabou com tudo”, conta seu Aladim. As poucas casas espalhadas pelo ardente areal de Pixaim nunca tiveram energia elétrica, nem água encanada, esgotamento sanitário. Tudo parece se ausentar no lugar. Os moradores dizem não sentir falta e o rádio que os mantêm informados “das coisas do mundo” só reforça que esse desprendimento é bom. “Não sinto falta de geladeira, nem de nada das cidades. Aqui a gente liga o candeeiro de noite e fica conversando. Ninguém vê novela. Lá fora só tem violência e aqui to-

Não sinto falta de geladeira, nem de nada da cidade. Lá fora só tem violência Seu Aladim Morador mais antigo de pixaim


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: ::: reportagem ::

Fernando Rizzotto

Manoel Calixto criou nove filhos com o plantio de arroz nas vรกrzeas de Pixaim


Paisagem idílica onde a sensação de passagem do tempo inexiste

Fernando Rizzotto

do mundo se entende”, diz seu Aladim que ressalta o fato de nunca ter havido qualquer tipo de conflito pesado entre os moradores. Herdeiros do apogeu e decadência da rizicultura no Baixo São Francisco, os moradores de Pixaim sempre trabalharam e se sustentaram no plantio de arroz nas fazendas da região. Diariamente, eles seguiam para as ilhas da Batinga, das Cobras e do Boi. A pesca permanece uma atividade presente, mas nunca a principal. A antropóloga Madalena Zambi, autora de uma dissertação sobre o povoado, conta em seu trabalho que o declínio da cultura nas várzeas do rio São Francisco fez a população diminuir. “Desde então, entre os poucos que restaram, instalouse um sentimento de vazio identitário”, diz. Seu Manoel Calixto, irmão de Seu Aladim, lembra bem do trabalho nas várzeas e de como o rio São Francisco era diferente naquela época. “Alcancei navio grande vindo do Rio de Janeiro pra cá. A gente plantava e colhia o arroz e tinha dinheiro de inverno a verão. Já naquele tempo, o povo falava que as barrage (sic) iam sargar (sic) o rio. Hoje, nem caranguejo tem mais”, conta. O ex-plantador de arroz está hoje com 75 anos. Com o arroz que plantou criou nove filhos. Manoel Calixto é aposentado, quase não sai de Pixaim e lembra que esteve em Maceió apenas uma vez, “há uns 50 anos”. Apesar de, com o passar dos anos, ter ficado ainda mais pobre como os outros integrantes da comunidade, ele não se arrepende de resistir a viver isolado nas dunas. “Eu tinha muita vontade de viajar quando tinha um 18 anos, mas não sei o que me dava que eu ficava ali, parado, no brejo. Queria ir pra os Estados Unidos. Lá é que o dinheiro corre”, divaga. Dona Maria Calixto, irmã de Manoel e Aladim, diz sentir muitas saudades do passado. Ela conta que na época do apogeu da rizicultura muitas pessoas de outras cidades se mudaram para Pixaim e que o primeiro golpe sentido pelos moradores de Pixaim foi quando “extinguiram” o povoado de Pontal do Peba, outra comunidade das dunas. “O povo de lá era como o daqui. A gente vivia lá e eles aqui, mas agora não tem mais ninguém, só a gente mesmo”, lamenta.


: ::: reportagem ::

Fernando Rizzotto

As casas de palha facilitam o nomandismo imposto pelas dunas

A velha moradora fala sobre o conflito que envolveu a comunidade do Pontal da Barra quando tanto lá quanto Pixaim foram transformadas em Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e passaram a estar sob a gestão do Ibama. Nos anos noventa, começou a ocorrer uma migração compulsória de seus moradores por não conseguirem cumprir os novos “princípios” de conservação e de relação com o meio ambiente propostos pelo instituto. O povoado simplesmente desapareceu e isso deixou marcas também em Pixaim.

A antropóloga Maria Madalena Zambi ressalta que tanto os moradores de Pixaim quanto os do Pontal da Barra aceitaram o desafio de viver sobre as dunas de areia que integram o ecossistema da foz do São Francisco e que esse traço em comum somado à proximidade física serviram para estreitar e fortalecer os laços entre essas duas comunidades isoladas. “Várias gerações nasceram no Pontal da Barra. Entre os membros da comunidade, havia os que reconheciam o território co-

mo o mesmo de seus antepassados. Havia também moradores que tinham se deslocado para o Pontal da Barra na expectativa de exercer certas atividades econômicas como a pesca e sua comercialização, ou então, pela possibilidade de associar a atividade da pesca com o cultivo do arroz, realizado nas proximidades de Pixaim, nas lagoas fertilizadas pelas enchentes do São Francisco e que também propiciavam boa pescaria”, narra a antropóloga no trabalho intitulado “As areias vivas de Pixaim”.


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:: Graciliano :: 55 Fernando Rizzotto

Igreja de Nossa Senhora da Conceição: a única construção durável do lugar


A ausência, a nostalgia e o sonho

Os cajueiros são uma das poucas fontes de alimento e sombra em Pixaim

Fernando Rizzotto

“Aqui é o melhor lugar do mundo. Só saio pra o cemitério. [...] Antes aqui era uma alegria só, tinha muita gente, corria dinheiro, a gente fazia festa, hoje só tem celebração uma vez por ano na festa de Nossa Senhora da Conceição. [...] Os mais jovens não querem mais ficar aqui.”. As falas de Seu Aladim revelam muitos sentimentos: idealização do lugar onde mora; frustração; tristeza; vazio; saudade; conformação e pouca esperança. As lembranças parecem ser o combustível da resistência e da benevolência do olhar perante o escasso presente. A bela e quase surreal paisagem que cerca os moradores de Pixaim também lhes alimenta o espírito, mas a verdade é que muita coisa lhes foi tomada com o passar dos anos e a diminuição da sua população é o maior indicativo de que as feridas foram profundas. Maria Madalena Zambi chama a atenção para o que denomina vazio identitário e ressalta que essa comunidade continua profundamente ligada a uma atividade agrícola que não mais existe. Os moradores de Pixaim ainda se definem e se veem como plantadores de arroz apesar da decadência da rizicultura. “Nesse diálogo diário com o ausente, inscrito na paisagem que se vê, as pessoas da comunidade lamentam que o território perceptivo silencie uma parte importante de sua história. Hoje, as pessoas que vivem em Pixaim expressam um sentimento de dor diante do reconhecimento de que o quadro dos arrozais, que oferecia um certo sentimento de durabilidade, seja uma história passada, com possibilidades remotas de continuidade. Apesar disso, esse horizonte da memória, no presente, ainda é objeto de desejo”, diz. Hoje, o povo de Pixaim se alimenta da pesca, da cata de caranguejos, dos abundantes cajus que nascem do solo arenoso. Enquanto os mais velhos sofrem com o vazio e se regojizam nas lembranças da era da fartura, as crianças seguem de barco para as esco-


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O nostálgico Seu Aladim é o líder da comunidade e o morador mais antigo

las de Piaçabuçu numa espécie de preparo para deixar a antiga comunidade. Seu Aladim lamenta os que estão deixando a vida nas dunas para trás, mas sua nora, de vinte e poucos anos, faz coro com ele e diz que nunca sairá dali, pois o lugar lhe

dá tudo o que precisa. Os pequenos ao redor do velho morador parecem bastante felizes com as intermináveis brincadeiras entre os cajueiros e carapaças de moluscos espalhadas pelas areias douradas de Pixaim. Como o velho Tuahir de Terra Sonâmbula eles pa-

recem provar que a estrada e o sonho estão dentro de cada um deles: “O que faz estrada? É o sonho. Enquanto a gente sonhar a estrada permanecerá viva. É para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”.

::: reportagem :: :

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: ::: reportagem :: O cozido de pitu continua sendo um dos pratos tĂ­picos da regiĂŁo

Nide Lins


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Sabores do São Francisco em piranhas, o rio tem gosto de pitu cozido na casca, surubim frito e do tradicional doce de coroa-de-frade

rosa só no sal”, reforça dona Gilda, que aprendeu desde Com o olhar atento no rio São Francisco, dona Maria Gilda menina como fazer uma piCorreia Nunes, 65 anos, cabelos grisalhos e voz pausada, tuzada e passou a tradição lembra com saudade do tempo em que se comia pitu fripara suas filhas. to com cuscuz de milho no café da manhã. “Há 30 anos, Mesmo com a pesca de só existiam três pescadores: meu marido e mais dois. Era pitu reduzida, a tradição tanto pitu que a gente comia até no café da manhã. O rio permanece presente na meSão Francisco alimentou meus 12 filhos com muito surusa dos bares e restaurantes bim e pitu. A gente vendia e fazia a festa em casa. Depois do município de Piranhas. A da hidrelétrica não tem mais fartura”, conta. pesca do crustáceo no rio São Francisco é artesanal, com a utilização do covo (arMesmo sem fartura de pitu e muito menos madilha colocada nas pedras na qual a isca é do peixe surubim, que sumiu do rio, dona Gil- feita de pedaços de polpa de coco). Na época da ainda faz pituzada na sua casa, no povo- de dona Gilda, se pescava 10 quilos de pitus ado de Entremontes. Contudo, a sua receita por dia no rio. “Hoje um quilo por semana é de pitu no leite de coco com pirão extrapolou considerada pesca boa. Pitu grande e com sua cozinha e há 15 anos é um dos quitutes fartura só na nossa lembrança”,diz a alagomais requisitados pelos turistas no restau- ana, casada com o pescador Pedro de Oséias. rante Angicos - localizado no lado sergipa Pedro de Oséias é um dos pescadores no do rio -, num sítio de árvores frondosas, mais antigos da região. Aposentado da labuta uma das mais belas visões do Velho Chico. do Velho Chico, em sua cadeira de balanço, Quando o turista chega ao restaurante e conta que seu peixe predileto é o mandim, pede pitu na casca, dona Gilda não esconde embora as pessoas não deem muito valor. Já a felicidade e exclama: “Esse sim sabe apre- o surubim sempre foi considerado peixe nociar e comer pitu!” Afinal, a tradição é sa- bre e era encontrado em fartura no rio. “Hoje borear o crustáceo de água doce no casco e em dia se um pescador pegar um surubim no sem cerimônias, ou melhor, deixe a etiqueta rio é motivo de muita festa - com o progresso de lado - pegue o bichinho com a mão para ele desapareceu. Antigamente, numa pesca sugar o caldo temperado com tomate, cebola, dava pra pegar de 80 a 100 quilos”, conta. coentro, pimentão, pimenta e sal. Como diz Tomar um caldinho de pitu do Velho Chico dona Gilda, comer pitu na casca é a melhor é uma delícia rara. O surubim que comemos coisa do mundo. hoje no restaurante Angicos vem de criadou “Hoje os clientes pedem o pitu sem cas- ros de Minas Gerais. Pescado no Velho Chico ca porque não querem ter muito trabalho; é só com milagre. uma pena, não sabem o que estão perdendo. O desmatamento da mata ciliar do rio São Sem casca, frito no alho e óleo ou no leite de Francisco, a pesca predatória e a construcoco também é bom, a carne de pitu é sabo- ção das barragens da hidrelétrica fizeram Nide Lins

as águas doces do Velho Chico perderem a força, o que contribuiu para o pitu entrar na lista de extinção e surubim e piranhas serem uma saborosa memória. O surubim é carnudo e com pouca espinha, um peixe nobre. Diz a lenda que há mais de 300 anos o bicho era surubim-rei do rio, mandando e desmandando em tudo, na vontade dos peixes e das águas. O surubim, de tão

PITUZADA INGREDIENTES • Meio quilo de pitu • 2 tomates maduros • 1 cebola média em tiras • 1 cenoura média cortada em fatias • 1 batata inglesa média cortada em fatias • 1 colher de sopa de óleo de soja ou azeite extra virgem • 2 xícaras de leite de coco natural • 1 ovo • Coentro e cebolinha a gosto • Sal e colorau a gosto MODO DE PREPARO Colocar todos os ingredientes em uma panela e deixar cozinhar por 20 minutos exceto o ovo, que deverá ser cozido separadamente. Quando estiver quase cozido acrescenta o leite de coco por mais 3 minutos e desliga. Retire o pitu da panela e deixe esfriar por alguns minutos, acrescente o ovo cozido. Sirva com arroz branco e pirão feito do caldo do próprio pitu.


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velho, perdeu as barbatanas, ficou roliço e, enfurecido por isso, vive fazendo mal, virando embarcações, comendo os outros peixes. Se a lenda do surubim se tornasse realidade os pescadores do Velho Chico enfrentariam sua fúria somente para ter na mesa o

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peixe nobre, carnudo, com sua textura macia e com poucas espinhas alimentando a alegria e os sonhos dos ribeirinhos da nascente à foz do rio. Mesmo que agora venha lá de Minas Gerais, o peixe nobre do Velho Chico mostra Fotos: Nide Lins

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que quem é rei não perde a majestade. Basta coroar com um pouco de sal e limão, ou então incrementar com molho especial de macaxeira, uma receita criada pelas filhas de Gilda. O resultado é um só: a felicidade no céu da boca.

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| 1: Surubim frito com limão | 2: Pitu cozido na casca com legumes | 3: Dona Gilda é a dona dos sabores tradicionais do rio em Angicos


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O pequeno cacto, utilizado para afastar mauolhado das casas, vira um delicioso doce

Coroa-de-frade, doce do cangaço No Sertão é muito comum o coroa-de-frade em cima do muro para decorar e afastar mau-olhado, olho-grande. O cacto pequeno e arredondado tem na parte de cima uma espécie de chapéu avermelhado e na panela, com açúcar e cravo, transforma-se em doce de coroa-de-frade, muito apreciado no Sertão, principalmente na cidade de Piranhas, no restaurante Angicos, do lado sergipano do rio São Francisco. O doce da coroa-de-frade é tão antigo como a história do cangaço. Segundo o turismólogo Jairo de Oliveira, mesmo antes do bando de Lampião e Maria Bonita, os cangaceiros, nas suas paradas para descansar e comer na caatinga, já utilizavam o miolo do cacto em pedaços para fazer o doce, usando em vez de açúcar a rapadura.

Dona Gilda não aprendeu a fazer o doce de coroa-de-frade com os cangaceiros, mas com uma vizinha chamada dona “Tudinha”. No restaurante Angicos, o doce do cacto ganhou uma nova leitura do chef de cozinha Eduardo Lopes. Em vez dos pedaços, o miolo da coroa-de-frade é ralado e misturado com açúcar, cravo, erva-doce e um segredo de família, que dona Gilda não revelaria nem para Lampião, se vivo estivesse. Na coroa do cacto nascem flores e frutos. Os frutos são pequenos, de cor rosa e dentro possuem um líquido que lembra a viscosidade do quiabo, porém de gosto totalmente diferente. O corpo é coberto por espinhos e armazena no seu interior certa quantidade de água para os meses de estiagem. O doce de coroa-de-frade é o arremate final de uma viagem pelo rio São Francisco. Partindo do porto da cidade de Piranhas, o barco desliza pelas águas doces do Velho Chico, entre redemoinhos, até Angicos. Quando o barco lança âncora no restaurante Angicos as horas perdem o sentido, é um convite para mergulhar nas águas verdes, refrescantes e doces do Velho Chico, driblando o sol do Sertão. As sombras das mangueiras são um chamado para comer surubim, pitu e adoçar a vida com a sobremesa coroade-frade, afastando qualquer mau-olhado no rio São Francisco. No pensamento fica apenas o desejo de retornar o mais breve possível aos braços do saboroso rio São Francisco.


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Por que te chamam Pão de Açúcar? Álvaro Antônio Machado* Um luar no Sertão. Um rio majestoso, sereno, com a Lua flutuando sobre suas águas. Uma gleba que se encanta pela formosura desse espetáculo. Esse quadro não figura apenas no imaginário romancista ou na doce inspiração lírica dos poetas sertanejos. Esse quadro se repete, a cada lua cheia, na Pão de Açúcar circundada por mandacarus e xiquexiques, de clima quente e seco do autêntico Sertão nordestino, às margens do rio São Francisco. E a beleza desse espetáculo enseja um interesse peculiar pela história da terra de Bráulio Cavalcante, poeta que se irmanou a várias outras notáveis figuras que questionaram a razão dessa denominação que, se nada tem a ver com esse magnífico presente da natureza, muito pior foi ter substituído o nome “Jaciobá”, assim denominado pelos primeiros indígenas que habitaram essa terra ribeirinha. Sim, foram eles – os urumarys – que habitando o generoso pedaço de terra que lhes fora doado por D. João IV, em princípios do século XVII, deram-lhe o nome de “Jaciobá”, que em guarani significa “espelho da Lua”, retratando assim toda a sensibilidade poética dos primeiros moradores desse torrão. E como os urumarys, de fato, tinham verdadeira adoração por esse presente dos deuses! A generosa doação de D. João IV provocou a ira dos índios chocós, que residiam na pequena Ilha de São Pedro, daí desenca-

*É médico, membro da Academia Alagoana de Medicina e pão-de-açucarense.

deando violenta guerra entre eles, sendo os urumarys expulsos e indo morar noutro lugar ribeirinho e próximo, no Estado de Sergipe, ao qual deram o mesmo nome da antiga pátria: o mesmo Jaciobá! Durante cerca de quarenta anos os chocós habitaram a antiga Jaciobá, vivendo da pesca e da caça. Depois chegaram os primeiros colonos portugueses, os índios começaram a trabalhar nos campos e, com o domínio imposto pelos lusitanos, vieram as mudanças de hábitos, costumes... e até do próprio nome do lugar. A Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, publicada pelo IBGE em 1959, registra que, longe de qualquer conotação com o homônimo morro carioca, foi o português Lourenço José de Brito Correia que, tendo recebido essas terras por doação em 1660, “com o fim de explorar a pecuária e o comércio do pau-brasil, pelo Porto de Penedo, criou uma fazenda de gado entre os morros Cavalete e Farias, com o nome de Pão de Açúcar. Deve-se a denominação ao fato de achar-se a casa-grande muito próxima do Cavalete, cujo aspecto e configuração assemelham-se, perfeitamente, a uma forma das que, ordinariamente, se empregavam para purgar e clarificar o açúcar”.

Esta dedução é confirmada no livro “Pão de Açúcar” (1953), de Olavo de Freitas Machado, que registra que o nome “originouse do morro alcantilado (morro do Cavalete) próximo à cidade, o qual o fidalgo português achou parecido com um pão de açúcar”. Além disso, escritos do século antepassado, do professor Branner e do engenheiro Teodoro Sampaio, fazem o mesmo registro, também ratificado pelo escritor Etevaldo Amorim, no seu livro “Terra do Sol, Espelho da Lua” (2004): “a denominação Pão de Açúcar deve-se aos primeiros colonizadores que fizeram comparação do formato do Morro do Cavalete com as formas, de feitio cônico, onde se punha o mel de cana-de-açúcar para cristalizar e formar o pão de açúcar”. O Morro do Cavalete é onde, desde 1951, se encontra edificada a majestosa estátua do Cristo Redentor, principal atração turística da bela cidade interiorana.


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Em que pese o respeito pelo nome arraigado há mais de 300 anos, nome que os “pão-deaçucarenses” já se acostumaram a honrar e a difundir, é impossível não lamentar esse típico gesto colonialista e dominador dos portugueses que, desprezando as mais legítimas raízes do lugar, buscaram num simbolismo distante a denominação que o oficializou. Denominação, aliás, cuja origem teve uma repreensão de peso. Quando de sua estada em Pão de Açúcar, durante a célebre viagem para visitar a cachoeira de Paulo Afonso, em 1859, o imperador Pedro II registrou em seu diário, relativo ao dia 18 de outubro daquele ano: “O nome da vila não é bem cabido, pois que o morro é antes um mamilo pedregoso do que um pão de açúcar”.

Independentemente de ser ou não devido, os colonos lusitanos desprezaram a sensibilidade poética dos urumarys. A qualquer época, toca fundo no coração de todos o “gigantesco fio de cristal” que flutua nas noites de luar nas águas do Velho Chico, enternecendo mentes e corações.

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Jorge de Lima, nosso poeta soberano, no seu belo “Rio de São Francisco”, pergunta, sensibilizado:

“À noite os vaga-lumes acendem luzes no mato, vagam fogos corredores, e nas noites de luar a Lua boia nas águas... Jaciobá – espelho da Lua, por que te chamam Pão de Açúcar?”


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Estrada de Ferro Paulo Afonso Memória para quê? Evelina Antunes F. de Oliveira*

Acompanhando o curso do rio São Francisco em Alagoas, a Estrada de Ferro Paulo Afonso-EFPA- começou a funcionar parcialmente em 1880, após dois anos em obras, a partir de Piranhas, e teve seu trecho final concluído em 1883, em Jatobá de Tacaratu, depois chamada Petrolândia, em Pernambuco. Para de circular em 1964 e o último trilho foi retirado sete anos depois. De suas janelas avistava-se o rio nos primeiros e nos últimos quilômetros. O trem partia de Piranhas e ali chegava às terças, quartas e sábados, num comboio até Delmiro Gouveia e noutro até Jatobá. Dependendo do movimento, que variava conforme as cheias do rio, as épocas de colheita ou a intensidade das chuvas, cada comboio podia chegar a ter até oito vagões: um de primeira classe, um ou dois de segunda, um para animais, um para correio e bagagem, e de um a três para transporte de mercadorias. Não somente as passagens eram baratas (variando, num valor aproximado, de setenta centavos a um real e oitenta centavos) como havia passagens gratuitas, fornecidas pelos governos estadual e federal ou mesmo pela administração da ferrovia.

*Evelina Antunes é socióloga e cientista política

Foi idealizada para ligar a navegação do Baixo ao Médio São Francisco. Isso ela não fez. Não foi capaz de fazer por duas principais razões. A primeira, porque transportou relativamente poucas pessoas e mercadorias de um pequeno vilarejo, depois cidade, para outra vilazinha perdida no Sertão do Baixo São Francisco. A distância entre a última estação e o núcleo urbano mais próximo, hoje Santa Maria da Boa Vista, PE, é de 260 km e de Piranhas até a foz 238 km. A segunda, mas não menos importante, é que o trecho de pequenas cachoeiras entre Boa Vista e Sobradinho, na Bahia, só era navegável em canoas e ajoujos, enquanto os vapores, introduzidos a partir de 1871, iam da Barra do Guaicuí, MG, a Juazeiro, BA. Entre Boa Vista e Piranhas o transporte era feito a cavalo. A EFPA deveria agilizar exatamente este percurso. Impossível. Então, por que foi feita esta aventura ferroviária? Foi no campo da política que esta urdidura aconteceu. No decreto imperial de sua criação (01/01/1978), o alagoano visconde de Sinimbu, presidente do Conselho de Ministros e Secretário de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públi-

cas, se fez presente, numa disputa com os interesses baianos e pernambucanos no Senado Imperial. Talvez, num médio prazo, seus negócios familiares na região de São Miguel fossem favorecidos. Mas o centro do conflito, ao que tudo indica, eram interesses estaduais ou provinciais, dentro do plano de aproveitamento econômico da bacia do rio São Francisco, sem esquecermos o grande apelo midiático do combate aos flagelos da seca. O começo de sua história reúne interesses imperiais e republicanos, que ao final do século dezenove pretendiam interiorizar o crescimento econômico em todo o País e que tinham na bacia do rio São Francisco, um dos possíveis cenários. A EFPA reunia disposições de incrementar a navegação e o transporte ferroviário. Esta conexão hidroferroviária seria o mote da construção de outras ferrovias ao longo da bacia, como em Pirapora, MG. Nas décadas do século vinte em que trilha 116 km do Sertão nordestino, sua história nos revela sutilezas de nossa modernização. A principal delas podemos entender como sendo o descompasso entre os planos e projetos únicos para situações sociais tão diferentes.


Esta disposição planejadora de vários governos brasileiros, em relação à Bacia do rio São Francisco, carrega um eterno problema político: seus 521 municípios, distribuídos entre sete estados e o Distrito Federal, são parte de unidades federativas que não fazem parte da Bacia integralmente. Os governos estaduais, imprescindíveis nas articulações no âmbito federal para as questões municipais, tradicionalmente disputam entre si recursos ou meios de desenvolvimento. Além disso, existem os interesses regionais, como os do Nordeste e do Sudeste, e os microrregionais, como os do Baixo São Francisco. Nesta trama, a questão dos transportes, e das ferrovias de modo especial, não consta como prioridade, embora tenha sido importante, de certa forma, até os anos 50, e no atual Programa de Aceleração do Crescimento, o PAC do governo federal, reapareça como um ponto relevante. Deste modo, entendemos que a EFPA irá circular cheia de intenções desenvolvimentistas, justificada pelos interesses das elites estaduais e suas conexões no plano federal, mas também queremos reconhecê-la do ponto de vista da história de suas populações. Durante todo o tempo foi um empreendimento deficitário, servindo a locais pouco habitados e pobres e que nunca chegaram a ser expoentes em qualquer ramo de produção. Entretanto, histórica e socialmente, esta ferrovia tem um papel bastante importante no Baixo São Francisco. Inicialmente oferece emprego temporário, comida, escola e fomenta alguma ação de proteção social, durante sua construção. Como exemplos, podemos citar que , além de desencadear a formação de pequenos núcleos urbanos em volta de suas estações(como o


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povoado Piranhas que se torna Vila em 1887), entre março e dezembro de 1879, a EFPA chegou a alimentar mais de 66 mil pessoas; e o engenheiro em chefe Dr. Reinaldo Von Krüger, no mesmo ano, criou quatro escolas noturnas com cursos de alfabetização, em Piranhas e Olho D’Água do Casado, cujos professores eram funcionários da ferrovia e os alunos foram os ferroviários, seus familiares e moradores (mensagem do presidente da Província das Alagoas, 1880, p.60). As grandes secas nordestinas sempre foram moedas políticas valiosas nas articulações inter-regionais no País, e no período da construção estavam em pauta nas preocupações imperiais. No decorrer do tempo, a EFPA foi sem dúvida, uma opção mais confortável aos habitantes das cidades e vilas por onde passou. Até então, os deslocamentos eram feitos a pé, à cavalo ou em carros de boi. As estradas e os caminhões eram raros. Também facilitou a importação de sal e querosene e a exportação de peles, farinha de mandioca, milho e madeiras. O transporte de açúcar, álcool e algodão, os carros-chefe da economia nordestina no período, foi mais significativo em outras ferrovias, como a Recife-São Francisco. O que a EFPA fez com maestria foi movimentar a vida das pessoas. O impacto arquitetônico e tecnológico que tiveram suas edificações, seus trilhos e suas máquinas em cada um dos lugares por onde passou assinalou ou demarcou identidades e memórias. E nesse sentido, ela acompanha a histórias das ferrovias pelo mundo. Das mais de vinte horas de entrevistas com ex-ferroviários e usuários que fizemos em 2000-01, uma constante são as memórias de rotinas familiares marcadas pelos apitos da Maria Fumaça. Suas estações estimularam a formação de grupos musicais, festas, comemorações, pontos de encontro, além de sediarem os telégrafos (a partir de 1895 o Telégrafo Nacional passa a usar os postes da Estrada). Entre as feiras mais importantes do BSF, estavam as de Piranhas e Petrolândia. E a ligação ao rio em Piranhas (a estação ficava ao lado do porto) intensificou o contato entre os sertanejos da caatinga com aqueles da beirada

do rio, apoiando a circulação entre cidades como Água Branca, Pão de Açúcar, Penedo, Traipu, Porto da Folha, Poço Redondo, Gararu, etc. O Porto de Penedo, que entre o final do dezenove até a primeira metade do século passado, ancorava vapores com movimento regular e não só com bandeiras nacionais, tinha duas rotas semanais até Piranhas. Era comum, por exemplo, durante o funcionamento da ferrovia, um doente em Água Branca ir se tratar Penedo, ou famílias de Entremontes irem visitar parentes em Neópolis. Claro que a eficiência da navegação nesse trecho do rio também contava com a preservação de seu leito.

Suas estações estimularam a formação de grupos musicais, festas, comemorações, pontos de encontro, além de sediarem os telégrafos

Não há morador no Baixo São Francisco com mais de 50 anos e de família local que não se lembre com saudades desta ferrovia. A pesquisa bibliográfica e documental e as entrevistas que fizemos em 2000-2001, para o Centro de Documentação e Pesquisa do Baixo São Francisco/Instituto Xingó, como a primeira pesquisa social sobre esta Estrada de Ferro, antecedida pelo farto levantamento documental de Luiz Rubem Bonfim(2001), elencou uma série de fontes que nos indicam possibilidades analíticas sobre as relações sociais que engendraram a história da EFPA. Elaboramos assim registros de sua memória. Vagarosamente a Maria Fumaça fazia, em média, 22 km/hora e era alimentada por mãos negras, de madeiras como angico ou craibeira. Ela percorria os trilhos sobre dormentes de baraúna e aroeira, e foi administrada e conduzida por funcionários brancos da malha ferroviária nordestina. Esta, que

Jatobá/Petrolândia

até a República funcionava por concessões provinciais, vai gradativamente sendo arrendada ao capital privado, e a EFPA se incorpora à empresa inglesa Great Western of Brazil Railway Company, até 1950, quando se torna patrimônio da RFFSA. Eram cinco estações alagoanas e três pernambucanas. Além de Piranhas, ficavam em Olho d’Água do Casado (Estação Olhos d’Água), em Delmiro Gouveia (Estação da Pedra), em Talhado (Estação do Talhado), Sinimbu ( Estação Sinimbu). Em Pernambuco, ficavam em Volta, Quixaba e Jatobá/Petrolândia, com as estações com os mesmos nomes. O prédio da estação de Piranhas virou Museu do Sertão, o de Delmiro Gouveia foi restaurado como Museu da Pedra, para cuidar da memória da Fábrica da Pedra. Os demais praticamente deixaram de existir. As edificações do que um dia foi a estação de Jatobá encontram-se afogadas no lago da Usina Hidrelétrica de Itaparica ou Usina Luiz Gonzaga. Memória é ação, portanto, vidas em movimento- é o que nos ensinam os estudiosos dela, como Maurice Halbwachs, Pierre Nora, Jacques Le Goff, Alessandro Portelli, Ecleia Bosi, Homi Bhabha, Fernando Sá, entre outros. A rica, imprescindível e, de certa maneira, misteriosa relação entre lembrar e esquecer que mapeia o território da memória, nos fala de como certas pessoas vivem, viveram ou podem e puderam viver. Lembrar a Estrada de Ferro Paulo Afonso- EFPA- é buscar entender a vida de quem trabalhou e se transportou nela. Esquecê-la é deixar perdido no tempo tudo que ela significou como transporte público, história e memória. Quando os seus trilhos passaram em locais praticamente abandonados pelo poder público, a Estrada de Ferro fez conexões e prestou serviço. Quando deixou de funcionar, as vidas envolvidas foram esquecidas por quem poderia ter cuidado delas, não como generosidade, mas como procedimento republicano. Mas não só do ponto de vista das instituições as coisas importantes costumam ser “esquecidas”. Entre nós, também temos o hábito de não lembrar ou ignorar o fato de que podemos nos apropriar de nos-

Quixaba

BAHIA


PERNAMBUCO

Volta

ALAGOAS E

s

sas histórias, podemos ter vontade de pensar nelas e, portanto, nos importarmos com nossas identidades. Este não cuidado nega a possibilidade de efetivar a coisa pública, esvazia o Estado como Nação, usurpa as relações que poderiam lhe dar substancialidade. Impossibilita a cidadania como condição de participar da construção do espaço público. Por isso, a memória pode elaborar princípios e elementos constituintes da cultura democrática. Olharmos para a história da EFPA é reafirmarmos que uma Nação se faz de diversas identidades ou histórias particulares. Possibilita rompermos uma tradição perversa

de reconhecer uma Nação como uma só história, como território único, numa ilusória identidade nacional definida apenas a partir do Estado e como um todo homogêneo, onde sertanejos pobres apenas compõem a paisagem. É podermos dar visibilidade a diferentes identidades que disputam entre si o direito a pertencerem a alguma coisa. E o Baixo São Francisco tem a singularidade de ser mais do que pedaços de quatro estados, mas um espaço que encontra no rio São Francisco aquilo que de fato compartilham. E numa de suas margens, por um bom tempo, suas vidas andaram nos trilhos da Estrada de Ferro Paulo Afonso.

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Sinimbú

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Nide Lins

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O adivinhador de árvores SEu fernando, designer de arte popular da ilha do ferro, transformava galhos e troncos em poesia

sob as mais diversas curadorias e pelas mãos de nomes como Alberto Nemer e Janete Costa, seu trabalho ficou conhecido em todo o mundo. Suas obras foram expostas em bienais, tiveram lugar assegurado em acervos permanentes e seu nome passou a ser citado em importantes publicações especializadas.

“Ele enxergava poesia em paus e pedras que ia encontrando pelo caminho. Mandava Quando se fala na Ilha do Ferro, localizada às margens as pessoas dizerem o que estavam vendo, do rio São Francisco, as primeiras imagens que surgem apontando uma pedrinha na palma da mão à mente são as peças feitas pelo Seu Fernando, a partir e, diante do espanto de quem só via a pedra, de galhos de madeira retorcidos. A “ilha” que não é ilha ele sorria e dizia: é um passarinho”, conta e o escultor, que na verdade era um poeta, ganharam faRejane Souza Rodrigues, filha do escultor. ma dentro e fora do País a partir da arte que brotava das O mesmo acontecia com a madeira retormãos e do imaginário deste homem simples, falecido em cida que descia pelas águas do rio São Franjaneiro de 2009. cisco. “Meu pai era contra destruir a natureza. Ele usava jaqueira, imburana, pereira, mas tudo que tirava da mata plantava de noA Ilha do Ferro é, na verdade, um povovo. Era tudo galho seco e muitos eram pedaado do município de Pão de Açúcar, igual a Poesia ços de pau trazidos pela correnteza”, diz. tantos outros nas margens alagoanas do São Essa introdução é apenas um resumo da faA madeira ganhava formas inusitadas, se Francisco. O artesanato de tais localidades ma que o artista conquistou com mais de 70 transformava em animais, em bancos, cadeiinclui esculturas em madeira, barras, mas também servia como baro, bordados e cestaria. Os trabase para Seu Fernando esculpir sua lhos de seu Fernando, no entanto, poesia. Segundo sua filha e genro passaram a ter um status diferen(que também tornou-se um esculte, depois que ele recebeu o título tor), ele não sabia ler ou escrever, de designer da arte popular. mas ditava para os jovens do povoSuas obras foram expostas em ado seus versos e trovas, que tammuseus e espaços de arte munbém estampavam suas obras. do afora. O ponto alto foi durante “Ele deixou um livro com quase a mostra A História do Sentar, no 200 páginas, com poesias que ele Museu Oscar Niemeyer, de Curifoi criando ao longo da vida, tudo tiba, quando a então diretora do escrito por outras pessoas”, relaMuseu da Casa Brasileira, Adélia ta a filha. Além de artesão e poeta, Rejania Borges, perfilou as cadeiras e banSeu Fernando era uma espécie de Filha de seu fernando cos esculpidos por seu Fernando líder comunitário, muito respeitaao lado de artistas consagrados indo pela população da Ilha do Ferro. ternacionalmente, como os irmãos Antes de garantir a sobrevivênCampana. anos. Dá conta de uma consagração que pou- cia com seu trabalho artesanal, foi agricultor A trajetória do alagoano no mundo do de- co tinha a ver com o cotidiano simples do ar- e caçador. Mas no fim da vida se transformou sign começou no final da década de 1990, tesão Fernando Rodrigues dos Santos. Filho no maior divulgador do lugarejo, também faquando o arquiteto Arthur de Mattos Casas de sapateiro, ele costumava dizer que seu moso pelas peças do famoso bordado boautilizou suas peças em um premiado proje- trabalho tinha uma “inteligência” que só os noite, executadas pelas mulheres da Ilha há to da Casa Cor, em São Paulo. A partir daí, artistas “da natureza” podiam compreender. várias gerações. Guilherme Lamenha

Meu pai usava jaqueira, imburana, pereira, mas tudo que tirava da mata plantava de novo


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: ::: reportagem ::

Fernando Rizzotto

Boa-Noite Rejane Rodrigues, apesar de não entalhar a madeira como o pai, é uma exímia artesã de um dos principais bordados praticado nas margens do São Francisco. A partir de tecidos como o linho, a cambraia e o percal de algodão, o artesanato é executado com a ajuda de agulha, bastidor e trena utilizados para desfiar a peça em alguns pontos. Depois é unir os fios e assim construir o desenho característico que lembra uma pequena flor nativa, que dá nome ao trabalho: boa-noite. “É aquela florzinha que nasce em todo canto, branca e roxa, também conhecida como maria-sem-vergonha, com poucas péta-

las, todas do mesmo tamanho”, explica Rejane. Ela faz parte de uma cooperativa formada por 38 artesãs, criada com o objetivo de profissionalizar a produção, capacitando as bordadeiras e garantindo mais valor agregado aos produtos. Seu Fernando gostava de contar as histórias do lugar, assim como dona Ernestina, antiga moradora que detinha a técnica do ponto boa-noite. Eram personagens de uma comunidade que vivia isolada da zona urbana de Pão de Açúcar e, por isso mesmo, teve preservada sua memória cultural e artística.

“Aqui todo mundo sabe fazer alguma coisa: borda, planta, entalha a madeira, pinta e sabe contar histórias”, gostava de dizer Seu Fernando, nas inúmeras entrevistas que concedeu. “Guardamos os instrumentos que ele usava no trabalho, tentamos manter as coisas, mas ele faz falta não apenas à família. A Ilha do Ferro inteira ficou mais triste depois que ele morreu”, diz Rejane. Ele, que nos últimos anos sentia dormência nas mãos e fadiga ao falar, que conversava com a natureza e cultivava a alma simples dos verdadeiros sábios, morreu sem grandes dores, como um passarinho.


SEU FERNANDO DA ILHA DO FERRO Alex Barbosa*

Refiro-me ao mestre seu Fernando da Ilha do Ferro com muita emoção. Conheci-o há algum tempo e à primeira vista nos demos muito bem. Como ele, eu também gosto de falar sobre coisas que nem todo mundo quer ouvir ou entender. Ser iluminado, intimidade com palavras soltas ao vento, que as interpretava como poemas ou premonições. Apesar dos anos, sua jovialidade o permitia se referir à vida dando-nos a certeza de que os mistérios da vida são fáceis de lidar. Eu vibrava com suas palavras! Impressionado com sua maneira de ser e de viver, virei seu fã. Quando podia não perdia oportunidade de ir até a Ilha do Ferro ver suas mais novas criações, fazendo questão de adquirir/possuir arte sua. Quando indagava a respeito do material usado em seus trabalhos respondia: tudo já estava ali presenteado por Deus... Somente cabeças iluminadas as transformariam em esculturas. Seu Fernando dava um toque de magia na peça e ela só faltava falar. Seus gestos elegantes, seu cavanhaque quixotesco, suas mãos de príncipe, fascinavam. Todos a sua volta paravam para escutá-lo. Sua sala de estar erguida com bancos de troncos no meio de vegetação cactácea/bromélias e pedras de todo tamanho - verdadeiro mirante ao rio São

O artista registrava tudo o que pensava num diário e em quase tudo ao se redor

Francisco, seu companheiro de meditação. Depois de um bom papo nos convidava a sua cozinha onde degustávamos saborosa comida preparada com carinho por sua filha Djânia (exemplo de filha). O olhar de satisfação do Seu Fernando nos dava a certeza do seu contentamento com a nossa presença naquela mesa comprida e farta. Outro detalhe, segundo ele, é que o vento encanado impregnava sua imaginação tendo como resultado aquela arte reconhecida por críticos e admiradores. Acabamento que o tempo e o vento o faziam ver, colher, e criar. Por isso, na hora em que pude dar a ele a certeza da minha reconhecida amizade, o presenteei com o projeto arquitetônico do Museu Boca do Vento. Arquitetura simples, utilizando materiais da região, mas que acolherão sua história e suas obras ali expostas. No seu interior haverá espaço para outros artesãos que na ilha trabalham. Grandes

profissionais e seguidores da sua arte, cada um no seu estilo. Seu Fernando criou um movimento artístico na cidade que inclui Aberaldo, José de Tertuliana (Zé Crente), Valmir (seu genro, atualmente criando bancos magníficos), Vandinho, Valci, e seus netos Neto e Bebeu, entre outros. Ele me agradeceu emocionado e pediu que eu não medisse esforços para a sua execução. São tantos os amigos e fãs que com certeza o Museu Boca do Vento será uma realidade. *Alex Barbosa é arquiteto.


Fotos: divulgação

: ::: depoimento ::

Obras de arte às margens da fonte de inspiração, o rio São Francisco


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A experiência de olhar além do rio Maria Amélia Vieira* e Dalton Costa** Como artistas, gostamos de mergulhar em assuntos variados, gostamos de pesquisar e, principalmente, de viajar para experimentar, conhecer e vivenciar a riqueza da arte popular do interior do Nordeste do Brasil. Um dia, descobrimos o rio e suas águas nos levaram aos abrigos de uma arte fértil, vigorosa e estimulante. Esses abrigos têm rostos tostados pelo sol de um Sertão impiedoso e lindo e mãos criativas que falam linguagens que conhecemos bem. Inúmeras foram as vezes em que viajamos por terra e água com espírito de descobridores. Somos literalmente apaixonados por lugares remotos, que causam estranheza e nos remetem a silêncios essenciais. Numa dessas viagens, saboreando postas de piau com farofa, numa velha embarcação de passageiros do Baixo São Francisco, entre Pão de Açúcar e Ilha do Ferro, nosso olhar se perdeu em algo muito maior do que as nossas necessidades de artistas e colecionadores. Tivemos a grata experiência de olhar além do rio. Comunidades ribeirinhas, afastadas dos grandes centros, algumas sem nenhuma comunicação, crianças brincando em suas margens, o canto das lavadeiras com suas roupas coloridas, o batuque dos lençóis ensaboados nas pedras, os solitários pescadores em seus pequenos barcos, a paisagem mágica e desoladora, enfim, estávamos dentro de um Brasil que não conhecíamos com profundidade. Conhecer é, principalmente, conviver. Nossos corações inquietos buscavam muito mais do que os estímulos para nossa arte. Ali nascia a ideia de troca, de intercâmbio, de comunicação entre dois mundos. O mundo das grandes cidades e dos povoados de um Brasil esquecido. Nascia ali um barco-museu, batizado pelo talentoso estudioso de literatura Roberto Sarmento de Museu no Balanço das Águas.

O primeiro projeto com o título Museu no Balanço das Águas- Uma exposição itinerante pelo Rio São Francisco, foi contemplado em 2008 no Programa BNB de Cultura. Alugamos o barco Santa Rita no porto de Pão de Açúcar, AL, adaptamos um museu com obras dos artistas ribeirinhos do acervo da galeria Karandash e visitamos quatro lugares em dois municípios alagoanos. Pão de Açúcar, Ilha do Ferro, Entremontes e Piranhas. Foram dias inesquecíveis de arte e troca de experiências. Visitas guiadas ao barco-museu, oficinas de arte para crianças, mostra de videodocumentários sobre a vida e obra dos artistas, convívio com os artistas e, principalmente, estimular os habitantes daqueles lugares a olhar o rio. Nosso projeto atual traz o barco-museu em caráter permanente. Mais uma vez contemplados pelo BNB de Cultura com parceria BNDS, edição 2010, O Museu no Balanço das Águas/Coleção Karandash, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura de Ala-

goas, sobre a proteção de Santa Maria (nome da embarcação), iniciará uma trajetória que certamente mudará a realidade das crianças e dos jovens das comunidades visitadas. Em outubro o museu será apresentado ao mundo, com uma poética exposição do artista e designer Fernando Rodrigues, filho do rio, morador da Ilha do Ferro, falecido em janeiro de 2009. Oficinas de arte educação, mostra de vídeos, palestras, encontros de artistas, colecionadores, produtores culturais e turistas . As localidades contempladas serão Belo Monte e Traipu em Alagoas , Niterói e Gararú em Sergipe. Acreditamos que esse novo projeto abrirá espaço para ações importantes e essenciais no âmbito das artes para os estados de Alagoas e Sergipe em toda a extensão do Baixo São Francisco. *Maria Amélia é artista plástica **Dalton Costa é artista plástico

Barco leva o museu No Balanço das Águas


: ::: entrevista ::

Neno Canuto


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Conversa de pescador uma das maiores lideranças do baixo são francisco, seu toinho, de penedo, dedica sua vida À defesa do rio

meçou quando eu tinha dez anos e meu pai me levava Antônio Gomes dos Santos, ou simplesmente Toinho Pespara pescar. Quando eu ticador, como gosta de ser chamado, nasceu em Penedo, às nha 12 anos, ele morreu e margens do São Francisco. Aos dez anos de idade aprendeu me deixou com quatro iro ofício da pesca com o pai e nunca mais saiu das águas mãos. Minha mãe também do “Velho Chico”. estava doente. Aí eu comecei a pescar. Aos 17 anos já era um pescador profisMas seu Toinho não é apenas um pescador. sional. Casei, criei nove filhos e ainda adoAo longo de sua vida de ribeirinho ele apren- tamos dois, pescando no rio São Francisco. deu a zelar e cuidar do rio. Há 40 anos milita em defesa do São Francisco. Junto com frei O que mudou no rio? Alfredo fundou a Pastoral dos Pescadores, no ano de 1970. Participante ativo da Fede- Antigamente, a gente sentia que nunca ia ração dos Pescadores, foi o primeiro a pre- faltar peixe no rio. Mas com a chegada dos sidir a instituição. grandes projetos, o projeto do Sobradinho, da Inspirado pelo rio escreve poemas - já está Codevasf, começaram a explorar o rio de um escrevendo seu segundo livro, que se chama- jeito que o São Francisco foi perdendo a porá Pescando Cidadania - e foi um deles que o tencialidade como criadouro de peixes. Não levou a conhecer a realidade dos rios fora do só de peixes, como também de vegetais, como País e constatar que não é apenas o São Fran- arroz, milho, feijão, inhame, frutas em grancisco que vem sofrendo impactos ambientais de quantidade, animais, passarinhos, aves, ao longo da história. Com saudosismo e uma isso tinha em grandeza e hoje não tem mais. certa melancolia seu Toinho relata o que via Isso tudo a partir de 1979, quando fecharam em sua infância e o que acontece agora no o Sobradinho. Baixo São Francisco, mas tudo isso não diminui a vontade de mudança do pescador, que, Desde então, o senhor aos 78 anos, luta como um filho apaixonado está engajado na luta para manter vivo o seu pai. pelo Velho Chico? Vanessa Mota

Como é a sua relação com o rio São Francisco? Minha relação com o São Francisco começou desde criança. Nasci aqui, na beira do rio. Estou com 78 anos, nasci em 12 de dezembro de 1931, no baixo Santo Antônio, no bairro de Barro Vermelho. O engajamento co-

Sim. Começamos na Federação dos Pescadores. Hoje sou o presidente da federação. Fui o primeiro presidente pescador, já que a federação sempre esteve nas mãos dos militares porque naquela época, antes da

Constituição Nacional, as colônias eram totalmente administradas pela Marinha e pelo Ministério da Agricultura. O senhor ainda tira seu sustento do rio? Eu sou aposentado, mas ainda tiro porque a aposentadoria não dá pra nada. Com um salário mínimo ninguém vive. As pessoas vivem a pulso. Aí eu completo com o pescado. Só que ultimamente não está se pegando nada. Tá no defeso, a pesca de anzol não é proibida, mas não tem peixe, porque o rio começa a encher no mês de outubro, mas até hoje não encheu um palmo d’água, que também nem mudou, ela continua azul. O rio tem duas águas. No começo de outubro, quando ele começava a encher, vinham as águas barrentas, que são as águas produtivas, tanto para o peixe quanto para a vegetação, porque elas vêm barrentas da chuva que cai e aí, quando tinha mata, a água batia nas árvores, amortecia e batia no chão e só carregava barro. Hoje não tem mais mata, a chuva bate com toda força na terra e carrega areia pra dentro rio.

O rio foi criado por Deus, pela natureza, e tudo que foi criado por Deus merece respeito


: ::: entrevista ::

Neno Canuto

Como o senhor passou de pescador a defensor do São Francisco? Antes eu só pescava, talvez eu nem respeitasse tanto. Mas depois que eu comecei a ver os problemas, me engajei na luta pela preservação e consegui um prêmio para ir para a Áustria e Alemanha. Passamos 30 dias conhecendo todo o programa de irrigação nas margens do rio Mur e do rio Danúbio. Aí eu vi que a gente estava correndo perigo. Quando eu vi o projeto de irrigação trazendo a pêra, a uva, a maçã aqui para o nosso país e a maneira que eles eram tratados, com agrotóxico e com química, fui entender que o que estava acontecendo com o rio Danúbio ia acontecer com nós. O rio que era o Danúbio, reconhecido como o rio azul, o rio mais lindo do mundo e mais progressista, estava passando a ser um rio morto. E quando eu cheguei lá, em 1994, fiquei assombrado porque não tinha mais pescador. Como o senhor recebeu esse prêmio? Eu recebi o prêmio por estar engajado na luta em defesa do rio São Francisco. Criei um poema. Eu não sou poeta não, mas terminaram dizendo que eu estava sendo. Recitei aqui pertinho, numa igreja chamada Correntes, onde houve uma confraternização, tinha numa faixa de 3.000 pessoas, num dia quatro de outubro, que é o dia do aniversário do São Francisco. O frei Luis Cappio, aquele frade que fez o jejum, antes ele fez uma peregrinação que saiu da Serra da Canastra até a foz do rio e me convidou, mas eu não pude ir porque eu tenho nove filhos e não podia passar um ano fora. Naquela época eu não era aposentado, vivia pescando. Aí eu não pude ir. Eles então vieram aqui em Penedo e a peregrinação terminou aqui. No último dia, eu recitei o poema. E o que aconteceu depois? Os austríacos que estavam aqui ofereceram um prêmio. Passamos 25 dias na Áustria e cinco na Alemanha. Tenho certeza que o maior impulso de eu ir foi quando eu recitei esse poema, chamado São Francisco, nosso pai (Leia ao lado).


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São Francisco, nosso pai Toinho Pescador

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Há 25 anos atrás, O nosso rio era assim. Passarinhos cantavam alegres, Não tinha veneno aqui, Também não tinha barragem e era bom viver assim, O rio era festejado com bandos de Paturis. Tem um ditado antigo do poeta, o pescador, Quando o Canafisteiro floresce, É sinal que o rio replantou, Por isso nascia alegria para todos os morador. Em começo de outubro, o rio começa a altear, Com as suas águas barrentas, que é o adubo natural, Produzindo camarões e peixes para os pescador pescar, Enchendo as grandes várzeas, era lindo se apreciar Cupim, formiga, grilos e ratos nas águas começam a boiar Tornando-se alimentos para o peixe engordar. Nesse grande equilíbrio, quem ganhava era a população, Tanto dos peixe, das aves, como de nós, cidadão, Porque não precisava adubo para fazer plantação. Corre pra pegar peixe, também para pegar camarão, Outros já faziam redes com grande satisfação, Porque eles tinham certeza de ir buscar o pão. E hoje, a coisa mudou do melhor para o ruim Quem são os culpados disso já deu para refletir, Quando, por causa do medo, deixaram acontecer assim. Fecharam quase todas as várzeas, Barragem foi por demais, Acabou-se a produção de peixes e já se foram os animais, Agrotóxico mata os passarinhos, saúde não existe mais. E o rio, que era rico, hoje está para morrer, Clamando pelo nosso amor, Pedindo para viver, Depois desse nosso encontro, o que nós vamos fazer? Lutar para por em prática essa grande peregrinação Desses valorosos amigos que nos deu essa lição. Quem zela do Velho Chico, tem Jesus no coração.


: ::: entrevista ::

Algum dos seus filhos trabalha com pescaria? Não, nenhum. Só um ainda pescava, mas agora deixou, está trabalhando como segurança em um banco. Imagine que situação, um pescador profissional do São Francisco está empregado como vigilante porque não tem mais como se sustentar com o que tira do rio. Ele tem dois filhinhos e quando só pescava era preciso que a gente ajudasse. Os irmãos ajudassem. Aí todos saíram da pesca e foram trabalhar. Tenho serralheiro, tenho mecânico, tenho funcionário estadual. Pescador mesmo só tem eu agora pescando. À tarde, se você andar por aí, é capaz de me ver pescando para poder completar o salário da aposentadoria. Então, a juventude de hoje não conhece o “verdadeiro” rio São Francisco? Eu estou com 53 anos de casado com a dona Luzinete, achei bom o casamento, mas achei bom porque o meu rio me sustentava, era um patrão muito rico. Além de ser um patrão, ele era um pai. Quando eu ia aperreado dizia ‘Pai, como é?’, ele dizia ‘Venha meu filho’. Pior que ele tinha umas concubinas. Ele é como o rei Davi, diz que ele tinha muitas mulheres. O rio São Francisco é assim. São 49 lagoas marginais só no lado de Alagoas e outras tantas no lado de Sergipe. Essas lagoas é como se fossem as mulheres do rio. Quando o rio começava a encher, ele cheio de ousadia, entrava nas lagoas e quando ele entrava nas lagoas, fazia a gestação. Aí elas todas ficavam enxertadas e aí tinha que parir, produzir. Era peixe, camarão, tudo com a força do rio. Então, castraram o rio. O que estão fazendo hoje com a juventude. A juventude, comendo galinha de granja está ficando castrada. Até a gente cantando hino nacional hoje fica meio inibido. O senhor sente saudades da época da fartura? Muita. Na Várzea da Marituba, hoje, eu duvido alguém dizer que encontra um casal de

canário ou um curió cantando na beira do rio. Um azulão, xexéu, patativa, caboclinho... A gente fazia algazarra com os pássaros. O chofreu cantava o hino nacional, a gente ensinava e ele cantava. Hoje você não encontra mais a rolinha fogo-pagou. O bem-te-vi é o único que está vivo porque só come mosquito, mas não come capim e o milho verde que enchiam nossas beiras de várzea. Me lembro que a gente chegava nas lagoas e via tudo cheio de mulher trabalhando, plantando o arroz e aquelas mulheres que estavam ali tinham a ousadia de junto com os passarinhos, cantar: “Paturi, que andas fazendo ao redor destas lagoas? Quem tem paturi tem pato, quem tem asa cai do laço, quanto mais quem não agoa”. Estas mulheres cantavam alegres porque tinham trabalho, hoje não tem mais. Pegava peixe de mão, hoje não pega mais. E nas beiras das lagoas tinham os canais. Tinha camarões da água do rio, e os pescadores de jereré enchiam as canoas. Coisa linda! Ao invés da televisão perder tanto tempo entrevistando artista devia entrevistar os pescadores do rio São Francisco pra gente contar essas conversas lá pra o Brasil inteiro ver os prejuízos que os pescadores e os trabalhadores rurais tomaram com o desaparecimento das roças e das lagoas marginais na plantação de arroz. Qual a importância que o rio tem na sua vida? Ele é um pai, um patrão. Ele foi criado por Deus, pela natureza e tudo que foi criado por Deus, merece respeito. Nós, hoje, estamos sendo prejudicados por isso. Aquele desastre ecológico que teve, aquele ‘chuveiro’ que

Me lembro que a gente chegava nas lagoas e via tudo cheio de mulher plantando arroz


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teve demais lá no Ceará, no Rio Grande do Norte e na Paraíba, é um sinal da falsa mentira da transposição. Eles estão fazendo transposição dizendo que lá no Ceará e no Rio Grande do Norte não tem água. Tem. Tem o rio Jaguaribe, que nasce na serra da Joaninha e despeja no oceano, do mesmo jeito do São Francisco. Nasce na serra da Canastra e despeja lá na Foz. Todos os rios vão se integrar com o mar, porque o mar é o pai. Como era o rio da sua infância e como você poderia descrever ele hoje? Tenho saudade das canoadas de praia, que saía aqui do Barro Vermelho, uma sanfona

tocando e a gente saía dançando até a Foz para se banhar lá. E hoje não tem mais as canoas de tolda, elas se acabaram, são canoas de 1.200 sacos, porque o rio não tem condição de navegar. Nem navegar dessa forma, nem carregando o arroz, algodão que o povo plantava nas margens. Você já ouviu falar no Surubim? É um peixe que cresce até 120 quilos. Aqui, nessa época, eu pegava ali na frente da minha casa, com minhoca, que não existe mais também. “Ô lapa de minhoca, eita que minhocão, com uma mi-

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Nós não queremos frango de granja, queremos peixes nativos do rio para nos alimentar

Neno Canuto

nhoca dessa eu vou pegar um surubimzão”. Eu ia com uma enxada para a beira do brejo e lá cavava a minhoca, enrolava no anzol aquela minhoca preta enorme e deixava fora do anzol, aí o peixe vinha e pegava. No verão ela se escondia na terra e no inverno, quando voltava ia fazendo irrigação, afofando a terra. Então não precisava de fazer essa irrigação, porque ela é diabólica. O homem pega uma máquina, que vai arrancando as raízes de todas as árvores e a terra fica fraca, acaba com o solo. As minhocas acabaram por causa do veneno. Ora, se a gente não suporta o veneno, a minhoca então... A água vai envenenada, as coitadinhas bebem e morrem. É o homem acabando com a natureza. O senhor acha que o rio vai chegar a se acabar algum dia? Se não tiver cuidado vai, porque o rio Danúbio está morto. Não tem mais pescador, ninguém bebe a água do rio Danúbio e olhe que ele desafiava o São Francisco. Ele é maior que o nosso rio uns cem quilômetros, com volume de água igual. Se eles não tiveram pena do Danúbio, como vão ter do São Francisco Está aí a invasão de gringo plantando, fazendo a irrigação dentro do rio e aguando e pulverizando as canas com adubo químico. Essa beira de rio era a coisa mais linda, hoje você não se vê mais. Essa cidade era festejada, hoje você não vê mais. As crianças de hoje só vão dizer que viram o bem-te-vi, mas não vão dizer nunca que viram um canário, uma fogo-pagou. É triste essa situação, nós gostaríamos que houvesse uma mudança. Nós não queremos frango de granja, queremos peixes nativos do rio para nos alimentar.


Neno Canuto

: ::: reportagem ::

Barco penedense faz homenagem à famosa embarcação naufragada

O naufrágio do Comendador Peixoto A trajetória da embarcação que virou símbolo do apogeu e declínio de uma era

Mário Lima

A carcaça de ferro do vapor Comendador Peixoto, que foi a pique nos primeiros anos do período militar, no Porto de Penedo, de forma misteriosa e até hoje não esclarecida, fez submergir com ela o apogeu e o declínio de uma era de transporte coletivo de massa, com passageiros e cargas, no Baixo São Francisco (BSF), dos anos 1920 até 1964.


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:: Graciliano :: 81 Neno Canuto

José Augusto Xavier, o Flecha Negra do futebol, foi maquinista do vapor

Hoje, a história é contada pelas testemunhas oculares dessa época. Os ribeirinhos, trabalhadores do Baixo, canoeiros, carpinteiros navais e tripulantes de embarcações que formaram a base de sustentação e operação desse vigoroso sistema de transporte de cargas e passageiros no BSF. Na era dos grandes navios e vapores, das lanchas e de naus extraordinárias, como a canoa de tolda, que carregava toneladas de madeira para abastecer o forno dos navios. José Augusto Xavier, 78 anos, o Flecha Negra do futebol alagoano, antes de ganhar os campos Brasil afora foi ajudante de maquinista do Comendador Peixoto, de 1954 a 1960.

Ele lembra rapidamente o roteiro da viagem. Partia de Penedo, na manhã da segunda-feira, e chegava em Piranhas na quarta, com volta prevista para quinta no circuito de volta. O pernoite era em Pão de Açúcar, e para atender comerciantes e feirantes a tripulação parava em todos os portos, na ida e na volta. Xavier não esquece um: Penedo, Propriá, Guararu, Ilha do Ouro, Traipu, Belo Monte, Limoeiro, São Braz, Porto Real e Piranhas. O futuro Flecha Negra chegou a alcançar boas e más fases do navio. A pior foi quando já estava de saída. “Foi uma década de vazante no rio, depois que fizeram esse trabalho na Paulo Afon-

so (ampliação da usina) e o navio deixou de navegar. As croas flutuavam e o navio não passava com a hélice. Encalhamos na Ilha do Ouro, precisamos chamar mergulhadores e o guincho”, relembra, com detalhes, seu Xavier. Xavier soube do naufrágio lá fora, depois de rodar pelo Nordeste como centroavante goleador do CRB, Bahia, Botafogo (PB), Fluminense (BA), encerrando sua carreira aos 42 anos, em sua terra, no alvirubro Penedense. “O naufrágio foi a maior infelicidade para a pobreza, porque nesse navio cabia todos e era uma riqueza como transporte coletivo”, lamentou Xavier.


: ::: reportagem ::

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Reprodução


Neno Canuto

Sonhos frustrados Desde a chegada do navio a vapor Comandante Peixoto, vindo da Inglaterra para o Rio Amazonas, e depois para Penedo, até a desativação da Estrada de Ferro Paulo Afonso, em 1964, o Baixo São Francisco perdeu a chance – talvez única - de formar um sistema de transporte modal hidroferroviário na parte baixa do rio, de grande impacto social, econômico e cultural para a população da região. “Era uma ferrovia maravilhosa, que casava bem com a rota dos navios a vapor. Foi uma decisão muito impensada do Movimento de 1964, que não merece maiores considerações, em desmanchar uma coisa daquelas. Foi uma ordem do governo federal que extinguiu tanto a navegação a vapor como a ferrovia”, assinala o engenheiro e, na época, durante o governo Juscelino Kubitschek (1956-1961), diretor da Comissão do Vale São Francisco (hoje Codevasf), Olavo de Freitas Machado, 83 anos. Cinco anos antes, em 13 de dezembro de 1960, Penedo fazia festa para a volta do Comendador Peixoto totalmente restaurado no estaleiro da Fábrica da Passagem, em Sergipe, pela Companhia de Navegação Peixoto, primeiros donos do navio, mas que agora fora encampado pelo governo federal. “Em 1960 o navio foi totalmente recuperado, dentro de um projeto do Plano de Recuperação do São Francisco, e lançado ao rio,

de volta ao trecho entre Piranhas e Penedo”, lembra Olavo Machado, principal responsável pela restauração do navio. Ele conta ainda que os jornais deram boa repercussão sobre o retorno no navio. E que tal uma viagem de Penedo à Cachoeira de Paulo Afonso, para admirar as quedas d’água, no trajeto de navio Penedo-Piranhas e, na sequência, de trem Piranhas-Delmiro Gouveia, com direito a janelas abertas para o Vale do São Francisco? Essa viagem já foi feita por Olavo de Freitas Machado muita gente, até o fim dos engenheiro navios e da ferrovia.

Foi uma ordem do governo federal que extinguiu a navegação a vapor e a ferrovia

Maria Lucinda conta que viveu uma viagem inesquecível no navio

Quem viveu uma dessas inesquecíveis viagens foi a empresária penedense Maria Lucinda Peixoto, do grupo que controla o Hotel São Francisco, e parente do comendador que deu nome ao navio. “Organizamos uma viagem pelo Penedo Tênis Clube. Logo após os torneios levamos os tenistas do então campeão carioca Fluminense, a bordo do Comendador. Nos vagões da ferrovia podíamos observar a linda paisagem do rio São Francisco”. Ela lembra que no final da era dos navios a vapor, Penedo também recebia aviões da Varig e hidroaviões da Catalina. Maria Lucinda conta ainda que o Porto de Penedo vivia uma boa fase. Sua família tinha dois navios cargueiros, que levavam a produção do BSF para o porto de Santos (SP).


Neno Canuto

NA BOCA DA CALDEIRA Ao contrário de quem viajava na primeira classe, que tinha café da manhã, almoço e jantar, não era nada fácil a vida de Seu Luiz de Santana, o Lulu, 76 anos, que durante mais de 10 anos trabalhou no Comendador com carvoeiro e foguista, o que organiza lenha no porão e joga na frente da caldeira. “Meu trabalho era diferente e se chamava ‘acaba home’. São 35 toneladas (sic) de lenha na subida e na descida para queimar. Era bonito ver aquelas canoas de tolda amarradas ao navio, subindo até descarregar a lenha no Comendador”, diz.

Luiz Santana se orgulha de ter trabalhado como foguista no navio


:: Graciliano :: 85 Reprodução

O movimento era intenso no Porto de Penedo no início do século XX

Ele mantém na parede da sala um quadro com uma foto desbotada do navio, que guarda como relíquia. Foi ele mesmo que disse que a primeira classe tinha fartura para os passageiros. “Na primeira classe tinha todas as refeições. Já na segunda classe, os mais necessitados viviam com uma mochilinha, uma rede, uma esteira, e para comer uma rapadura, um pedaço de queijo, ou um pezinho de bode assado. E no porão iam, amarrados, bois, porcos, galinhas, bodes e muitos balaios de frutas”. Lulu acompanhou tudo que aconteceu até um pouco antes de seu afundamento no cais de Penedo. Foi ele o encarregado pela empresa de tomar conta do Comendador, após ele ser desativado pelo governo federal. Ele morava no próprio navio, que permaneceu ancorado no Porto de Penedo.

“Depois que o navio parou, fui contratado pela empresa para vigiar. Fiquei dois anos morando no navio, sem direito a ir nem em casa, pois tinha que jogar o pranchão para um gerente da empresa que veio do Rio e também morava no navio, com sua mulher”, lembra Lula. “Um navio daquele, que tinha passado por uma reforma completa, não deveria acabar ali. Foi penoso. Tinha que virar história. Se não dava mais para viajar, ele ficaria ali no meio do rio para visitação ou fazer um bar flutuante, como tentaram. A empresa ainda tentou rebocá-lo, foram buscar cabo de aço na Bahia, os tratores puxaram, mas ele dei-

tou em cima das pedras que caiam das canoas para fazer as obras de contenção do porto por causa das enchentes. Ele está lá, enterrado entre pedras e areia”, completa Lulu, o guardião do Comendador Peixoto.

Um navio daquele não deveria acabar ali. Foi penoso. Tinha que virar história Luiz Santana Ex-foguista do comendador

::: reportagem :: :

CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos


Neno Canuto

: ::: reportagem :: O pescador Rosevaldo Jord達o no lugar onde o Comendador naufragou


CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

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TRISTE FIM Alguns anos depois da volta, o Comendador teve um triste fim: adornou numa madrugada fria, quando estava ancorado, na frente do Porto de Penedo. A desativação do Comendador Peixoto foi ordenada pelo governo militar, que entre as mudanças promovidas extinguiu o transporte a vapor, alegando que a lenha provocava desmatamento. O guardião Lulu revela que, ao deixar o navio por um emprego melhor, ainda deu uma olhada na sala de máquina, onde trabalhava, e nos equipamentos do porão, mas tudo estava normal. “Ninguém sabe se foi uma chapa que rompeu e ele tombou, mas o serviço estava todo em ordem antes de minha saída”. “Não foi atentado. Foi desprezo. Sem condições de viajar, com a diminuição do volume de água do rio São Francisco os navios foram desativados. Mesma coisa aconteceu com o desaparecimento das canoas de tolda. Com a construção da ponte de Propriá, canoas como a Igarité e a Canindé, com capacidade para 1.200 sacos de 60 quilos, não passavam na ponte”, assinala o líder pescador Antônio Gomes dos Santos, o Toinho Pescador. O líder lembra que o Comendador deveria ser resgatado para o turismo como símbolo do Porto de Penedo, “que era a coisa mais linda do mundo”, com grandes navios ancorados, barcaças e toldas. Ele dá exemplos de outras cidades que recuperaram suas embarcações históricas. “Em Juazeiro (BA) e Montes Claros (MG), se você quiser tomar um cafezinho ou uma cerveja dentro de um antigo navio está lá, um restaurante para todo mundo curtir. É lamentável, porAntônio Gomes do Santos que a história tinha que ser pescador completa, e a população ti-

O naufrágio não foi atentado. Foi desprezo. O mesmo aconteceu com as canoas de tolda.

A população tinha que ter acesso a essas grandes navegações que favoreceram o Baixo São Francisco

nha que ter acesso a estas grandes navegações que favoreceram bastante o Baixo São Francisco”, diz Antonio Gomes dos Santos. Já o aposentado Rosevaldo Jordão, um penedense convicto e profundo conhecedor da cidade, e com muitas viagens “no costado” do Comendador Peixoto, revelou um destino muito pior para outro famoso vapor, o Penedinho. “Foi destruído e desmontado aqui em Penedo e vendido a um ferro-velho de Recife”, conta Jordão. O pai dele foi uma das centenas de canoeiros que levavam lenha para os navios a vapor. “Hoje Penedo ainda chora e sente saudades do Comendador Peixoto, principalmente na procissão de Bom Jesus dos Navegantes. Era ele que rebocava a imagem”, lembra. Recentemente, em 2008, uma equipe de mergulhadores da Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), a pedido do governo de Alagoas, fez um mergulho de observação para um possível resgate do Comendador, que está a cinco metros da linha d’água. Os mergulhadores constataram que ele está bastante aterrado, com quatro a cinco buracos grandes no casco de ferro, mas ainda é possível ver duas escotilhas e as hélices, cobertas por crostas. Não existem, no momento, projetos prontos para a tentativa de resgatar o Comendador Peixoto e transformá-lo em um bem público, Mas enquanto o navio a vapor Comendador Peixoto permanecer afundado, com sua coleção de ruínas, as lembranças ainda continuam a povoar os sonhos da juventude de muita gente, com os da radialista e diretora da Penedo FM, a sergipana Martha Mártyres, neta do escultor penedense Cesário Procópio. “Penedo do navio Comendador Peixoto, com seu apito que nos fazia tremer, mas que exercia sobre mim um enorme fascínio. Fazendo-me sonhar com viagens rio acima. O esplendor de suas luzes, a roupa engomada dos tripulantes cheias de botões dourados. O tubo preto de sua chaminé, parecia acenar e seduzir”.


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