Graciliano Nº7

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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos - Maceió - Ano III - Nº 7 - NOV / DEZ 2010

:: O POETA DA transgressão :::

LÊDO


:: Reportagem

:: Artigo

O leão devorador | 4

Perdas e danos | 14

Milena Andrade

Antônio Carlos Secchin

O menino reencontrado | 42

Lêdo Ivo | 26

Vanessa Mota

Juan Gustavo Cobo Borda

Poeta ganha memorial | 62

Maceió: a cidade de Lêdo Ivo | 46

Mariana Belo

Tânia de Maya Pedrosa

Lêdo Ivo e sua (in)tensa alagoanidade | 60

:: Poesia

Leda Almeida

:: Entrevista

Minha pátria | 10 Lêdo Ivo

Minha terra | 12

“Sou um anti best-seller” | 16

Lêdo Ivo

Milena Andrade

Os morcegos | 22 Lêdo Ivo

Nossa Senhora da Corrente | 24 Lêdo Ivo

:: Documenta

Os sinos de Maceió | 38

Maceió - A cidade lembrada | 28

Lêdo Ivo

Fernando Fiúza Moreira

Ode à sucata | 40

:: Ensaio

Lêdo Ivo

Um brasileiro em Paris | 48 Lêdo Ivo

A morte de Elpenor | 50

Romance e negatividade grávida na ficção de Lêdo Ivo | 52

Lêdo Ivo

Márcio Ferreira da Silva

O viajante | 58 Lêdo Ivo

Governo do Estado de Alagoas Teotonio Vilela Filho Governador de Alagoas José Wanderley Neto Vice-Governador de Alagoas Álvaro Machado Secretário-Chefe do Gabinete Civil Júlio Sérgio de Maya Pedrosa Moreira Secretário de Estado do Planejamento e do Orçamento

Moisés de Aguiar Diretor-presidente da CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Milena Andrade Coordenadora editorial

Fernando Rizzotto Direção de arte / Projeto gráfico

José Roberto Pedrosa Diretor administrativo-financeiro

Revisão: Marli Josefina

Estagiários: André Santos, Arthur de Almeida, Mariana Belo e Vanessa Mota

Hermann de Almeida Melo Diretor comercial

Conselho editorial: Moisés Aguiar Milena Andrade Sérgio Moreira Guilherme Lamenha Simone Cavalcante

Contatos: (82) 3315.8303 editora@cepal-al.com.br

ISSN 1984-3453

Os textos assinados são de exclusiva responsabilidade do autor. Foto da capa: Fernando Rizzotto


Nesta sétima edição, a revista Graciliano presta uma justa homenagem ao escritor Lêdo Ivo, o autor de mais de quatro dezenas de livros - entre romance, poesia, conto, crônica, autobiografia e infanto-juvenil - e do genial e ainda incompreendido romance Ninho de cobras, obra-prima que lança um olhar dramático e singular sobre a sua cidade natal, Maceió. A revista abre com uma reportagem sobre a extensa e diversa obra do poeta, desde o seu despertar para o mundo da arte com a leitura da coleção Terramarear, passando pelo breve tempo que esteve no Recife, onde conviveu com os intelectuais da chamada “Geração de 45”, até as suas publicações mais recentes, os livros Ajudante de mentiroso e Réquiem, este último um retrato da dor da ausência de sua amada companheira Lêda. Em seguida, numa deliciosa entrevista concedida à Graciliano em seu apartamento no Rio de Janeiro, Lêdo Ivo declara ser um incansável leitor e caçador de novos conhecimentos. Também decreta crise na literatura brasileira feita na atualidade e reconhece ser um anti best-seller. “Hoje, só querem saber de televisão e internet”, diz. Nas seções de artigos, há verdadeiras preciosidades sobre a obra do poeta, como o texto do escritor, poeta e jornalista colombiano Juan Gustavo Cobo Borda; a análise sobre a intensa alagoanidade presente em sua obra na visão da historiadora Lêda Almeida; o sentimental artigo da artista plástica Tânia Pedrosa; e o texto Perdas e Danos, assinado pelo

amigo, crítico literário e integrante da Academia Brasileira de Letras Antônio Carlos Secchin, que analisa o livro Curral de peixe. O Documenta desta sétima edição traz uma profunda análise sobre a geografia do poeta e a marca do espaço físico em sua obra, especificamente da cidade de Maceió. O ensaio é assinado pelo também poeta e professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal) Fernando Fiúza, e todo ilustrado com belíssimas e antigas imagens da capital alagoana, com foco especial nos “lugares” recorrentes na poesia e prosa de Lêdo Ivo, como o farol, a zona portuária e o mar. Uma outra reportagem retrata a infância do artista e seus primeiros tempos em Alagoas. Seu irmão, Aldo Ivo, relembra momentos em família e trechos do livro Confissões de um poeta ilustram o forte memorialismo presente na escrita de Lêdo Ivo. O ensaio Romance e Negatividade Grávida na Ficção de Lêdo Ivo, assinado pelo professor de literatura da Ufal Márcio Ferreira da Silva, busca respostas para a seguinte questão: um olhar é capaz de ver o visível e o invisível? O texto analisa a forma como o poeta captura a imagem de Maceió e como dialoga com ela. A edição fecha com uma ótima notícia, a criação de um memorial que abrigará parte emblemática da vida pessoal e da carreira literária deste ilustre alagoano. O espaço, iniciativa do governo do Estado em parceria com a Caixa Econômica Federal e Fundepes, funcionará no Museu Floriano Peixoto em três salas temáticas e celebrará a riqueza de sua poesia. Em toda a revista, o leitor irá se deparar com poemas espalhados entre uma seção e outra. Os nove poemas foram escolhidos pelo próprio Lêdo Ivo especialmente para esta edição da Graciliano. O escritor fez questão de selecionar os versos que, na sua visão, simbolizam a sua indivisível ligação com sua terra natal, como este trecho de Minha Terra: “[...] Vindo das ilhas inacabadas/nunca aprendi a separar/ o que é da terra e o que é da água./Sempre juntei no mesmo prato/ as espinhas dos meus peixes/e o sobejo dos meus sonhos”.

::: apresentação :: :

Lêdo Ivo, o poeta dos versos derramados e, declaradamente, um antropófago por natureza como os índios caetés. Este alagoano de riso fácil e língua afiada é definido por críticos e escritores como dono de uma estética única dentro da literatura brasileira e mundial. Como bem diz seu companheiro na Academia Brasileira de Letras (ABL) Ivan Junqueira, sua multifacetada obra é uma “mistura heterodoxa e arbitrária de memorialismo, poesia, prosa de ficção e pensamento aforismático”.


: ::: reportagem ::


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Fotos do acervo pessoal

O leão devorador a antropofagia e a compulsão pela leitura marcam a obra de lêdo Ivo, o “homem dos poemas derramados”

sões de um Poeta – só têm perguntas e só sabem indaO verdadeiro antropófago da literatura brasileira. Um gar e semear dúvidas. transgressor antes de qualquer coisa. É assim que Lêdo Leitor compulsivo até Ivo se define. Crise da influência? Esse mal certamente os dias de hoje, do alto de nunca afligiu este leão devorador que não se envergonha seus 86 anos, o poeta rese até se orgulha - das fontes onde bebeu: Mallarmé, Rimponde dessa forma quando baud, Baudelaire, Valéry... “A brisa da viagem e da evasão” questionado sobre suas inque fora buscar nos grandes poetas e prosadores na juvenfluências literárias: “Você é tude esteve e ainda está presente no espírito de sua obra, influenciado por tudo, por assim como as lembranças da terra natal com suas discrecheiros, por falas, a vida é pâncias sociais, seus currais de peixe, seus faróis e navios. uma eterna experiência. Viver é muito perigoso!”. O homem dos “poemas Se cada homem é uma raça, Lêdo Ivo é da derramados” e que se especializou, instintilinhagem dos dionisíacos, dos que, ao invés vamente, em romper normas recebeu o chade buscar, têm medo da perfeição, dos que mado do seu ofício ainda criança, quando des– como ele mesmo escreve em suas Confis- cobriu o universo aquoso e arquetípico da coMilena Andrade

leção Terramarear. Muito cedo, decidiu que o seu destino era escrever e após a sua saída de Maceió para o Recife em 1940, onde passou um breve, mas intenso, período convivendo com intelectuais e artistas da chamada Geração de 45, Lêdo Ivo estreou na literatura aos 20 anos com o livro de poemas As imaginações e já no ano seguinte publicou Ode e elegia, reconhecido pela Academia Brasileira de Letras (ABL) com o prêmio Olavo Bilac. A partir daí, não parou mais de escrever poesia, romance, contos e as crônicas que publicava em jornais. Aliás, o jornalismo sempre esteve presente na vida do escritor alagoano, desde quando publicava suas reportagens “de graça” para os jornais de Maceió até entrar para a academia, quando continuava publicando em grandes veículos.


: ::: reportagem ::

Ao contrário de muitos escritores que se arriscaram ao ir tentar a sorte no Rio de Janeiro, o alagoano nunca soube o que é passar dificuldades. Sempre conseguiu se manter como jornalista e suas primeiras obras já foram recebidas com certa curiosidade e empolgação. “Como acabei fazendo parte do grupo de intelectuais que formou a Geração de 45, liderado pelo poeta e crítico Willy Lewin, as pessoas me acolheram aqui como alguém já conhecido. Hoje vejo que corri um grande risco, pois achar que chegar aqui no Rio e me transformar num escritor reconhecido era uma grande ilusão. Acabei dando sorte”, conta Lêdo Ivo. O breve período que passou em solo pernambucano foi de extrema importância para o escritor, que teve seus primeiros textos publicados e começou a formar sua persona intelectual. “O Willy foi muito importante para mim. Era um sujeito muito culto, sintonizado com a literatura que se fazia na Europa naquela época. Foi ele quem nos apresentou ao Surrealismo”, conta o escritor, que também começou a conviver nesta fase com João Cabral de Melo Neto, que se tornou um amigo para toda a vida. Muito mais pelo talento e pela originalidade de seu estilo e menos pela sorte, o escritor não só foi bem recebido, como venceu diversos prêmios desde o início de sua carreira. Em 1947, apenas três anos depois de ter publicado seu primeiro livro, ele levou o prêmio de Romance da Fundação Graça Aranha com As alianças, seu romance de estreia. Para o poeta e crítico literário Gilberto Mendonça Teles, o livro se destaca pela vertente técnica, que é a dos romancistas ingleses, em especial, James Joyce, Virginia Woolf e Rosamond Lehmann. Teles definiu a obra como “um romance das ilusões perdidas”, assim como foi O caminho sem aventura, publicado em 1948. Após uma estada breve em Paris com a esposa, Lêdo Ivo voltou ao Brasil e escreveu o premiado A cidade e os dias, em 1957. Mas a obra que viria a ser emblemática na sua carreira ainda estava para acontecer nos anos setenta. O romance Ninho de cobras é um capítulo à parte na vida deste alagoano.

O Farol da infância do poeta é uma imagem-símbolo recorrente em sua obra


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Na época, o livro foi classificado por Antônio Olinto como “obra-prima do romance moderno”, que também diz em crítica publicada pelo jornal O Globo, em dezembro de 1973, que a obra parece ter sido escrita numa espécie de transe lúcido. A história, que começa com a chegada de uma raposa numa Maceió violenta e impiedosa, mas também festiva e mítica como a Macondo do escritor colombiano Gabriel Garcia Marquez, descortina ao leitor um memorialismo implacável e cáustico. A maresia, a claridade muitas vezes excessiva que agoniza os olhos, o facadista, o pistoleiro, o Sindicato do Crime, as farras regadas à cachaça e mariscos, os loucos, os pobres de Maceió, os cachorros vira-latas, as lacraias e os morcegos. A prosa dramática e inesperada que mescla corrosão com uma fina ironia típica do escritor atraiu a atenção da crítica do Brasil e do exterior após o romance ter vencido o prêmio IV Walmap, o mais prestigiado no estilo de ficção do País naquela época. Ao ver de Josué Montello, o livro foi a renovação do romance nordestino com sua linguagem arraigada no falar regional, mas também enxertada de imagens poéticas. E é esta a sua maior qualidade como escritor segundo o dicionarista Evanildo Bechara, ocupante da cadeira 20 na Academia Brasileira de Letras. “Como estudioso da língua, além da intensidade poética em que mergulha a poesia de Lêdo Ivo, aprecio nele o uso requintado da linguagem, em que se mistu-

ra o rigor da tradição clássica com a espontaneidade do falar brasileiro de um homem culto. Lêdo honra a língua sem desprezar as novidades do falar brasileiro”, afirma. No estilo autobiográfico, Lêdo Ivo publicou Confissões de um poeta, em 1979, que mereceu o Prêmio de Memória da Fundação Cultural do Distrito Federal. A obra, uma espécie de genealogia espiritual, como definiu o escritor Ivan Junqueira, é fundamental para entender as pulsões, as saudades, as referências e a identidade do escritor. Estão lá sua infância e juventude nas memórias da primeira vez em que esteve em uma escola e das “fontes nativas” que se ligam ao sentimento do universal: o antigo farol branco que, do alto da colina, iluminava o caminho dos navios; a cioba na praia; o pequeno estaleiro apodrecido; os trapiches; o cheiro do mar e açúcar entranhado nas pedras e ruas tortuosas de Maceió. Para Ivan Junqueira, membro da Academia Brasileira de Letras, o livro Confissões de um poeta é único na literatura brasileira. “Mistura heterodoxa e arbitrária de memorialismo, poesia, prosa de ficção e pensamento aforismático, é uma obra que nos instiga a compreender e avaliar não apenas o ambiente literário em que se desenvolveu o processo de criação do autor, mas também boa parte do que escreveu entre nós durante toda a segunda metade do século passado, ainda que filtrado pela ótica pessoal, transgressora e irreverente do poeta, que aqui se define não tanto como alguém que escreve uma obra, mas como aquele que é escrito por ela”, escreve na quarta edição do livro durante as celebrações de 80 anos de vida de Lêdo Ivo, em 2004. Doze anos depois, Lêdo Ivo escreveu seu segundo livro autobiográfico, O aluno relapso. Apesar de ter escrito reconhecidas obras em prosa, o artista se diz fundamenLêdo Ivo talmente um poeta. “Sou esPoeta sencialmente poeta. Minha

Em Ode e elegia descobri meu verdadeiro caminho - o cultivo de um verso livre e longo

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O romance passado em Maceió é considerado uma obra-prima do gênero

prosa é o descanso do guerreiro”, diz em suas confissões. O livro As imaginações, seu primeiro trabalho, é visto hoje por ele como um obra “muito imperfeita”, uma explosão poética. Para Lêdo Ivo, ele conseguiu “acertar” a mão em Ode e elegia, de 1945. “Ali descobri meu verdadeiro caminho – o cultivo de um verso livre, longo”, afirma. Ao criticar a geração de 45, Sérgio Buarque de Hollanda brincou que era um grupo de poetas de nomes longos e versos curtos e que Lêdo Ivo era um poeta de nome curto e versos longos, o oposto de escritores como João Paulo Moreira da Fonseca, João Cabral de Melo Neto e Péricles Eugênio da Silva Ramos. E é essa marca do derramamento das palavras, da abundância verbal, da explosão e da transgressão estética da poesia de Lêdo Ivo, o que lhe rendeu críticas boas e ruins ao longo da vida. “Essa é a minha singularidade. Nasci solidão e vou morrer solidão”, diz o poeta, categórico e sem o menor sinal de arrependimento.


: ::: reportagem ::

Incansável voo do pássaro selvagem Ao contrário de muitos escritores e poetas brasileiros que dão longas pausas entre uma obra e outra ou que desaceleram sua produção com o avançar dos anos, o alagoano Lêdo Ivo não para. Sua busca incessante pelo conhecimento através da leitura e sua criatividade continuam extremamente fortes nos dias hoje, quando o poeta começa a chegar perto dos 90 anos. Dos anos 80 pra cá, ele publicou nada menos que onze livros de poemas – sendo um de sua poesia completa, em 2004 -; um romance; três de contos; uma coletânea de suas melhores crônicas; uma autobiografia e três livros infanto-juvenis. Talvez Lêdo Ivo seja hoje – além do “mais jovem dos poetas brasileiros”, como decretou para si o título numa entrevista – o escritor mais produtivo e efervescente do País. Seus últimos poemas foram publicados no livro Réquiem, no ano de 2008, após a morte da sua companheira por mais de 60 anos, Lêda Ivo. Os versos longos e lentos desenham o retrato da dor da ausência da musa de sua

vida. Ao falar de sua trajetória, o poeta nunca se esqueceu de citar que devia o sucesso ao fato de ter se casado com a pessoa certa. “Nada sabemos, a não ser que há uma noite pura e vazia à nossa espera. Uma noite in-

lando as palavras em sua antiga máquina de escrever no segundo andar do apartamento onde morou nas últimas décadas. Seu livro seguinte, Ajudante de mentiroso, publicado este ano, confirma o frescor e agudeza de suas ideias e de sua linguagem em mais de quarenta ensaios. Estão presentes na coletânea a velha e deliciosa ironia, o rico e quase cinematográfico memorialismo, o sarcasmo, a perspicácia. “A mulher de Noé esbofeteou o marido? Sim e não: é verdade e mentira, realidade e ficção. Esse fato, ou preclara invenção da manhã dos tempos, conduz-me à natureza da vida, e de seu desdobramento criador que é a arte. A criação liteLêdo Ivo rária é ao mesmo tempo confissão Poeta e escondimento. Todos falamos a verdade e todos mentimos. A nossa própria existência, soma inumerável de versões intestinas e alheias, é uma ficção”, escreve Lêdo em Guardar o que está perdido, ensaio de abertura que é a prova maior de que esse pássaro selvagem continuará alçando altos e longos voos.

A nossa própria existência, soma inumerável de versões intestinas e alheias, é uma ficção

Lêdo Ivo e Lêda se casaram jovens e ficaram juntos por mais de 60 anos

tocável além do fogo do gelo, e de qualquer esperança”, conclui Lêdo em um dos poemas. A perda pode ter deixado o escritor mais triste, mas não o esvaziou. Lêdo Ivo continua espirituoso, ativo, sarcástico e segue buri-


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bibliografia Poesia

Crônica

• As imaginações, 1944 • Ode e elegia, 1945 • Acontecimento do soneto, 1948 • O livro inconsútil, 1948 • Ode ao crepúsculo, 1948 • Cântico, 1949; • Linguagem, 1951 • Ode equatorial, 1951 • Acontecimento do soneto, 1951 • Um brasileiro em Paris e O rei da Europa, 1955 • Magias, 1960 • Uma lira dos vinte anos, 1962 • Estação central, 1964 • Rio, a cidade e os dias: crônicas e histórias, 1965 • Finisterra, 1972 • O sinal semafórico, 1974 • O soldado raso, 1980 • A noite misteriosa, 1982 • Calabar, 1985 • Mar Oceano, 1987 • Crepúsculo civil, 1990 • Curral de peixe, 1995 • Noturno romano, 1997 • O rumor da noite, 2002 • Plenilúnio, 2004 • Réquiem, 2008 • Poesia Completa - 1940-2004, 2004.

• A cidade e os dias, 1957 • O navio adormecido no bosque: duas cidades, 1971; • As melhores crônicas de Lêdo Ivo, 2004.

Romance • As alianças, 1947 • O caminho sem aventura, 1948 • O sobrinho do general, 1964 • Ninho de cobras, 1973 • A morte do Brasil, 1984 Conto • • • • •

Use a passagem subterrânea, 1961 O flautim, 1966 10 [dez] contos escolhidos, 1986 Os melhores contos de Lêdo Ivo, 1995 Um domingo perdido, 1998.

Autobiografia • Confissões de um poeta, 1979 • O aluno relapso, 1991. Literatura Infanto-juvenil • O menino da noite, 1995 • O canário azul, 1990 • O rato da sacristia, 2000. Ensaio • Lição de Mário de Andrade, 1951 • O preto no branco. Exegese de um poema de Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Liv. São José, 1955; Raimundo Correia: poesia (apresentação, seleção e notas). Rio de Janeiro: Agir, 1958; Paraísos de papel. São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 1961; Ladrão de flor. Capa de Ziraldo Rio de Janeiro: Elos, 1963; O universo poético de Raul Pompéia. Em apêndice: Canções sem metro, e Textos esparsos [de Raul Pompéia]. Rio de Janeiro: Liv. São José, 1963; Poesia observada. (Ensaios sobre a criação poética, contendo: Lição de Mário de Andrade, O preto no branco, Paraísos de papel e as seções inéditas Emblemas e Convivências). Rio de Janeiro: Orfeu, 1967; Modernismo e modernidade. Nota de Franklin de Oliveira. Rio de Janeiro: Liv. São José, 1972; Teoria e celebração. São Paulo: Duas Cidades, 1976; Alagoas. Rio de Janeiro: Bloch, 1976; A ética da aventura. Rio de Janeiro: F. Alves, 1982; A república da desilusão. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.


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: ::: Poesia ::

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Minha pátria Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Minha pátria não é a língua portuguesa. Nenhuma língua é a pátria. Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci e o vento que sopra em Maceió. São os caranguejos que correm na lama dos mangues e o oceano cujas ondas continuam molhando os meus pés quando [sonho. Minha pátria são os morcegos suspensos no forro das igrejas [carcomidas, os loucos que dançam ao entardecer no hospício junto ao mar, e o céu encurvado pelas constelações. Minha pátria são os apitos dos navios e o farol no alto da colina. Minha pátria é a mão do mendigo na manhã radiosa. São os estaleiros apodrecidos e os cemitérios marinhos onde os meus ancestrais tuberculosos [e impaludados não param de [tossir e tremer nas noites frias e o cheiro de açúcar nos armazéns portuários e as tainhas que se debatem nas redes dos pescadores e as résteas de cebola enrodilhadas na treva e a chuva que cai sobre os currais de peixe. A língua de que me utilizo não é e nunca foi a minha pátria. Nenhuma língua enganosa é a pátria. Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria [muda, minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e [sem dicionário, minha pátria sem língua e sem palavras.


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Minha terra Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Minha pátria é onde os goiamuns pressentindo o cair da noite buscam as locas entre os mangues.

(Na cozinha, a boca alugada, soprando carvões, fazia nascer o fogo do dia.)

De cima das dunas eu via o mundo: escória azul ao longe, mar curvo de navios.

No meu país palustre o peso das chuvas encurva os cajueiros e o sol calcina lágrimas.

Quando eu estava dormindo e chovia no meu sonho, nos vales caíam trombas d’água.

Como o universo era belíssimo! A nuvem que roçava os trapiches fulgia no celeiro das águas.

E uma espinha de carapeba arranha a louça do dia que a língua do mar lambe.

A manhã raiante se manchava do sangue escuro da raposa morta no chão memorável.

No fim dos trilhos da Great Western entre balduínas sedentas e dormentes cravados na água

Entre casas de marimbondos e caranguejeiras imóveis a tarde me iluminava.

Minha terra é o novo caminho que o homem abriu sem querer no capim à beira do arrozal.

o branco farol de minha terra clareava jaqueiras acocoradas sempre grávidas como as lavadeiras.

Eu soletrava a ferrugem de navios sem nome que a lama das lagoas mastigava.

Entre lagartos e caga-sebos vi as horas caírem sobre as cercas que afrontavam os relâmpagos.

Vindo das ilhas inacabadas nunca aprendi a separar o que é da terra e o que é da água.

Eu percorria as galáxias. Fagulhas de estrelas caíam nos coqueirais do tifo.

Foi na infância que aprendi a ver-te, ó sol que me ilumina. E um arco-íris abriu-se entre arraias no céu pálido.

Sempre juntei no mesmo prato as espinhas dos meus peixes e o sobejo dos meus sonhos.

No chão das ilhas pegajosas um planetário búzio avariado guardava o aroma do mundo.

Foi na infância que aprendi a amar-te, fêmea, que o meu espanto confundia com as caranguejeiras.

Minha pátria é a água negra – a doce água cheia de miasmas – dos estaleiros apodrecidos.

No meu país de podres arquipélagos um cardápio de barro sempre espera meus irmãos opilados. E, nos monturos, homens e urubus, na lei da livre concorrência, ganham o pão que Deus amassa.


Perdas e danos* Antônio Carlos Secchin** Os “terraços do mar” constituem a primeira das três partes de Curral de peixe¹. Nela, quarenta e um textos revelam a presença ostensiva de um poeta semeador de descrenças (“Toda a vida é treva/ por mais que a ilumine/ a luz de cem velas”) e de incertezas (“Não sei quem sou. Não sei quem bate à porta/ usando a minha mão”). A dúvida metódica diante dos desconcertos do mundo parece compor o fio unificador dos poemas. Circulando entre o solo natal. Capturado em sua trivial miudeza, e o espaço cósmico, espelho ampliado da neblina humana, Lêdo Ivo vislumbra, em ambas as dimensões, signos similares de corrosão e perda. Todavia, o que tal opção poderia conter de patético acaba por atenuar-se através da ironia, presente tanto na visada alegórica de “O que eu disse à craca” quanto na concepção de uma história regida pela paródia. Um desejo de história do nada, rasura plena sem vestígios, emana dos versos de “Queimada”:

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo

Queime tudo o que puder: As cartas de amor As contas telefônicas O rol de roupa suja ...................................... Não deixe aos herdeiros esfaimados Nenhuma herança de papel. O segundo bloco, “Dia e Noite”, é integrado por 42 sonetos, de variadíssima fatura no que concerne, à métrica, à rima, e obsessivamente preenchidos pelos pares claro/escuro, manhã/tarde, noite/dia. Em algumas peças há uma curiosa convivência entre a medida “nobre” do alexandrino e a “vulgaridade” da matéria nele contida. Era um boteco imundo perto da Central. (...) Entre putas escrotas e burros-sem-rabo/ eu escutava a chuva cair nos telhados”.

A orfandade literal, expressa na parte 1, é agora ampliada para uma espécie de orfandade de si próprio, por meio da subtração de balizas de reconhecimento (“Por onde quer que eu vá levo sempre comigo/ um pronome incompleto. Como pesa esse embrulho!”). Nesse desnorteio radical, o poeta registra a perda do contorno legível do mundo. (“O sol a pino e a sombra se equivalem”) e mescla no primeiro passo as caracterizações da pureza e da sordidez: “A noite triunfante enxota o dia./ Troca a luz pela sombra, e só nos deixa/ uma pomba arrulhando na sarjeta”.


Já em “Salteador”, derradeiro segmento de Curral de peixe, a deriva epigramática se manifesta na quase totalidade dos 35 poemas. Verdadeiros exercícios de escárnio e mal-dizer, os textos fustigam a cupidez, a inveja, a gula e o adultério, dentre outras marcas humanas, brandindo ainda as armas do cinismo no “politicamente incorreto” “Um desafio litorâneo”: Uma baleia ferida na praia de Saquarema A terra já problemática enfrentava mais um problema Como salvá-la da morte ou convertê-la em poema Nada disso, no entanto, se compara à modernidade (elevada até o sarcasmo) dos versos dedicados à confraria literária. Leiamse, a esse (des)respeito, “A morte de um estilista”:

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no recinto acadêmico Foi comparado a Camilo. E seus pares derramaram lágrimas de crocodilo. E “Um inimigo supérfluo”: Era um poeta muito conciso ..................................... Só e sumário agora o esconde o excesso póstumo de um epitáfio No último poema do livro — “O poeta e os críticos”, Lêdo Ivo ironiza a flutuação dos traços com que os exegetas procuraram classificar (isto é, reduzir) sua obra: poesia da claridade. Da escuridão, do amor, da infância, da morte, do tempo, do laconismo, do excesso. Imerso em meio a tantas polarizações, indaga: “Onde começo e termino?”. Simulando não saber o que de si existe naquilo que de alheio lhe é atribuído, o poeta, afinal, parece dialogar com o também crítico e memorialista Lêdo Ivo, que em suas Confissões (1979) , anotara: “Desconfiai dos que tudo aceitam, explicam e compreendem. A Incompreensão é um dos ingredientes da inteligência”. **Poeta, ensaísta e crítico literário brasileiro

*Publicado originalmente no Caderno Ideias do Jornal do Brasil, em 07/10/1995. ¹ IVO, Lêdo. Curral de peixe. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995.

::: artigo :: :

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: ::: entrevista ::

Fernando Rizzotto


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“Sou um anti best-seller” Do alto de seus 86 anos, lêdo Ivo segue com a fúria criativa de sempre e decreta crise na literatura brasileira

Milena Andrade

Aos 86 anos, Lêdo Ivo mantém a mesma voracidade para ler e escrever que ostentava na juventude. As respostas rápidas e espirituosas, a gargalhada fácil e sonora e a sagacidade de sempre confirmam o frescor de um artista extremamente produtivo e andarilho, que gosta de ver e ouvir pessoas e paisagens mundo afora. “Viajo quase todos os meses do ano”, conta o escritor, que, em pleno mês de julho, já havia estado na França, México e Colômbia. Lêdo Ivo mora sozinho no mesmo apartamento em que viveu a maior parte de sua vida ao lado da esposa, Lêda. Quando não está viajando se dedica aos trabalhos na Academia Brasileira de Letras (ABL) e passa o resto do tempo no sítio em Santa Tereza, rodeado pela mata e por seus cachorros. O escritor, que continua usando sua antiga máquina de datilografar para dar vida aos seus poemas, conta que relê clássicos de Balzac, Stendhal, os simbolistas franceses, literatura inglesa e, mais recentemente, literatura espanhola. Para Lêdo Ivo, a produção literária atual passa por uma crise. “Somos pouco lidos. Só vende best-seller. Hoje, só querem saber de televisão e internet”, diz. Por que o senhor saiu tão cedo de Maceió? Em 1939, morreu um irmão meu (Éber) na epidemia de tifo em Alagoas e meu pai me mandou estudar no Recife. Meu pai era pernambucano, tinha muita ligação com o Recife e dois irmãos meus, Napoleão e Floriano, já estavam lá. Fiz, inclusive, um poema à Reci-

fe, mas nunca incluí na minha obra porque está fora do contexto. Fiz quando tinha 16 anos. Fiquei dois anos apenas no Recife. Em 1942, voltei a Maceió, quando trabalhei no Jornal de Alagoas e na Gazeta.

Apesar de ter saído tão cedo de Alagoas, sua obra é impregnada de lembranças e tipos humanos da sua terra natal. Como se explica isso? Cada escritor é um caso. Há escritores que têm essa marca da vida pessoal. Há poetas muito marcados geograficamente e outros que não. No meu caso pessoal, o lugar do nascimento, o berço, a origem têm muita importância. De modo que minha poesia e minha prosa refletem muito esse universo da infância e da adolescência e até da ancestralidade, que eu evoco à circunstância de a família da minha mãe ter ancestralidade dos índios caetés. Eu até brinco muito com os antropófagos paulistas dizendo que eles não comeram ninguém. O único antropófago da literatura brasileira sou eu e não o bestalhão do Oswald de Andrade. Eles roubaram a antropofagia alagoana. Agora isso não se explica. Está no mistério da própria criação poética. Como se explica, por exemplo, o mistério de Machado de Assis? Filho de um pedreiro e de uma lavadeira.

Como se explica um Graciliano Ramos, filho de um comerciante falido que se casou com uma menina? O senhor teve uma boa infância? Tive uma infância boa. Morava em casa de três janelas. Era assim que se media prosperidade em Alagoas naquela época. Tinha piano na sala de visita. Meu pai era advogado, pai de onze filhos, nunca teve emprego público em Alagoas, lugar onde todo mundo tinha emprego público. O que é mais marcante na infância e juventude em Maceió? Uma coisa que me impressionava muito, quando morava no Alto da Jacutinga, via o farol os navios e aquilo me impressionava muito - o mar azul o farol branco. Aquilo me marcou muito como símbolo de um mundo desconhecido, de evasão. A sua saída de Alagoas para o Sudeste foi dramática como para a maioria dos nordestinos que fizeram e fazem este caminho?

O único antropófago da literatura brasileira sou eu e não o bestalhão do Oswald de Andrade


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CEPAL / Imprensa Oficial Graciliano Ramos

Senti pouco. Hoje, vejo que foi uma coisa temerária, ilusória. Conheci muitos escritores que vieram para o Rio - que é um cemitério de desilusões e não um campo aberto - e não deram certo. Muitas coisas me ajudaram, como minha permanência no Recife, que me deixou conhecido por alguns escritores, minhas relações com Graciliano Ramos e Jorge de Lima. Esse grupo de escritores era unido? Não. Era cada um por si e Deus contra todos. A gente se reunia em bar, mas não havia união, não. Havia pequenas oportunidades para todos, como muitos jornais pra trabalhar. Como foi o início na carreira de jornalista no Rio de Janeiro? Trabalhei como redator no jornal A Manhã, onde comecei a me destacar. Era um Rio de Janeiro diferente. Morei no Centro da cidade, perto da Lapa, numa pensão. Tinha muitos amigos escritores, havia um sentimento muito grande de convívio literário aqui no Rio. Quem eram os seus amigos? João Cabral de Melo Neto e Breno Acioli, os mais importantes. Falo deles na minha obra, em Confissões de um poeta e em Aprendiz de mentiroso. O senhor acredita que teria se tornado o escritor de sucesso que é hoje se nunca tivesse saído de Maceió? Você não pode especular sobre o seu destino. Talvez se tivesse ficado em Maceió eu fosse mais importante hoje. O Graciliano era muito importante quando morava lá. Havia a convicção que eu só poderia me realizar num campo mais aberto, com mais oportunidades. Aqui, com duas colaborações em jornal por mês eu me mantinha. Em Alagoas, eu escrevia de graça. Por que o senhor optou pelo Jornalismo e não pelo Direito?

Quando menino, carregava a mala de meu pai, mas o Direito nunca me interessou, eu queria ser um escritor. Desde que li os romances da coleção Terramarear. Por isso, comecei a escrever para os jornais em Alagoas, de graça mesmo. A primeira reportagem que fiz foi sobre a Levada. Descobri um negócio impressionante - em Alagoas, as frutas nativas tinham preços muito altos e isso repercutiu muito. Aí me mandaram fazer outras reportagens sobre os subúrbios de Alagoas, condições de vida em Pajuçara, falta de água, de hospitais. Isso me deu um certo prestígio. O jornalismo de Alagoas, na época, era na base da tesoura e goma arábica, recortavam e colavam tudo o que vinha dos jornais do Sul. O jornalismo me permitia também uma certa flexibilidade de horário. Fui jornalista até entrar na Academia.

Um poeta não é nascido, é feito. Eu continuo sempre a me fazer. A vida é uma eterna aprendizagem.

Como vê o jornalismo hoje? Mudou muito. Os grandes jornais não existem mais. Todos em que eu trabalhei fecharam. A Manhã, os Associados, o Correio da Manhã, Manchete, Diário de Notícias. É um negócio curioso. Só sobreviveu o Estado de São Paulo, onde escrevi artigos durante muitos anos. O senhor nunca duvidou do seu talento? Sempre procurei fazer o melhor possível. Um escritor se faz com talento, mas também com aprimoramento à cultura. Tenho uma curiosidade intelectual muito grande. Estudei francês, morei lá na França dois anos, estudei inglês, alemão, italiano. Achava que um poeta não é só nascido, é feito. E continuo sempre a me fazer. A vida pra mim é uma perpétua aprendizagem. Cada dia quero aprender alguma coisa. Quando um jovem poeta me pergunta o que fazer, digo: entre para o Instituto Goethe para aprender alemão.


::: Entrevista :: :

Fotos: Fernando Rizzotto


: ::: entrevista ::

Fernando Rizzotto

A sua arte lhe deu uma vida melhor? Sim. Não tenho preocupações de natureza financeira, mas sempre trabalhei muito. Sempre tive como me sustentar. Também teve o fato de ter me casado com a pessoa certa. Durante mais de 60 anos vivi com a mesma mulher. Isso pesa muito. O senhor nunca cogitou voltar para Alagoas? Não, não, não. Já também me ofereceram para viver no exterior, mas minha vida é muito assentada aqui. Gosto de dormir no mesmo lugar, usar a mesma máquina de escrever. Do que o senhor tem saudade em Maceió? Do desaparecido. Da minha infância. Não é nem saudade, é lembrança. Lembranças até obsessivas. Do que o senhor não tem saudade? O que eu não tenho saudade eu apago. Não dou oportunidade de nada me incomodar ou me perseguir. Minha memória é seletiva. E eu não sei explicar por quê. Acho que pode ser uma autodefesa, pra que a vida não se torne um inferno pessoal. Em Ninho de cobras há muitos personagens que são tipos atemporais de Alagoas. Ninguém é ingênuo, ninguém é totalmente bom, não há heróis. Não é uma visão um pouco sarcástica da terra natal? Esse meu livro é muito falado e pouco lido. Só a freira presta. Uma vez, me perguntaram: “como tem coragem de dizer em seu livro que em Maceió só Deus perdoa?”. Mas isso me impressionou muito na infância, um tio de um amigo meu da família Villas Boas. Ele era ateu e resolveu colocar uma bagana de cigarro na Semana Santa naquele Cristo da catedral de Maceió para provar a inexistência de Deus. Foi pra casa, teve uma trombose, ficou todo


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troncho, passou três meses em cima de uma cama, melhorou depois e saía toda Semana Santa na procissão. É um mistério isso. Pois é: Em Maceió só Deus perdoa. Uma vez também os vagabundos fizeram uma buchada na Semana Santa e o trem que vinha de Ponta Grossa, perto do Mercado, veio, atropelou o bonde e os vagabundos que comiam a buchada morreram todos. Isso até hoje é um mistério em Maceió. Ainda falam do Guabiraba lá? Era um facadista famoso. Muita gente no meu romance existiu. De noite, dava facada e, de manhã, ficava nas rodas com os desembargadores. Alagoas era uma festa! Acordava, ia pra porta da Colombo. Tinha coisas impressionantes em Alagoas. Como senhor vê as críticas em relação ao seu livro? Ninho de cobras é simplesmente o retrato da cidade. Lembro que, uma vez, o padrinho de um irmão meu, advogado, foi assassinado num lugar bem elegante. E o meu pai só não foi assassinado porque tinha dez filhos. Ficavam com medo de um deles vingar a morte depois. Uma vez, meu pai ganhou uma causa contra um senhor de engenho. Tinha um delegado de polícia, Ari Pitombo, que soube que estavam ameaçando meu pai e ele chamou o usineiro e disse: “o Floriano tem dez filhos pra sustentar, se alguma coisa acontecer com ele mando cortar-lhe a cabeça”.

Ninho de cobras é um romance sobre os alagoanos que não emigram, aqueles que amam Alagoas No meu trabalho eu reflito Alagoas, que é minha terra natal. Tenho o selo de escritor de Alagoas

Em que sentido Alagoas é um Ninho de cobras?

:: Graciliano :: 21

É um romance sobre os alagoanos que não emigram, aqueles que amam Alagoas, que acham que lá é o melhor lugar do mundo. É o Estado do Brasil onde há menos emigração, sabia? Digo que esse livro é a história de alagoanos que amam a terra natal como as cobras amam os ninhos de pedras, com todos os defeitos, com as fofocas, os adultérios, os assassinatos. No poema “Minha Pátria” o senhor diz que sua terra é disentérica, sem palavras, etc, essa pátria tem lhe rendido muitas homenagens, acha que sua terra, finalmente, lhe compreendeu? Não sei se compreendeu ou não. No meu trabalho eu reflito Alagoas, que é a minha terra, meu universo, eu tenho o selo de escritor de Alagoas, sou marcado pela terra natal é o que me caracteriza dentro e fora do Brasil. Já escreveram que eu criei uma cidade mítica, Maceió. Assim como Garcia Marques criou Macondo. Acho que Alagoas, talvez pela circunstância de que raramente produz um escritor que saia de suas fronteiras, veja em mim uma referência. Mas uma obra literária é lida por muito poucos. Eu sou um anti best-seller. Como o senhor recebe essas homenagens? É da idade. São recompensas imaginárias. Mas é confortável. Vejam o que fizeram com o Graciliano - rasparam a cabeça dele, jogaram no porão de um navio e mandaram embora pra Ilha Grande. O Jorge de Lima levou cinco tiros e veio fugido para o Rio. De certo modo, tive mais sorte.


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: ::: Poesia ::

22 :: Graciliano ::

Os morcegos Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Os morcegos se escondem entre as cornijas da alfândega. Mas onde se escondem os homens, que contudo voam a vida inteira no escuro, chocando-se contra as paredes brancas do amor? A casa de nosso pai era cheia de morcegos pendentes, como luminárias, dos velhos caibros que sustentavam o telhado ameaçado pelas chuvas. “Estes filhos chupam o nosso sangue”, suspirava meu pai. Que homem jogará a primeira pedra nesse mamífero que, como ele, se nutre do sangue dos outros bichos (meu irmão! meu irmão!) e, comunitário, exige o suor do semelhante mesmo na escuridão? No halo de um seio jovem como a noite esconde-se o homem; na paina de seu travesseiro, na luz do farol o homem guarda as moedas douradas de seu amor. Mas o morcego, dormindo como um pêndulo, só guarda [o dia ofendido. Ao morrer, nosso pai nos deixou (a mim e a meus oito irmãos) a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas. Levantamos a hipoteca e conservamos os morcegos. E entre as nossas paredes eles se debatem: cegos como nós.


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: ::: Poesia ::

24 :: Graciliano ::

Nossa Senhora da Corrente Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Só Deus e os morcegos habitam a Igreja de Nossa Senhora da Corrente. O espírito invisível paira entre os altares roídos e o vento de Penedo cega lentamente os olhos dos santos que os turistas e antiquários não conseguiram roubar. Deus é barroco. Deus é como os morcegos: voando à noite entre os espaços estrelados procura chupar o sangue dos homens que enegrecem o dia com os seus pecados. Na abóbada da igreja que o rio às vezes invade os morcegos escondem o céu alegórico eternamente sonegado aos pecadores. Ó céu negro dos homens! Sob o soalho avariado os ratos se inclinam à Presença eucarística. E Nossa Senhora da Corrente, padroeira dos ratos e morcegos, entre flores de papel e velas fedorentas compartilha da solidão divina. Ó Mãe dos homens, que sorri radiosa em seu abandono como a minha própria mãe, rogai por mim!


Ilustração baseada em desenho de Gianguido Bonfanti

: ::: artigo ::


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Lêdo Ivo Juan Gustavo Cobo Borda* Seu olhar parece compassivo e fraternal; em realidade é implacável: os pobres cheiram mal, não sabem como se vestir e acabarão ocupando todos os postos. Os morcegos, como os seres humanos, se chocam contra as paredes e bebem o sangue de seus semelhantes. O pai só deixa ao filho, como herança, o seu cansaço e o seu espanto. Seu nada e seu frio. Talvez também as palavras. Nelas, incontíveis, transbordantes, se refugiou. Queria ser impessoal, refletindo aos outros, nas cidades, como todas as nossas, que fedem “a gasolina e a demagogia”. Mas terminou por ser poeta: “Vou entre a multidão e meu nome é Ninguém”. O poeta que grunhe e se queixa: “já não sei cantar o mundo nem dizer meu amor”, como disse precisamente em Finisterra ao cantar um mundo caótico e sujo. De chagas e mentiras. Da Bolsa de Nova York e do rei Nabucodonosor. Esse mundo da sucata, onde ele retorna o ditado clássico de Baudelaire: seu convite à viagem. Minha vida inteira estremece ao cair da noite e ouço na escuridão o cântico de tudo que parte. É o inquieto, o desassossegado, o neurótico, que abomina “os imóveis”, “os que escutam sentados os silvos dos navios”. Quem, em sua “Ode à sucata”, quer reter somente o que de usado e gasto se torna imune à ofensa intempérie. Só que essa reivindicação, desde T. S. Eliot, já é um lugar comum da poesia moderna. Que faz então de Lêdo Ivo um tão admirável poeta? A fusão acertada de tudo isso: dos detritos e do soneto. De parecer desven-

cilhado do neoclassicismo com a mais exasperada enumeração torrencial. Cinquenta livros. Mil cento e trinta e quatro páginas de sua Poesia Completa, de 1940 a 2004, nem o mundo, nem a palavra se acabam. Seguem golpeando-o, e ele lhes responde com seu atribulado testemunho: Não somos dignos de piedade. Seria melhor que Deus não existisse E vivêssemos todos fora de seu incômodo olhar. A essa mirada triangular do olho de Deus só pode opor-se uma única visão: a da criança na praia, não recitando Homero, não medindo o vento, mas reencontrando o quê? A simples eternidade. A eternidade do amor, onde os animais “se mordem e se lambem”. Miasmas, cáries, águas podres, “país palúdico”, “fermentação dos resíduos”: nos trópicos é mais visível a deterioração, mais fascinante o desgaste de todas as coisas, incluindo o ser humano. Para ele torna-se necessário reformular as plavras, buscá-las fora do dicionário e respirar o ar da noite que cheira a jasmim e ao doce esterco fermentado. Talvez por isso Lêdo Ivo fale tanto dos animais, dos que voam como o gavião ou os que estão presos no Zoológico, quietos como o caracol ou desassossegados como os ratos. Talvez por isso Lêdo Ivo guarde consigo o presente inesperado para todos que leem, admirados: sua ignorância. Sua frágil aprendizagem de vida. Seus incessantes temores, em meio à afirmação viril de uma voz que se quer a um só tempo justa e avassaladora. Que sempre se volta sobre si mesma, na reflexão sobre poema e na meditação sobre essa arte

que ainda chamamos poesia. Que dura e já passa, como desejo e a música. Uma poesia nutrida de tosses e escarras, de loucos e mortos, cuja pátria não é a língua portuguesa, senão talvez uma pequena cidade, Maceió, onde nasceu em 1924. Essa é sua pátria, “disentérica e desdentada”. Só que essa poesia, que desceu até a ferrugem e a lama, tem em sua essência o tom épico dos vastos cronistas. Do viajante pelo mundo, de Washington a Copenhague, de Roma a Londres, de onde esse Ninguém andarilho costuma despedir-se assim: mesmo estando morto insisto em ser Lêdo Ivo. O que passa, que queima seus rascunhos falidos, o incapaz de reter a evaporação do orvalho, porém capaz de dar-nos, por outro lado, muitos poemas que nos tocam e estremecem. Que nos faz chorar felizes ou sorrir enlutados, como em verdade acontece com todo grande poeta. Um poeta da estirpe de Pablo Neruda no “Fantasma do navio de carga”, de Enrique Molina em Costumes Errantes, ou da redondeza da terra, ou de Álvaro Mutis na sua saga de Maqroll o Gaviero: a fascinante viagem do nada. Percepção ampla do mundo e atenção minuciosa ao detalhe humano. Em seu livro Réqueim (2008) dirá: fui um homem entre os homens, um olhar entre olhares, E agora estou sozinho .............. Um oceano mudo me rodeia e é branco como uma mortalha. E a chuva cai e lava as latrinas da morte. Sua poesia é essa chuva.

*Escritor, poeta e jornalista colombiano.


: ::: documenta ::


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Fotos do acervo do Museu da Imagem e do Som

A cidade lembrada Um poeta geográfico que traz para seus versos e prosa a marca do espaço físico. O ensaio acadêmico da seção Documenta desta edição, assinado pelo poeta e professor de Literatura da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Fernando Fiúza, se aprofunda nessa característica da obra de Lêdo Ivo, no recorrente retorno às origens, na aparente busca pelo “paraíso perdido da infância”. O texto analisa esse privilégio, essa forte presença do espaço

físico em seus livros, desde a obra de estreia, As imaginações. “Um escopo geográfico que vai da rua ao continente”, enfatiza Fiúza, que se debruça sobre poemas que evocam a sua terra natal, a cidade de Maceió, e toda a simbologia que esse universo carrega nos poemas de Lêdo Ivo – o forte cheiro de maresia, o farol [uma imagem recorrente em seus livros], os armazéns de açúcar, a zona portuária, seus habitantes e animais peçonhentos.


: ::: documenta ::

MACEIÓ - A CIDADE LEMBRADA Fernando Fiúza Moreira*

Maceió aparece desde o primeiro livro de Lêdo Ivo (1924), As imaginações (1940-1943) (Poesia Completa, p. 45 a 64), pelo viés metonímico. Já no poema de abertura, “Esmeralda” (p. 47), encontram-se duas palavras recorrentes (“farol” e “mar”) em toda sua obra – tanto em prosa quanto em verso -, mas, sobretudo, na parte que tem sua cidade natal como referente. O quinto poema desta primeira recolha leva como título “Praia do Sobral” (situada no litoral sul de Maceió):

era/ como o colchão onde se amava.”; 2) o sonho, no início da quarta estrofe: “Sonhos caminhando”, além do campo semântico do onírico em “A noite vinha do sexo de Doralice” e do fecho do poema: “e eu fiquei menino, na praia, sonhando.”; 3) o sexo, que perpassa todo o poema. Sua alta voltagem erótica inscreve-se desde o primeiro verso (“Esperava que ela afastasse de mim os seios puros”) ao começo da última estrofe; 4) e, por fim, a memória, evidente desde o tempo (o passado) escolhido para os verbos empregados (na sua “(...) grande maioria no prePraia debruçada sobre seu corpo, térito imperfeito do indio amor era a gratidão marítima cativo, só o dístico final e as ondas obedeciam ao fremir de suas coxas. vem no perfeito) até verDoralice era a utilidade que sob o sol sos claramente memoou sob a lua me afastava do céu. rialísticos, como “DoraEra o crepúsculo invasor de alguma manhã lice era como a lagoa da terra em que nasci”, “onSonhos caminhando, tardes náufragas, noites grandes, de o sol da minha infânDoralice era como a lagoa da terra em que nasci: cia se nutria” e, o último, me perturbava e me acendia. “e eu fiquei, menino, na Era a areia quente praia, sonhando.” onde o sol de minha infância se nutria. Em “A infância redimida” (p. 199-200), de CânA noite vinha do sexo de Doralice tico (1947-1949) (PC, pp. para o litoral que era 189 a 256), Maceió está como um colchão onde se amava. sob o epíteto de “minha Depois Doralice vomitou a infância cidade”. O poema trata e eu fiquei, menino, na praia, sonhando.” (p. 50-51) da descoberta da poesia Nestas três últimas estrofes do poema e da consequente alegria, inoculado de refle(num total de cinco) já se encontram pre- xão metapoética: “Tenho um ritmo longo desentes quatro das linhas mestras de toda sua mais para louvar-te, Poesia./ Maior, porém, poética: 1) o mar (e todo um léxico dele deri- era a beira da praia de minha cidade/ onde, vado) em “Praia debruçada sobre seu corpo/ menino, inventei navios antes de tê-los viso amor era a gratidão marítima” e ainda nos to.” O fecho é uma constatação da precedênsintagmas “tardes náufragas” e “areia quen- cia das palavras com relação às coisas: “Não te”, além da retomada do campo semântico és senão um sonho de infância, um mar visto marinho no símile que se encontra nos três em palavras.” primeiros versos da última estrofe: “A noite vinha do sexo de Doralice/ para o litoral que

* É poeta e professor de Literatura na Ufal.

A segunda parte de Linguagem (19501951) (PC, pp. 257 a 334) intitula-se “A terra natal” e seus 20 poemas são permeados pela presença física de Maceió. “Soneto da Ponta da Terra” (p. 294) traz no título um bairro praiano da cidade e a marca da memória que caracterizará os “poemas maceioenses” de Lêdo Ivo. Os dois últimos versos de “Barra do rio” (p. 301) sustentam a nota memorialística enxertada do campo lexical atrelado à cidade: “Dos mangues e das locas de goiamuns, vem a sombra/ de minha infância dormindo na podre corografia.” Esta parte do livro encerra-se com “Ponta Verde” (p. 305), outro bairro praiano, que à época do livro era um vasto coqueiral, cujo único traço humano era uma capela (já demolida), e hoje é um dos bairros da elite alagoana. Aqui, mais uma vez a memória: “Palma de sal e seiva, minha infância/ te viu, coqueiro, sombra simulada.” E assim se finda: “Parti-me deste sol, vim desta sombra,/ e a vida bebe os ares, como as palmas.” Nos livros seguintes, Maceió e seus bairros não serão títulos nem temas de poemas, mesmo que o campo semântico a ela ligado apareça em Magias (1955-1960) (PC, pp. 381 a 418), em poemas como “Iara” (p. 406) e “Lacraia” (p. 414). Mas a cidade emergirá com toda força, sobretudo na primeira parte – “Lugar de nascimento” -, em Finisterra (1965-1972) (PC, p.523 a 588), que é, como constata Ivan Junqueira, “(...) o livro que marca o regresso definitivo do autor às suas origens e, talvez, o mais comovido que nos deixou até agora. E esse retorno ao paraíso perdido da infância estará presente, em maior ou menor grau, em todas as coletâneas poéticas que ainda iria publicar.” (PC, p. 36).


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“Lugar de nascimento” contém 28 poemas, mas nem todos trazem Maceió como referente – em 7 são invocados outros municípios alagoanos. Os 21 poemas podem ser divididos entre aqueles que trazem desde o título a cidade de Maceió inscrita metonimicamente, como, por exemplo, em nomes de bairros (“Jaraguá” e “Pajuçara”), de construções (“Homenagem a um semáforo” e “Os anjos da igreja do Rosário”) ou, simplesmente, aquele intitulado “Planta de Maceió”; e ainda aqueles em que, pela escolha do léxico, a cidade se faz presente de maneira implícita. Desde o poema de abertura, “Minha terra” (p. 527) – espécie de mapa lexical, semântico e imagístico desta parte do livro -, torna-se clara a abordagem memorialística. A quarta estrofe – o poema contém 23, cada uma formando uma unidade semântica independente e todas compostas de três versos polimétricos – contém o tempo do verbo que marca a memória: “Entre casas de maribondos/ e caranguejeiras imóveis/ a tarde me iluminava.” A estrofe seguinte recorre igualmente ao mesmo tempo verbal: “Eu soletrava a ferrugem/ de navios sem nome que a lama/ das lagoas mastigava.” Uma pequena mostra aqui recolhida traz o campo lexical recorrente nesta fase da obra do poeta, e não só da obra em verso, mas em sua prosa de ficção (Cf. Ninho de cobras, por exemplo): “caranguejeiras”, “ferrugem”, “navios sem nome”, “lama”, “lagoas”. Mas, retomando as marcas textuais da memória, ainda neste poema vejam-se as estrofes 14 e 15, com a anáfora a não deixar dúvidas: “Foi na infância que aprendi a ver-te,/ ó sol que me ilumina. E um arco-íris/ abriu-se entre as arraias no céu pálido.// Foi na infância que aprendi a amar-te,/ fêmea, que meu espanto confundia/ com as caranguejeiras.” Do ponto de vista geográfico, Maceió só se insinua nas estrofe 18, 19, 20 e 21 pela via de notificações localizantes (postas em negrito por mim):

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“De cima das dunas eu via o mundo: escória azul ao longe, mar curvo de navios. Como o universo era belíssimo! A nuvem que roçava os trapiches fulgia no celeiro das águas. No fim dos trilhos da Great Western entre balduínas sedentas e dormentes cravados na água o branco farol de minha terra clareava jaqueiras acocoradas sempre grávidas como lavadeiras.” O poema encerra-se com uma constatação que serve de comentário à poética do autor: a fértil promiscuidade entre o onírico e a matéria: “Sempre juntei no mesmo prato/ as espinhas dos meus peixes/ e o sobejo dos meus sonhos.” A nota memorialística continua soando em “Quando os navios apodrecem” (p.533) – poema que contém desde o título uma das fixações temáticas do poeta a partir desta fase: a decomposição das coisas. Não custa ressaltar duas visões diametralmente opostas a respeito do papel do mar em dois poetas amigos e da mesma geração: enquanto em João Cabral de Melo Neto o mar é um agente sanativo1, em Lêdo Ivo o mar é um agente de putrefação: “Naquela manhã de domingo/ vi os navios do Império bebidos pelas águas quase negras/ e lancei um grito que assustou meu pai.” Nesses três versos, temos a marca da memória e a presença alusiva da lagoa que cerca uma parte da cidade de Maceió conotada “pelas águas quase negras.” Este poema ainda possui um diálogo intertextual com a Odisséia, especificamente com o episódio das sereias: “Porque lembrara: do tombadilho de um daqueles navios/ que cruzaram as ilhas douradas do dia, eu vira/ as sereias cantando na praia.” 1  Cf., por exemplo, “Cemitério alagoano”, de Quaderna, para continuarmos na mesma geografia.

O farol da infância de Lêdo Ivo tornou-se um símbolo em sua poesia


Praia da Avenida retratada com o farol ao fundo

O poema seguinte, “Os morcegos” (p. 533), também não traz, como o anterior, nenhuma notificação localizante precisa de Maceió, mas através do léxico sabe-se que o espaço que sedia o poema é esta cidade: “alfândega”, “a casa de nosso pai, “luz do farol”. A memória aqui é explicitada no verso que abre a segunda estrofe: “A casa de nosso pai era cheia de morcegos”. Na última estrofe, a casa paterna é retomada: “Ao morrer, nosso pai deixou (a mim e a meus oito irmãos)/ a sua casa onde à noite chovia pelas telhas quebradas.” “Homenagem a um semáforo” (p. 534), breve poema de apenas três longos versos, também não traz um nome próprio que esteja ligado diretamente a Maceió, é pelo léxico e pelos objetos que a cidade se faz presente: “Aquele semáforo junto ao mar, na minha infância./ Sempre amei as coisas que indicam ou significam algo/ - tudo o que, em silêncio, é linguagem.” É notável aqui a reflexão ao mesmo tempo analógica e metapoética: o eu lírico compara a poesia ao semáforo: ambos em silêncio é linguagem – o semáforo por ser apenas luz, a poesia, por ter-se, modernamente, calado, virado antes coisa de ver que de ouvir.

A zona portuária de Maceió é um cenário muito evocado pelo poeta

No poema em prosa “O cata-vento” (p. 534), todos os verbos vêm no passado e quase todos no imperfeito do indicativo, marca evidente da memória que perdura – além do aposto que inicia o segundo e último parágrafo – “Menino, eu caminhava (...).” Maceió aqui é apresentada tanto pelo epíteto “minha cidade natal”, quanto pela geografia que lhe é característica: “entre a duna e o mar”. O poema seguinte, “O guarda-livros” (p. 535), traz a marca biográfica e confessional, pois o pai do poeta é nomeado no verso “ó velho Floriano Ivo”. Aqui, eu lírico e eu empírico se fundem - a leitura de Confissões do poeta confirma a fusão. “Cama e mesa” (p. 537) traz um local (que não mais existe) de Maceió já no primeiro verso: “No Banheiro do Cego/ amamos sobre tábuas duras.” Em seguida encontra-se uma palavra que traz a cor local em toda sua cintilância popular: “peniqueira” em: “Ó sol de querosene/ nos peitos molengos/ de uma peniqueira!” A remarcar ainda o sintagma “pei-

tos molengos”, típico do baixo calão maceioense, como também, mais adiante, “lengalenga” e “desengonçados”. A memória também aqui é explicitada nos versos seguintes: “Que sabão lavará/ a minha infância suja/ que nessa comilança/ já hoje se lambuza?” “Jaraguá” (p. 539) traz desde o título Maceió, pois este é o bairro onde se encontra o porto que, por sua vez, deu origem à cidade. Ainda nesta calha da origem, só que agora verbal, no terceiro verso encontra-se “maçaiós”, de onde deriva o nome da cidade e que o Aurélio define como “lagoeiro, no litoral, formado pelas águas do mar nas grandes marés, e também pelas águas da chuva”. A terceira e última estrofe do poema é exemplar, quando não por concentrar as linhas mestras da poesia desta primeira parte (“Lugar de nascimento”) de Finisterra:


“(...) Só quem nasceu junto às vagas, entre barricas, balanças e espinhas de carapeba, conhecerá, raiada a aurora, esse dia carcomido pelo sal quando nos balcões dos armazéns de secos e molhados os gatos estremecem pressentindo trombas-d’água e naufrágios e as varandas dos velhos sobrados são esculturas do tédio. Ainda agora sob minha cama dormem caranguejos. E no meu sono de estiva os navios se espalham sobre as ondas oxidadas como uma ninhada de ratos.” Aqui se pode observar todo um léxico atado ao porto e ao mar, o agente corrosivo que é este último, assim como a permanência da infância na idade adulta: “Ainda agora sob minha cama dormem caranguejos.” A cidade se torna presente através da memória e do sonho, que para um poeta da linhagem de Lêdo Ivo são tão ou mais palpáveis do que a realidade. O porto de Jaraguá, ainda que não nomeado, será invocado através do campo semântico em “Nascimento do dia” (p. 541). Mas aqui os verbos no pretérito perfeito do indicativo circunscrevem a lembrança, não há uma ponte com o presente, como no caso de “Jaraguá”.

Em “Planta de Maceió” (p. 546) o poeta tomará a cidade como um corpo, e um corpo presente, vivo. A notar, antes de tudo, a ambiguidade do título, pois “planta” aqui pode ser lida à primeira vista como plano cartográfico, mas, depois da leitura do poema, também como sua primeira acepção: a de vegetal, do que tem raízes, do que vinga em determinado torrão. Os verbos são majoritariamente no presente e o poeta se posiciona, situa-se, toma o partido inevitável de onde nasceu, mesmo que a determinação de tal lugar caiba ao destino e não à vontade do indivíduo. Neste poema, a memória cede espaço ao presente desde o início: “O vento do mar rói as casas e os homens./ Do nascimento à morte, os que moram aqui/ andam sempre cobertos por leve mortalha/ de mormaço e salsugem. (...)” Aqueles que não partiram, ao contrário do poeta, são vítimas dos “dentes do mar” e de “um sol de areia”. O locutor se posiciona claramente no espaço: “Foi aqui que nasci, onde a luz do farol/ cega a noite dos homens e desbota as corujas.” A putrefação causada pelo clima quente e úmido e pela proximida-

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de do mar é mais uma vez posta em cena: “A ventania lambe as dragas podres,/ entra pelas persianas das casas sufocadas/ e escalavra as dunas mortuárias/ onde os beiços dos mortos bebem o mar.” O olhar severo e antitético sobre a paixão dos homens que aí habitam vem em seguida: “Mesmo os que se amam nesta terra de ódios/ são sempre separados pela brisa/ que semeia a insônia nas lacraias/ e adultera a fretagem dos navios.” O local de nascimento é reiterado nos cinco versos finais: “Este é o meu lugar, entranhado em meu sangue/ como a lama no fundo da noite lacustre./ E por mais que me afaste, estarei sempre aqui/ e serei este vento e a luz do farol,/ e minha morte vive na cioba encurralada.” A salientar ainda as operações metafóricas: nos dois primeiros versos pelo uso do “como” (o símile), e no quarto verso pelo emprego do verbo “ser” (a metáfora em si). No terceiro verso (“por mais que me afaste, estarei sempre aqui”) e no verso final (“e minha morte vive [...]”), encontra-se o oxímoro. Em todos estes três tropos observa-se a fusão entre o eu enunciador e o espaço enunciado. O poeta ainda trará Maceió como espaço, nesta primeira parte de Finisterra, em dois poemas: “Os anjos da igreja do Rosário” (p. 548) e “Pajuçara” (p. 549), em que a notificação localizante vem no título. No primeiro, os anjos (pelo viés estético) e Deus (pelo viés moral) são vistos de maneira depreciativa e uma dúvida acicata o leitor: a culpa é do escultor dos anjos que os fez feios? De um tosco artesão da província? Ou será o olhar ateu do poeta que os deforma? No segundo, uma tensão emana dos quatro dísticos entre a concretude do localizável – Pajuçara, bairro e praia da cidade – e o enigma de corte oracular, e nada de estável se consegue – “Pajuçara” seria então um nome de navio? A ambiguidade, uma das marcas da função poética, segundo Jakobson, rege de maneira ostensiva todos os poemas sobre Maceió que se encontram em Finisterra e esta am(fi)biguidade é explicitada num terceto do poema de abertura (“Minha terra”): “Vindo das ilhas inacabadas/ nunca aprendi a separar/ o que é da terra e o que é da água.”

::: documenta :: :

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: ::: documenta ::

Maceió reaparecerá como referente em Mar Oceano (1983-1987) (PC, pp. 743 a 790), desde a primeira frase do segundo poema, “A morte de Elpenor” (p. 743): “Os bordéis de Maceió iluminam a minha adolescência.” Aqui são postos em cena, como já o tinham sido em alguns poemas de Finisterra, a memória, o mar, o clima mormacento, o bairro de Jaraguá, as prostitutas e a Odisséia de Homero (não mais as sereias, mas o palácio de Circe). “Ponta da Terra” (p. 766), bairro de Maceió, é o título de um haicai heterodoxo (com apenas 11 sílabas poéticas, quando o canônico traz 17): “O mar crepita/ pepita azul/ entre pedras.” A remarcar a aliteração em /p/, bilabial que mimetiza a pancada do mar na pedra. “O nome dos navios” (p. 777) é outro poema (em prosa) de fundo memorialístico e alusivo à cidade natal, mesmo que não haja nome próprio que o atrele diretamente a ela, mas em que os acidentes geográficos são suficientes para tanto: “Domingo à tarde, ele nos levava para o passeio interminável, conduzindonos, através de ruas monótonas, até o começo da praia. Víamos as dunas. Elas caminhavam junto ao Mar Oceano como uma branca romaria de mulheres. Depois contemplávamos os navios. Nas proas negras havia sempre um nome que a distância dissolvia. (...)”

Em Curral de peixe (1991-1995) (PC, pp. 867 a 943), antepenúltima recolha do poeta, Maceió volta como espaço de maneira bem mais saliente do que em Mar Oceano e desde o primeiro verso do primeiro poema, “As ferragens” (p. 873),: “Em Maceió, nas lojas de ferragens, a noite chega ainda com o sol claro nas ruas ardentes. Mais uma vez o silêncio virá incomodar os alagoanos. O escorpião reclamará refúgio no mundo desolado. E o amor se abrirá como se abrem as conchas nos terraços do mar, entre sargaços. Nas prateleiras, os utensílios estremecem quando as portas se cerram com estridor. Chaves de fenda, porcas, parafusos, o que fecha e o que abre se reúnem como uma promessa de constelação. E só então é noite nas ruas de Maceió.” Se aqui a cidade é vista pelo prisma a princípio mercantil, o léxico recorrente, de quando se trata dos “poemas maceioenses”, se faz notar: “escorpião”, “conchas”, “terraços do mar”, “sargaços”. Note-se ainda que não há um cunho de memória no poema, os verbos estão no presente e no futuro, ao contrário de em “O Peixe” (p. 887), onde os verbos encontram-se no passado, desde o primeiro terceto: “O peixe estava fora d’água./ Era um peixe vivo/ na praia da Pajuçara.” “Hospital do câncer (Maceió)” (p. 888) não traz, além do nome da cidade entre parênteses no título, nada que se refira espacial ou especificamente a Maceió – é de se supor que a ideia do poema tenha vindo neste local ou que ali morreu uma pessoa querida, pois qualquer cidade cairia justo entre os dois parênteses, afinal, o tema do poema é universal: o câncer, aqui tratado por “caranguejo” – teria sido então tal palavra, pertencente ao campo semântico de Maceió, pois prato aqui apreciado, a responsável pelo nome da cidade no título? “Anoitecer em Maceió” (p. 889) é juncado do léxico característico dos poemas sobre a cidade natal do poeta: “semáforo”, “mar”, “naufrágio”, “navios”, como o são “Porto de Jaraguá” (p. 889) e “Promotório” (p. 890). No último verso deste, observa-se mais uma vez


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Sequência de fotos da Lagoa Mundaú

a declaração de pertencimento do eu lírico à cidade: “longe de vós serei um exilado.” O pai voltará em “Reaparição do meu pai” (p. 894), obviamente todo em clave oníricomemorialística (um sonho transcrito) e onde mais uma vez a cidade se anuncia: “Meu pai ia e vinha no centro de Maceió.” Este poema, assim como “As ferragens”, difere, sob o ângulo do espaço invocado, dos outros, majoritariamente atrelados ao mar, pois é o centro da cidade, o que lhe há de mais urbano, que emerge dos versos: “De vez em quando meu pai parava num lugar:/ Na junta comercial, numa loja de ferragens, à porta de uma sapataria./ Com seu olhar de míope contemplava o rosto de Carole Lombard no cartaz

do cinema Floriano./ Entrava no bar Colombo para mijar.(...)” . “Perto de Maceió” (p. 914) é um soneto em que a atmosfera onírica se anuncia desde o primeiro decassílabo: “Como um farol aceso em pleno dia” – aqui também todo léxico recorrente estará presente, sobretudo o de campo semântico marinho. “Trapiche da barra” (p. 921), outro soneto em decassílabos e outro bairro a intitular um poema, traz também o mar como irradiador lexical para tratar, em tom camoniano, do tempo que passa: “Tudo é vário e inconstante e tudo muda/ como a vaga infiltrada nos mourões/ (...)”. “Ponta Verde” (p. 924), outro bairro e outro soneto, é construído sobre antíteses, do começo (“A minha noite é dia”) ao

fim (“Livre e cativo. Toda/ liberdade é cárcere.”), e traz, no terceiro verso do segundo quarteto, o sintagma, no plural, que dá título ao livro: Curral de peixe”, construção que marca a paisagem litorânea de Maceió com grande impacto interrogativo: até o mar aqui é privado,até o peixe tem dono? “O Barulho do mar” (p. 953), que se encontra em O rumor da noite (1996-2000) (PC, pp. 945 a 1020), a cidade aparece já no primeiro verso: “Na tarde de domingo, volto ao cemitério velho de Maceió/ onde os meus mortos jamais terminam de morrer/ (...)” E mais adiante: “Digo aos meus mortos: Levantaivos, voltai a este dia inacabado/ que precisa de vós, de vossa tosse persistente e de vos-


: ::: documenta :: Trilho do bondinho no Farol, bairro onde Lêdo Ivo morou com a família

sos gestos enfadados/ e de vossos passos nas ruas tortas de Maceió. Retornai aos sonhos insípidos/ e às janelas abertas sobre o mormaço./ (...)” Aqui o eu lírico volta à cidade natal não só para rever seus mortos, mas, com a força do verbo, tentar ressuscitá-los. Mas é apenas um lapso de grandeza, pois logo em seguida conforma-se e consola-se com o mundo mineral e marinho: “(...)/ o silêncio dos mortos me diz que eles não voltarão./ Não adianta chamá-los. No lugar em que estão, não há retorno./ Apenas nomes em lápides. Apenas nomes. E o barulho do mar.”

Plenilúnio (2001-2004) (PC, pp. 1021 a 1064), último livro que consta da Poesia Completa, traz “O mormaço” (p. 1033), onde não se encontra nenhum nome próprio pertencente a Maceió, mas pelo léxico e geografia deduz-se facilmente que o espaço invocado no poema dividido em tercetos é esta cidade: “mormaço”, “sargaço”, “dunas”, “mar”, “destroços dos navios”, “açúcares”, “trapiche” etc., além das seguintes estrofes não deixarem dúvida: (7ª) “Não posso perder minha pátria/ de vento e areia./ Minha pátria de caranguejos.”; (8ª) “Aqui é meu reino./ Ape-

nas o vento do mar/ no abraço seminal.” e (11ª) “Nada me dispersa./ Como o fogo e a água/ sou o meu lugar de nascimento.” Em “Minha pátria” (p. 1027) o intertexto com Fernando Pessoa (“Minha pátria é a língua portuguesa”) serve para reiterar o pertencimento à cidade e a tudo que a caracteriza. O poema sintetiza léxico e imagens utilizados pelo poeta desde seu primeiro livro, toda vez que escolhe Maceió como espaço: “Minha pátria não é a língua portuguesa./ Nenhuma língua é a pátria./ Minha pátria é a terra mole e peganhenta onde nasci/ e o vento que sopra em


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Estação da Great Western

Café Colonial

Igreja do Rosário

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Maceió.” O poema encerra-se reiterando a negação (pátria não é a língua), numa atitude típica dos românticos, para quem a palavra estava aquém das emoções e das coisas: “Nenhuma língua enganosa é a pátria./ Ela serve apenas para que eu celebre a minha grande e pobre pátria miúda,/ minha pátria disentérica e desdentada, sem gramática e sem dicionário,/ minha pátria sem língua e sem palavras.” Lêdo Ivo é um poeta caudaloso, escreveu em todos os gêneros, escreveu em prosa e em verso, e em toda sua obra o espaço físico é privilegiado – é um poeta para quem “a geografia existe”, como dizia de si Théophile Gautier. São incontáveis os nomes de lugares em sua obra. Seu escopo geográfico vai da rua ao continente. Escreveu sobre muitas cidades, tanto de seu Estado e do seu país, quanto de outros países. O papel de outras cidades (Rio de Janeiro, Paris, Roma, por exemplo) presentes em seus poemas poderia também ser estudado. Os poemas aqui catalogados e resumidamente analisados são aqueles em que Maceió se faz presente não só de maneira explícita, através de nome da cidade ou nomes próprios a ela pertencentes, mas da geografia e do léxico característicos. É a cidade portuária tropical, entreposto marítimo que muitas vezes parece sacada de uma página de Joseph Conrad, uma cidade rudimentar, cujos sinais de urbanidade quase que se limitam aos armazéns de secos e molhados e às lojas de ferragens, cidade quente, úmida, mormacenta, infestada de animais peçonhentos (lacraias, cobras, morcegos, lesmas, formigas) e de que os homens querem evadir-se pelo mar oceano, o caminho que lhes resta, a bordo dos navios sem nome, mas ainda assim fincada tão fundo na alma do poeta, que a ela sempre volta, seja em sonho, seja em corpo, nem que seja para constatar que seus mortos jamais ressuscitarão. A Maceió invocada por Lêdo Ivo fisicamente não existe mais – se é que um dia existiu -, mudou vertiginosamente como a Paris de Baudelaire: “Le vieux Paris n’est plus (la forme d’une ville/ Change plus vite, hélas! que le coeur d’un mortel)”.


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Os sinos de Maceió Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Não escuto os sinos que sempre escutei quando era menino.

Sinos do Rosário e do Livramento e da Catedral

O arrependimento sumia no vento. Pecado nefando

Não escuto os sinos que anunciam a morte na cidade morta.

sinos da alegria da fé e tormento perdidos no vento

e coito danado pousavam de novo nos quartos fechados.

Sinos do pés juntos e das mãos cruzadas dos frios defuntos.

sinos dos Martírios que se irradiavam pelo firmamento.

Pecador relapso o homem tornava tornava a pecar.

Carrilhões que trazem o fedor da morte e as ressurreições.

E Deus era amor. Os homens pecavam e Deus perdoava.

E Deus perdoava os corpos e as almas. Perdoava em vão

Não escuto os sinos que anunciam a vida pelas ruas tortas.

No confessionário ou no Seu sacrário Deus era perdão.

o bicho insensato que jamais merece o menor perdão.

Minha vida é pobre como a dos mendigos. Não escuto os sinos

Livrava do inferno o ladrão de terras e o estelionatário.

e nem mesmo os hinos que estavam comigo quando era menino.

Também perdoava as belas adúlteras e o frio assassino.

De manhã à noite os sinos tocavam nas velhas igrejas.

Ao toque dos sinos todos recebiam o perdão divino. O estado de graça bem pouco durava ao sol e ao mormaço.


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: ::: Poesia ::

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Ode à sucata Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Guarda a neve que cai em Nova Iorque e o resíduo da vida que se oculta no ramo ressequido da nogueira, e o frio que ilumina a ventania, e as pálpebras do cego em Central Park. Entesoura o que o outono desperdiça, seja granizo ou murcha crisandália. Fique contigo o que, não sendo dólar, lucro, custo ou despesa, ninguém guarda: a ferrugem no fundo do urinol e o fedor popular nos subterrâneos quando os homens e os ratos se defrontam na suja entranha da ilha de Manhattan. Insone, poupa o sonho não sonhado, a cinza da limalha, a maçã cega que resvalou entre o navio e a doca. Em meio ao desperdício e à abundância, retém somente o que, de usado ou gasto, se torna imune à ofensa da intempérie e, moeda sem efígie, é oferenda no altar das potestades do desgaste. Na Madison Avenue ou contemplando, nas fachadas dementes dos cortiços, o madeirame podre dos terraços, reserva para ti o que ninguém reclama nos perdidos & achados: chapéus velhos, estúpidas bonecas, chaves tortas, baralhos incompletos, as muletas e os óculos quebrados. Pede o excesso, o sobejo, o rebotalho queimados pelo gelo sem piedade na hora em que o fungo se converte em lágrima. Reivindica a sucata, a sobra exata da mercenária forma do utensílio que o vento mercantil corrói no vale.


: ::: reportagem :: LĂŞdo Ivo ainda menino, ĂŠpoca em que descobriu a leitura

Acervo pessoal


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O menino reencontrado da infância em maceió aos primeiros tempos no rio de janeiro, a vida do poeta é marcada pela coragem e ousadia

Quando Floriano Ivo morreu, dona Eurídice passou a Filho de Floriano Ivo e Eurídice Plácido de Araújo Ivo, Lêdo viver com os filhos. Morou Ivo nasceu no dia 18 de fevereiro de 1924, em Maceió. Foi em Recife, São Paulo, Rio de o terceiro dos treze filhos que o casal teve. Janeiro e acabou retornando a Pernambuco, onde viveu com Inaiá, sua filha, até A família teve sua primeira morada no o dia de sua morte. bairro do Farol, na rua que hoje recebe o noDurante a juventude, Lêdo Ivo e os irmãos me do pai do poeta, num sítio muito grande, frequentavam a Praça Deodoro. José Aldo Ivo como recorda José Aldo Ivo, um dos doze ir- recorda da época em que estudava no Grupo mãos do escritor – único que ainda vive em Escolar Dom Pedro II, onde quase todas as Alagoas. “Dizem que minha mãe chamava o pessoas que moravam no Centro estudavam. pessoal da rua para apanhar frutas que caí- “Dom Pedro II era um grupo escolar exemam no chão, já que a quantidade que ali era plar”, lembra. produzida era muito grande para o consumo O irmão poeta, em seu livro, conta sobre o de nossa família”, lembra. tempo em que começou a frequentar a escola. Ele recorda do tempo em que o pai tomava “Eu deveria ter cinco anos quando fui levado o bonde para ir trabalhar, na Praça do Cen- pela primeira vez a uma escola. Era um colétenário, antes que a família mudasse para o gio protestante, onde já estudavam os meus Centro, na Rua do Massena, onde vivia numa dois irmãos mais velhos. Meu pai era maçom casa – lugar relembrado por Lêdo Ivo em seu e minha mãe católica – e a escolha desse colélivro Confissões de um poeta. “Não estamos gio se devera decerto a conveniência de local, mais no sítio. Já havia soado para nós a hora pois não era longe da casa em que morávade dizer adeus às mangueiras e lagartixas e mos no Farol. Bastava atraao brincar de manja. Moramos agora numa vessar aquele caminho, oncasa alugada na Rua do Massena, no Centro de havia bois e vacas, orlas da cidade. Ainda hoje costumo sonhar com de mato rastiço, e uma touça ela. Era uma casa de uma porta e duas jane- de capim escondia a injuriolas. Estas se abriam para a sala de visitas, sa surpresa... Desse tempo onde, alguns anos após a nossa mudança, a de escola guardo apenas a grande atração seria o piano Essenfelder que lembrança dos sapatos demeu pai comprou para minha irmã, Maria”. sacatados pelo acaso do caAtualmente, a casa que Lêdo Ivo retrata minho e de uma alta manhã com tanta grandeza de detalhes, dá lugar à em que, numa sala de aulas, Caixa Econômica Federal. A última casa on- eu olhava para o recreio vade viveu a família de Lêdo Ivo situava-se na zio. E recordo-me ainda de Rua Boa Vista, numa casa que fazia esquina que o seu diretor se chamacom o Beco São José. va Mister Bee”. Vanessa Mota

Relembrando algumas histórias da infância, Aldo Ivo conta um caso curioso. “Uma vez, Rubem, mais novo do que eu um ano, foi colocado de castigo no sótão de nossa casa da Rua do Massena. Quando acabou o castigo, mamãe foi procurar por ele e não conseguia encontrar. Ele havia saído pelo telhado e já estava na outra rua, Moreira e Lima, e já voltou pela calçada, vestido com a roupa de um dos filhos do vizinho de trás”, lembra, achando graça da peraltice do caçula e o desespero da mâe. Essas lembranças de família são muito nítidas e recorrentes em toda a obra de Lêdo Ivo. Parentes, brincadeiras e paisagens são tema de incontáveis poemas e artigos do escritor, que retorna sempre aos lugares que lhe marcaram, como o grande sítio em que morava às margens do Rio Salgadinho. O local era cenário para caças de goiamuns fugidos de mangues próximos dali e para paródias de filmes de faroeste. “Procurávamos transplantar as imagens às vezes trêmulas e que se revezavam Tom Mix, Wallace Berry

Desse tempo de escola guardo apenas a lembrança dos sapatos desacatados pelo acaso do caminho Lêdo Ivo poeta


: ::: reportagem ::

(pronunciávamos Valace Berri) e o cachorro Rin-Tin-Tin”, escreve em seu livro Confissões de um Poeta. Personagens como o tio carteiro são trazidos de volta em seus textos com tanta riqueza que não se sabe ao certo o quanto de verdade e de ficção existe nessas histórias: “Minha avó e minha mãe o cercavam, para a conversa prolongada, fendida pelo suceder dos risos. A vida de Maceió era passada em revista, o que equivalia dizer que assistíamos a um esplêndido desfile de ladrões, assassinos, adúlteras e cabrões. Nem mesmo os padres eram poupados, o que muito me espantava, pois costumava aliar o sacerdócio ao recato e à castidade”.

Em sua obra, o poeta lembra das viagens que fazia com a família, a bordo dos sacolejantes fords-de-bigode alugados. Ele fala especialmente de uma visita até Marechal

Deodoro. “Naquela viagem de barca, vi os apanhadores de sururu mergulhados até a cintura na lama negra e nutris, arrancando os molhos também negros e peganhentos. Debrucei-me para olhar os pescadores nas canoas cheias de tainhas, carapebas, camorins, gordos bagres de Pilas, aratus que traziam para o sol o negror de suas tocas. Meu pai me apontou a Ilha de Santa Rita. Era a primeira ilha que eu contemplava em minha vida. Mais do que a breve palavra insulada em sua própria magia, ela emergia ao meu encontro como uma paisagem completa, com os coqueirais domados pelo vento e as mangueiras e Lêdo Ivo jaqueiras gordas como goiamuns Poeta monstruosos”, relata.

Meu pai me apontou a Ilha de Santa Rita. Era a primeira ilha que contemplava na minha vida

Vanessa Mota

Aldo Ivo, o irmão de Lêdo Ivo retratado em sua casa, em Maceió


Acervo pessoal

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A mãe, Eurídice Ivo

Lêdo Ivo, ainda menino, e os amigos da época em que passou pelo Recife

O pai, Floriano Ivo

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Estas viagens eram uma recompensa pelo bom comportamento do poeta, que era um menino estudioso e apreciador da leitura, mas que, ainda assim, não escapava dos castigos impostos pelo pai. Ainda menino, quando acompanhava os serões de trabalho do Sr. Floriano Ivo, ele se deleitava em leituras, devorando todo e qualquer tipo de literatura que lhe aparecesse à frente. “Eu descobria, enfim, que a realidade, não vive apenas de e em si mesma; não é um monumento que se possa contemplar no meio de uma praça, mas um labirinto onde nos perdemos; e uma secreta energia a leva a gerar outros universos, que a relatam ou interpretam, mesmo sob as tintas da fantasia e de inverossimilhança”. Ainda muito novo, com 16 anos, Lêdo Ivo deixou esse cenário idílico de Maceió e foi morar em Pernambuco, na época, celeiro intelectual do Nordeste e terra natal de seu pai, para fazer faculdade, onde passou a colaborar na imprensa local e a conviver com um grupo literário de que fazia parte Willy Lewin, que haveria de exercer grande influência em sua formação cultural. Em 1941, participou do I Congresso de Poesia do Recife. Em 1943, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde se matriculou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil e passou a colaborar em suplementos literários e a trabalhar na imprensa carioca, como jornalista profissional. Foi em solo carioca que ele conheceu e casou-se com Maria Lêda Sarmento de Medeiros Ivo (1923-2004), com quem teve três filhos: Patrícia, Maria da Graça e Gonçalo. Apesar de ter ficado todos esses anos afastado de sua terra natal, Lêdo Ivo atribui sua inspiração a Maceió e a tudo que viveu durante a infância e início de adolescência. “O sentimento universal está ligado em mim às fontes nativas – ao antigo farol branco que, do alto da colina, iluminava o caminho dos navios; à cioba na praia; ao pequeno estaleiro apodrecido; aos trapiches; ao cheiro do mar e açúcar entranhado nas pedras das ruas tortuosas de Maceió”, decreta a indissociabilidade de suas raízes e de sua criação literária em um de seus livros.


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Tânia de Maya Pedrosa* Já li várias vezes o Ninho de cobras, de Lêdo Ivo. Sou leitora de suas obras, divididas em prosa e poesia, mas este, talvez, seja o livro dele que mais me atrai. E, como somos amigos, muitas vezes, em nossos encontros, procuro saber em quem ele se inspirou para criar seus personagens. Além dos personagens que figuram no romance com os seus nomes verdadeiros, há outros, de nomes fictícios, que me intrigaram. Quem foram eles? Pergunto. Lêdo guarda segredo. Não diz a ninguém em que figura se inspirou para criar Hortêncio, o chefe do Sindicato da Morte. Estou certa de que ele sabe quem foi. Seu pai, o advogado Floriano Ivo, deveria saber e deve ter confiado o segredo ao filho.

Ninho de cobras é o nome de Maceió, romance de sua gente, dos rios e praias. A história mal contada se passa em apenas 24 horas. Bastou esse tempo para Lêdo Ivo fazer um retrato irretocável da cidade em que viveu até 1943, quando foi morar no Rio de Janeiro e começou uma carreira literária que é um orgulho para nós, alagoanos. Muita gente daqui acha que é um livro cruel. Eu não. Para mim, é um livro de quem ama Alagoas. Enquanto tantos escritores escondem a sua origem ou não a projetam em seus livros, Lêdo Ivo é um escritor que, embora fale também de outras terras, de suas incontáveis viagens pelo estrangeiro, fala, principalmente, de sua terra natal. É o seu tema obsessivo. A professora Leda Almeida diz no filme de Werner Salles que ele nunca se afastou de Alagoas. E tem razão. Não há nenhum escritor alagoano como Lêdo Ivo. E, graças a ele, Maceió entrou para a literatura nacional e até no estrangeiro, pois o romance já foi traduzido para várias línguas. Na sua memória criadora Lêdo guardou a sua cidade e, graças ao seu estilo e a sua arte literária, Maceió está lá. Ele guardou uma cidade desaparecida.

Ninho de cobras é desenrolado em 1941 ou 1942, quando o Centro da cidade, hoje tão degradado, era a zona nobre e mais movimentada. O Relógio Oficial era o ponto de encontro ou de passagem de todo mundo, dos desembargadores, médicos, advogados, usineiros, senhores de engenho, intelectuais, as figuras anônimas e os mendigos. O Palácio velho, as lojas de ferragens, os cinemas, Jaraguá estão no romance e transformam-se em documentos de uma Maceió que o tempo devorou, pois a cidade mudou muito depois da Segunda Grande Guerra. Naquele tempo, ela terminava em Pajuçara. Ponta da Terra e Jatiúca eram coqueiros e praias inexploradas. Fico muito feliz ao ver Lêdo Ivo reconhecido, ainda em vida, pela sua terra natal, juntamente com o seu grande amigo Aurélio Buarque de Holanda. Isso não aconteceu com Graciliano Ramos, que saiu daqui no porão de um navio, preso sob a acusação de ser comunista,durante a ditadura de Getúlio Vargas. E também não aconteceu com Jorge de Lima, que emigrou para o Rio de Janeiro depois de ter escapado de um atentado. Impossível deixar de comentar momentos vividos ao lado de Lêdo, Marina e outros amigos, seja em Maceió, em Teresópolis ou na França. Certa vez, em Paris, o escritor, saudoso de Maceió, me levou a um restaurante no Boulevard St. Germain para que eu pudesse conhecer o “sururu” vindo da Bélgica – explica-se: a lembrança de Maceió e do sururu acompanha o escritor por onde ele for. O seu nome e seu exemplo vão ficar para sempre na história de Maceió, sua cidade que ele tanto ama. *Tania de Maya Pedrosa, advogada e artista plástica.

::: artigo :: :

Maceió: a cidade de Lêdo Ivo


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: ::: Poesia ::

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Um brasileiro em Paris Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Virei-me para ver a intrusa na própria fonte dos postais e vi a musa horizontal, ela somente, e nada mais. Não quis subir, ó Torre Eiffel, ao teu aéreo pavimento e ver surgir a feminina cidade na proa do vento.

Submissa às nutrizes celestes, a luz, metáfora do dia, desfez-se no ar. Diante de mim suprimira-se a alegoria.

Filha da linha da viagem era aquela tarde em Paris. A muda matilha das águas levava as pinturas do dia.

Do real à metamorfose, caminho de inversa magia, eu chegara e fora, e restava o silêncio, severo guia.

Festa na mesa do horizonte eis a paisagem que eu fitava: pontas de estrela, arcos e flora postos na terra, entre as estátuas.

Forma vazia do vazio, sem povoação de palavras, eu me seguia, como um rio segue o rio, oculto nas águas.

A sombra da tarde cobria a minha aventura domada, fera inativa que buscava a selva na jaula fechada.

Da fonte vazada nos ares manava o presente maduro e o exílio de agora lançava a sombra do exílio futuro.

Era o céu a pura estrutura do nada, perfeito em si mesmo, e a terra a figura de um jogo que me fixava, imóvel, a esmo.

A minha vida era infinita junto às portas de ouro da tarde. Do silêncio, insensato guia, restava eu mesmo, sem alarde.


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: ::: Poesia ::

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A morte de Elpenor Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Os bordéis de Maceió iluminam a minha adolescência. Considero um dos maiores privilégios de minha vida ter sido admitido neles numa idade juvenil. Era à tarde que eu os frequentava, e chegava quase sempre no instante em que as putas, recém-saídas do banho, se debruçavam castamente nas varandas diante do mar e contemplavam os navios. Ao cheiro de jasmim evolado de seus corpos morenos se misturava a maresia embriagadora. Num desses prostíbulos, situados no andar superior de velhos sobrados que também abrigavam armazéns de açúcar e bodegas de fundos escurecidos, ocorreu a morte de um marinheiro, um certo Elpenor. Ao contrário do que diz Homero, Elpenor não caiu do teto do palácio de Circe. Completamente bêbedo, rolou pela escada do bordel de Maceió e quebrou o pescoço. Sua alma baixou ao Hades. Esse lamentável acidente me privou, naquela tarde, do prazer habitual de respirar, junto às putas da minha cidade, o cheiro de jasmim que se casava, como um doce e longo coito regido pelo mormaço, a todos os perfumes do oceano.


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Romance e negatividade grávida na ficção de Lêdo Ivo Márcio Ferreira da Silva* Ainda somos os trapiches acachapados de açúcar do bairro Jaraguá. Somos o cheiro de maresia que o mar traz até nós e nos atravessa corpo e alma. Somos a cidade peninsular que nos inunda de água, cheiros e sabores a todo momento. Já notaram que nossos cemitérios são a beira-mar? Ou eram. Um olhar é capaz de ver o visível e o invisível? Na literatura, a resposta para essa sentença pode estar no olhar que o artista entrega à paisagem. Um olhar permite duplicar a imagem observada. Quem observa dilata o olhar e, embora olhe o que lhe parece cotidiano, o olhar-observador capta e captura a cena. No caso de Lêdo Ivo, essa cena reside na representação de espaços negativos da cidade. Na verdade, toda essa visão atômica dialoga com uma Maceió organizada ficcionalmente para este fim. Resta ao artista não esperar a contagem regressiva para detonar a bomba-visão.

Diante disso, podemos dizer que a linguagem literária de Lêdo Ivo se constrói a partir da forma romanesca, cuja composição nos permite dizer que ele ora se permite dialogar com a tradição clássica da literatura, ora se mostra na apropriação de uma categoria negativa construtiva no romance moderno, como, por exemplo, se apresentam as personagens e o espaço urbano na ficção lediana, reforçando a posição de dilatação do olhar para gente e lugar na modernidade. Esse olhar para a tradição literária está nas primeiras obras poéticas, como, por exemplo, As imaginações (1944), Ode e elegia (1945), Acontecimento do soneto (1948) ou Ode ao crepúsculo (1948). Na ficção, Lêdo Ivo publica As alianças (1945) e Ninho de cobras (1973), que formam aqui os objetos dessa análise. Nessa trilha, este texto propõe uma discussão sobre a construção da negatividade nesses dois romances, acreditando que Lêdo Ivo faz de seu projeto autoral uma relação entre a tradição cultural alagoana e a forma romanesca tão discutida na modernidade pela crítica literária.


Caberia ao romance e ao teatro de Pirandello e à narrativa de Proust, de Joyce e de Kafka, o papel revolucionário de dizer que a escrita pode cavar um vazio nessa espessa materialidade. O vazio, negatividade grávida de um novo estado do ser, é a consciência jamais preenchida pelo discurso espetacular das convenções ditas realistas (grifos do autor).

Nota-se que a negatividade, ao invés de apontar para a falta, cria um efeito contrário, ou seja, o preenchimento do vazio na negatividade grávida, cuja caracterização do termo reside na articulação entre o negativo e o positivo. Essa condição da narrativa impõe um recorte do mundo e do ser a partir do objeto degradado, cuja deformidade do espaço urbano carece de um encontro com a cidade. Dessa forma, esse aspecto instaura um nó inextricável capaz de converter o negativo em positivo (BOSI, 2002). Esse nó inextricável bosiano atua no processo construtivo da obra lediana, atando a forma negativa à construção de espaços degradados. O romance lediano se mantém, então, no momento de decomposição do espaço, uma vez que o enredo se desloca para a década de 30 – marcado pela ditadura de Getúlio Vargas -, e o narrador desfoca os acontecimentos ficcionais para os anos de repressão da década de 70, com intuito de explorar mais a negatividade do espaço romanesco do que dá ao romance um caráter meramente descritivo, como podemos observar em Ninho de cobras. “Os tempos se passaram, e os anos se esconderam, desbotados, nos traslados das certidões dos cartórios, nas lápides dos cemitérios e no latim macarrônico dos sacristães (N.C., p. 151). Para ilustrar a questão, percebemos que a escritura de Lêdo Ivo elege o negativo como categoria moderna da narrativa, mas dá a essa mesma categoria uma ampliação que reside na negatividade grávida, no sentido proposto por Bosi (2002). O romance Ninho de cobras não é, pois, marcado diretamente pelo movimento político-ideológico que marcou os anos 70, mas acompanha a história da repressão, da tor-

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Do romance e da negatividade grávida Quando o pensamento crítico sobre a narrativa moderna, principalmente a partir da década de 60 do século 20, tentou explicar a problemática do romance, o mundo passou a conviver com o trânsito nas obras entre o local e global. A “morte” da narrativa criou um curso de mão inversa, ou seja, o romance atravessou a década para ganhar volume na seguinte. Podemos dizer que a discussão sobre o romance enfrenta, por exemplo, o universo das publicações best-sellers, encorajado pelo mercado editorial que procura fórmulas do momento para satisfazer o leitor, reduzindo sua importância pelo uso de estereótipos. É necessário perceber que esse tipo de narrativa nasce e morre a todo o momento, pois isso é fortalecido, via de regra, pelo controle hegemônico dos países ricos na tentativa de unificar ações e tradições culturais dos povos do mundo. Buscando o ritmo de sua própria história e sempre alargando a visão para um novo espaço contemporâneo, Lêdo Ivo faz uma busca aos sentidos múltiplos oferecidos pela cidade da infância, da juventude, da fase adulta para compor sua narrativa. A cidade lediana apresenta um narrador que ora domina a descrição urbana, ora incorpora a descrição a partir do olhar da personagem. O narrador surge como uma visão da cidade duplicada, como aquele que desvia a paisagem para a negatividade, tão acentuada na linguagem que o narrador faz de Maceió em Ninho de cobras. Longe das paisagens regionalistas que moldaram o romance social de 30, Lêdo Ivo, na década seguinte, sob a influência de poetas europeus como Rimbaud e Baudelaire, cumpre a tarefa de ater-se às coisas e aos acontecimentos dos espaços urbanos. Embora essa tarefa esteja sublinhada na representação que o autor faz da cidade, a narrativa-poética do escritor alagoano se mantém entre a resistência e o texto ficcional. Esse encontro assegura, por exemplo, como diz Bosi (2002, p. 134), uma função para narrativa de resistência:


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tura, da fragilidade humana, incorporando o sentido negativo dado ao espaço e multiplicando-o. Para tanto, resvala-se o sentido dado à cidade e construído sob o emblema do poder. Assim, assegura-nos Bosi (2002 p. 134) que a cultura do poder traz: momento negativo de um processo dialético no qual o sujeito, em vez de reproduzir mecanicamente o esquema das interações onde se insere, dá um salto para uma posição de distância e, deste ângulo, se vê a si mesmo e reconhece e põe em crise os laços apertados que o prendem a teia das instituições.

Em Ninho de cobras e em As alianças, a categoria negativa reforça o projeto de autoria de Lêdo Ivo. As descrições que compõem os capítulos mostram personagens que se desambientam no espaço em que vivem. Conforme afirmamos em trabalho de nossa autoria (1999), a cidade, nesses casos, ganha tons desfigurados. Nesse direção, o negativo tem uma função crítica na narrativa lediana; embora esteja ligado à lírica moderna (FRIEDRICH, 1991), o gênero cumpre um papel parecido com a prosa-poética tão presente na ficção desse escritor alagoano. Como a categoria negativa se transforma, nos romances de Lêdo Ivo, em negatividade grávida, isso aponta antes para a realização crítica do ser do que para a falta, transferindo valores negativos em positivos. Nesse sentido, organizações tidas como socialmente independentes tendem a ocupar espaços sociais em que a ordem deveria ser mantida pela cidade letrada, como podemos ver, por exemplo, na representação do Sindicato da Morte, no romance Ninho de cobras. Todos os momentos de atuação desses seres ficcionais são tragados por espaços que se ocupam dessa transformação.


A representação do espaço revela para a personagem o lugar: “a vida era uma jaula”. O narrador constrói a ideia de que a jaula da memória estava presa na memória da personagem e, diante das imagens que formam a cidade da infância, transforma o momento descritivo do circo em um encontro entre o tempo do narrador: “Alexandre Viana suicidou-se por volta das três da madrugada...” (N.C., p. 37) e o tempo da narrativa: “Alexandre Viana acabara de fazer admissão para o Colégio Diocesano naquela tarde em que se aproximava da Praça da Cadeia, para ver o novo circo” (N.C., p. 38). Isso se dá quando o personagem observa o homem na mecânica da cidade. A cidade é, pois, neste sentido, jaula. A jaula deixara de ser uma atmosfera – como era o caso da cidade onde homens, ociosos, iam de lugar para outro, parando para comprar uma caixa de fósforos ou engraxar os sapatos, olhar o vinco de suas roupas de brim branco ou confidenciar a um conhecido o último boato ou maledicência, espostejando reputações – para ganhar uma perturbadora materialidade (p. 41).

Contemplada e amada, conquistada e odiada, a cidade é um elo entre o homem e a criação, por isso as ações dos personagens, como quando paravam para comprar uma caixa de fósforos ou engraxar os sapatos, interferem na conduta do narrador, que une o passado distante da jaula ao passado característico da cidade, definido no “confidenciar a um conhecido o último boato ou maledicência, espostejando reputações” (N.C., p. 41). O tempo da narrativa instaura, então, o confronto entre as duas cidades que se encontram na “perturbadora materialidade”. Na verdade, o narrador estabelece uma fusão de espaços. A jaula da infância, construída no passado da personagem, se iguala agora à cidade, com seus mecanismos e impressões culturais, como o fato de a personagem “olhar o vinco de suas roupas de brim branco” (N.C., p. 41).

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Seguindo mais uma vez o entendimento de Bosi (2002), podemos dizer que os elementos negativos se ampliam à medida que se desvenda a trama. Gestadas como formas negativas no romance, as descrições da narrativa assumem função deslocada do espaço urbano, como se arrebatassem canhestramente toda a geografia da cidade de Maceió. Em Ninho de cobras, a personagem Alexandre Viana flagra a cidade de Maceió. Para esse personagem, o autor dedicou um capítulo intitulado A escada, cujo significado está na passagem do inferior para o superior, e vice-versa. Ambos os espaços se completam e, ao mesmo tempo, se afastam, pois Alexandre Viana mantém-se no deslocamento entre dois mundos: o de Alice e o de Enaura; o trabalho na agência de viagens e a “jaula” – da infância e da cidade - que o mantém preso. A metáfora da escada lhe daria a senha secreta para o pavimento seguro. “Alexandre Viana passou a admitir o suicídio como uma espécie de saída de emergência” (N.C., p. 40). A escada, como a “saída de emergência”, constitui a imagem de aprisionamento, de jaula, pois para admitir uma saída de emergência há um cerramento de portas e janelas e a procura incessante à fuga imediata. O suicídio, não sendo devidamente explicado, preenche a falta na vida de Alexandre Viana, daí podemos perceber a forma como a negatividade grávida se instaura no romance. “A vida era uma jaula” (N.C., p. 40), diz o narrador, reafirmando o encarceramento da personagem. Nesse sentido, Alexandre Viana é um vivente isolado em uma cidade construída sob o signo da modernidade.


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A industrialização e o valor mercadológico das relações de classe dão ao homem um sentido falso dos acontecimentos e das ações, como ocorre com a personagem Jandira, por exemplo, do romance As alianças, que quer incansavelmente casar-se com José, mas cujo convívio evidenciará a dificuldade entre os dois: a aliança não significa preenchimento de espaço. Na cidade, procura-se decifrar o mndo metafórico apresentado no romance. Diante dessa observação, atenta-se, pois, para as diversas formas do espaço urbano que o romancista alagoano procurou descrever para evidenciar uma história cultural entranhada no trânsito cultural de sua cidade natal: Maceió, cuja descrição se mostra no romance convergente em sua negatividade, mas contraposta à visão edulcorada e harmônica dos estratos socioculturais que demarcam o espaço urbano da cidade, construídos, por exemplo, a partir da raposa como centro, no romance Ninho de cobras, ou a desarticulação espacial com que sofre a personagem Jandira quando procura um centramento na cidade, no romance As alianças. Seguindo esse pensamento, os dois romances em tela se mostram em uma cartografia urbana em que os estratos culturais são representados em espaços de desarticulação.

Abrindo para fechar... Esse lugar que originou, alicerçou e desenvolveu as cidades tem, para Lêdo Ivo, a imagem canhestra do espaço urbano, tendo como modelo central a referência ao homem “enjaulado” em seu próprio ambiente. Reforçou, ainda, a visão de negatividade grávida referida por Bosi (2002), quando ensaiou que a categoria negativa desvela nos textos matizes geradores entre o negativo e o positivo. Desses opostos, surge o sentido de que o espaço negativo envolvia, como um segundo significado, o positivo, remetendo-os, sempre, para um explicação da tradição que sustenta as cidades. Desse entendimento, retomando Bosi (2002), tentamos responder à questão: qual espaço urbano o romance deve imitar? Aquela cujo sentido cartográfico nos apresenta a cidade ideal, utópica, entorpecida ou automatizada por hábitos cotidianos ou a cidade labiríntica entrecortada com objeto de busca e construção, que podem relacionar a posição crítica do escritor diante de sua própria geografia? Não seria, então, essa cartografia crítico-ficcional (como a de Lêdo Ivo) o que vêm buscando os escritores contemporâneos brasileiros ao longo dos tempos – permitindo ao leitor um encontro com uma paisagem que se cartografa na dimensão oposta ao suposto equilíbrio social pronunciado pelo mundo? A geografia das cidades nos romances é uma cartografia labiríntica. Toda cidade é um labirinto, como diria Rama (1985). Pudemos observar que o mapeamento da cidade lediana se mostra, visivelmente, nas ruas tortas ou na confluência de transeuntes no passeio público; entretanto, há, como se pôde perceber, um labirinto que não é visível; encoberto na ação das personagens. Jandira, no romance As alianças, se modela no vazio, na solidão, no desencontro. Isso a faz manter características de personagens que, aparentando um centramento – o casamento poderia ser entendido dessa forma -, apenas se reconhece fora desse eixo, no descentramento. O labirinto aqui se mostra no homem só na multidão tão referenciado no mundo moderno.

Nesse labirinto urbano, a cidade se reconhece, porque é instaurada a partir de sua condição múltipla, misturada, negativa, que sobressai na ficção de Lêdo Ivo. O escrito se serve, então, de um cardápio urbano, regado aos espaços mutilados, degradados, desfigurados e negativos. Essa composição formal das narrativas de Lêdo Ivo reproduz criticamente a geografia de um lugar próprio que se reverte em espaço universal. Essa atitude, correspondente ao seu projeto de autoria, referencia, portanto, o escritor para compor, canhestramente, uma cartografia desbotada da cidade. *Doutor em Literatura Brasileira. Professor-adjunto da Universidade Estadual de Alagoas-Uneal


bibliografia BAUDELAIRE, C. As flores do mal. Tradução Daniel Fresnot. São Paulo: Martin Claret, 2002.

fácio e notas de Gilberto Mendonça Teles. São Paulo: Global, 2004 – (Coleção Melhores Crônicas).

BOSI, A. Cultura brasileira e culturas brasileiras. In:________. Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

________. Ninho de Cobras. 3. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997.

________. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. FRIEDRICH, H. Estrutura da lírica moderna. São Paulo: Duas Cidades, 1991. IVO, L. As alianças. 3. ed. São Paulo: Parma, 1991. – (Coleção Ache dos Imortais da Literatura Brasileira). ________. Confissões de um poeta. São Paulo: DIFEL, 1979. ________. Lêdo Ivo: seleção do autor. Pre-

________. A propósito de uma raposa: reflexões de um romancista. In: Ninho de Cobras. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. RAMA, Á. A cidade das letras. São Paulo: Brasiliense, 1985. SILVA, M. F. da. Um olhar cultural sobre o espaço em Ninho de cobras, de Lêdo Ivo. In: Culturas, contextos e contemporaneidade. Salvador: Seminário Abralic Norte/Nordeste-UFAL, 29 e 30 de novembro de 1999. ________. A cidade desfigurada: uma análise do romance Ninho de Cobras, de Lêdo Ivo. Maceió: Catavento, 2002.


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: ::: Poesia ::

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O viajante Lêdo Ivo

Ilustração baseada em pintura de Gonçalo Ivo


Saio Paris para entrar na Itália. Sei agora afinal que a vida não é sonho e o mundo é um só. Cavalo bravo, o dia inclina-se e bebe a água das represas que doam as luzes da terra. Viajo: tudo é eterno e fabuloso. Entre Florença e Roma, na linha do universo, limoeiros florescem. E a beleza do mundo cai sobre mim e unge-me. E o céu azul desaba, construção de pássaros.


: ::: artigo ::

Lêdo Ivo e sua (in)tensa alagoanidade Leda Almeida* Era uma tarde de sol e mormaço em Maceió, como tantas outras, quando o telefone toca a minha procura. Tratava-se de um jornalista da TV Educativa de São Paulo interessado em fazer um documentário sobre o poeta alagoano Lêdo Ivo. Que terei eu com isso? Pergunteime a mim mesma. Afinal, de Lêdo eu tinha apenas a boa lembrança dos tantos dias que “matei” aula para, ao lado de um amigo do curso de História, andar nos canteiros da Ufal enquanto escutava-o declamando os versos ledianos. Naquela época eu conhecia pouco a obra de Lêdo Ivo e aquilo que eu sabia da sua trajetória de vida não justificava minha inclusão num documentário, daí meu espanto. Contudo, em poucos minutos, a questão é explicada: Lêdo interessava-se por tudo que o remetia ao seu selo de origem: a visão do mar, o vento, o farol, os navios a incitar-lhe a evasão, os currais de peixe, os mangues e as histórias de trancoso escutadas em sua meninice vivida na Rua das Verduras. Pois bem, no ano de 1998 eu havia realizado um trabalho que culminou na publicação de um livro de reescrita de histórias de trancoso contadas às crianças pelos seus pais e avós. Essa foi a trilha seguida pelo jornalista e a partir da qual aconteceu meu encontro com Lêdo. Em frente à Igreja Nossa senhora do Povo, em Jaraguá, estava eu e a equipe de filmagem da TV Educativa de São Paulo. Quando já me preparava diante das câmeras filmadoras para dar o depoimento sobre as tais histórias de trancoso, surge na praça o poeta Lêdo Ivo acompanhado de sua esposa. Eu sequer sabia que ele estava em Maceió. Com seu jeito curioso ele se aproxima de mim e me indaga sobre as histórias que reescrevi. Eu lhe entreguei o livro. Ele leu o título, folheou rapidamente e exclamou uma frase que lhe

é bem própria: “que beleza!”. Deixei o exemplar com meu endereço escrito na contracapa. Poucos dias depois recebo uma carta de Lêdo. Respondi e encaminhei-lhe um outro livro que havia publicado junto com uma colega da Universidade: A história de Maceió para crianças. A resposta não demorou. Um cartão dizia: “Com olhos de menino li A história de Maceió ... Daí por diante uma amizade começa a ser tecida em laços fortes. Mergulhei em toda sua obra. Li avidamente todos os seus livros e me surpreendi com o sentimento de pertença do poeta. Sua “alagoanidade” está presente em cada verso, em cada linha que escreve e foi justamente essa “alagoanidade” que o fez universal. Seus textos sempre me pareceram impregnados do azul das nossas águas ou do negro do fundo da noite lacustre. De modo pujante Lêdo fala de Alagoas e deixa transparecer, invariavelmente, seu olhar arguto, crítico, às vezes até cáustico, mas sempre amoroso e belo. Lêdo Ivo tem na cidade, no mar e nas noites de Maceió o lugar exato para suas emoções. O sentimento in(tenso) que nutre pela sua terra emerge, em sua obra com tal veemência de modo que desnuda todas as suas faces: bárbara, diabólica, paradisíaca, onírica. E nada lhe passa despercebido, sequer o cotidiano vivido nessa terra de ódios. Cotidiano que, tantas vezes, se assemelha a um grande cortejo, a um esplêndido desfile de ladrões, assassinos e machões... Uma pequena cida-

de de província, varrida pelo vento do mar, onde nada acontece a não ser os assassinatos, os suicídios, os adultérios e o tédio que rói a vida dos homens. A relação de Lêdo Ivo com sua terra natal é sempre crítica e não laudatória, e haverá de ser sempre assim porque ele é fiel a uma única verdade: a verdade de sua imaginação criadora. Toda a sua obra literária se ancora naquilo que ele sonha ou imagina, de tal modo que, como ele mesmo confessa, jamais saberemos se a raposa vinda das florestas dizimadas do Tabuleiro do Martins e que em certa madrugada desceu até o Centro de Maceió, foi um sonho de infância ou um acontecimento real que incomodou o brio civilizatório dos bacharéis e desembargadores de sua meninice. O fato é que, sonho ou realidade, ela haverá de simbolizar na impiedade do seu sacrifício, o universo dos homens sempre dividido entre o amor e o ódio, a dor e a alegria, o desespero e a esperança, o medo e a solidariedade. Nela, nesse mundo, a festa e o pesadelo caminham juntos, a turística orla deslumbrante respira o mesmo tempo cruel das negras cidades de plásticos forjadas pela miséria, pela injustiça e pela fome.


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Ilustração baseada em desenho de Gianguido Bonfanti

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O poeta tem, pois, na sua terra natal o espaço onde ancora sua linguagem, sua invenção, sua dicção poética: É ele quem afirma: (...) e todo esse passado que ora ressurge cabe dentro de uma dessas pequenas lágrimas perdidas, que o vento azul da manhã de há muito secou, como se fosse vento de salina, alado artesão de cristalografias. A arquitetura da cidade de Maceió assume na construção poética de Lêdo Ivo formas particulares, símbolos e sentido para seus moradores. Escutemos o que nos diz o poeta: Vou por uma rua torta. (...) o oceano que eu sempre via longe, quando o bonde dobrava a curva do Farol, está agora perto de mim. ...Quem nasce aqui, e respira desde a infância um aroma de açúcar, vento, peixe e maresia, sente que o oceano próximo cola em todas as coisas e seres um transparente selo azul ...

Lêdo, de modo singular e com uma linguagem encantatória nos vai revelando as cores, os tons, os matizes, os ruídos, os silêncios e a melodia da natureza que emoldura seu lugar de pertença. Seus versos assim revelam: (...) Já não sei se é dia ou noite, se caminho junto ao mar odorante ou se afundo os pés na lama negra da lagoa devassada pelos pescadores de sururu. Acima e além da claridade solar e da luz do farol, num território intocável, Maceió é, ao mesmo tempo, porto e porta, permanência e travessia, lugar de partida e de chegada, silêncio e melodia. E foi justamente nesta cidade de tantos contrastes que se fez possível um sincronismo. Foi entre silêncios e melodias que a voz de uma afeição ressoou. Encontrar Lêdo Ivo naquela tarde à sombra das árvores de Jaraguá foi um acontecimento - inesperado, repentino, profundo Foi encontrar a conjugação dos universos ledianos marcados definitivamente pela visão dos navios enferrujados, pela lama negra da noite e pelo vento que não para de soprar. *Leda Almeida é historiadora.

bibliografia ALMEIDA, Maria Leda. Labirinto de águas: imagens literárias e biográficas de Lêdo Ivo. Maceió: Edições Catavento, 2002. IVO, Lêdo. Confissões de um poeta, ________, Ninho de cobras. 4ª edição, Maceió: Edições Catavento, 2002. ________, Confissões de um poeta. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1979. ________, Poesia completa (1940-2004) Rio de Janeiro: Topbooks, Braskem.2004.


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Poeta ganha memorial espaço celebra a trajetória de vida, as conquistas literárias e a rica simbologia da obra de Lêdo ivo

mória, Adriana Guimarães, os temas procuram enfatiTudo começou há cinco anos, quando o escritor e poeta zar a trajetória de vida do alagoano Lêdo Ivo passou às mãos da historiadora Leda escritor, a imagem do farol Almeida um documento doando parte do acervo que acuque tanta é evocada em sua mulou durante sua carreira. Estavam lá nessa memória obra e que é um “personaobjetos pessoais, prêmios, condecorações e histórias não gem” dotado de grande sigsó de Maceió, mas de lugares percorridos ao longo de dénificação, assim como a paicadas em defesa da boa literatura. sagem litorânea. Uma das salas se chamará “Ninho de Cobras” e destacará asA amizade que começou nos tempos em pectos presentes na narrativa do livro mais que a professora realizava estudos sobre his- famoso e emblemático de Lêdo Ivo. Num outórias de Maceió teve os laços estreitados tro espaço, uma “Linha do Tempo” remontará após a historiadora escrever a biografia de momentos de sua vida. Lêdo e relançar a premiada obra Ninho de A ideia é criar em todos os espaços uma Cobras, que consagrou a carreira do escri- dinâmica onde o público possa conhecer a tor nos anos 70. obra do escritor e também interagir. Para a Comovida com o gesto e consciente de que arquiteta, a aplicação de recursos audiovitinha um tesouro nas mãos, a historiadora suais é uma tendência que por si só já atrai decidiu que o acervo não poderia permanecer inacessível aos leitores de sua obra e, especialmente, àqueles que não puderam vivenciar a experiência de fruir de seus textos. Surgiu então a ideia de escancarar seu baú de memórias e transformá-lo em um espaço de visitação. Em busca de possíveis recursos para concretizar o projeto, eis que com parcerias entre Governo, Fundepes e Caixa Econômica Federal, o imortal da cadeira Nº 10 da Academia Brasileira de Letras terá sua vida acompanhada pelos alagoanos a partir da primeira quinzena de dezembro deste ano, quando será inaugurado o Memorial Lêdo Ivo da Literatura Alagoana, sob curadoria da amiga Leda Almeida. O memorial ocupará três salas temáticas do Museu Palácio Floriano Peixoto (Mupa). Segundo a arquiteta e diretora do Pró-MeMariana Belo

os visitantes e propõe uma nova conceituação na área museológica. O memorial contará ainda com projeções em tela e disposição de versos nos pisos e paredes do local, além da presença de objetos pessoais do escritor. “É por meio desses objetos pessoais, como os óculos ou uma máquina de escrever, que o visitante estabelecerá uma relação de identificação com a personalidade do artista e de seu universo”, afirma Adriana. Se o objetivo é que cada vez mais pessoas sejam apresentadas aos escritos de Lêdo Ivo, a Secretaria Estadual de Cultura já começa a se mobilizar para que esse propósito seja alcançado. De acordo com o secretário Osvaldo Viégas, não se pode apenas elaborar o projeto, mas sim dar continuidade e resultados a ele. “Queremos agregar valores ao museu, assim como fizemos com o memorial de Aurélio Buarque de Holanda, para chamar os Mariana Belo

A historiadora e amiga do poeta, Leda Almeida, é curadora do local


Acervo pessoal

::: reportagem :: : jovens e fazê-los conhecer ainda mais quem são os nossos talentos, nossos conterrâneos célebres. É uma grande honra preservar a história e os trabalhos de Lêdo. Estive com ele visitando o espaço e pude sentir a satisfação em tornar público o seu conhecimento, a trajetória de vida e a paixão pelos versos”, afirma. O visitante que adentrar nas salas poderá mergulhar nesse oceano que dá vida e cheiro de maresia às palavras do escritor concebido pela arquiteta Inês Amorim, responsável pela ambientação do local, e por outro grande conhecedor da obra do poeta, o cineasta Werner Sales, autor do documentário “Imagem Peninsular de Lêdo Ivo”, vencedor do prêmio DocTV pelo filme.

Coube ao cineasta a captação e seleção das imagens de vídeo e o material multimídia previstos pela equipe responsável pelo projeto. Material era o que não faltava. Para as filmagens de Imagem Peninsular, o cineasta

tinha em mãos o conteúdo de mais de 5 horas de gravação. Esse material será editado e transformado em conteúdo para o memorial. “Vou procurar, além de retratar o mundo real de Lêdo Ivo, trabalhar o seu mundo simbólico, que é extremamente rico e abundante em imagens de múltiplos significados”, adianta. O acervo doado pelo próprio Lêdo contabiliza 42 livros, 11 quadros, condecorações, fitas de vídeo com entrevistas que concedeu ao longo de sua carreira, poesias, além de máquinas de escrever e fotográfica, óculos e documentos pessoais. Merecem destaque o diploma da Academia Brasileira de Letras e a estatueta do Prêmio JaOsvaldo Viégas buti, pela obra O rumor da noite, Secretário de Cultura de 2001.

É uma grande honra para o Estado de Alagoas preservar a história e os trabalhos de Lêdo Ivo


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