Publicado por Editora Cinese Copyright ©️ Amanda Onofre, Isabel Levisky, Jessica Viana, Karina Lourenço, Maria Victória Rodrigues e Sofia Bertozzo. Este livro é composto pela pesquisa temática realizada pela Editora Cinese. Sua reprodução, completa ou em partes, é proibida. Ilustração da capa ©️ Adobe Stock, com ajustes autorais, 2020. Produção e pesquisa: Amanda Onofre, Isabel Levisky, Jessica Viana, Karina Lourenço, Maria Victória Rodrigues e Sofia Bertozzo. Diagramação: Isabel Levisky
Introdução A pesquisa a seguir tem o intuito de analisar sob uma perspectiva contemporânea a figura da bruxa, considerando a transição da época feudal para o capitalismo, cujos ideais são trazidos até a atualidade. Foi essencial compreender o surgimento da sociedade capitalista e os princípios criados por ela, uma vez que o Estado se tornou o espaço de discursos dominantes, certificando-se de formar uma imagem pejorativa da mulher frente aos cidadãos do sexo masculino. A caça às bruxas foi um marco histórico de violência contra a existência feminina, principalmente àquelas que tinham domínio de conhecimentos que as destacavam ou às que tinham mais coragem para lutar contra o status quo imposto. Durante anos, as mulheres não tiveram posse de seus corpos e suas vidas devido à alienação de estrutura social de poder, e para tanto foram controladas por práticas discursivas de que a mulher apresentava um risco à hierarquia patriarcal. Mesmo após a Era Moderna e a transição feudo-capitalista, é possível afirmar que as mulheres ainda seguiram sendo perseguidas por outros aspectos, por diferentes esferas de machismo, preconceitos, violências e condescendência, resquícios levados até os dias atuais. Palavras-chave: Bruxas, bruxaria, empoderamento feminino, mulheres.
1.1 As bruxas pela visão da sociedade Nota-se com a transição do feudalismo para um modelo capitalista que “a ‘feminilidade’ foi construída como uma função-trabalho que oculta a produção da força de trabalho sob o disfarce de um destino biológico” (FEDERICI, p. 21, 2018), ocasionado por um modelo patriacal que via nas mulheres uma ameaça. Enxerga-se, então, que a mulher era vista como uma ameaça ao sistema patriarcal e aos homens, dessa forma aqueles que não seguiam o padrão eram, muitas vezes, acusadas de bruxaria e perseguidas. O que a figura da bruxa ensina é um certo modo de enxergar a mulher, principalmente quando esta expressa poder. Ao longo de muitas eras da civilização patriarcal, a lição predominante sobre as mulheres que fazem uso de poderes ou que se aliam a forças que, de um modo ou de outro, a máquina civilizatória não consegue domar é bem conhecida de todos. Toda expressão de poder por parte de mulheres desembocava em punição. (ZORDAN, 2005, p. 332).
A bruxa foi vista de forma demonizada e mitificada, sendo menosprezada e massacrada pela sociedade. Desde o seu imaginário inicial, “a aversão pelas mulheres e o rígido controle sexual exterioriza-se numa figura mitológica que voava pelos céus, sentada num imenso símbolo fálico (vassoura), retomando mitos antigos de mulheres compactuadas com o demônio” (PARADISO, p. 194, 2011). A liberdade sexual e a feminilidade foram os fatores predominantes para ser desencadeado a construção da mulher perversa e satânica. No discurso cristão, a vida religiosa vem com penitências e clausura, portanto para fugir desse cenário, “a experiência
mística permite à mulher se descobrir exatamente (e paradoxalmente) através da mais profunda aceitação da sujeição patriarcal” (IRIGARAY, 1993 apud BONNICI, 2007, p.183. apud. PARADISO, 2011, p.196). A disciplina e a pureza estão vinculadas ao cristianismo, portanto toda pessoa que não seguia os ensinamentos impostos pela Igreja estava sujeita à condenação. Como resultado disso, mulheres foram torturadas e queimadas para representar o que era considerado herege pela Igreja. Ser bruxa dá à mulher direitos que a “comum” não pode assumir na sociedade – principalmente a liberdade sexual e discursiva, altamente perigosa na Idade Média. “No século XVII, na Inglaterra, mulheres que ousavam reclamar ou preferir um discurso além do permitido eram punidas com severidade” (BONNICI, 2003). A religião cristã condenou toda prática que fugia das suas crenças, como adorar outros deuses, não acreditar em um poder monoteísta e indivíduos que iam contra a ideologia e doutrina impostas, por exemplo: mulheres que buscavam a liberdade. “Em suma, a mulher que se denomina autossuficiente era deveras candidata a ser bruxa” (PARADISO, p. 198, 2011). O grande influente do cristianismo, Santo Agostinho, afirmava que
A magia, a religião e a feitiçaria pagãs eram obras inventadas pelo diabo e ao referenciar deuses pagãos, ciente ou não do feito estavam na verdade invocando demônios. Esse argumento usado pelo Santo e pela igreja tornou não católicos em verdadeiros monstros crédulos da recém-nascida divindade, que corria riscos diante da ameaça maléfica, portanto deveria ser extinta para não atrapalhar a salvação do mundo (CARVALHO, p.176, 2008).
De uma forma geral, as pessoas relacionam bruxaria exclusivamente às mulheres, embora homens também possam praticá-
-la. Tal impressão vem desde a época da caça às bruxas, “pois as mulheres [eram] acusadas de bruxaria cerca de dez vezes mais do que os homens” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 177). Tal relação entre mulheres e bruxaria se deve por causa da “própria fragilidade da posição social feminina, sobretudo viúvas e solteiras, [que] tornava mais seguro acusar essas mulheres do que os homens, cuja força política, financeira, legal e até física deixava o acusador mais exposto a represálias (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 144). Ou seja, o papel da mulher no patriarcado era de submissão ao homem, seus deveres eram o casamento, ter filhos e cuidar de sua família, assim como todos os assuntos envolvendo o ambiente familiar; portanto mulheres que possuíam alguma independência eram malvistas pela sociedade. Segundo Paradiso (2011), as vontades e desejos da mulher eram reprimidos e suas vozes, silenciadas. 1.1.2 Desmistificação do conceito da bruxa A figura da bruxa nasceu a partir da opressão àquelas mulheres que não se encaixavam no padrão estabelecido pela igreja e pelo poder patriarcal. Contudo, essa visão imposta pela Igreja é fantasiosa, até porque as características atribuídas a uma bruxa também podiam ser utilizadas para denotar “ser” demoníaco. Por exemplo, “a devoradora megera Lilitu era um espírito, mas suas características foram transferidas na Idade Média para a bruxa diabólica” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 39). Essa imagem pode ser encontrada desde o mito de Lilith. Uma vez que esta foi criada logo após Adão e, assim como ele, feita a partir do barro, foi designada à submissão apesar de ser
sua igual.
A mulher não aceita esta imposição e se rebela contra Adão. É a ruptura do equilíbrio. Lilith se afasta pronunciando irritada o nome de Deus e acusando Adão. Este se sente abandonado e tem medo, a escuridão o oprime. Adão reclama para Deus. A mulher desafiou o homem e, portanto, o divino. Deus insiste para que ela volte, o desejo da mulher é para o marido, mas ela não obedece. Lilith é então transformada em um demônio, símbolo do pecado, da transgressão e da astúcia, condenada a um destino de sofrimento, mas também de sabedoria típica dos demônios (MIKOSZ, p.144, 2007).
Embora toda mulher que não seguisse as pregações da Igreja (como mulheres viúvas, solteiras, curandeiras ou parteiras) fosse considerada bruxa, para entender quem são as verdadeiras bruxas sem a influência dessa visão parcial é necessária a explicação do que é bruxaria e magia. Segundo estudos feitos em vídeos em seu canal do YouTube, o Prof. Dr. Alexandre Meireles da Silva afirma que a magia é operada por um conjunto de práticas variando da astrologia, alquimia, uso de encantamentos, amuletos, feitiçaria e manejo de ervas, baseado no princípio de que o mundo natural contém poderes escondidos, que os seres humanos podem se apropriar ou tomar emprestados.
A base da alta magia é a crença no kosmos, um universo ordenado e coerente, cujos elementos se acham inter-relacionados – quem colhe uma flor perturba de alguma modo a estrela mais distante [...] Um exemplo disso é o famoso “efeito borboleta” [...] em um universo no qual todas as partes estão inter-relacionadas e afetam umas às outras, mesmo remotamente, há um relacionamento entre cada ser humano individual e as estrelas, plantas, minerais e outros fenômenos naturais. Essa é a crença mágica da “correspondência” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 19).
Dessa forma, baseado nos níveis de magia existem três definições: feiticeiras, magos e bruxas. As feiticeiras assumem seu poder através do divino, estão ligadas ao cosmo; os magos têm seu poder através dos estudos; já as bruxas estão ligadas a uma magia natural, ou seja, se guiam a partir dos ciclos da natureza: o ciclo da lua e as estações do ano. Algumas bruxas utilizam do ocultismo “estudo das coisas e fenômenos para os quais as leis naturais ainda não deram explicação” (MICHAELIS, 2008), e uma de suas formas é o tarô, que segundo Tempera (2014), é uma das ferramentas essenciais para o autoconhecimento e desenvolvimento da consciência individual e Universal [...] um meio eficaz de ajuda, orientação e empowerment para capacitar as pessoas a compreender, analisar e transformar as suas vidas e as dos que as rodeiam.
1.1.3 Bruxas no século XXI Dessa forma, a partir de alguns conceitos definidos pela
bruxa Tânia Gori em 2019, pode-se alegar que todos possuem o dom da magia, porém algumas pessoas o desenvolvem e outras não. A bruxa é aquela mulher que assume sua essência, se permite ser ela mesma verdadeiramente, é aquela que desenvolve seu poder pessoal, que desafia a sociedade e sua norma; ser bruxa é a consciência do presente e viver plenamente o momento em que está. Ou seja, a partir do momento em que uma bruxa possui orgulho do que é e assume seu poder como mulher, ela consegue alcançar o empoderamento através da bruxaria. Afinal, “a partir das estratégias oriundas da teoria feminista, a bruxa é re-vista e sua imagem desconstruída, absorvendo outro papel: o da mulher re-
sistente e agente do próprio discurso” (PARADISO, p. 200, 2011). 1.2 A época da caça às bruxas Há vários discursos em que são feitas construções negativas sobre a figura da mulher que se diferem em relação ao espaço geográfico e o período histórico. Entretanto, a época da caça às bruxas pode ser facilmente caracterizada como um dos momentos em que essa perseguição teve seu apogeu, com a justificativa de que
A bruxa era o expurgo de todos os males atribuídos ao feminino, começando com o pecado original e a desobediência da “primeira mulher”, pintada como colaboradora de Satã. Protagonista de inúmeras condenações, a bruxa serviu como função pedagógica de cunho moralizador durante os séculos em que a Igreja focou a doutrina cristã no combate ao mal, inimigo personificado como o demônio, o adversário de Deus, Satanás. Vinculada à natureza, a bruxa estava ligada ao chamado “Príncipe do Mundo”, o diabo, que, mesmo aparecendo hermafrodita em algumas representações, é uma entidade explicitamente fálica, masculina. (ZORDAN, 2005, p. 333).
A figura da mulher em suas primeiras representações, segundo o autor Losandro Antonio Todeschi, foi construída pela ótica masculina, estabelecendo uma “natureza feminina” relacionada única e exclusivamente para a maternidade e a reprodução, o que representa a forte presença dos valores patriarcais nas sociedades. Argumentos de cunho religioso, político e remetentes à natureza são muitas vezes utilizados para ratificar a suposta posição inferior da mulher. Afinal, “na lógica patriarcal, o poder da bruxa advinha de sua convivência com os demônios e do seu pacto com o diabo. Era inconcebível imaginar que a mulher, por si própria,
tivesse a capacidade de curar” (ZORDAN, 2005, p. 333). Dessa maneira, segundo Karlsen (1998),
Historicamente falando, muitas mulheres acusadas de bruxaria entre os séculos XV e XIX possuíam uma personalidade considerada conturbada: falavam palavrão, questionavam os outros e defendiam sua opinião, fosse discutindo com o marido ou com autoridades; enfim, eram mulheres de personalidade forte, que não se sujeitavam ao papel submisso que se esperava delas.
A figura depreciativa da bruxa na sociedade, bem como a sua perseguição, ocorreu devido à associação negativa e pejorativa da mulher ao longo da história da humanidade, que fez com que a figura da mulher, seu corpo e sua sexualidade fossem associadas ao pecado, impuro e indecente; causando a perseguição das mulheres que não se submetiam a esses ideais “puros”. Na obra Complexo de Cinderela de Colette Dowling, a autora diz que “a sexualidade da mulher é tão castrada que ela precisa da desculpa do amor para sentir prazer com o outro”. Isso
está diretamente relacionada à construção arcaica da sexualidade feminina nas corporalidades discursivas, o que pode ser identificado em Eva, Lilith e Bruxas. Ademais, a perseguição às práticas relacionadas à feitiçaria já existia em diversas sociedades, uma vez que leis “anti-feitiçaria” já apareciam no Egito Antigo e na Babilônia. Na Antiguidade, a Torá, segundo a tradição hebraica, condenava a feitiçaria em diversos versículos. Deuteronômio 18:1012 declara que Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; Nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; Pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao Senhor; e por estas abominações o Senhor teu Deus
os lança fora de diante de ti.
E, muitas vezes, principalmente nas correntes de tradição místico-judaica, a feitiçaria era atribuída à figura de Lilith, o que também influenciou algumas práticas da sexualidade colocando a mulher sempre em posição inferior ao homem. O Senado Romano, em 186 a.C., proibiu quaisquer comemorações focadas em Lúcifer, uma vez que era conhecido como o deus das bruxarias. Em consequência a tal proibição, nos anos seguintes, muitas pessoas foram executadas por bruxaria, desencadeada pelo surto de uma epidemia ou simplesmente por ter tido uma safra e colheita ruim no ano, uma vez que “as autoridades romanas eram geralmente intolerantes em relação a todas as variedades de feitiçaria. A prática de feitiçaria, em oposição aos ritos públicos aprovados, ligados a religião oficial, era considerada uma ameaça a sociedade” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 40). Anos depois, o estadista romano Lúcio Cornélio decretou a proibição ao comércio e posse de drogas, livros, venenos e outros quaisquer objetos que pudessem ser relacionados à feitiçaria. Além dele, diversos outros chefes de Estado, como Estrabão e Dião Cássio, conservaram o posicionamento contra práticas de bruxaria. Todas as sobrevivências da crença, do culto e da prática pagãos foram condenadas como demoníacas e gradualmente suprimidas pela teologia e pelos direitos cristãos. [...] Mas no decorrer dos séculos VII e IX, a crescente influência da teologia sobre o direito civil produziu a associação legal das feiticeiras com demônios. A palavra latina maleficium, originalmente o “ato de fazer mal a alguém”, passou a significar especialmente a feitiçaria malévola, e presumia-se que o maleficus ou a maléfica estava intimamente relacionado com o diabo. Assim, a feitiçaria podia ser agora perseguida não somente como um crime
contra a sociedade, mas também como heresia e um crime contra Deus. (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 69- 70).
Em Roma, as leis passaram a ser válidas para patrícios e plebeus da mesma forma pela primeira vez em 451 a.C. A Lei das Doze Tábuas apresentava atos que proibiam feitiços que poderiam danificar culturas de cereais. A bruxaria também era a culpada por mortes cuja explicação não era conhecida, visto que “bruxas” foram executadas após uma epidemia desconhecida ter afligido a Europa. A perseguição à “bruxaria” e a sua atribuição ao feminino é algo que ocorre antes mesmo de o catolicismo se tornar a religião oficial do Império Romano. Antes já eram queimados livros, criadas leis e decretos que condenassem qualquer prática considerada bruxaria. E, a despeito das tentativas de diminuição das perseguições inicialmente lideradas pela Igreja, o receio contra as bruxas entrou em ascensão durante a Alta Idade Média.
Uma ideia equivocada, mas amplamente difundida, é a de que a bruxaria é um fenômeno característico da Idade Média. Bem ao contrário, as acusações de bruxaria diabólica somente emergiram bem no final da Idade Média. As grandes perseguições às bruxas ocorreram durante a Renascença, a Reforma e o século XVII (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 13).
Nessa época, mulheres responsáveis por curandeirismo e benzedorismo passaram ser vistas sob uma ótica de respeito pela sociedade Medieval, principalmente nas áreas rurais. Eram pessoas que, apesar de miseráveis, possuíam prestígio dentro da
sociedade em si, e formavam grupos compostos majoritariamente por mulheres solteiras e viúvas, que conheciam as propriedades das ervas medicinais e se estabeleciam como parteiras, enfermei-
ras e adivinhas, por exemplo. Contudo, durante o período da Baixa Idade Média essas crenças e perseguições as mulheres “livres” começaram a ressurgir, considerando que a Igreja Católica passava por grandes mudanças e conflitos por poder, com isso o número de infiéis ou hereges estava aumentando. E já durante este período práticas, costumes, hábitos ou culturas diferentes estavam sendo consideradas bruxaria que viria a ser também associada novamente a pactos demoníacos e infidelidade com a fé cristã. “A Igreja, por sua vez, usava a acusação de heresia para atacar toda forma de insubordinação social e política.” (FEDERICI, 2018, p. 60). Com a declaração do surgimento do Tribunal da Santa Inquisição dirigido pela Igreja Católica que foi consolidado apenas anos depois, em 1300, ocorre a explosão com o aumento de julgamentos hereges e a caça contra o poder feminino. Muitas formas de magias e feitiços eram consumadas desde a Antiguidade, sendo uma fonte de renda especialmente para as mulheres no cenário econômico, onde não podiam fazer parte da sociedade em geral, muitas mulheres sobreviviam com as trocas de favores sendo elas, as simpatias e feitiços que se tornaram crime pelo Estado. No começo do século XIV, acusações de bruxaria foram utilizadas para fins políticos. Em um primeiro estágio, essa perseguição focava em clérigos e pessoas letradas, capazes de ler e escrever livros considerados de magia. No fim do século XIV, as acusações e perseguições se ampliaram para pessoas comuns, principalmente mulheres tidas como não castas. Joana d’Arc, em 1431, sofreu acusações de feitiçaria e heresia, apesar de ser perseguida por razões políticas, e, como consequência, foi queimada em praça pública na França em vista que “a maior parte dos
rancores e genocídios étnicos, políticos ou religiosos deriva da demonização de oponentes. A projeção negativa é reforçada pela culpa, porque o bode expiatório precisa ser culpabilidade” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 22). A disseminação dos tratados Directorium Inquisitorum, Formicarius e Malleus Maleficarum ocorreu concomitante à invenção da imprensa em 1450, o que auxiliou e reforçou ainda mais a perseguição às bruxas com folhetos que “ajudavam” a população a identificar e se prevenir contra a bruxaria. Além disso, afirmavam e reforçavam a ideia de que a bruxaria tinha relação com o Diabo.
Quando a bíblia hebraica foi traduzida para o grego, para o latim e para as línguas modernas, o significado das palavras hebraicas sofreu transformações. Por vezes, as traduções promoveram perseguições. [...] Na época em que foi feita a tradução da Vulgata, o próprio termo maleficus ainda era vago: podia significar qualquer espécie de criminoso, embora fosse aplicado com frequência aos feiticeiros malévolos. Quando se intensificou a caça às bruxas na Europa [...] o texto foi usado como prova e justificação para a execução de bruxas (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 44).
Pois, com a Reforma Protestante, o número de pessoas letradas aumentou e com o surgimento das novas tecnologias de comunicação e imprensa, a Igreja Católica perdeu o poder sobre os seus fiéis, e exclusividade da leitura e interpretação da Bíblia. Com isso mais pessoas comuns tiveram acesso ao conhecimento, inclusive as mulheres. Historicamente, não há dúvida de que a Igreja sempre fez uma construção negativa sobre a aparência visual feminina e seu corpo, como se pode identificar nas Epístolas de São Paulo e pelo relato do Gênesis, com o mito de Eva e de sua desobediência que a leva de um estado paradisíaco de nudez sem vergonha para um
de nudez consciente e pecaminosa, uma vez que,
Como fator-chave na diabolização da mulher, a sexualidade feminina apresenta-se sempre acompanhada de insaciedade, produzindo-se, assim, a imagem da bruxa voraz, a ogra devoradora que engole todos os seus filhos. Talvez como subproduto da miséria, sua fúria é o resultado de um imenso apetite impossível de ser satisfeito. (ZORDAN, 2005, p. 337338).
Por esta via, tornam-se evidentes as ligações entre pecado, corpo e mulher. Esta aparece, então, como manipuladora da beleza, do adorno e do charme para enganar o homem. A mulher é vista como ameaça sedutora e, ao longo dos tempos, especialmente na Idade Média, acusada de união sexual com o demônio, representando um instrumento do Mal. Satanás é considerado o oponente da salvação humana e do Bem e a mulher é demonizada a partir da sua alegada ligação com ele por via da serpente e do pecado original. Através de Eva, o Pecado Original é sexualizado e diabolizado, ou seja, a tentação de comer o fruto proibido é interpretada como sedução e o corpo de Eva como um instrumento para levar a cabo desígnios malévolos. Isso acontece, essencialmente, a partir do final da Idade Média, época em que a figura do demônio exerce grande influência sobre o imaginário e o discurso católico, culminando na “caça às bruxas” dos séculos XV e XVI. Desde tempos muito antigos (depois de que o cristianismo se tornou a religião estatal no século IV), o clero reconheceu o poder que o desejo sexual conferia às mulheres sobre os homens e tentou persistentemente exorcizá-lo, identificando o sagrado com a prática de evitar as mulheres e o sexo. Expulsar as mulheres de qualquer momento da liturgia e do ministério dos sacramentos; tentar roubar os poderes mágicos das mulheres de dar vida ao adotar trajes femininos; e fazer da sexualidade um objeto de vergonha – esses foram os meios
pelos quais uma casta patriarcal tentou quebrar o poder das mulheres e de sua atração erótica. Neste processo, “a sexualidade foi investida de um novo significado […] Transformou se num tema de confissão, no qual os mais ínfimos detalhes das funções corporais mais íntimas se transformaram em tema de discussão” (FEDERICI, 2004, p. 64).
Federici (2019) defende que a caça às bruxas esteja intrinsicamente ligada às transformações sociais que se deram com o surgimento do capitalismo, visto que “na ‘transição do feudalismo para o capitalismo’, as mulheres sofreram um processo excepcional de degradação social que foi fundamental para a acumulação de capital e que permaneceu assim desde então” (FEDERICI, 2019, p. 134). A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência em relação aos homens, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres (FEDERICI, 2019, p. 133).
Durante a Era Moderna, a caça às bruxas aumenta vertiginosamente do centro ao norte da Europa, gerando um dos períodos mais sangrentos da História Mundial, concomitantemente a uma reforma protestante, guerras político-religiosas, além de ser um momento repleto de fome e doença. A palavra bruxa passou a ser utilizada para denotar qualquer hábito que se diferenciasse do que era aprovado pela Igreja. As mulheres curandeiras, benzedeiras, parteiras e outras que usufruíam de ervas medicinais passaram a ser alvos de acusações de bruxaria ligando as suas atividades à magia. Ou seja, conhecimentos considerados “diferentes” foram motivos para torturar e
matar milhares de pessoas inocentes,
Na maior parte das vezes as bruxas eram condenadas à morte, mas não bastava enterrá-las, pois se acreditava que tinham a capacidade de emergir de dentro das sepulturas. [...] Por isso era necessário queimar seus corpos e lançar suas cinzas ao vento, para que, através das artes diabólicas, seu corpo não fosse capaz de se reconstituir. Há vários casos em que as filhas eram acusadas e queimadas tais quais suas mães, pois se acreditava que, desde muito cedo, além de serem oferecidas ao demônio, todas as filhas de bruxas eram iniciadas por suas mães nas artes da feitiçaria. (ZORDAN, 2005, p. 335).
Muitas mulheres foram acusadas com injúrias falsas e mortas por denúncias falsas como forma de vingança pessoal ou com o fim de se apropriar ilicitamente de bens materiais. A sociedade da época, que disseminava uma ideologia patriarcal, veio por intermédio do homem da Igreja medieval impor uma concepção ideológica baseada na diferença entre matéria e espírito, carne e alma, terreno e celeste. Atribuindo à figura da mulher a carne, devido aos prazeres carnais de sua sexualidade, segundo Delumeau (1989), “a repulsa em relação ao ‘segundo sexo’ era reforçada pelo espetáculo da decrepitude de um ser mais próximo da matéria que o homem e, portanto, mais rápida e visivelmente ‘perecível’ do que aquele pretende encarnar o espírito”. Nesse período, a Igreja enfrentava muitas questões econômicas em relação ao clérigo e por viés disso valorizava e propagava valores sociais como a castidade e preservação do corpo,
através de repressões e leis que gerou na comunidade católica uma reação agressiva, que resultou em uma maior perseguição ao sexo feminino. E, por consequência, por meio do pensamento disseminado pela igreja e da imaginação popular, foi criada uma ideologia
ruim sobre a mulher, especialmente associada à figura da “Bruxa” que durante o século XV muitas vezes é associada diretamente ao estudo sobre demonologia, em que tinham o princípio de provar a existência do Diabo, bem como a sua maldade por viés das bruxas, relacionando diretamente o pecado com a mulher. A caraterística mais marcante dos processos de bruxaria é o da criminalização das mulheres. Até essa data seus responsáveis legais eram seus pais ou maridos e, portanto, as mulheres apareciam excepcionalmente nos tribunais. Inicia-se, então, um período no qual, particularmente as velhas que habitavam a região rural, viúvas a maior parte das vezes, começam a se apresentar em massa, acusadas de bruxaria (TOSI, 1991, p. 27-32).
Em uma sociedade em que, mesmo com os conflitos religiosos e suas divergências, ninguém questionava o Cristianismo, a figura da mulher “Bruxa” era tida como pecadora e criminosa, considerada pela Igreja, pela sociedade e pelo tribunal merecedora da morte. Porém, muitas vezes como no Tribunal da Inquisição, houve a prática de métodos e objetos de torturas sexuais com objetivo de fazer as mulheres confessarem em praça pública que eram praticantes de bruxaria. Como nas imagens a seguir: O número de acusações contra a bruxaria ao redor do mundo é desconhecido, entretanto, é possível afirmar que a maior parte do grupo penalizado era composto por mulheres. Portanto, foi utilizado como principal visibilidade da mulher, o seu corpo, a sua sexualidade, a violência que sofreu ou que praticou, a sua loucura, suas características frágeis e dóceis… o que as caracteriza ao longo da história e a cercam com palavras
pejorativas como bruxas, lésbicas, prostitutas, rebeldes e loucas. A partir de 1660, as perseguições e os julgamentos começaram a diminuir graças ao progresso, ao Iluminismo e a expansão da educação, porém mesmo assim durante muitas décadas ainda fizeram parte da cultura popular e muitas sociedades continuaram a caça às bruxas havendo linchamentos e exclusão social de suspeitas de bruxaria até meados do século XIX. 1.3 Efeito da Caça às Bruxas A mulher caracterizada como submissa e sem escolhas ou falas se tornou um atributo sócio-cultural, político e econômico. Ademais, os pensamentos de inferioridade sobre a postura feminina se deram complexamente na sociedade, estando presentes em diversas classes sociais e civilizações ao longo do tempo, “a manifestação e institucionalização da dominação masculina sobre as mulheres e crianças na família e a extensão dessa dominação sobre as mulheres na sociedade como um todo” (HUNTER, p. 239, 1988). Um dos maiores traços desde a Antiguidade até os tempos modernos em reflexo das sociedades patriarcais é o pensamento de que a mulher é meramente um objeto sexual, não podendo desenvolver outras ações. É possível identificar que durante a evolução humana o machismo se implementou de forma concreta na conduta da sociedade, elegendo que apenas o homem é o ser autossuficiente e defensor da família. Distingue-se que, durante o período da Caça às Bruxas, as estruturas de trabalho e religiosas mantinham sua formação apenas de membros masculinos. Ao longo da Idade Média (principalmente a partir do século XV) até o início da Idade Moderna, grande parte das mulheres
não podiam participar de institutos educacionais ou frequentar locais religiosos por serem julgadas incapacitadas em algumas comunidades, sendo também avaliadas por seu comportamento social e sua sustentação familiar. O patriarcado romano, assim como outros patriarcados da Antiguidade, vem servindo como referência para se pensar em uma ética monogâmica baseada na ideia de posse, dominação e violência. Podemos dizer que um dos precursores deste debate é Engels, que, a partir de uma perspectiva evolutiva, situa os patriarcados antigos como pertencentes a uma fase da civilização ocidental rumo à família burguesa. Esta proposição é explorada por Engels em A origem da família, da propriedade privada e do Estado (1891), ao postular, por meio da análise das forças produtivas, que o patriarcado teria surgido a partir do desenvolvimento de técnicas agrícolas e pastorais, que levaram a uma produção de excedentes os quais os homens passaram a controlar e comercializar. A regulamentação do corpo feminino, então, passaria a ter importância na medida em que surge no homem a preocupação em manter a propriedade. (AZEVEDO, p. 19, 2019).
Durante esse período, houve um colapso inimaginável de denúncias contra mulheres, já que, “em resposta à nova independência feminina, vemos o começo de uma reação misógina” (FEDERICI, 2018, p. 52), que defendia que qualquer comportamento fora do comum poderia ser considerado um ato criminal contra o poder do Estado. Assim, muitas mulheres eram acusadas injustamente e confessavam sua “culpa” para que a tortura terminasse; entretanto, mesmo que a tortura levasse à confissão, muitas delas eram sentenciadas à morte. Visto que a intenção era que isso causasse temor entre as pessoas fazendo com que o poder anulasse qualquer resistência às regras estabelecidas, a sentença poderia ser dada por enforcamento ou na fogueira, ambos em praça pública.
As estruturas sociais e religiosas impediam a presença da mulher durante os processos de tomada de decisão. Com o conservadorismo criado e o modelo de comportamento exigidos pela sociedade, as mulheres foram forçadas a seguirem padrões que com os anos mudaram em diversas maneiras. Enquanto isso, os ideais formados pelo homem justificavam as escolhas feitas no meio social. Com os anos e com milhares de mortos, sendo principalmente mulheres que foram torturadas e assassinadas injustamente pelo poder religioso instituído no meio político e social, a legitimação do poder se rompe durante a Idade Moderna com a reforma religiosa e trabalhista. A caça às bruxas teve seu fim no final do século XVII para o século XVIII havendo a diminuição de julgamentos com mudanças decorridas neste período. A Idade Moderna se estabelece com mudanças de pensamentos, o que representa consequências das revoluções políticas e sociais para com o poder anterior, estabelecido na Igreja. Com a implementação do capitalismo e novas técnicas agrícolas se abre espaço para transformações políticas, econômicas e sociais. A partir do surgimento do Iluminismo, abre-se portas para a possibilidade da expressão filosófica e científica, causando impacto no modo de pensar social e assim, motivando as mulheres a desenvolverem suas opiniões e visões, mas ainda assim, havendo segregação para o acesso à informação. A partir do século XIX, houve a abolição das leis matrimoniais institucionais; levando a um ponto em que as mulheres começam a ter mais importância dentro do âmbito sócio-econômico apesar de ainda enfrentarem linhas de pensamento conservadores que se mantiveram impregnados no imaginário das sociedades. A partir desse momento, abre-se espaço para o início das ondas
feministas, estabelecendo seu local de fala e nomeando todas as opressões vividas pelas mulheres, o que levou, eventualmente, ao nascimento de direitos sociais para mulheres. A violência contra a mulher começa a ter nome, o feminicídio, a desigualdade, o conservadorismo vivido começa a ser criticado, cedendo espaço para que a presença feminina possa falar e estudar, não sendo mais um objeto manipulado pelo Estado patriarcal.
Federici resgata o papel das lutas que o proletariado travou contra o poder feudal e destaca o papel fundamental da mulher nesse processo. A pesquisadora ainda destaca que na realidade o capitalismo não foi uma solução ao feudalismo, tampouco uma forma mais elevada de vida social, como correntes liberais assim a defendem. Em verdade, o capitalismo surge como uma contrarrevolução em resposta aos conflitos sociais. As relações que as mulheres tinham com o espaço e a proposta de uma vida comunal eram contrárias à ordem capitalista. A ameaça que representavam estava embasada justamente na demonstração de outro mundo possível. (GAMA, p. 270, 2017)
A consolidação do capitalismo se estabelece como uma nova estrutura sócio-econômica que promove o surgimento de novas tecnologias, causando um novo movimento de ideias para a classe trabalhadora que ainda sim, segue-se com as diversas revoluções das classes trabalhadoras acontecendo, se busca um acerto estrutural no meio social. “Federici revela que neste momento compreendeu que a luta contra o ajuste estrutural fazia parte de uma grande luta bem mais ampliada” (GAMA, p. 267, 2017). As imposições do Estado ainda permaneciam presentes no capitalismo, representando a exclusão das mulheres no meio de trabalho assalariado e produtivo.
[...] nova divisão sexual do trabalho; a construção de uma nova ordem patriarcal baseada na exclusão
das mulheres de trabalhos remunerados acarretando um efeito de subordinação e de dependência econômica em relação aos homens; a mecanização do corpo proletário e, no caso das mulheres, na transformação de seus corpos em máquinas de produção de novos trabalhadores. (GAMA, p. 270, 2017)
Os processos de colonização durante o século XIX demonstraram a chegada do modelo ideal racial, o europeu branco de elite, uma vez que a colonização resultou em hierarquias raciais, tráfico de escravos segregados por seu tipo de pele e condições de sustento, ideologias racistas e preconceituosas. A disseminação do capitalismo gerou muita violência e mortes, Com a colonização, os europeus trouxeram para o chamado Novo Mundo a caça às bruxas e as acusações de adoração ao demônio. Dessa forma, romperam a resistência das populações locais justificando a violência com que todo o processo ocorreu, sobretudo, em relação ao tráfico de escravos. Foi difundida uma ideologia da bruxaria e do racismo, além de uma visão diabólica desses corpos. O diabo frequentemente era retratado como um homem negro (GAMA, p. 276, 2017).
O capitalismo se tornou o principal potencial econômico na maior parte dos países ao redor do mundo, tendo perseverado até o século XXI, regendo todos os aspectos da vida em sociedade. Dessa maneira, sua ideologia afeta os meios sociais do mundo todo, onde podemos ver a desigualdade, o racismo e o machismo enraizados na sociedade, entre outros tantos aspectos. “Ainda hoje, séculos após todo o processo de ‘transição’ entre o feudalismo e o capitalismo, é possível detectar aspectos fundantes do período. As medidas violentas para condicionamento de uma nova lógica produtiva ficaram enraizadas” (GAMA, p 277, 2017). A luta feminista teve diversas conquistas, como por exemplo o direito ao voto e ao trabalho. Entretanto, o movimento ain-
da busca por mais feitos para que assim as mulheres tenham os mesmos direitos e deveres que os homens. Atualmente, no século XXI, as mulheres ainda são tratadas como objeto sexual, não possuem igualdade salarial a homens que efetuam a mesma função, e ainda são tratadas como inferiores. A violência e a desigualdade direcionadas às mulheres são pontos ocorrentes mundialmente, por isso o movimento feminista busca o fim do machismo enraizado na sociedade. 1.4 A Imagem da bruxa na cultura popular A cultura popular não é necessariamente o antônimo de erudito, mas sim por caracterizar, segundo Chauí (1986), uma combinação de resistência e conformismo. A cultura popular é, de fato, composta por diferentes formas de arte que têm recepção por grandes grupos populacionais de maneira individualista. Dessa forma, é vista “como um instrumento que serve para auxiliar no sentido de colocar problemas, evidenciar diferenças e ajudar a compreender a realidade social e cultural” (ABREU, 2003, p. 84). É, além disso, composta por formas de expressão que podem ter significados diferentes para cada consumidor dependendo da sua realidade. De modo que, segundo Georgis (2013), o consumo de histórias é a principal forma que a sociedade utiliza para compreender as diferentes experiências humanas, os principais expoentes da produção cultural serão utilizados para avaliação da imagem da bruxa como tal. Passando, logo, pelo estereótipo de bruxa “assustadora que adquire seus poderes em conluio com o Demônio até crianças que usam seus poderes natos na luta contra forças maléficas” (DIAS; CABREIRA, 2019, p. 178) no cinema, televisão e literatura.
1.4.1 Cinema Cronologicamente, a primeira película a retratar uma bruxa em sua trama foi o sueco Häxan: A Feitiçaria Através dos Tempos (1922), seguido por Branca de Neve e Os Sete Anões (1937), O Mágico de Oz (1939) e I Married a Witch (1942). São filmes de diferentes gêneros, diretores e temas: mostrando, logo, a pluralidade de opções para retratar essas personagens, mas que ainda mantêm, muitas vezes, uma imagem maléfica da bruxa. De acordo com Dias e Cabreira (2019), a imagem da bruxa no cinema aparece tanto como mantenedora quanto modificadora da relação que a sociedade pode estabelecer com a bruxaria: afinal, filmes com lançamentos tão próximos, como é o caso de O Mágico de Oz e I Married A Witch, retratam a bruxa através de espectros totalmente opostos - no primeiro, a Bruxa Malvada do Oeste é má, feia e infeliz; enquanto Jennifer, de I Married a Witch, é jovem e bela.
Ao longo das décadas subsequentes, foram lançados mais de dezenas de filmes cujas personagens principais são bruxas, cujos exemplos são Suspiria (1977, com um remake em 2018), As Bruxas de Eastwick (1977) e Elvira: A Rainha das Trevas (1988). Em 1989, o japonês O Serviço de Entregas da Kiki foi lançado, tornando-se um dos primeiros desenhos animados a retratar uma jovem bruxa como sua personagem principal. E, dentre os filmes lançados durante a década seguinte, encontram-se alguns dos clássicos do gênero de fantasia: The Witches (1990), Abracadabra (1993) e Halloweentown (1998), direcionados, inclusive, ao público infanto-juvenil. Nos dois primeiros, a bruxa que mantém pactos demoníacos retorna - afinal, caçam crianças para
manterem sua juventude - mas utilizam-se de artifícios cômicos e, no caso de Abracadabra, musicais. De acordo com Dias e Cabreira (2019), ao passar dos anos, é inserida a representação das bruxas boas e más como opostas, tanto no cinema quanto na sociedade, colocando a responsabilidade do uso da feitiçaria naqueles que a buscam, não em uma força maior que controla e se aproveita de seus servos. Com a virada do milênio, são lançados retratos cinematográficos menos preconceituosos das bruxas, que passam também a relacioná-las ao conhecimento da natureza e rituais simplificados. Harry Potter e a Pedra Filosofal (2001) não apresenta referências a quaisquer religiões, e seus bruxos - tanto homens quanto mulheres - têm seus poderes, na maioria das vezes, passados por seus ascendentes familiares e, além disso, “tanto a magia benevolente quando a magia das trevas são acessíveis a todos os bruxos, novamente deixando a responsabilidade do uso a cargo da consciência individual” (DIAS; CABREIRA, 2019, p. 182). Em 2014, dois filmes com tons de contos de fada foram lançados: Malévola e Into the Woods. No primeiro, o arco de redenção de Malévola, a bruxa má de A Bela Adormecida (1959), acontece quando ela apresenta
[...] seu papel vingativo e malévolo transformado positivamente para que a ordem se restabeleça. Sem contar o significado positivo que lhe é atribuído como aquela que salva Aurora (Elle Fanning) de seu sono profundo através de um beijo marcado pelo “verdadeiro amor”. Nesta cena vemos como a ideia do feminino “construtivo” usurpa o papel do príncipe salvador, aquele - representante masculino - que trará redenção à princesa enclausurada e silenciada (DIAS; CABREIRA, p. 195, 2019).
Do outro lado, baseado no musical da Broadway de mes-
mo nome, Into the Woods relata a vida de um casal que busca acabar com uma maldição colocada, novamente, por uma bruxa má. Esta é retratada de maneira grotesca e vingativa; mas que, ao decorrer da trama, tem sua beleza restabelecida uma vez que a maldição é desfeita e perde seus poderes. Ou seja, [...] é possível constatar releituras de um feminino marcadamente sombrio e desfigurado pelo poder patriarcal de nossas sociedades. No entanto, tais releituras podem acabar retornando ao estado mais perverso que, assim como Satanás, perseguem e espreitam a sociedade e a cultura popular que recria tal imaginário (DIAS; CABREIRA, p. 196, 2019).
1.4.2 Televisão Apesar de o primeiro exemplo de seriado de televisão sobre bruxas ser A Feiticeira (1964-1972), o protagonismo da bruxa nessa forma de entretenimento se deu de fato na década de 1990 quando, praticamente ao mesmo tempo, foram lançados Sabrina, Aprendiz de Feiticeira (1996-2003), Buffy, a Caça-Vampiros (19972003) e Charmed (1998-2006). As tramas focavam em jovens bruxas, com público-alvo também composto por adolescentes, sendo notável que
A magia deixa de ser um reduto demoníaco, se insere na sociedade pela experimentação e por sua busca direta. Do mesmo modo, a ideia do mal como aspecto intrínseco da bruxa é transferida para uma característica do ser humano, livrando as bruxas de um peso que carregam desde suas primeiras condenações (DIAS; CABREIRA, p. 178, 2019).
Esses programas apresentam bruxas como protagonistas
interessantes, mas, mais do que isso, são “bruxas que combatiam o mal com seus superpoderes ao mesmo tempo em que tentavam levar vidas normais” (COSTA, p. 20, 2017) - indo na direção oposta da maioria das produções cinematográficas do gênero e
reconstruindo a imagem da bruxa no entretenimento de acordo com novas correntes de pensamento. Quase duas décadas depois, American Horror Story: Coven (2013) retrata a tentativa da sobrevivência de um grupo de bruxas descendente dos julgamentos de Salem. Conforme Lonergan (2017), a série lida implicitamente com questões de feminismo através das bruxas - uma vez que, historicamente, feministas são chamadas bruxas e vice-versa. Além disso, a autora também afirma que o retrato de diferentes tipos de bruxas reflete diferentes alçadas do feminismo, ao mesmo passo que apresenta mulheres que são ao mesmo tempo heroínas e vilãs, fugindo da dicotomia de bem vs mal. Durante a última década, a gigante Netflix produziu alguns seriados focados em bruxas, com destaque para Sempre Bruxa (2019), Luna Nera (2020) e O Mundo Sombrio de Sabrina (2018). Este último é uma versão mais sombria do clássico dos
anos 90, Sabrina, Aprendiz de Feiticeira. Entretanto, trata temas mais complexos enquanto, para Steinke (2019), desafia e cria um novo discurso sobre que tipo de autonomia corporal uma bruxa e, mais do que isso, uma bruxa adolescente possui. Dessa forma, parte da primeira temporada entrelaça questões sistemáticas e de empoderamento feminino com as motivações apresentadas pela bruxaria, uma vez que, conforme Steinke (2019), A bruxaria e o satanismo se tornam metáforas da opressão e as estratégias pelas quais essas questões de opressão têm um caráter que desafia tudo sobre esses sistemas institucionalizados, como a Igreja e até o conselho escolar.
No caso das produções audiovisuais brasileiras, nota-se a
preferência para retratar o folclore da própria cultura, entretanto,
em Castelo Rá-Tim-Bum (1994), a figura da Morgana está presente. A personagem é uma bruxa de mais de 6.000 anos de idade, mas é uma figura maternal e amorosa para Nino, o protagonista da trama. 1.4.3 Literatura Conforme estudos de Raymond Mar (2018), professor e psicólogo da Universidade de York, no Canadá, pessoas que têm costume de ler, principalmente ficção, parecem ter mais capacidade de entender outras pessoas, sentir empatia por elas e ver o mundo sob suas perspectivas. Sendo assim, a literatura é uma ótima saída para ligar, conforme mencionado anteriormente para os diferentes formatos de entretenimento, questões sociais ao consumo cultural. E, assim como a sociedade mudou sua perspectiva da mulher bruxa, a literatura também apresenta diversos retratos dessa figura ao longo do tempo. 1.4.3.1 Literatura internacional Enquanto a própria Bíblia faz menções à magia, como a alegação em Êxodo 22:18 de que “a feiticeira não deixarás viver”, a sua consolidação se dá a partir da literatura clássica, quando já se faziam ligações pejorativas a essas mulheres. Conforme Russell e Alexander (2019), A imagem da feiticeira na literatura clássica é quase uniformemente tenebrosa: Circe, a sedutora; Medeia, a assassina; Dipsias, de Ovídio, Oenoteia, de Apuleio e especialmente Canídia e Sagana, de Horácio, aquelas que com seus rostos lívidos e hediondos, descalças, cabelos desgrenhados e roupas andrajosas, reuniam-se em um lugar ermo para escavar o solo com seus dedos em forma de garras, esquartejar um cordeiro negro, comer-lhe a carne e evocar os
deuses infernais. Essa tradição literária da feitiçaria perversa serviu facilmente de base para a ulterior imagem cristã da bruxa.
Séculos depois, William Shakespeare (1564-1616) usufrui de bruxas como personagens secundárias e protagonistas multidimensionais em Macbeth (1603), com Lady Macbeth e as três bruxas profetas, e Sycorax em The Tempest (1610). A inserção da mulher bruxa amarga, perversa e anulada, alega Lobo (1997), é reflexo da relação da sociedade elisabetana com a mulher, que a retira
[...] como autora, leitora capaz e personagem sujeito, sobrando poucas personagens femininas com papel ‘relevante’ [...] que são construídas esteticamente como mulheres rebeldes contra o sistema falocentrico e tornar-se-iam exemplos negativos, tal como fora Medeia e Circe na literatura clássica. (PARADISO, p. 193, 2011).
A dicotomia do bem e mal é resgatada com a presença da bruxa nos contos de fadas dos irmãos Grimm, Hans Christian Andersen (1805-1875) e Jean de La Fontaine (1621-1695). Aterrorizantes, eram “causa do pavor contido nas histórias infantis. Mistura de ser místico e ser humano, elas são um dos meios para causar o medo e, consequentemente, recurso para educar os mais jovens” (GARCIA, p. 694, 2018). Dessa forma, consolida-se a imagem da bruxa no imaginário da população como alguém perverso - dentro e fora da literatura. O contraste a esse arquétipo se dá apenas a partir da década de 1990. Em Wicked: A História não Contada das Bruxas de Oz (1995), Gregory Maguire discorre sobre o passado da Bruxa Má do Oeste, dando-lhe um arco de redenção tão poderoso que foi transformado em um dos musicais da Broadway de maior sucesso.
Pouco depois, em 1998, J.K. Rowling publicou o que viria a ser um dos maiores fenômenos literários já vistos; Harry Potter e a Pedra Filosofal conta a história de diversos bruxos em diferentes estágios da vida; apesar de focar na infância e adolescência dos alunos de Hogwarts, uma escola de magia. Com um leque tão amplo de personagens, a autora traz complexidade e multiplicidade de caracterização a um molde antes tão fechado e, logo, faz com que diferentes pessoas se identificassem com a obra. Mas, além disso, Pelo fato de a série ter um grande público infantil, é também grande a responsabilidade sobre as representações que constrói ao longo das narrativas. Nesse sentido, devem ser tratadas com cautela também as relações de gênero presentes nessas histórias, visto que a identidade de gênero começa a se organizar ainda na infância e, portanto, a criança e o adolescente podem ser altamente influenciados pelas simbologias atribuídas aos personagens (BORGES-TEIXEIRA; PIETA, p. 138, 2019).
Com a consolidação do gênero de fantasia e a desmistificação da bruxa como uma personagem essencialmente má, o lançamento de livros cujas protagonistas são bruxas cresce exponencialmente. Mas mais do que isso, são mulheres complexas, inteligentes e independentes, como é o caso das mulheres da família Duchannes em Dezesseis Luas (2009) e de Diana Bishop de A Descoberta das Bruxas (2011), que receberam adaptações para o cinema e televisão, respectivamente. A produção de conteúdo literário relacionado a bruxas só se expande, tanto no espectro de ficção quanto no de não-ficção. Dessa forma, vemos o universo fantástico se expandido constantemente com livros como Labyrinth Lost (2016), A Bruxa de Akata (2018) e Nocturna (2019), que abordam, além da questão de gênero, temas minoritários de diferentes etnias.
Além disso, livros como Calibã e a Bruxa (2018), A História da Bruxaria (2019) e As Bruxas: intriga, traição e histeria em Salem (2019) trazem luz para as diferentes conjunturas históricas que levaram à perseguição da mulher por tantos anos, causando efeitos até os dias de hoje. 1.4.3.2 Literatura nacional A literatura brasileira clássica também apresenta algumas personagens que se encaixam no molde da bruxa perpetuado durante os séculos anteriores, com destaque para O Cortiço (1890), em que Paula, ao apresentar conhecimentos sobre utilização de ervas para a saúde, é vista como feiticeira. Ao longo da trama, parece se render à insanidade, sendo a responsável por um incêndio no cortiço que habitava e remetendo a imagem das fogueiras da Inquisição. A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa. Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada, escorrida e abundante como as éguas selvagens, dava-lhe um caráter fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo, com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante de maluca. Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão de brasas (AZEVEDO, 1995, p. 165).
Em anos subsequentes, a primeira aparição de uma per-
sonagem bruxa foi em Brida (1990), de Paulo Coelho. Entretanto, com a ascensão do gênero de fantasia no cenário brasileiro durante as últimas décadas, autores nacionais também trouxeram a questão da bruxa como personagem complexa e com ideais em, por exemplo, O Livro da Bruxa (2000), As Bruxas de Oxford (2011) e Porém Bruxa (2019), abrindo espaço para cada vez mais obras com motivações similares. CONSIDERAÇÕES FINAIS A caça às bruxas foi indubitavelmente o maior feminicídio da História, trazendo marcas até os dias de hoje, afetando a conduta sexual, cotidiana e acadêmica da mulher. No sistema social e econômico atual, embora as mulheres vocalizem suas opiniões e vontades, elas não são levadas em conta. Exemplificando, em reuniões de uma empresa ainda hoje uma mulher mesmo em seu local de fala pode ser desconsiderada e sofrer mansplaining, termo usado quando um homem tenta expli-
car algo de forma condescendente para uma mulher, assumindo que ela não entenda o assunto. Muitas mulheres não se sentem empoderadas, com voz, ou não veem o poder que tem. Ou seja, mesmo quando a mulher assume uma posição diferente da qual foi imposta a ela, a sociedade tenta silenciá-la por meio de seus padrões aceitos apenas por uma parcela da população. Quando se fala sobre bruxas, abordam-se diferentes expressões sobre o preconceito existente contra a mulher. Dessa forma, foi forçada a pagar para a sociedade um preço altíssimo pelo privilégio de falar, sendo o esquecimento ou a fogueira. Em resumo, no patriarcado a figura masculina se acha no dever de moralizar e subjugar a mulher em todos os aspectos. Dessa forma, nota-se que o homem acredita que tem poder sobre
o corpo, mente e ações da mulher há séculos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRACADABRA. Direção: Kenny Ortega. EUA: Walt Disney Pictures, 1993 (96 min). A BELA ADORMECIDA. Direção: Clyde Geronimi. EUA: Walt Disney Pictures, 1959 (96 min). ABREU, M. Cultura popular: um conceito e várias histórias. In: ABREU, M.; SOIHET, R. (Orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003, p. 83-102. AS BRUXAS DE EASTWICK. Direção: George Miller. EUA: Warner Bros, 1987 (118 min) A FEITICEIRA. Direção: William Asher, EUA: ABC, 1964-1972 (254 episódios). AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. 28ª ed. São Paulo: Ática, 1995. AZEVEDO, Sarah. A ética da monogamia e o espírito do feminicídio: marxismo, patriarcado e adultério na Roma Antiga e no Brasil Atual. Rev.História., Assis/Franca, vol.38, Dezembro 2019. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-90742019000100310&script=sci_arttext#fn4>.Acesso em 21 Mar. 2020. BÍBLIA SAGRADA. 9. ed. So Paulo: Paulinas, 1981. BRANCA DE NEVE E OS SETE ANÕES. Direção: David Hand. EUA: Walt Disney Pictures, 1937 (83 min). BONNICI, Thomas. TEORIA E CRÍTICA LITERÁRIA FEMINISTA: Conceitos e Tendências. Maringá: Eduem, 2007. BUFFY, CAÇA-VAMPIROS. Criador: Joss Whedon. EUA: 20th Century Fox Television, 1996-2003 (144 episódios).
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