Coleção 10V - 2º Ano - Filosofia - Aluno

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Diego Moraes


FRENTE

A Laocoon. Autor: El Greco (1610)


FILOSOFIA Por falar nisso A Ciência Política nasce com Maquiavel. Essa é uma assertiva consensual entre os principais estudiosos, não somente do Humanismo, quanto da moderna teoria política que desenhou-se na Europa após o declínio da Idade Média. O pensador florentino foi responsável por conceber a política a partir de uma análise denominada “realista”, focada na experiência concreta e na observação histórica, diferindo-se da forma essencialista dos filósofos desde os primórdios da tradição socrático-platônica. Enquanto estudioso da res publica (“coisa pública”), destacou-se por fundamentar sua teoria política de modo experiencial. Isto é, partir dos fatos (“como as coisas são”) e não de uma perspectiva ideal e metafísica, tais quais a perspectiva socráticoplatônica ou mesmo cristianizada. Seguindo a tradição que se afirma como marco da modernidade, a teoria política de base laica e contratual encontra eco em autores posteriores a Maquiavel. Nesse intercurso, filósofos como Thomas Hobbes, John Locke, Jean-Jacques Rousseau irão ampliar as reflexões secularizadas por Maquiavel, instaurando um conjunto de teorias conhecidas como Contratualismo.

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Nas próximas aulas, estudaremos os seguintes temas A teoria política de Nicolau Maquiavel no contexto do Renascimento ....................................... 8 Thomas Hobbes e o contexto das teorias contratuais ................................................................15 O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith .................................................23 Jean-Jacques Rousseau: o bom selvagem e a origem da desigualdade entre os homens ....... 30


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A01

ASSUNTOS ABORDADOS n A teoria política de Nicolau Ma-

quiavel no contexto do Renascimento n O Príncipe, de Maquiavel

SAIBA MAIS

A TEORIA POLÍTICA DE NICOLAU MAQUIAVEL NO CONTEXTO DO RENASCIMENTO O termo “Renascimento” (Rinascenza) indica o florescimento tardio, na Europa, de atividades artísticas e científicas, resultando numa mudança de mentalidade que caracterizou o início da modernidade. O primeiro uso desse termo foi feito pelo historiador italiano, Giorgio Vasari (1511 - 1574), no Vite, publicado em 1550. Posteriormente, historiadores como Jules Michelet (1798-1784) e Jacob Burkhardt (1818-1897) passaram a utilizá-lo com maior propriedade para indicar uma pluralidade de transformações ocorridas, inicialmente na Itália, e depois expandida por toda a Europa. De forma sintética, o Renascimento pode ser concebido de duas maneiras. Primeiramente, como uma “redescoberta” dos textos clássicos e antigos, além da aprendizagem, com suas aplicações nas artes e nas ciências. Em outras palavras, representa uma busca, por utilizar-se do pensamento filosófico e científico mais próximo de sua origem temporal, divorciada da releitura cristã, operada na Idade Média por patrísticos e escolásticos. Depois, enquanto resultado dessas atividades intelectuais que promoveram uma mudança de mentalidade, promovendo uma revitalização da cultura europeia distanciada de sua acepção estritamente cristã. Embora o Renascimento em suas amplas acepções tenha impulsionado toda uma gama de revisões paradigmáticas e comportamentais na Europa, é preciso considerar que ele não simbolizou um movimento isolado tão somente de sua época. Historiadores como Charles H. Haskins (1870) defendem, por exemplo, um renascimento que já ocorria no crepúsculo da escolástica, fruto das reformas carolíngeas. Assim, muitos dos valores (éticos ou técnicos) presentes em tal movimento já encontravam guarida numa reformulação e experimentalismo epistemológico e estético presentes, na cultura europeia desde o Humanismo.

Giorgio Vasari foi um pintor e arquiteto italiano conhecido principalmente por suas biografias de artistas italianos. Nasceu em Arezzo, no dia 30 de julho de 1511 e faleceu em Florença, em 27 de junho de 1574. Vasari é tido como o primeiro historiador da Arte por meio de seu livro intitulado Vite (ou Vite de’ più eccellenti pittori, scultori e architettori). Nessa obra, ele biografou os principais artistas do Renascimento. Publicado pela primeira vez em 1550, o livro incluía, além das biografias, um valioso tratado das técnicas empregadas. Teve uma revisão em 1568, acrescida de retratos dos biografados. Apesar do pouco rigor metodológico e historiográfico de Vassari, sua obra é tida como uma importante fonte para a História da Arte do início da modernidade.

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Fonte: Wikimedia Commons

Figura 01 - Capa da obra Vite, de Giorgio Vassari.

Figura 02 - Retrato de Nicolau Maquiavel. Autor: Sandro di Tito (1536-1603).


Ciê ncias Humanas e suas T ecnolog ias

Francesco Petrarca foi um intelectual, poeta e humanista italiano, famoso, principalmente, devido ao seu romanceiro. Como humanista, creditava à filosofia e à literatura antiga um imenso valor e instrumental capaz de influir no desenvolvimento da moralidade humana. Embora muitos pensadores associem o Humanismo a uma vertente secular (laica), Petrarca era um devoto cristão e não via conflitos entre a realização do potencial humano e a fé religiosa. Uma importante dimensão filosófica surgida nesse tempo dizia respeito à oposição entre as chamadas “vita contemplativa” (preconizada pelos cristãos desde a Patrística) e “vita activa” (dimensão prática da ação política). Petrarca buscou um equilíbrio entre as duas esferas, enfatizando a primeira em relação à segunda, afirmando ser de fundamental importância a solidão e o estudo. Já para outros humanistas de seu tempo, como o político e pensador Leonardo Bruni, a vida ativa devia estar no cerne das reflexões humanistas (Daí o termo “Humanismo Cívico”), uma vez que a principal característica do movimento era justamente o resgate das perspectivas teóricas e práticas do mundo antigo. Embora os principais teóricos do Humanismo tenham vivido ainda no século XIII, suas teses demoraram muito a vigorarem. Somente na aurora do Renascimento italiano do século XV, é que o suas ideias inovadoras ganharam relevância. No entanto, mesmo não provocando mudanças imediatas, foram fundamentais por iniciarem uma lenta e profunda transformação no campo da teoria política - o que viria a se materializar nos séculos seguintes, sobretudo quando o Estado Moderno passou a sobressair-se em relação ao poder papal.

Fonte:

Dessa forma, autores como Dante Alighieri (de A Divina Comédia) e Marsílio de Pádua foram seminais do resgate do Republicanismo - um poder fundado não na autoridade divina, mas, antes, na vontade do povo. Para Dante, Deus teria nos concedido o “livre raciocínio e vontade”- condições suficientes e necessárias para a perfeita condução da vida política. Marsílio, de modo mais radical, rejeita o cesaropapismo de sua época, recusando assim a tutela religiosa e a mediação papal. Ambos defendem que a razão, a vontade e o livre-arbítrio (características fundamentais da condição humana) configuravam-se como condições pré-políticas adequadas ao exercício da cidadania (aos moldes republicanos).

Figura 03 - Portrait of Francesco Petrarca (1304-1374). Autoria: Desconhecida.

Com os humanistas, a política voltou a ser vista como a mais importante das artes humanas, a atividade capaz de proporcionar aos homens o mais elevado de todos os bens. Essa valorização da atividade política foi acompanhada pelo elogio da república. Para Bruni, por exemplo, o que os gregos chamavam de política deveria ser denominado “preceitos sobre a república”, pois seu objetivo era a realização de um bem comum, que só se dava numa verdadeira república, ou seja, numa sociedade política bem ordenada em que os cidadãos alternam-se nos cargos públicos e participam ati9

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Dessa forma, para compreender o Renascimento, devemos lançar o olhar para a base das ideias, em seu conjunto, que configuraram justamente essa reorientação de valores e mentalidades. Em outras palavras, precisamos entender o que foi o Humanismo- a base intelectual do Renascimento Cultural. Em linhas gerais, o Humanismo (studia humanitatis) foi a filosofia-base do(s) Renascimento(s). Caracterizou-se pela ênfase dada à capacidade humana de regular sua vida moral e social, tomando como base a racionalidade intrínseca da sua condição existencial. No campo político, representou a defesa de ideais republicanos; o resgate da noção antiga de cidadania; a recusa da tutela religiosa, por consequência, uma defesa irrestrita do laicismo- a separação objetiva entre Igreja (poder espiritual) e Estado (poder temporal). A fundação do referido movimento é atribuída a Francesco Petrarca, enquanto contraposição à dominância da tradição (teológica) escolástica, justamente por buscar um retorno mais sistemático aos textos clássicos (litterae), diferentemente do que tinha sido feito até então pelos cristãos. O cerne da cisão estava na forma de como se retomar e interpretar a filosofia/literatura antiga (greco-romana). Para os humanistas, a perspectiva deveria resgatar a dimensão antropológica cara do essencialismo da tradição socrático-platônica. Para os escolásticos, era necessário o deslocamento dessa questão antropocêntrica, uma vez que a única mediação interpretativa possível entre o homem e o mundo dava-se pelo instrumental teológico. Em síntese, o Humanismo resgatou a dimensão antropocêntrica em detrimento da perspectiva teocêntrica, que havia dominado a Europa Medieval até então.


A01  A teoria política de Nicolau Maquiavel no contexto do Renascimento

Filosofia

vamente do governo. A república não era vista apenas como o lugar de proteção e de satisfação das necessidades materiais, mas também onde os cidadãos partilhavam de leis, costumes, magistraturas, cerimônias religiosas e públicas, experimentando relações de amizade e solidariedade.

mentais. Ainda que suas obras sejam vistas como “manuais” para o exercício do domínio, seja no âmbito político (ou até mais recentemente, empresarial), as teorias de Maquiavel estão dois passos à frente desse reducionismo; ou melhor, da má interpretação de seu (complexo) pensamento.

Embora haja um reconhecimento por parte da historiografia do Humanismo que desde o século XIII a questão da república já era tematizada (SKINNER, 1996), é fato que só podemos conceber a pujança do ideário republicano apenas após o século XV, na Itália renascentista. E o nome por excelência- e indubitável- nesse contexto, é o de Nicolau Maquiavel. Sem sombra de dúvidas, é com o pensador florentino que o ideário republicano (e sua problematização) encontrará suas feições modernas.

Nicolau Maquiavel nasceu em Florença, no dia 3 de maio de 1469. A bem da verdade, pouco se sabe sobre sua infância e juventude, a não ser que era oriundo de uma família toscana, sendo o terceiro (de quatro) filho (s) de Bernardo e Bartolomea di Nelli. Embora de condição pobre, pôde estudar aos sete anos o Latim e fundamentos do grego antigo e ábaco. No entanto, se formos comparar com outros influentes pensadores de sua época, Maquiavel teve uma formação intelectual bastante modesta, dado os limitados recursos familiares.

A Ciência Política nasce com Maquiavel. Essa é uma assertiva consensual entre os principais estudiosos, não somente do Humanismo, quanto da moderna teoria política que desenhou-se na Europa após o declínio da Idade Média. O pensador florentino foi responsável por conceber a política a partir de uma análise denominada “realista”, focada na experiência concreta e na observação histórica, diferindo-se da forma essencialista dos filósofos desde os primórdios da tradição socrático-platônica.

Em 1498 inicia sua vida pública e política, na condição de Chanceler. Primeiro, torna-se responsável pela política externa e pela correspondência internacional. Depois, assume a secretaria da Segunda Chancelaria de Florença, aos 29 anos. Ocupava-se de assuntos de guerra e da política interna, em atividades que variavam de tarefas burocráticas e de assessoria política até a diplomacia e de comando no “Conselho dos Dez”- comité executivo e judicial responsável pela segurança de Estado.

Enquanto estudioso da res publica (“coisa pública”), destacou-se por fundamentar sua teoria política de modo experiencial. Isto é, partir dos fatos (“como as coisas são”) e não de uma perspectiva ideal e metafísica, tais quais a perspectiva socrático-platônica ou mesmo cristianizada. O pensador florentino procurou tecer suas considerações sobre a política, observando atentamente as diversas disputas engendradas entre os diversos reinos espalhados por toda a Península Itálica. A partir daí, desenvolveu um “diagnóstico” das situações, procurando teorizar sobre as melhores formas de garantir a manutenção do poder, visando ao “bem público”. Em suma, o vigor da obra de Maquiavel está em demonstrar que a ação política é efetivamente balizada por uma moralidade pragmática e direcionada para a realização de fins e valores sociais (relativos a cada contexto histórico ou localidade), e não por princípios éticos absolutos, fundados, a priori, pela moralidade cristã.

O Príncipe, de Maquiavel “Os fins justificam os meios”. Seguramente, essa é uma das frases mais impactantes da modernidade a entrar no rol da linguagem popular. “Maquiavélico” também tornou-se um adjetivo para (des) qualificar a intenção e a ação (i)moral de alguém. Em suma, ambos se conectam para designar um tipo de pessoa sem escrúpulos, incapaz de medir as consequências de seus objetivos, uma vez que o que importa é o seu sucesso em atingi-los. No entanto, o pensamento de Maquiavel não pode ser reduzido a essas premissas comporta10

Após 14 anos de atividade pública direta, Nicolau Maquiavel foi preso e torturado, acusado de ligação com governo republicano que tramava uma conspiração contra o governo Médici. É justamente dessa experiência com a vida pública florentina, que Maquiavel encontrará subsídios intelectuais para escrever suas seminais obras, com destaque para O Príncipe que, embora escrito em 1513, foi publicado apenas em 1532. Em vida, pôde contemplar apenas a publicação de duas de suas obras: A Mandragola (A Mandrágora), uma comédia de 1515, publicada em 1524, e Arte della guerra (A Arte de Guerra), escrita entre 1519 e 1520, que tem como cenário as reuniões intelectuais dos Ortii Oricellari (Jardins de Rucellai), local onde reunia-se a Academia Florentina. Maquiavel morreu em Florença, no dia 21 de Junho de 1927. Após seu falecimento, sobretudo a partir de 1931, diversas de suas obras foram publicadas, com destaque para Discorsi sopra la prime deca di Tito Livio (Discursos sobra a primeira década de Tito Lívio), escritos em 1517 e publicados em 1531; Vita di Castruccio Castracani (1520), um condottieri que governou Lucca de 1316 a 1328, uma Istorie Fiorentine (escrita entre 1520 e 1525), as comédias Clizia (escrita por volta de 1524) e Andria, o conto Belfagor, e - como já aludido - a sua mais conhecida obra Il Principe (O Príncipe). Esta é um tratado político escrito em 25 capítulos, com uma conclusão que sugere a libertação do território florentino das intervenções francesas e espanholas. Em que pese o fato de ter sido acusado de conspirar contra o Governo, a obra fora dedicada a Giuliano de Médici. Posteriormente, em 1516 passou a ser dedicada ao sobrinho deste, Lorenzo, antes dele se tornar duque de Urbino.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

A obra inicia com Maquiavel operando uma distinção entre as formas de Estado existentes. Segundo ele, todos os que existiram e existem foram (ou são) formados por principados ou repúblicas. Esses podem ser regidos por duas categorias de detenção do poder: ou um só governa, ou um conjunto de cidadãos. A partir dessa distinção, o teórico político florentino analisa as condições para a ação política, seus limites e possibilidades a partir da atuação de um Príncipe. E é precisamente aqui que Maquiavel se distanciará em definitivo da tradição política (clássica ou medieval) e até mesmo dos primórdios do Humanismo. A primeira, tendia a conceber a teoria política numa dimensão “normativa” e “prescritiva”, isso é, suas abstrações filosóficas buscavam estabelecer, filosoficamente, as normas morais/virtudes adequadas (e ideais) para a atuação do governante, ao mesmo tempo em que cada uma, a seu modo, definia qual o melhor regime de governo para se atingir o bem comum - um valor moral/social absoluto e universal. Seja ele fundado na razão ou na axiologia cristã, tais valores deveriam guiar a prática política, e excluir tudo aquilo (comportamento ou regime) contrário a esse desiderato. Já no Humanismo, seguia-se a noção da necessidade de um homem virtuoso para a condução política e a inserção na própria vida cidadã. Segundo Alberto de Barros (2012, p.80):

pública e a preservação do “bem público”. Nicolau Maquiavel defende que a ação política deve ser norteada, levando-se em consideração a responsabilidade e a eficácia. É uma visão, portanto, pragmática. Toda ação política fundada em modelos ideais ou em princípios rígidos tendem a não levar em consideração a dimensão dinâmica, mutável da sociedade. Por essa razão, um príncipe deveria, sempre, levar em consideração o que ele denominava por ”fortuna” - aquilo que o teórico florentino denominava ao conjunto de circunstâncias imprevisíveis que acometem a sociedade e toda forma de organização. Para Maquiavel, a ordem (e também a desordem) das coisas em todas as dimensões da realidade influenciam a política. Assim, o bom governante não é aquele que confia na providência divina, mas que observa a Fortuna e aprende com ela. Do domínio dessa dimensão, nasce a Virtú. Segundo Alberto Barros (Idem, p.83): Aquele que é capaz de obter o êxito dentro do quadro estabelecido pela fortuna é considerado um homem de virtú. Virtú é o termo empregado por Maquiavel para indicar um conjunto de qualidades - sentido de realidade, compreensão das circunstâncias, habilidade de avaliação do momento, aptidão para se adaptar às diferentes situações, capacidade de adotar medidas extraordinárias - que não se confundem com as virtudes consagradas pela tradição filosófica e que permitem aos homens realizarem seus objetivos a partir do que é dado pela fortuna.

Na linguagem dos humanistas, o homem olítico (politikós) assume as feições do cidadão virtuoso (civitas vir), cujas qualidades devem estar a serviço da república. Para realizar seu dever de conduzir a república à finalidade para a qual foi instituída, o cidadão deve ser virtuoso, isto é, temperante, corajoso, prudente e justo. Graças a essas virtudes, o cidadão é capaz de cuidar do bem comum, preservando a coisa pública e garantindo as condições de realização do bem viver.

Em que pese a associação feita- as teorias absolutistas que vigorarão após Maquiavel - é um erro creditar ao filósofo político uma associação irrestrita à ideia de um poder autoritário e autocrático, tal qual configuraram-se as monarquias (nacionais) absolutistas que se formavam àquela época. Maquiavel escreve como teórico que analisa a política como ela é, e não como ela deveria ser, necessariamente, a partir de critérios morais tradicionais. O único critério que justifica a manutenção do poder em Maquiavel- ainda que valendo-se de dispositivos extremos, como a força e o domínio- é o “bem público”, a necessidade premente de cada contexto histórico social.

Assim, Maquiavel caminha na contramão dessas concepções e rejeita as virtudes principescas celebradas pela tradição. Não se trata, portanto, de se estabelecer valores antagônicos ou mesmo uma amoralidade. Ao contrário disso, o filósofo apenas sustenta que a política reclama uma moralidade própria, não podendo, portanto, ser tipificada a partir de critérios universais para todos os campos da ação humana, como pretendia a tradição. Em suma, a política possuiria seu próprio sistema normativo, regulada por um espírito pragmático fundado nos critérios de eficiência da manutenção do poder e da responsabilidade em cumprir as demandas do “bem público”. A virtude principesca é, para Maquiavel, não um dado, a priori, de comportamento idealizado. Um bom governante é aquele, novamente, que conquista/sustenta o poder e garante a manutenção da ordem

Mesmo produzindo uma obra que seria apropriada por adeptos dos principados, Maquiavel é um filósofo humanista e, por consequência, republicano. Se isso não se exprime objetivamente em textos como “O Príncipe”, a leitura de sua obra dá os fundamentos necessários para essa assertiva. Em “Discurso sobre a primeira época de Tito Lívio”, o secretário florentino é incisivo em dizer que as repúblicas são consideradas superiores aos principados porque possuem uma longevidade maior. Isto posto, pois são capazes de melhor adaptarem-se as circunstâncias da fortuna, em razão da variedade de seus cidadãos partícipes da vida pública. “(…) Elas podem resistir melhor ao inevitável declínio de todas as coisas, porque a habilidade de muitos é maior do que a de um homem só”, declara Maquiavel (2007a, III, p.9). A esse respeito, conclui-se com a perspectiva de Alberto de Barros (2012, p.92): 11

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Em relação ao título do livro (e seu endereçamento), o termo “Principe” refere-se a qualquer tipo de governante ou modelo de Estado. Não se trata, estritamente, de uma defesa de um regime específico, tal qual a monarquia absolutista.


Filosofia

#DicaCine Filosofi

Fonte: Wikimedia commons

Documentário com base na obra de Nicolau Maquiavel, O Príncipe, da série “Grandes Livros”, da Discovery Channel, aborda uma das maiores obras literárias da História e, seguramente, um dos mais importantes tratados políticos já escritos. Obra de extrema importância para a compreensão da construção do conceito de Estado como modernamente conhecemos. Entre outras coisas, o livro - descrito nesse documentário - descreve as maneiras de conduzir-se nos negócios públicos internos e externos, e fundamentalmente, como conquistar e manter o poder político (um principado).

Além de defender a superioridade das repúblicas sobre os principados, Maquiavel declara sua preferência pelas repúblicas populares. O desejo do povo de não ser dominado lhe parece mais próximo da liberdade, porque revela uma face importante de sua manifestação, que é a ausência da ambição de poder. Como não deseja se apropriar do poder, mas apenas viver livre, o povo é capaz de salvaguardar melhor a liberdade, pois seu interesse não se opõe à existência de um governo livre. Por ter vontade maior de viver livre e uma propensão menor de violá-la, o povo deve ser então o guardião da liberdade.

O pensamento do filósofo introduziu novas abordagens à temática do poder, da natureza humana e da vida política. É bem da verdade que ele tratou de temas já abordados anteriormente pelos humanistas que o precederam. Contudo, é com Maquiavel que a Ciência Política ganha seu contorno mais definido na aurora da Idade Moderna. Ele não somente funda uma teoria sobre as condições e limites da ação política, como abre as portas para se pensar e operacionalizá-la a partir de prismas completamente novos. A modernidade política também nasce com Maquiavel. Ficha Técnica: Título: Great books: The prince Gênero: Documentário Duração: 51 min. Produção: Discovery Channel

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Gabarito questão 01 Em linhas gerais, o Humanismo foi a filosofia-base do(s) Renascimento(s). Caracterizou-se pela ênfase dada à capacidade humana de regular sua vida moral e social, tomando como base a racionalidade intrínseca da sua condição existencial. No campo político, representou a defesa de ideais republicanos; o resgate da noção antiga de cidadania; a recusa da tutela religiosa, por consequência, uma defesa irrestrita do laicismo - a separação objetiva entre Igreja (poder espiritual) e Estado (poder temporal). Gabarito questão 02 Os elementos da cultura clássica, como a filosofia, a retórica, os conhecimentos matemáticos e inclusive as línguas (grego e latim), foram de fundamental importância para o Humanismo e tiveram grande impacto nas obras de arte e no pensamento político do Renascimento. Gabarito questão 03 Antes de Maquiavel, todo e qualquer governante estava sujeito às determinações morais da Igreja. O príncipe, portanto, era um coadjuvante na política frente ao poder do Deus cristão. Porém, na perspectiva de Maquiavel, este soberano agora deveria tornar-se protagonista da ação política, não se prendendo a uma rígida hierarquia moral.

BIBLIOGRAFIA BARROS, A. R. G. Republicanismo. In: FRATESCHI, Y; MELO, R; RAMOS, F. (Org.) Manual de Filosofia Política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. Burckhardt, Jacob. A civilização do Renascimento na Itália, traduzido pelo SGC Middlemore. Nova Iorque: Penguin, 1990. Haskins, Charles Homer. O Renascimento do século XII. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1972 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2004. ______. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. São Paulo: Martins Fontes, 2007a. SKINNER, Q. As fundações do pensamento político moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Gabarito questão 04 Virtú deve ser entendida por força, potência, merecimento ou competência de um governante em conquistar e/ ou manter o poder, fazendo o que for preciso, diante das necessidades, para alcançar um objetivo.

Exercícios de Fixação 01. Defina o conceito de humanismo. 02. Além dos temas cristãos, herdados da Idade Média, o Humanismo incorporou decisivamente outros elementos. Utilizando seus conhecimentos sobre o Humanismo e embasados nas leituras dos textos, responda quis foram esses elementos?

04. Discorra sobre os conceitos de virtú no âmbito dos valores e práticas que devem ser trabalhadas pelo Príncipe. 05. Caracterize os tipos de formas de Estado para Maquiavel, estabelecendo uma comparação entre as formas de aquisição e usurpação dos principados.

03. De que forma Nicolau Maquiavel define a condição política do Príncipe?

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Gabarito questão 05 Para Maquiavel, existem duas formas de Estado: a república ou o principado. Esses principados podem ser hereditários (um príncipe torna-se rei após a morte do pai) ou novos. Os principados novos podem ser recém criados ou anexados pelo príncipe. Entre os principados anexados, pode haver aqueles que já estão acostumados com o príncipe anexador (como no caso de um casamento real em que as coroas se unem), ou livre e teve que ser conquistado à força.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Exercícios C om p l em en t ares

HALE, John. Dicionário do renascimento italiano. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988. p. 187.

De acordo com o trecho anterior e, por meio de seus estudos históricos, é correto afirmar que o programa humanista: a) Era encabeçado por reis e papas (os mecenas), os quais auxiliavam, humanitariamente, os artistas do século XIX a compreender as formas artísticas do Renascimento. b) Atrelava-se ao modo de pensar renascentista, no qual o homem e a natureza passavam a ser valorizados na construção do conhecimento mundano. c) Era marcado por uma valorização de temas naturalistas, opondo-se aos temas religiosos e sua ligação e proximidade com a Igreja católica e a protestante do século XIX. d) Constituía-se por uma aproximação com o mundo grego e romano, valorizando o equilíbrio das formas e proporções, num exemplo de arte barroca (humanista) do século XV. e) A valorização de ideias como a coletividade e a expropriação da propriedade privada. 02. (Enem MEC) Nasce daqui uma questão: se vale mais ser amado que temido ou temido que amado. Responde-se que ambas as coisas seriam de desejar; mas porque é difícil juntá-las, é muito mais seguro ser temido que amado, quando haja de faltar uma das duas. Porque dos homens se pode dizer, duma maneira geral, que são ingratos, volúveis, simuladores, covardes e ávidos de lucro, e enquanto lhes fazes bem são inteiramente teus, oferecem-te o sangue, os bens, a vida e os filhos, quando, como acima disse, o perigo está longe; mas quando ele chega, revoltam-se. MAQUIAVEL, N. O príncipe. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991.

A partir da análise histórica do comportamento humano em suas relações sociais e políticas, Maquiavel define o homem como um ser a) munido de virtude, com disposição nata a praticar o bem a si e aos outros. b) possuidor de fortuna, valendo-se de riquezas para alcançar êxito na política. c) guiado por interesses, de modo que suas ações são imprevisíveis e inconstantes. d) naturalmente racional, vivendo em um estado pré-social e portando seus direitos naturais. e) sociável por natureza, mantendo relações pacíficas com seus pares.

03. (Enem MEC) Não ignoro a opinião antiga e muito difundida de que o que acontece no mundo é decidido por Deus e pelo acaso. Essa opinião é muito aceita em nossos dias, devido às grandes transformações ocorridas, e que ocorrem diariamente, as quais escapam à conjectura humana. Não obstante, para não ignorar inteiramente o nosso livre-arbítrio, creio que se pode aceitar que a sorte decida metade dos nossos atos, mas [o livre-arbítrio] nos permite o controle sobre a outra metade. MAQUIAVEL, N. O Príncipe. Brasília: EdUnB, 1979 (adaptado).

Em O Príncipe, Maquiavel refletiu sobre o exercício do poder em seu tempo. No trecho citado, o autor demonstra o vínculo entre o seu pensamento político e o Humanismo renascentista ao a) valorizar a interferência divina nos acontecimentos definidores do seu tempo b) rejeitar a intervenção do acaso nos processos políticos c) afirmar a confiança na razão autônoma como fundamento da ação humana. d) romper com a tradição que valorizava o passado como fonte de aprendizagem. e) redefinir a ação política com base na unidade entre fé e razão. 04. (Enem MEC) O príncipe, portanto, não deve se incomodar com a reputação de cruel, se seu propósito é manter o povo unido e leal. De fato, com uns poucos exemplos duros poderá ser mais clemente de outros que, por muita piedade, permitem os distúrbios que levam ao assassinato e ao roubo. MAQUIAVEL, N. O Príncipe, São Paulo: Martin Claret, 2009. A01  A teoria política de Nicolau Maquiavel no contexto do Renascimento

01. (Unama PA) “Humanismo é uma palavra inventada no século XIX para descrever o programa de estudos, e seu condicionamento de pensamento e expressão, que era conhecido desde o final do século XV”.

No século XVI, Maquiavel escreveu O Príncipe, reflexão sobre a Monarquia e a função do governante. A manutenção da ordem social, segundo esse autor, baseava-se na a) inércia do julgamento de crimes polêmicos. b) bondade em relação ao comportamento dos mercenários. c) compaixão quanto à condenação de transgressões religiosas. d) neutralidade diante da condenação dos servos. e) conveniência entre o poder tirânico e a moral do príncipe 05. (UEL) Com base no texto e nos conhecimentos sobre o pensamento de Maquiavel acerca da relação entre poder e moral, é correto afirmar. a) Maquiavel preocupa-se em analisar a ação política, considerando tão somente as qualidades morais do Príncipe que determinam a ordem objetiva do Estado. b) O sentido da ação política, segundo Maquiavel, tem por fundamento originário e, portanto, anterior, a ordem divina, refletida na harmonia da Cidade.

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c) Para Maquiavel, a busca da ordem e da harmonia, em face do desequilíbrio e do caos, só se realiza com a conquista da justiça e do bem comum. d) Na reflexão política de Maquiavel, o fim que deve orientar as ações de um Príncipe é a ordem e a manutenção do poder. e) A análise de Maquiavel, com base nos valores espirituais superiores aos políticos, repudia como ilegítimo o emprego da força coercitiva do Estado. 06. (FGV SP) “Daqui nasce um dilema: é melhor ser amado que temido, ou o inverso? Respondo que seria preferível ser ambas as coisas, mas, como é muito difícil conciliá-las, parece-me muito mais seguro ser temido do que amado, se só se pode ser uma delas [...]” MAQUIAVEL, N. O príncipe. Ed. Europa-América, 1976. p. 89.

A respeito do pensamento político de Maquiavel, é correto afirmar que: a) Mantinha uma nítida vinculação entre a política e os princípios morais do cristianismo. b) Apresentava uma clara defesa da representação popular e dos ideais democráticos. c) Servia de Base para a ofensiva da Igreja em confronto com os poderes civis na Itália. d) Sustentava que o objetivo de um governante era a conquista e a manutenção do poder. e) Censurava qualquer tipo de ação violenta por parte dos governantes contra seus súditos.

A01  A teoria política de Nicolau Maquiavel no contexto do Renascimento

07. Nicolau Maquiavel (1.469 - 1527) assim se expressara em sua obra O Príncipe:

08. (UEL) O maquiavelismo é uma interpretação de O Príncipe, de Maquiavel, em particular a interpretação segundo a qual a ação política, ou seja, a ação voltada para a conquista e conservação do Estado, é uma ação que não possui um fim próprio de utilidade e não deve ser julgada por meio de critérios diferentes dos de conveniência e oportunidade. (BOBBIO, Norberto. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. Trad. de Alfredo Fait. 3.ed. Brasília: Editora da UNB, 1984. p. 14.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre o tema, para Maquiavel o poder político é: a) Independente da moral e da religião, devendo ser conduzido por critérios restritos ao âmbito político. b) Independente da conveniência e oportunidade, pois estas dizem respeito à esfera privada da vida em sociedade. c) Dependente da religião, devendo ser conduzido por parâmetros ditados pela Igreja. d) Dependente da ética, devendo ser orientado por princípios morais válidos universal e necessariamente. e) Independente das pretensões dos governantes de realizar os interesses do Estado.

―(...) O mesmo acontece com a fortuna, que demonstra sua força onde não encontra uma virtú (virtude) ordenada, pronta para resistir-lhe e volta seu ímpeto [impulso; força] para onde sabe que não foram erguidos diques ou barreiras para contê-las. Se considerares a Itália, que é sede e origem dessas alterações, verás que ela é um campo sem diques e sem qualquer defesa; caso ela fosse convenientemente ordenada pela virtú, como a Alemanha, a Espanha e a França, ou esta cheia não teria causado as grandes mudanças que ocorrem, ou estas nem sequer teriam acontecido.

09. (UEL) A escolha dos ministros por parte de um príncipe não é coisa de pouca importância: os ministros serão bons ou maus, de acordo com a prudência que o príncipe demonstrar. A primeira impressão que se tem de um governante e da sua inteligência, é dada pelos homens que o cercam. Quando estes são eficientes e fiéis, pode-se sempre considerar o príncipe sábio, pois foi capaz de reconhecer a capacidade e manter fidelidade. Mas quando a situação é oposta, pode-se sempre dele fazer mau juízo, porque seu primeiro erro terá sido cometido ao escolher os assessores‖.

(MAQUIAVEL, N. O Príncipe. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p109.)

(MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2004. p. 136.)

Sobre o conceito de Virtú, peça chave para se entender as ações de um governante (ou príncipe), CONSIDERE as assertivas abaixo: I. A virtú é a qualidade dos oportunistas, que agem guiados pelo instinto natural e irracional do egoísmo e almejam, exclusivamente, sua vantagem pessoal. II. O homem de virtú é antes de tudo um sábio, é aquele que conhece as circunstâncias do momento oferecido pela fortuna e age seguro do seu êxito. III. Mais do que todos os homens, o príncipe tem de ser um homem de virtú, capaz de conhecer as circunstâncias e utilizá-la a seu favor. IV.

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ASSINALE a ÚNICA alternativa que contém as assertivas verdadeiras: a) I, II, III b) II e III c) II e IV d) II, III e IV e) I, II e IV

Partidário da teoria do direito divino, Maquiavel vê o príncipe como um predestinado e a virtú como algo que não depende dos fatores históricos.

Com base no texto e nos conhecimentos sobre Maquiavel, é correto afirmar: a) As atitudes do príncipe são livres da influência dos ministros que ele escolhe para governar. b) Basta que o príncipe seja bom e virtuoso para que seu governo obtenha pleno êxito e seja reconhecido pelo povo. c) O povo distingue e julga, separadamente, as atitudes do príncipe daquelas de seus ministros. d) A escolha dos ministros é irrelevante para garantir um bom governo, desde que o príncipe tenha um projeto político perfeito. e) Um príncipe e seu governo são avaliados também pela escolha dos ministros.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A02

THOMAS HOBBES E O CONTEXTO DAS TEORIAS CONTRATUAIS Um dos principais legados da Idade Moderna para a história política do ocidente, seguramente, foi a teorização acerca da noção de Estado. Isto posto, pois a própria instituição política soberana na modernidade surgiu demandando um conjunto de justificativas filosóficas para sua existência e legitimação. A antiga inclinação cesaropapista havia se declinado com o advento do humanismo cívico e cada vez mais a teoria do “Direito divino dos reis”carecia de sustentação e aceitação da nova sociedade europeia.

ASSUNTOS ABORDADOS n Thomas Hobbes e o contexto das

teorias contratuais

n O conceito de natureza humana n Thomas Hobbes e o Leviatã

É nesse contexto, marcado por tentativas de se buscar uma raison d’etre para o Estado, que surgiram as “Teorias Contratualistas”. Em síntese, tratou-se de um conjunto de doutrinas teórico-políticas que buscavam responder, fundamentalmente, a questões acerca de uma (suposta) natureza humana. A partir daí, então, explicá-las cada uma a seu modo como as sociedades civis surgiram a partir de uma tentativa de conter o impulso instintivo e primitivo dessa natureza. Tratou-se, portanto, de um conjunto de teorias de caráter antropológico e políticas, que buscavam explicar/desenvolver quatro grandes questões: 1) Qual é a natureza do ser humano? 2) Qual é seu estado natural? 3) Como explicar a existência do Estado? 4) Como legitimar seu poder?

Fonte: Wikimedia Commons

Ao longo do século XVII, as teorias contratualistas - independente de suas variações e correntes - caracterizaram-se pela defesa do caráter racional e laico (não religioso) da origem do poder: seria o próprio indivíduo que daria o consentimento para a instauração do poder pelo pacto que o legitima, rompendo em definitivo com o medievalismo e a concepção predominante do “direto divino dos reis”. Para os contratualistas, a materialização do poder encontrava-se na figura de um Estado Soberano. Restava, portanto, fundamentar o critério que conferiria através do pacto (“contrato”) a condição (absoluta ou relativa) de ação (poder) do Estado. Em termos pré-contratuais e humanísticos: qual era o “bem público” a que o Estado deveria, de forma soberana, preservar a fim de manter sua existência e legimitidade? A resposta - base do contratualismo - é que o Estado, para manter a legitimidade do poder soberano, deveria garantir os direitos naturais dos indivíduos (a vida, a propriedade, a liberdade etc.) contra qualquer ameaça possível, principalmente porque a própria natureza humana impelia os homens ao conflito e necessidade de tomar o jusnaturalis alheio. De modo sintético, como explica a filósofa e professora Maria I. Limongi (2012, p.97): De um modo geral, o termo Contratualismo designa toda teoria que pensa que a origem da sociedade e do poder político está num contrato, um acordo tácito ou explícito entre aqueles que aceitam fazer parte dessa sociedade e se submeter a esse poder. Embora não se trate de uma posição estritamente moderna, nem restrita às filosofias de Hobbes, Locke e Rousseau, o Contratualismo adquiriu o estatuto de um movimento teórico ou corrente de pensamento precisamente com esses autores.

Figura 01 - Thomas Hobbes. Autor: Jhon Michael Wright (1617-1694).

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Filosofia

O conceito de natureza humana A busca por uma definição acerca do que seja a natureza humana remonta às pesquisas do período clássico da história da filosofia. As “teorias essencialistas” fundam-se na tentativa de explicar, como sua denominação sugere, a essência do que seria a natureza humana e suas consequências. Um dos mais proeminentes pensadores a debruçar-se sobre essa questão foi o filósofo macedônico Aristóteles. Segundo o pensador de Estagira, o homem é essencialmente um zoon politikon, ou seja, por natureza um animal político; um ser vivo (zoon) que, por sua natureza (physei), é feito para a vida da cidade (bios politikós, derivado de pólis, a comunidade política). Para Aristóteles, essa definição especialista revela a própria finalidade da existência humana: o viver na pólis, onde o homem se realiza como cidadão (politai) manifestando, no termo de um processo de constituição de sua essência, sua natureza. Prevalecia, no medievo, a antropologia agostiniana, segundo a qual “o homem é um ser em ‘queda’ e o ato bom ou o ato verdadeiro só poderia ocorrer por inspiração divina.” (BIGNOTTO, N. 1991, p 52). Contrariamente a essa perspectiva, o humanismo cívico operou uma ruptura com essa tradição: o homem não seria um ser absolutamente condicionado pela vontade divina, incapaz de realizar, por sua vontade própria, atos virtuosos; ao contrário, enquanto cidadão, seria ele o responsável pela construção do mundo em que vive.

A02  Thomas Hobbes e o contexto das teorias contratuais

Como exemplo - que vimos anteriormente - Nicolau Maquiavel foi um dos pensadores humanistas a romper com as considerações eminentemente essencialistas da tradição filosófica, justamente por ofertar um olhar para o homem em sua perspectiva concreta, comportamental. Não se buscava o que o homem “viria a ser”, mas o que ele historicamente “se manifestava”. Para Maquiavel, o homem não é, necessariamente, um ser que pratica o bem, no sentido cristão, naturalmente. Ao contrário, para ele, o homem é um ser ingrato, volúvel e interesseiro. Segundo Maquiavel - por ser a natureza humana ambiciosa e desejosa- seria impossível evitar que os indivíduos ou grupos não entrassem, cedo ou tarde, em conflito. A própria convivência entre indivíduos distintos em aspirações e objetivos conduziria à contenda, sendo essa, portanto, inerente a qualquer processo de interação social. Contudo, como argumenta Maquiavel, se o conflito não pode ser evitado, ele pode transformar-se em motor para o progresso e a liberdade (a partir de seu desejo). Os homens, indistintamente combatem por necessidade ou ambição, uma vez que a própria natureza havia os criado de tal maneira que podem tudo desejar, mas não podem tudo conseguir. A esse respeito, Maquiavel (2000, p.122) afirma: De fato, a natureza criou os homens com a sede de tudo abraçar e a impotência de atingir todas as coisas. Como o desejo de possuir é mais forte do que a faculdade de adquirir, disto resulta em secreto desgosto pelo que possuem, ao qual se junta o descontentamento por si próprios. Esta é a origem dos seus variados

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destinos. Uns querem possuir mais, outros temem perder o que já ganharam; daí o atrito e a guerra, que por sua vez provocam a destruição de um império para servir à elevação de outro.

Os homens são naturalmente perversos e o tempo não lhes muda a natureza. Não fosse a natureza humana o que é, certamente não haveria, na visão de Maquiavel, os conflitos e a disputa necessária para que surgissem boas leis e Estados prodigiosos. Daí a razão de ser do Estado: uma tentativa de dar cabo às ingerências da natureza humana.

Thomas Hobbes e o Leviatã Thomas Hobbes nasceu em 1558, na Inglaterra dos Tudors, num contexto marcado pela Reforma Anglicana (por consequência da ruptura com a Igreja Católica). Vivendo até os 92 anos, o teórico político inglês pôde acompanhar um conjunto sensível de transformações espirituais, políticas, econômicas e militares que a Inglaterra passou a partir do século XVII, destacando-se o expansionismo colonialista ultramarino e as revoluções industriais (primeira) e política (“Revolução Gloriosa”). O século XVII na Europa continental foi também o marco do absolutismo monárquico. A célebre frase atribuída ao “Rei Sol” francês, Luís XIV: “L’État c’est moi” (“O estado sou eu”) dá a tônica desse contexto em que Hobbes estava inserido. O Absolutismo Inglês perdurou por cerca de dois séculos, encerrando a dinastia Tudor apenas em 1688, quando Guilherme de Orange invadiu a Inglaterra, encerrando o governo de Jaime II. Esse evento ficou conhecido como “Revolução Gloriosa”. Com a instauração do Bill Of Rights (“Declaração dos Direitos”), a monarquia absolutista foi substituída pela parlamentar. Durante o período que antecedeu esse evento, a história inglesa se inseriu num conjunto de dispostas. O clima de instabilidade política e, por consequência, militar, durante o século XVII, representou um duro golpe nas aspirações de soberania do Estado Moderno Inglês. A própria influência religiosa, seja de base católica ou protestante, atestava para as dificuldades da dinastia Tudor lidar com sua própria autonomia, face ao poder constituído. E é justamente nesse contexto (e influenciado por ele), que Thomas Hobbes irá desenvolver toda sua teoria política, tomando como princípio a necessidade de se fundar em critérios racionais e científicos a razão de ser de um Estado Soberano. Hobbes foi um filósofo de vasta erudição. Do aprendizado (e rejeição futura) da escolástica de inspiração aristotélica nos tempos da Universidade de Magdalen Hall até sua relação profícua com o filósofo empirista Francis Bacon, passando por seu ingresso no círculo intelectual do Padre Mersene (mentor de Descartes), encontra o ápice de suas aspirações no contato com o pensamento de Galileu Galilei. A visão mecanicista (calcada na geometria e presente nas ciências naturais) calhava bem a rejeição de Hobbes à filosofia aristotélica e escolástica, assim como também vem a influenciar boa parte de sua “Filosofia Social”. Se opondo tam-


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

(…) fazer da política uma ciência racional e do corpo politico um construto da razão, o que quer dizer que tanto o conhecimento quanto a ação política dependem da percepção de certas relações necessárias e universais entre as ideias, pois é nisso o que consiste a razão, segundo o modelo matemático a partir do qual foi pensada nos quadros do racionalismo cartesiano, com o qual Hobbes manteve estreitas relações. A história não oferece senão relações contingentes e particulares. Dela pode-se retirar apenas conjecturas, não uma ciência, que vem a ser um discurso em que encadeiam proposições segundo relações necessárias.

Entender o pensamento de Hobbes perpassa inseri-lo dentro de duas perspectivas. De um lado, a aludida “Ciência Natural”. Por outro, a tradição jusnaturalista que se forma na aurora da modernidade. Tudo isso ambientando pela emergente sociedade burguesa que instaurava-se naquele contexto. A concepção jusnaturalista, na qual Hobbes se enquadra, foi o resultado de transformações econômicas e sociais que impuseram mudanças na concepção de poder do Estado, que passou a ser compreendido como uma instituição criada através do consentimento dos indivíduos pelo chamado contrato social. O declínio das relações feudais de produção, do desenvolvimento econômico da burguesia, a Reforma Protestante, as revoltas camponesas e as guerras ocorridas durante o processo de formação do Capitalismo propiciaram uma nova situação social. Em oposição aos privilégios da nobreza, a burguesia não podia invocar o sangue e a família para justificar sua ascensão econômica. A partir da secularização do pensamento político, já iniciada a partir da Reforma protestante, os intelectuais do século XVII passaram a se preocupar em buscar respostas no âmbito da razão como justificativa do poder do Estado, haja vista não poder mais justificar a razão de ser de qualquer governo, tendo como base uma autoridade ou fundamento religioso. Daí a preocupação intelectual com a origem e os fundamentos do Estado. Não se tratava, porém, de uma busca histórica, mas sim de uma explicação lógica que justificasse a ordem social, representada pelos interesses da burguesia em ascensão. Nesse contexto, surgem diversas tentativas de se fundamentar a existência lógica de um Estado. Assim, seria necessária uma hipótese que servisse de eixo para todas as formulações teóricas. O pressuposto mais válido apontava para a existência de uma natureza que pudesse regular as disposições humanas. Nesse caso, pensar a própria noção de uma natureza humana poderia justificar toda e qualquer disposição jurídica e social. O próprio conceito de natureza humana sempre fora objeto de inúmeras especulações filosóficas. Portanto, afirmar a existência de uma natureza humana requer implicações

muito mais fortes do que, simplesmente, admitir essa categoria como modelo explicativo, ou diferenciador entre diversas espécies vivas. Supor a existência de uma natureza inerente a um ser, implica afirmar que esse ser está sujeito a certos condicionamentos, ou ações previstas. Destarte, muitas realizações humanas, sejam elas nobres ou não, poderiam ser justificadas e legitimadas por admitir uma natureza que delibera inexoravelmente, por ser ela mesma, constitutiva daquele ser que age. Isto é, qualquer ação pode ser justificada tendo em vista que o agente agiu motivado por sua própria natureza. Na esfera política e social, sobretudo, admitir a existência de uma natureza humana traz implicações de ordens éticas e jurídicas. Isso porque, ao se relacionarem (os homens), certos limites podem ser feridos, e até mesmo a noção de limite humano pode ser determinada, tendo em vista uma suposta natureza comum aos homens. Como exemplo, se afirmamos que o homem possui uma certa natureza determinada e inexorável, impelida a sempre se defender atacando a quem quer que seja, simplesmente por supor estar ameaçado, então não poderemos imputar a esse uma pena por agressão ou homicídio, caso isso ocorra (e se é natural essa reação, ele ocorrerá), visto que ele agiu meramente por instinto ou defesa, isto é, seguindo sua própria natureza. Thomas Hobbes tem importância seminal para a teoria política. Na contramão das implicações que o conceito de natureza humana acarreta para a filosofia política, temos na figura de Hobbes um arauto em defesa não somente de uma natureza humana, como também, da defesa de que a existência de qualquer corpo político sedimenta-se para dar conta das ingerências dessa natureza. A importância de suas teorizações é expressa, sobretudo, em seu livro “Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil”. O Leviatã é considerado uma das obras primas do pensamento político inglês e define o pensamento político moderno, desde o século XVII até os princípios do século XX. A relevância dessa obra é inconteste, tanto que, desde o ano 1651, época em que foi composto, todo aquele que se ocupe de estudar a teoria política lhe deve um longo tributo de reflexão. Para Hobbes (1974, p.79), a natureza fez os homens todos iguais e tentar compreender seu pensamento perpassa por aceitar as premissas que afirmam que a natureza determina os comportamentos humanos, uma vez que estes são ‘produtos’ sujeitos às suas regulações naturais: A Natureza fez os homens tão iguais, quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente mais forte do que o corpo, ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um possa, com base nela, reclamar qualquer benefício a que outro não possa também aspirar, tal como ele. Porque quanto à força corporal, o mais fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo perigo. 17

A02  Thomas Hobbes e o contex to das teorias contratuais

bém à tese dos humanistas (sobretudo Maquiavel), Hobbes rejeita tanto o conceito de uma suposta natureza histórica da política quanto a ideia de que dos eventos históricos possam retirar um conhecimento objetivo. Segundo Maria I. Limongi (2012, p.102), Hobbes pretende:


Filosofia

Entender o pensamento de Thomas Hobbes, filósofo metódico, impõe dificuldades diante da complexidade de suas propostas. Uma maneira tida como segura para começar a compreender suas concepções está numa análise do que ele diz do Estado de natureza. Este Estado seria a condição em que encontram-se os homens fora de uma comunidade política (ou sociedade), disputando todas as coisas por direito natural e absoluto. Para Hobbes, os homens são iguais e o que os torna iguais é o esforço que todos têm em satisfazer seus desejos e a condição de inimigos entre si, uma vez que para satisfazer seus próprios desejos, o homem não hesita diante do aniquilamento do outro, criando uma situação violenta. Para Hobbes, da igualdade quanto à condição dos homens de se equipararem, por conta, seja da força ou da astúcia, outra igualdade é gerada: “a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins (...). Se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos.” (Idem) Dessa condição de paridade e de desejos em comum, os homens vivem constantemente sob a ameaça de serem desapropriados, ou subjugados. E dessa constante ameaça, emerge a necessidade de se preservarem contra qualquer ataque externo. Hobbes aponta que para coibir tal ameaça e para prevenir de eventuais efetivações violentas, os homens devem se proteger, a fim de garantirem sua própria preservação. Thomas Hobbes (ibidem, p. 46) argumenta que a natureza leva os homens à discórdia (competição, desconfiança e desejo de glória). A primeira (competição) condiciona os homens, em geral, a:

A02  Thomas Hobbes e o contexto das teorias contratuais

(...) a atacar os outros, tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.

Destituído desse poder comum, os homens estarão sempre num estado de natureza, ou seja, em constante estado de guerra uns contra os outros, havendo, assim, a necessidade de um poder comum que os ordene, pois não existe um equilíbrio entre atritos e estabilidade: sempre que não houver a paz, necessariamente se travará uma guerra. Nessa guerra de todos contra todos, nada pode ser injusto: não existe, portanto, distinção entre bem e mal, justiça e injustiça; onde não há bem comum, não há lei, e onde esta não existe, certamente não haverá justiça. No estado de guerra, força e fraude podem ser consideradas virtudes, desde que utilizadas para preservar sua vida contra os inimigos. É de fundamental importância, também, destacar-se que nesse estado não há definição de propriedade. Consequentemente, será de cada um o que seus próprios esforços concederem adquirir e só clamará direitos sobre isso enquanto puder mantê-lo. Nesse estado, “(…) todo o homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos às outras pessoas.” (Ibidem, idem) 18

Com isso, temos os chamados “direitos de natureza”, que consistem na liberdade dos homens de unirem-se a fim de preservar suas vidas e, consequentemente, fazer tudo a quilo que seu julgamento e razão mostram adequar-se a isso. Em outras palavras, é o direito à sobrevivência. De acordo com Hobbes (Ibidem, idem): O direito de natureza, a que os autores geralmente chamam jus naturale, é a liberdade que cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.

É preciso entender que essa liberdade não se trata da mesma compreendida pelos gregos, onde ser livre é poder, num espaço público constituído para este fim, para exercerem a ação política, revelando-se enquanto individualidades autônomas através de seus feitos e palavras engendrados na pólis. Não é a liberdade de designação negativa; antes, trata-se de uma espécie de liberdade com ausência de coerção; ausência de barreiras que impeçam alguém de realizar algo. Nesse conceito, cabem todas aquelas liberdades que existem por si mesmas – e que continuarão a existir desde que ninguém as tome de você. Por liberdade deve-se entender, de acordo com “a significação própria da palavra, a ausência de impedimentos externos.” (Ibidem, idem) Dessa liberdade de poder fazer, os homens são impelidos, por uma força da natureza - ou na terminologia hobbesiana, por uma lei da natureza –, a se preservarem até de si mesmo. Isto porque, os homens podendo tudo fazer, encontram-se vulneráveis até a si mesmos. O preceito básico, portanto, dessa lei, é a autopreservação. Desta, deriva outra regra fundamental: procurar a paz e, caso não a consiga, lançar mão dos artifícios da guerra, pois essa paz significa a própria defesa de si mesmo. Segundo Hobbes (Ibidem, idem): Nesse estado, reina o medo e, principalmente, o grande medo: o da morte violenta. Para se protegerem uns dos outros, os humanos inventaram as armas e cercaram as terras que ocupavam. Essas duas atitudes são inúteis, pois sempre haverá alguém mais forte que vencerá o mais fraco e ocupará as terras cercadas. A vida não tem garantias; a posse não tem reconhecimento e, portanto, não existe; a única lei é a força do mais forte, que pode tudo quanto tenha força para conquistar e conservar.

Da violação dessa primeira lei, faz com que passe a vigorar apenas o direito de natureza: todos recorrem ao livre uso da força para aumentar seu poder ou para impedir que seu poder seja controlado por terceiros. Esse temor constante leva, portanto, os homens a entrarem em guerra. Por isso, é também em virtude do desejo de confronto e esperança de uma boa vida, através do trabalho, que os homens tendem à paz. Assim, surgiram as leis, as normas estabelecidas para chegar-se a esse fim. Os homens renunciam aos seus direitos em troca de estabilidade e boas condições de vida e, uma vez feita essa troca, em forma de pacto, encontram-se diante da impossibi-


Ciências Humanas e suas Tecnologias

lidade de voltar ao estado em que, primeiramente, se encontravam Estando os homens, portanto, em uma sociedade, não se disporiam a renunciar todas as suas regalias e voltar a um estado primitivo de vida repleto de inseguranças. A natureza humana é o elemento determinante na construção teórica de Hobbes; a natureza do homem seria apetitiva e deliberativa, conduzindo-o à competição permanente para com seus semelhantes. Hobbes concebe o homem como um ser que deseja, incompleto, todavia, e que busca, continuamente e competitivamente, através dos deslocamentos dos seus objetos de desejos sua inalcançável completude. Essa concepção de homem como ser desejante, se desdobra na conceituação própria de Hobbes (Ibidem, p.30) acerca da natureza humana: “As paixões que provocam de maneira mais decisiva as diferenças de talento são, principalmente, o maior ou menor desejo de poder, de riqueza, de saber e de honra. Todas as quais podem ser reduzidas à primeira, que é o desejo de poder. Porque a riqueza, o saber e a honra não são mais do que diferentes formas de poder.”

Tal condição e consequente competição (em busca sempre do poder) - sem o amparo das leis e dos contratos (por consequência, o seu cumprimento) levaria os homens à célebre sentença hobbesiana da “guerra de todos contra todos”. Eis a razão da necessária existência do Estado para Hobbes. Não um mal necessário como entenderá a tradição liberal a seguir, mas como a única possibilidade de homens não se tornarem uma ameaça vital uns aos outros, como no pleno estado natural, ou numa sociedade civil não estruturada a partir de um poder absoluto e centralizador. A sociedade civil marca o abdicar do homem de seu poder de fazer tudo o que quiser, em nome da paz e da manutenção de sua própria existência. O Estado- que pode ser uma instituição monárquica, democrática ou aristocrática (desde que conserve a soberania)- é a instituição que assegura o maior direito natural: a vida, mantendo então a coesão social.

O contexto de publicação (e recepção) das obras de Hobbes mostrou-se muito conturbado. Embora tenha sido bem recebido nos círculos intelectuais franceses de sua época- vindo, em Paris, a tornar-se professor de matemática do Príncipe de Gales [futuro Carlos II]- Hobbes angariou controvérsias e inimizades com pessoas extremamente influentes à sua época. Um dos exemplos se dá nos embates travados com Jhon Bramhall, Bispo de Derry, na ocasião da publicação de O Leviatã. O Bispo Bramhall o acusava de ser um “materialista ateu”- em que pese a redundância dessa afirmação.

Figura 02 - Capa original do livro Leviathan, de Thomas Hobbes. Autor: Abraham Bosse.

Fonte: Wikimedia commons

Mas é a partir de 1665, com a publicação de De Corpore, que a polêmica em torno das obras de Hobbes ganha maiores proporções. Os principais membros da Royal Society inglesa proferem severas críticas tanto ao suposto desserviço de Hobbes à matemática, quanto suas posições pessoais confessadamente ateístas. O ápice desse movimento antihobbesiano é atingido quando, em 1666, seus livros são queimados nas portas da Universidade de Oxford.

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A02  Thomas Hobbes e o contexto das teorias contratuais

#Curiosidades


Filosofia

#DicaCine Filosofi SINOPSE “O homem é o lobo do homem.” A frase popularizada por Thomas Hobbes no século XVII cabe com precisão para resumir Leviatã, produção russa premiada como o Melhor Roteiro no Festival de Cannes de 2014. Não por acaso, Leviatã também é o título de um livro de Hobbes. Por mais que o filme faça referência à passagem da Bíblia que trata do monstro marinho, a leitura de Hobbes também encontra abrigo no longa. Leviatã não é um filme sobre monstros que estão no mar, mas sobre monstros que andam pela terra. Sim, são os homens. Por sinal, é bem simbólica a presença de uma impressionante ossada de baleia abandonada no meio da praia, como demonstração de que aquilo que vem do mar não consegue sobreviver diante dos males que estão na terra. Em uma cidadezinha na região do Mar de Barents, no litoral da Rússia, um pai de família briga na justiça para não ter as terras apropriadas pelo corrupto prefeito. Para isso, conta com a ajuda de um amigo que é advogado em Moscou. Os dois preservam uma amizade desde que serviram juntos no exército e esse amigo usará de seus contatos para descobrir alguns esqueletos no armário do prefeito. É um filme sobre a decadência do homem e da sociedade. Não existem inocentes e todos são corruptíveis. O longa retrata com precisão a Rússia pós-queda do comunismo, com instituições que preservaram a pompa (principalmente no que diz respeito ao tamanho dos edifícios) mas que foram inundadas numa onda de burocracia e corrupção. A relação entre natureza e sociedade é tratada com precisão pela câmera, que percorre os belos cenários do litoral russo e ainda faz questão de capturar inúmeras cenas profundas de “natureza morta”. As aspas estão ali, pois nem sempre estamos diante de algo proveniente da natureza. Depois muita coisa morta que foi deixada ali pelos homens, como as carcaças de vários barcos. Mas o significado é exatamente o mesmo dos ossos da baleia, transformando tudo em natureza. Adaptado: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-228247/criticas-adorocinema/

A02  Thomas Hobbes e o contex to das teorias contratuais

Gabarito questão 02 Ao longo do século XVII, as teorias contratualistas - independente de suas variações e correntes - se caracterizaram-se pela defesa do caráter racional e laico (não religioso) da origem do poder: seria o próprio indivíduo que daria o consentimento para a instauração do poder pelo pacto que o legitima, rompendo em definitivo com o medievalismo e a concepção predominante do ”divino dos reis”. Para os contratualistas, a materialização do poder encontrava-se na figura de um Estado Soberano. Gabarito questão 03 De um modo geral, o termo Contratualismo designa toda teoria que pensa que a origem da sociedade e do poder político está num contrato, um acordo tácito ou explícito entre aqueles que aceitam fazer parte dessa sociedade e se submeter a esse poder. Embora não se trate de uma posição estritamente moderna, nem restrita às filosofias de Hobbes, Locke e Rousseau, o Contratualismo adquiriu o estatuto de um movimento teórico ou corrente de pensamento precisamente com esses autores.

Fonte: Wikimedia commons

FICHA TÉCNICA Título: O Leviatã Data de lançamento: 13 de novembro de 2014 (Rússia) Direção: Andrey Zvyagintsev Prêmios: Prêmio Globo de Ouro: Melhor Filme Estrangeiro, MAIS Indicações: Oscar de Melhor Filme Estrangeiro Roteiro: Andrey Zvyagintsev, Oleg Negin

BIBLIOGRAFIA BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991. BOSSUET, J. A política inspirada na Sagrada Escritura. In: FREITAS, G. 900 textos e documentos de história. Lisboa, Plátano, 1997. CARVALHO. Diego Avelino de Moraes. Natureza e poder em Hobbes e a recusa arendtiana à modernidade. In: O conceito de ação no pensamento filosófico e político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. Goiânia: UFG, 2009. HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Trad. De João P. Monteiro e Maria B. Da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (Os pensadores). LIMONGI, Maria I.MP. Os contratualistas: Hobbes, Locke e Rousseau. In: FRATESCHI, Y; MELO, R; RAMOS, F. (Org.) Manual de Filosofia Política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

Exercícios de Fixação 01. Quais as principais questões que inicialmente motivaram os filósofos contratualistas? 02. Como se caracterizaram as teorias contratualistas ao longo do século XVII? 03. Defina em linhas gerais o contratualismo.

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Gabarito questão 01 Qual é a natureza do ser humano? Qual é o seu estado natural? Como explicar a existência do Estado? Como legitimar o seu poder?

04. Thomas Hobbes acreditava que o “homem era o lobo do homem”. O que Hobbes queria dizer com isso? Que o homem é capaz de agir como predador de sua própria espécie, podendo ser cruel, vingativo e mau quando lhe fosse conveniente em seu estado de natureza.

05. De que modo o conceito de “natureza humana” é fundamental no contratualismo hobbesiano? Justifique sua resposta.

A natureza humana é o elemento determinante na construção teórica de Hobbes; a natureza do homem seria apetitiva e deliberativa, conduzindo-o à competição permanente para com seus semelhantes. Hobbes concebe o homem como um ser que deseja, incompleto, todavia, e que busca, continuamente e competitivamente, através dos deslocamentos dos seus objetos de desejos a sua inalcançável completude.


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Exercícios C om p l em en t ares 01. “O trono real não é o trono de um homem, mas o trono do próprio Deus. [...] Três razões fazem ver que este governo [o da monarquia hereditária] é o melhor. A primeira é que é o mais natural e se perpetua por si próprio [...] A segunda razão [...] é que esse governo é o que interessa mais na conservação do Estado e dos poderes que o constituem: o príncipe, que trabalha para seu estado, trabalha para seus filhos, e o amor que tem pelo seu reino, confundindo com o que tem por sua família, torna-se-lhe natural [...]. A terceira razão tira-se da dignidade das casas reais [...]. A inveja, que se tem naturalmente daqueles que estão acima de nós, torna-se aqui em amor e respeito; os próprios grandes obedecem sem

04. (Unesp SP) A China é a segunda maior economia do mundo. Quer garantir a hegemonia no seu quintal, como fizeram os

repugnância a uma família que sempre viram como superior e à qual se não conhece outra que a possa igualar.”

Estados Unidos no Caribe depois da guerra civil. As Filipinas temem por um atol de rochas desabitado que disputam

As ideias presentes no texto acima podem ser associadas a qual teórico?

com a China. O Japão está de plantão por umas ilhotas de pedra e vento, que a China diz que lhe pertencem. Mesmo o Vietnã desconfia mais da China do que dos Estados Unidos.

b) Nicolau Maquiavel, italiano que defendia valores como virtude e fortuna para a manutenção do poder do príncipe. c) Thomas Hobbes, inglês que defendia que a sociedade civil deveria se organizar politicamente para sair do estado de natureza, associada à guerra. d) Hugo Grotius, que preconizava a existência de um Estado forte para controlar a sociedade civil. 02. O contratualismo é uma escola de pensamento a partir da qual várias interpretações sobre a natureza humana e o surgimento das sociedades civis foram concebidas. Para os contratualistas, o ser humano a) era como uma tábula rasa, pois nascia completamente desprovido de qualquer tipo de ideia ou consciência. b) vivia em um estado de natureza anterior às organizações sociais ou políticas que temos hoje. c) era um animal desprovido de qualquer tipo de capacidade de relação social. d) era o único ser vivo do planeta capaz de manter relações sociais. 03. (UFF) De acordo com o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), em seu estado natural, os seres humanos são livres, competem e lutam entre si. Mas como têm em geral a mesma força, o conflito se perpetua através das gerações, criando um ambiente de tensão e medo permanentes. Para Hobbes, criar uma sociedade submetida à lei e na qual os seres humanos vivam em paz e deixem de guerrear entre si, pressupõe que todos os homens renunciem a sua liberda-

completo e inquestionável. Assinale a modalidade de governo que desempenhou importante papel na Filosofia Política Moderna e que é associada à teoria política de Hobbes. a) Monarquia censitária b) Monarquia absolutista c) Sistema parlamentar d) Despotismo esclarecido e) Sistema republicano

As autoridades de Hanói gostam de lembrar que o gigante americano invadiu o México uma vez. O gigante chinês invadiu o Vietnã dezessete. (André Petry. O Século do Pacífico. Veja, 24.04.2013. Adaptado.)

A persistência histórica dos conflitos geopolíticos descritos na reportagem pode ser filosoficamente compreendida pela teoria a) iluminista, que preconiza a possibilidade de um estado de emancipação racional da humanidade. b) maquiavélica, que postula o encontro da virtude com a fortuna como princípios básicos da geopolítica. c) política de Rousseau, para quem a submissão à vontade geral é condição para experiências de liberdade. d) teológica de Santo Agostinho, que considera que o processo de iluminação divina afasta os homens do pecado. e) política de Hobbes, que conceitua a competição e a desconfiança como condições básicas da natureza humana. 05. (Enem MEC) I. Para o filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679), o estado de natureza é um estado de guerra universal e perpétua. Contraposto ao estado de natureza, entendido como estado de guerra, o estado de paz é a sociedade civilizada. Dentre outras tendências que dialogam com as ideias de Hobbes, destaca-se a definida abaixo. II. Nem todas as guerras são injustas e, correlativamente, nem toda paz é justa, razão pela qual a guerra nem sempre é um desvalor, e a paz nem sempre um valor.

A02  Thomas Hobbes e o contex to das teorias contratuais

a) Jacques Bossuet, teórico do absolutismo francês que divergia da Teoria do Contrato Social.

de original e deleguem a um só deles (o soberano) o poder

(BOBBIO, N. MATTEUCCI, N. e PASQUINO, G. Dicionário de Política. 5ed. Brasília: Universidade de Brasília. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2000.)

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Filosofia

Comparando as ideias de Hobbes (texto I) com a tendência citada no texto II, pode-se afirmar que a) em ambos, a guerra é entendida como inevitável e injusta. b) para Hobbes, a paz é inerente à civilização e, segundo o texto II, ela não é um valor absoluto. c) de acordo com Hobbes, a guerra é um valor absoluto e, segundo o texto II, a paz é sempre melhor que a guerra. d) em ambos, a guerra ou a paz são boas quando o fim é justo. e) para Hobbes, a paz liga-se à natureza e, de acordo com o texto II, à civilização. 06. (UFSJ) Thomas Hobbes afirma que “Lei Civil”, para todo súdito, é a) “construída por aquelas regras que o Estado lhe impõe, oralmente ou por escrito, ou por outro sinal suficiente de sua vontade, para usar como critério de distinção entre o bem e o mal”. b) “a lei que o deixa livre para caminhar para qualquer direção, pois há um conjunto de leis naturais que estabelece os limites para uma vida em sociedade”. c) “reguladora e protetora dos direitos humanos, e faz intervenção na ordem social para legitimar as relações externas da vida do homem em sociedade”. d) “calcada na arbitrariedade individual, em que as pessoas buscam entrar num Estado Civil, em consonância com o direito natural, no qual ele – o súdito – tem direito sobre a sua vida, a sua liberdade e os seus bens”. 07. (UFPA) “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é consequência: que nada pode ser injusto. As noções de bem e de mal, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há injustiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais. A justiça e a injustiça não fazem parte das faculdades do corpo ou do espírito. Se assim fosse, poderiam existir num homem que estivesse sozinho no mundo, do mesmo modo que seus sentidos e paixões.” HOBBES, Leviatã, São Paulo: Abril cultural, 1979, p. 77.

A02  Thomas Hobbes e o contexto das teorias contratuais

Quanto às justificativas de Hobbes sobre a justiça e a injustiça como não pertencentes às faculdades do corpo e do espírito, considere as afirmativas: I. Justiça e injustiça são qualidades que pertencem aos homens em sociedade, e não na solidão. II. No estado de natureza, o homem é como um animal: age por instinto, muito embora tenha a noção do que é justo e injusto. III. Só podemos falar em justiça e injustiça quando é instituído o poder do Estado. IV. O juiz responsável por aplicar a lei não decide em conformidade com o poder soberano; ele favorece os mais fortes. Estão corretas: a) I e II b) I e III c) II e IV d) I, III e IV e) II, III e IV 22

08. (Ufu MG) Porque as leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. HOBBES, Thomas. Leviatã. Cap. XVII. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1988, p. 103.

Em relação ao papel do Estado, Hobbes considera que: a) O seu poder deve ser parcial. O soberano que nasce com o advento do contrato social deve assiná-lo, para submeter-se aos compromissos ali firmados. b) A condição natural do homem é de guerra de todos contra todos. Resolver tal condição é possível apenas com um poder estatal pleno. c) Os homens são, por natureza, desiguais. Por isso, a criação do Estado deve servir como instrumento de realização da isonomia entre tais homens. d) A guerra de todos contra todos surge com o Estado repressor. O homem não deve se submeter de bom grado à violência estatal. 09. (Ufu MG) [...] a condição dos homens fora da sociedade civil (condição esta que podemos adequadamente chamar de estado de natureza) nada mais é do que uma simples guerra de todos contra todos na qual todos os homens têm igual direito a todas as coisas; [...].

HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Campinas: Martins Fontes, 1992.

De acordo com o trecho acima e com o pensamento de Hobbes, assinale a alternativa correta. a) Segundo Hobbes, o estado de natureza se confunde com o estado de guerra, pois ambos são uma condição original da existência humana. b) Para Hobbes, o direito dos homens a todas as coisas está desvinculado da guerra de todos contra todos. c) Segundo Hobbes, é necessário que a condição humana seja analisada sempre como se os homens vivessem em sociedade. d) Segundo Hobbes, não há vínculo entre o estado de natureza e a sociedade civil. 10. (UFSJ) Sobre a ideia de soberania concebida por Hobbes, é CORRETO afirmar que essa qualidade a) “se dá por meio do sufrágio universal, seja na república ou na monarquia”. b) “é a manifestação da virtù como condição indispensável no governo do príncipe”. c) “reside em um homem ou em uma assembleia de mais de um”. d) “é a realização plena da paz perpétua entre as nações”.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A03

O LIBERALISMO POLÍTICO E ECONÔMICO: JOHN LOCKE E ADAM SMITH As teorias contratualistas assumiram, ao longo do século XVII, consequências percebidas, sobretudo, na forma como as questões acerca da soberania e do desenvolvimento econômico da sociedade se desdobraram. Não raro, autores contratualistas- como o inglês John Locke e o iluminista suíço Jean Jacques Rousseau- figuram em importância nos movimentos revolucionários e na constituição de uma base filosófica para o capitalismo (sobretudo, Locke).

ASSUNTOS ABORDADOS n O liberalismo político e econô-

mico: John Locke e Adam Smith n John Locke e o governo civil

n Adam Smith e a defesa de uma economia de mercado

A própria Revolução Francesa (1789) e, anteriormente, a “Gloriosa”(1688) expressam a confluência de autores tomados na esteira da história do pensamento ocidental como filósofos liberais. Nos termos de historiadores como Eric Hobbsbawm (1981), os processos revolucionários de fim da Idade Moderna expressam as pautas e emancipação burguesa - esta não sendo possível, não fosse a carga intelectual que trazia consigo, fruto não somente das contradições do absolutismo de sua época, como a da própria afirmação de uma corrente teórica que encontra sua gênese no contratualismo e encerra-se no liberalismo político e econômico - base intelectual do capitalismo.

Figura 01 - O fuzilamento de Torrijos e seus companheiros nas praias de Málaga. Autor: Antonio Gisbert (1834-1901).

Fonte: Wikimedia commons

O conceito de liberalismo enquanto teoria política e econômica teve como representantes, ao longo da Idade Moderna, nomes como Montesquieu, Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville, além do já aludido Rousseau e, especialmente, Jhon Locke e Adam Smith - este último, um expoente do liberalismo econômico. Desses autores, derivam as noções fundamentais defendidas e ampliadas pelos liberais, e que traduzem um desenvolvimento filosófico da própria modernidade: a defesa de um Estado Laico; uma economia de mercado fruto de um equilíbrio natural decorrente da lei da oferta e da procura; o princípio do lucro e da livre iniciativa; a valorização do espírito empreendedor e competitivo; a defesa da propriedade privada (e dos bens de produção). Fundamentalmente, trata-se dentro da ótica liberal, de uma defesa das múltiplas formas de “Liberdade” (incluindo, portanto, as civis, políticas e comportamentais).

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Filosofia

Fonte: Wikimedia Commons

John Locke e o governo civil Seguramente, o filósofo inglês e defensor do empirismo, John Locke, representa o marco inicial do Liberalismo no contexto das teorias contratualistas. Ele nasceu em Wrington, em 1632, e faleceu em 1704. Sua formação acadêmica deu-se na Westminster School e no Christ Church College, de Oxford. Tornou-se bacharel em Artes (1656) e se graduou, também, em Medicina e Ciências Naturais. No campo filosófico, sobretudo (seja no que diz respeito à teoria ética, política e epistemológica), Locke foi profundamente influenciado pelo britânico Richard Hooker (1554-1600), com sua obra intitulada The Laws of Ecclesiastical Polity. Posteriormente, viu-se iluminado pelo pensamento de John Owen (1616-1683), com sua concepção de tolerância religiosa - o que lhe resultou em inspiração para escrever sua obra Cartas Sobre a Tolerância (1679), durante seu exílio na Holanda. A esse respeito, Ari Tank Brito (2012, p.126) diz que:

Figura 02 - Retrato de John Locke. Autor: Sir Godfrey Kneller (1697). Coleção de Sir Robert Walpole, Houghton Hall, 1779.

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A03  O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith

SAIBA MAIS

Locke, em sua Carta sobre a tolerância, propôs que todas as crenças religiosas que não atentassem diretamente contra a existência do Estado deveriam ser toleradas. Como a função de uma religião é apenas e tão somente ajudar a salvar a alma de cada indivíduo, as crenças religiosas não deveriam se imiscuir na política. Não fazendo isso, qualquer crença religiosa poderia e deveria ser tolerada, mesmo as que não fossem cristãs. Uma igreja é, para Locke, nada mais do que um clube, onde se entra por vontade própria e do qual se sai também por vontade própria. Dentro de uma igreja, os fiéis devem seguir as regras indicadas, desde que elas não violem as leis da sociedade política ou civil.

Não obstante todas essas influências, foram, principalmente, as leituras que Locke fez das obras de Descartes, Thomas Hobbes e Francis Bacon que fizeram desabrochar seu interesse pela Filosofia. Em síntese, o pensamento de John Locke estreita-se em duas áreas de desenvolvimento intelectual: a sistematização da filosofia empirista (em clara oposição ao modelo cartesiano, ainda que profundamente influenciado) e a organização de uma teoria liberal - que serviu não somente de base intelectual primitiAs contribuições de Locke para a filosofia moderna va para o capitalismo nascente, mas transcenderam a mera importância para a teoria política contratualista. O pensador inglês também figurou também porque suas ideias foram como um dos principais representantes do empirismo essenciais para inspirar a conhecibritânico a rivalizar com o Racionalismo francês. Em sua da “Revolução Gloriosa”, de 1688, obra, Ensaio sobre o entendimento humano (1690), ele que derrubou definitivamente o busca estabelecer os princípios acerca das reais possiAbsolutismo na Inglaterra, dando bilidades de alcance da razão humana. Para Locke, a ensejo ao modelo da Monarquia partir desse conhecimento da razão, seríamos capazes de estabelecer limites de nossa ignorância e a falibilidaConstitucional. de de nossas ideias. Trata-se de um tratado em que ele rejeita o inatismo cartesiano, afirmando que todos nós nascemos sem saber absolutamente nada, como se fosse uma “folha em branco” (uma tábula rasa) preenchida, a posteriori, através de experiências. Esse ensaio foi uma das principais fontes do empirismo britânico, influenciando muitos filósofos, como David Hume. Figura 03 - Página-título da primeira edição de Ensaio sobre o entendimento humano.

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As principais obras de destaque de John Locke foram: Constituições fundamentais da Carolina, Quatro cartas sobre a tolerância (1692), Ensaios sobre educação (1693), Dois tratados sobre o governo civil (16891690), e Ensaio sobre o entendimento humano (1690).


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Para Locke, o estado de natureza não foi um período histórico. Não haveria evidências de sua ocorrência no passado. O que não significa que ele não possa ser tomado como hipótese, considerando que sua ocorrência poderia suscitar a qualquer momento do tempo, inclusive como consequência da dissolução de uma sociedade civil. Portanto, o estado de natureza configura-se quando uma comunidade encontra-se sem uma autoridade superior ou relação de submissão. E aqui reside, especialmente, a distinção entre Hobbes e Locke: enquanto que para aquele o Estado seria a única instituição capaz de coibir a natureza humana e dar coesão a ele mesmo sob a égide da figura absoluta, para John Locke é apenas o guardião que centraliza as funções administrativas. Segundo Ari Tank Brito (Idem, p.125): Como expoente do Liberalismo, Locke deixou sua marca, defendendo a responsabilidade do Soberano diante dos súditos. Nem o direito divino dos reis, dado por Deus, nem a visão hobbesiana de um Soberano todo poderoso feito por Contrato, mas sim um Soberano que é mais um gerente do Estado do que qualquer outra coisa. Um soberano é importante, na verdade imprescindível, mas deve e pode ser controlado. A solução aventada para esse controle é a separação dos poderes do Estado em dois: um, a cargo do Soberano, executará as leis e realizará os julgamentos sobre as infrações destas. Executivo e Judiciário unidos, portanto. Outro poder, e só ele, fará as leis, o Legislativo. Este, representado pelo povo, se comporá de homens com propriedade, que escolherão representantes.

Como contratualista, a teoria de Locke advoga em favor do jus naturalis (base para se conceber a sociedade civil, a partir de sua salvaguarda). Para o filósofo britânico, a “propriedade” era um direito natural. Contudo, ela não pode ser entendida apenas como a posse de bens, mas trata-se de um conceito de que se dilata (aproximando de Hobbes) para a própria noção de vida. Em suas palavras (1998, p.409): “(…) cada homem tem uma propriedade em sua pessoa”. Assim, a propriedade material é uma consequência do direito à vida. Atentar contra a propriedade privada é abrir brechas para violar a própria vida do indivíduo.

Para Locke, o homem em estado de natureza deve valer-se de todos os recursos para assegurar sua vida/propriedade de ataques externos. Porém, nem sempre ele se vê em condições de assegurar-se, daí - tal qual em Hobbes - a necessidade de associação. Essa se dá na forma da Sociedade Civil que deve buscar uma estrutura legislativa que possa dar seguridade aos cidadãos/súditos. Os indivíduos, todos eles - se quiserem permanecer sob a proteção ampla - devem renunciar ao “poder executivo da lei da natureza”, transferindo para um corpo político constituído pelas mãos da sociedade, que se moverá em acordo com os desígnios da maioria. As ideias de John Locke podem ser sintetizadas da seguinte forma: n

O estado de natureza hobbesiano deve ser tomado como algo meramente hipotético;

n

Mesmo admitindo-se essa hipótese, é preciso negar a concepção de que o homem é mal por natureza: há a “oscilação gênios humanos”. Uma teoria não pode se assentar numa radicalização dessa natureza, como em Hobbes;

n

O Estado - representação institucional da Sociedade Civil- deve ser aquele que tem o poder consentido para garantir a segurança e a tranquilidade necessárias ao gozo da propriedade (direito natural);

n

No pacto lockeano, não há anulação de outros direitos em virtude de um;

n

É assegurado o “Direito de insurreição” enquanto garantia de todos os outros direitos. Quando um soberano ou corpo político não cumprem as promessas de assegurar harmonia e proteção do direito natural, há a possibilidade de a sociedade levantar-se contra o poder outrora constituído.

Adam Smith e a defesa de uma economia de mercado “Não é da benevolência do padeiro, do açougueiro ou do cervejeiro que eu espero que saia o meu jantar, mas sim do empenho deles em promover seu próprio interesse…” (Adam Smith)

Adam Smith foi um filósofo social escocês nascido em 1723. Ingressou na Universidade de Glasgow em 1738, no curso de Filosofia. A partir dessa formação, teve contato com o teólogo e filósofo irlandês, Francis Hutcheson (1694-1746) - um dos precursores do Liberalismo (tendo uma importante contribuição para o triunfo do Iluminismo na Escócia) e da corrente utilitarista (sua famosa frase sintetiza a filosofia que se desenvolverá no século seguinte a partir, sobretudo, de Jeramy Bentam e John Stuart Mill: “A melhor ação é aquela que 25

A03  O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith

Do ponto de vista estrutural, o pensamento de Locke pouco se difere de Thomas Hobbes. Ambos partem do pressuposto da existência de um estado de natureza que, através do contrato social, vai se tornar o estado civil. Não obstante, a divergência entre esses filósofos da tradição contratualista aparecerá no modo como nós deveríamos nos submeter ao Estado Civil, na nossa função enquanto súditos/cidadãos nesse corpo político e sob quais princípios se estabeleceria o Contrato Social. E é precisamente a partir do entendimento de três componentes que evidenciam-se suas diferenças.


Filosofia Fonte: Wikimedia Commons

produz a maior felicidade para o maior número de pessoas”). Depois de breve passagem por Oxford, Adam Smith passou a lecionar em Edimburgo, ensinando inicialmente Literatura e Retórica. De volta à sua universidade de formação, atuou como professor em Glasgow, na cadeira de Lógica e Filosofia Moral, a partir de 1751. Na instituição, também ocupava o cargo de gerência de assuntos acadêmicos e administrativos, sendo eleito Reitor em 1758. Adam Smith faleceu em 17 de junho de 1790, após legar ao mundo sua obra-prima (que levou dez anos para ser confeccionada) A Riqueza das Nações (1776). O pensamento do filósofo e tal publicação fizeram-se importantes nas décadas seguintes, promovendo-o não somente como aquele que ampliou as bases filosóficas do Liberalismo, mas também como aquele que evidenciou seu aspecto prático, a saber, econômico. Além disso, Smith foi o fundador da própria economia enquanto ciência. O livro A Riqueza das Nações ajudou a corroborar essa afirmação, tornando-se o primeiro tratado de economia política da modernidade. Em que pese seu caráter inovador, a obra apresenta-se como uma sequência das teses desenvolvidas por ele, em A Teoria dos Sentimentos Morais (1758). Em certa medida, nessas duas obras, o filósofo social escocês evoca uma discussão que permeia os debates contratualistas: os pressupostos de uma natureza humana e a possibilidade de uma teorização política a partir disso. Figura 03 - Retrato de Adam Smith. Autor anônimo.

A tese central de Adam Smith é que os comportamentos humanos poderiam ser previstos e analisados. Cada um de nós teríamos uma espécie de “espectador imparcial” interno- um agente psíquico que atua como um juiz neutro que a tudo observa, aprovando ou reprovando atitudes, tanto as nossas, quanto as de terceiros. Não havia a possibilidade de negar essa “voz”. Cedo ou tarde, a razão nos levaria a confrontá-la, exigindo de nós um “sentido moral” - condição essa que, segundo o filósofo, era aquilo que nos fazia superar o estágio de selvageria animal (“caráter predatório da natureza humana”). No entanto, em que pese as aproximações ou desdobramentos temáticos entre A Teoria dos Sentimentos Morais e A Riqueza das Nações, tratam-se de obras que expressam suas distinções, uma vez que enfatizam aspectos diferentes da natureza humana. A primeira ocupa-se em tematizar a luta entre as paixões humanas e o “espectador imparcial” ao longo da história (e evolucão) da humanidade. Já a segunda, baseia-se em situações em que a moralidade humana se vê suscetível de figurar-se como um papel menor face a outras contingências, capazes de regular as relações intercambiáveis das pessoas: o mercado seria uma dessas.

A03  O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith

O ponto de passagem de uma obra a outra se daria na forma como ambas trabalham a questão da “evolução da sociedade”. Do estágio original de caçadores-coletores, o homem teria evoluído para a agricultura nômade, depois para agricultura feudal, até atingir o grau de interdependência comercial. É precisamente nessa última fase que se localizam as reflexões e assertivas de Adam Smith na obra A Riqueza das Nações. Sua obra-prima é um manifesto antimercantilista. Por consequência, uma crítica ao modelo de um Estado absolutista forte e centralizado, e de uma economia que depende de uma virtual balança comercial favorável para acumular riquezas (e não produzi-las). De forma sintética, Ari Tank Brito (Idem, p.136), afirma: Dentre as ideias principais expostas em A riqueza das Nações está a defesa do livre comércio entre nações. Ao invés de um determinado país produzir tudo o que puder, vender o mais possível e comprar o menos possível, na obra se argumenta que a divisão do trabalho entre as nações não só tornaria todas mais prósperas. O mesmo princípio da divisão do trabalho que se via cada vez mais nas fábricas ainda nascentes, com cada qual cumprindo apenas uma função, e do trabalho de todos, reunido, dando origem a mais mercadorias e mais lucro, é aplicado por Adam Smith à conjuntura internacional. 26


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Nessa obra, também, populariza-se a expressão “mão invisível do mercado”, embora ela curiosamente apareça apenas uma única vez em todo texto. Segundo Adam Smith, os agentes econômicos atuando de forma livre chegariam a uma situação de eficiência, dispensando assim qualquer atuação do Estado insuflando a economia. Este, deveria restringir-se apenas a quatro setores essenciais de administração (Saúde, Educação, Segurança e Justiça) - o que não significava, contudo, que essas eram áreas que dispensassem uma lógica de regulação pelo mercado. Serviços públicos não deveriam ser, necessariamente, gratuitos, especificamente a Saúde e a Educação. Dessa forma, os mercados (todos) seriam regidos por uma “mão invisível”, traduzido pela fórmula da “lei da oferta e procura” (“quanto maior a oferta, maior a procura; quanto maior a procura, maior a oferta”). Fato é que a obra de Adam Smith fala por si e sobrevive ao tempo. Seja pela crítica ou pela atualização de suas premissas. De um lado, temos a leitura de que sua teoria não é capaz de estabelecer um parâmetro ético e legal capaz de gerar uma harmonia social, uma vez que os únicos parâmetros de regulação social é a famigerada “mão invisível do mercado”- uma mera abstração, sem força concreta, por consequência. A segunda é a que ataca o “otimismo” de Adam Smith frente aos efeitos sociais do avanço capitalista e do processo de “autorrealização individual e econômica”. As críticas do século XIX, sobretudo de base marxista, vêm justamente ao encontro localizar os problemas dessa consequência irrefreável do desenvolvimento liberal. Em tese, ao invés de se assegurar o bem-estar social, a aplicação de sua doutrina resultaria na acentuação das desigualdades sociais e sobreposições de classes.

Exercícios de fixação Gabarito questão 03 Em termos conservadores, o Absolutismo; em termos progressistas, as diversas correntes socialistas, com destaque para o Socialismo científico ou marxista. Gabarito questão 04 Um estado de perfeita liberdade, em que os homens estejam naturalmente livres para decidir suas ações, dispor de seus bens e pessoas como entenderem, dentro dos limites do direito natural e sem necessitar autorização de alguém. É, ainda, um estado de igualdade, dada a reciprocidade do poder e jurisdição. Gabarito questão 05 A falta de um superior comum com autoridade para julgar os homens constitui o estado de guerra, enquanto a força, durante a ausência de um superior a quem se recorrer em busca de assistência, faz o estado de guerra. Nas palavras de Locke: “A vontade de se ter um juiz comum com autoridade coloca todos os homens em um estado de natureza; o uso da força sem direito sobre a pessoa de um homem provoca um estado de guerra, haja ou não um juiz comum.

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A filósofa e escritora Ayn Rand (Alisa Zinov’yevna Rozenbaum) nasceu em São Petersburgo em 1905 e faleceu nos EUA (NY) - país para o qual imigrou em 1926 - em 6 de março de 1982. Durante sua vida, ocupou-se da dramaturgia enquanto escritora e roterista, embora tenha se destacado no campo da filosofia, sobretudo por ter desenvolvido um sistema filosófico chamado Objetivismo. Sua obra de maior relevância trata-se do romance filosófico Atlas Shrugged (no Brasil, Quem É John Galt?, inicialmente lançado em 1987 e, posteriormente, relançado em 2010 como A Revolta de Atlas). Rand caracterizava-se por um pensamento que buscava recuperar traços da tradição humanista e racionalista - ao afirmar que a razão é o único meio de se adquirir o conhecimento - rejeitando, portanto, a fé e a religião. Dessa forma, elementos caros à religião, como o altruísmo, eram rejeitados por ela, sobretudo quando não era fruto da espontaneidade, mas de uma imposição religiosa ou Estatal, razão pela qual posicionava-se contrária a qualquer forma de estatismo ou coletivismo. Ao contrário, as relações humanas deveriam ser mediadas pelo Capitalismo laissez-faire, baseado num sistema de reconhecimento dos direitos individuais, incluindo os direitos de propriedade. Ainda que Rand se opusesse a grande parte dos filósofos desde a tradição socrático-platônica e a teologia cristã, em seu pensamento evidencia-se o apreço e a influência de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino e liberais clássicos.

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SAIBA MAIS

No entanto, a influência do filósofo atravessa o século XIX. Seus apologistas afirmam que há um pujante traço ético em seu pensamento: o livre-comércio/mercado não deve ser confundido com um triunfo do mais forte num contexto de anomia plena. Ao contrário, significaria a oportunidade concreta para que através do espírito criativo/ inovador, o indivíduo pudesse, por seus próprios esforços - e sem as restrições do Estado ou dos “apadrinhados do poder”, atingir a riqueza e a satisfação no exercício de sua liberdade. As teorias da chamada “Escola Austríaca” ou correntes como o aludido Utilitarismo e o Objetivismo (de pensadoras como Ayn Rand) são, sem sombra de dúvidas, tributárias das intuições formuladas desde John Locke, encontrando guarida certamente em Adam Smith- ainda que operem uma reflexão original e, em certa medida, descontinuada da tradição liberal. 27


Filosofia

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SAIBA MAIS É comum o termo “neoliberalismo”- geralmente utilizado em sentido pejorativo - buscar designar o processo de reconfiguração teórica e prática do sistema capitalista ao longo do século XX, mais precisamente, após a crise de 1929. No entanto, especialmente no campo da teoria econômica, observa-se que houve uma profusão de perspectivas intelectuais acerca do avanço e redimensionamento do Capitalismo (e, por consequência, da própria tradição liberal). É nesse contexto que emerge a chamada “Escola Austríaca”. Embora sua origem remonte ao século XIX por meio de precursores como Frederic Bastiat, Juan de Mariana e Richard Cantilon, sua influência começará a ser percebida após as primeiras décadas do século XX. Não obstante, a associação da escola como sendo parte do pensamento econômico dominante (ou economia mainstream), a partir da década de 1930, passa a configurar-se como um modelo heterodoxo, guardando um afastamento, sobretudo, das concepções marshallianas de economia que vigoravam naquele contexto. Distribuída em cinco fases distintas - compostas, inclusive, por autores não-austríacos - a Escola destacou-se (tendo início, de fato) pela publicação, em 1871, da obra Grundsätze, do vienense Carl Menger. Na esteira do século XX, teremos nomes como Ludwig Von Mises, Murray Rothbath e o ganhador do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, Friedrich Hayek.

BIBLIOGRAFIA BELLAMY, R. Liberalismo e sociedade moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 1994. BRITO, Ari Tank. O Liberalismo Clássico. In: FRATESCHI. Yara; MELO, Rurion; RAMOS, Flamarion C. (Org.). Manual de Filosofia política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. LOCKE, Jhon. Dois tratados sobre o governo. Editado por Peter Laslett. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ______. Carta sobre a tolerância. São Paulo: Hedra, 2007. HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções. Tradução de Maria Tereza Lopes Teixeira & Marcos Penchel. Editora Paz e Terra: 1981. MANENT, P. História intelectual do liberalismo, Dez lições. Rio de Janeiro: Imago, 1990. MISES, L.V. O Contexto Histórico Da Escola Austriaca De Economia. Tradução de Isabel Regina Rocha de Sousa. Sao Paulo: Editora LVM, 2017. RAND, Ayn. A revolta de Atlas. São Paulo: Arqueiro, 2012. SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

A03  O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith

______. A Riqueza das Nações. Trad. Alexandre Amaral Rodrigues e Eunice Ostrensky, São Paulo: Martins Fontes, 1a ed., 2003.

#DicaCine Filosofi SINOPSE Numa cidade grande, o trânsito é subitamente atrapalhado quando um motorista de origem japonesa não consegue dirigir e diz ter ficado cego. Ele é ajudado a chegar em casa por um homem, que acaba por roubar seu carro. No dia seguinte, ele e a mulher vão consultar um oftalmologista, que não descobre nada de errado com os olhos do primeiro cego. Este afirma que uma “luz branca” impede sua visão. Pouco tempo depois, todas as pessoas que tiveram contato com ele- sua esposa, o ladrão, o doutor e os pacientes da sala de espera do consultório- também ficam cegas. O governo trata a doença como uma epidemia e, imediatamente, coloca os doentes em quarentena, em uma instalação vigiada o tempo todo por soldados armados. A mulher do oftalmologista é a única que não é afetada, mas finge estar com a doença para acompanhar o marido em seu confinamento. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Ensaio_sobre_a_Cegueira_(filme)

Título: Ensaio sobre a cegueira Ano: 2008 Direção: Fernando Meirelles Gênero: Romance/Drama/Ficção Científica Idioma: Inglês 28


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Exercícios de Fixação 01. Quais foram os direitos naturais que o Liberalismo se propôs a garantir? Direitos à vida, à liberdade e à igualdade perante a lei.

04. Como Locke descreve o estado de natureza em que todos os homens naturalmente estão?

02. Quais as principais características do Liberalismo econômico?

05. O que coloca os homens em estado de natureza e que os coloca em estado de guerra?

Não intervenção do Estado na economia.

03. Quais correntes de pensamento se opuseram ao Liberalismo, no século XIX?

Exercícios C om p l em en t ares 01. (Puc MG) O liberalismo, enquanto uma doutrina fundamentalmente racionalista, se opõe, EXCETO: a) ao jugo da autoridade. b) ao respeito cego pelo passado. c) ao império do preconceito. d) aos impulsos do instinto. e) ao domínio do individualismo.

os homens se acham naturalmente, sendo este um estado de perfeita liberdade para ordenar-lhes as ações e regular-lhes as posses e as pessoas conforme acharem conveniente, dentro dos limites da lei de natureza, sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem.

02. (FAAP) Os pensadores do liberalismo econômico, como Adam Smith, Malthus e outros, defendiam

A partir da leitura do texto acima e de acordo com o pensamento político do autor, assinale a alternativa correta. a) Segundo Locke, o estado de natureza se confunde com o estado de servidão. b) Para Locke, o direito dos homens a todas as coisas independe da conveniência de cada um. c) Segundo Locke, a origem do poder político depende do estado de natureza. d) Segundo Locke, a existência de permissão para agir é compatível com o estado de natureza.

03. Leia o texto a seguir: “Nos séculos XVIII e XIX, o termo liberalismo geralmente se referia a uma filosofia de vida pública que afirmava o seguinte princípio: sociedades e todas as suas partes não necessitam de um controle central administrador porque as sociedades normalmente se administram através da interação voluntária de seus membros para seus benefícios mútuos. Hoje não podemos chamar de liberalismo essa filosofia porque esse termo foi apropriado por democratas totalitários. Em uma tentativa de recuperar essa filosofia ainda em nosso tempo, damos a ela um novo nome: liberalismo clássico.” (Rockwell, Lew. O que é o Liberalismo Clássico. IBM.)

O autor argumenta que o termo “liberalismo clássico” reabilita a tradição de ideias políticas e econômicas dos séculos XVIII e XIX. Entre os representantes dessa tradição, estão: a) Lenin, Mikhail Bakunin e Voltaire b) Karl Marx, Vilfredo Pareto e John M. Keynes c) Adam Smith, David Ricardo e John Locke d) Rousseau, Louis Blanqui e Diderot e) Edmund Burke, Max Weber e Trotsky

05. (Ufu MG) O pensamento político de John Locke contém uma teoria da cidadania que anuncia certos aspectos da filosofia do século XVIII. Pela anuência à vida civil e pela confiança que deposita no poder público, o indivíduo se faz cidadão. Incorporando-se livremente ao corpo político, cada um participa de sua gestão: alcança assim a dignidade política. Acerca do pensamento de Locke, considere o texto acima e marque a alternativa correta. a) Um governante que usa, à margem da lei, a força contra os interesses de seus súditos destrói sua própria autoridade. O súdito tem o direito a resistir-lhe. b) O contrato tem a finalidade de instituir a vida ética no seio do Estado. c) Locke afirma que o contrato emerge da base material da sociedade, independentemente das decisões dos indivíduos. d) A transferência de poder torna-se irrevogável após o contrato, porque a soberania é ilimitada e absoluta.

A03  O liberalismo político e econômico: John Locke e Adam Smith

a) intervenção do Estado na economia. b) o mercantilismo como política econômica nacional. c) socialização dos meios de produção. d) liberdade para as atividades econômicas. e) implantação do capitalismo de Estado.

(LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o Governo. São Paulo: Abril Cultural, 1978.)

04. (Ufu MG) Para bem compreender o poder político e derivá-lo de sua origem, devemos considerar em que estado todos

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FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A04

ASSUNTOS ABORDADOS n Jean-Jacques Rousseau: o bom

selvagem e a origem da desigualdade entre os homens

JEAN-JACQUES ROUSSEAU: O BOM SELVAGEM E A ORIGEM DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS

n Os tipos de desigualdade em Rousseau n Rousseau e O Contrato Social n O legado de Rousseau

Figura 01 - Retrato de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Autor: Maurice Quentin de La Tour (1704-1788).

“É preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade: os que quiserem tratar separadamente da política e da moral nunca entenderão nada de nenhuma das duas” (Jean-Jacques Rousseau, Emílio ou da Educação)

Há uma raridade de filósofos ao longo da história do pensamento ocidental que, verdadeiramente, tornou-se um divisor de águas. Não somente por inverter os polos de uma tradição, mas, sobretudo, por ofertar caminhos a partir de si tão influentes, quanto diametralmente opostos. A figura de Jean Jacques Rousseau é uma dessas a bifurcar a trajetória do pensamento político de sua época, com intuições filosóficas que tanto abarcaram os gostos de liberais, quanto de socialistas e progressistas dos séculos vindouros à sua existência. A vida e obra de Rousseau obedeceram a itinerários incomuns para um filósofo tão influente. A começar por sua não formação acadêmica, propriamente dita, em Filosofia. Nasceu em Genebra, na Suíça, em 28 de junho de 1712, filho de um relojoeiro de profissão, Isaac Rousseau. Sua mãe, Suzanne Bernard, faleceu poucos dias após seu nascimento. Sua infância foi muito modesta, sendo cuidado basicamente pela irmã de seu pai e uma ama. Posteriormente à fuga de seu pai da cidade de Genebra (motivado por uma briga e sob a ameaça de prisão), Rousseau passou a ficar sob a tutela de seu 30


Ciências Humanas e suas Tecnologias

A bem da verdade, Jean Jacques Rousseau nunca teve uma educação regular. Tornou-se autodidata a partir das leituras que fazia na biblioteca familiar, que incluía desde tratados de teologia (seu avô era pastor protestante), até livros de história. Aos dez anos, foi enviado por seu tio para estudar com o pastor Lambercier, em Bossey. Ainda que recebendo uma instrução teológica básica e demonstrando interesse em dar seguimento à formação religiosa, seus parcos recursos econômicos não lhe permitiram. De volta a Genebra, começa a trabalhar aos quatorze anos como aprendiz de gravador. A partir dos dezesseis, começa a se dispor a trabalhos esporádicos em diversas cidades para as quais viaja, de 1728 até 1742. Do sul da França até o norte da Itália, retornando à Suíça, Rousseau ocupa-se do estudo e ensino de música, especialmente, sendo sustentado (eventualmente) por amigos e amantes.

#Curiosidades

Figura 02 - Fachada do Convento de São Galo, na Suíça, patrimônio mundial da Unesco.

Segundo a biografia de Rousseau, em 1745 ele se juntou a Thérèse Levasseur, com quem teve cinco filhos. Embora o filósofo genebrino seja conhecido como o pai da pedagogia moderna, evidenciando o necessário cuidado (e afeto) com a educação infantil, todos os seus filhos foram encaminhados a orfanatos em tenra idade. Rousseau alegava que não tinha condições físicas (sua saúde era muito debilitada) e materiais para cuidar das crianças. Naquela ocasião, havia a possibilidade de que as crianças adotadas, em geral por monastérios e conventos, poderiam dedicar-se a uma vida religiosa, recebendo, no mínimo, cuidados durante boa parte de suas vidas. Esse fato pesou para o filósofo na mão de seus críticos que a todo custo colocava sua obra (O Emílio) sob suspeição, acusando de não ser coerente com sua própria biografia. A situação se agrava quando se sabe que desde 1746, ano em que seu pai morreu, uma pequena herança é repassada a Rousseau, permitindo-o viver folgadamente - o que atestava a condição material mínima para cuidar das crianças ou reavê-las anos mais tarde. Há, em escritos posteriores, a marca do remorso, como evidencia-se nas inúmeras tentativas de se justificar para tal ato. Rousseau entra para a história como um arauto da educação que foi avaliado, na prática, como um pai negligente.

É justamente nesse período que o escritor encontrará guarida emocional e intelectual em filósofos que conhece em suas perambulações pela Europa, dentre os quais destaca-se Condilacc (1715-1780). Evidencia-se, também, a figura de Denis Diderot (1713-1784) - que encomendou-lhe artigos sobre música e economia política para a Enciclopédia. Após Denis Diderot sofrer represálias e ser preso devido ao conteúdo de Lettre Sur lês aveugles (Carta sobre os cegos), Rousseau visita-o na prisão em 1749. Posteriormente, em território francês, lê um anúncio feito pela Academia de Dijon. Era um concurso literário que tinha como tema/mote: “pode a restauração das ciências e das artes contribuir para corromper ou aprimorar os costumes?”. Após redigir algumas linhas e mostrar a Diderot, sente-se encorajado pelo amigo a disputar o prêmio do concurso. Um novo universo havia se descortinado para Rousseau, a partir de então. Seu ensaio, conhecido sob o título abreviado de Discurso sobre as ciências e as artes, ganhou o primeiro prêmio e sua publicação ao final do ano seguinte tornou-o conhecido no meio literário francês. Publicada em 1750, essa obra traz as intuições que permearam toda a filosofia social de Rousseau: o conflito entre as sociedades modernas e a natureza humana. Nesse contexto, de forma inusitada, o pensador genebrino ressalta o aparente paradoxo da superioridade do estado selvagem em relação ao “civilizado”, sugerindo aquilo que fora forte objeto de crítica de seus detratores: a proclamação de uma “volta da natureza”, ao mesmo tempo denuncia as artes e as ciências (frutos do homem civilizado) como corruptoras da condição humana primal: boa em si mesmo. A tese central de Rousseau é que o homem, em seu estágio originário, é feliz conforme suas necessidades inatas. Razão pela qual propõe que o homem refaça esse caminho de volta à natureza, não em uma perspectiva literal, primitiva, mas um retorno àquela situação de plenitude com suas disposições mais naturais. Segundo Rousseau, a civilização teria inserido no homem um conjunto de necessidades artificiais, dispensáveis, mas que o homem se via escravo dessas paixões. O intelectualismo, a produção da arte e da cultura fizeram com que os homens esquecessem de suas necessidades naturais inerentes e, até mesmo, de sua própria condição humana. Assim, as mentiras convenientes e os refinamentos sociais, a vaidade intelectual ou a suntuosidade cultural teria levado a abusos que fizeram com que o homem perdesse a sua capacidade de reconhecer e julgar valores humanos mais profundos, como a virtude. No ano seguinte à sua premiação, a Academia de Dijon propôs novo concurso, dessa vez com o tema/mote: “qual seria a origem da desigualdade entre os homens?”. Inspirado pelo sucesso anterior, Rousseau escreve um texto magistral e submete-o à disputa. Contudo, não logra a vitória literária, o que não significa que sua obra seja inferior à anterior. Ao contrário, o impacto que esse novo empreendimento intelectual acarreta nas gerações seguintes é incalculável. 31

A04  Jean-Jacques Rousseau: o bom selvagem e a origem da desigualdade entre os homens

tio, Gabriel Bernard, engenheiro militar, que era irmão de sua mãe e casado com uma irmã de seu pai.


Filosofia

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#Curiosidades

A Enciclopédia (Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers) foi editada durante o século XVIII, tendo seus últimos volumes publicados em 1722, na França. Composta por uma extensa compilação de textos e índices (35 volumes, 71 818 artigos, e 2 885 ilustrações) foi organizada por Jean le Rond d’Alembert e Denis Diderot. Destaca-se também a contribuição de autores como Voltaire, MontesFigura 03 - Frontispício da Encyclopédie (1772). Artistas: Charles-Nicolas Cochin quieu e Rousseau. & Bonaventure-Louis Prévost. Segundo Denis Diderot que ocupou-se sozinho da fase final da edição - o objetivo da obra era não somente servir de compêndio literário, científico e filosófico a empreender pesquisas; mas, antes, de servir de instrumento para mudar a forma como as pessoas pensavam, podendo libertar-se dos atavismos da religião tradicional. Dessa forma, a Enciclopédie se mostra como um compêndio em que evidencia-se a defesa da secularização da aprendizagem, em clara oposição ao jesuitismo. Nota-se, portanto, a objetiva característica iluminista da obra. Esse caráter laico, secular, gerou controvérsias no Ancien Régime francês. Isso se deveu, sobretudo, àquilo que era tido como virtude no escopo da obra: a tolerância religiosa - que aparece materializada em suas páginas como um claro ataque aos dogmas católicos e um elogio aos pensadores protestantes. Naturalmente, a obra foi banida de sua circulação por um tempo - o que não impediu sua continuidade e socialização através de seus simpatizantes, sobretudo ligados aos movimentos de insurreição que se constituíam já no crepúsculo da Idade Moderna. A Enciclopédia destacou-se também por ser um compêndio de textos sobre “tecnologias do período”, descrevendo mecanismos dos instrumentos manuais tradicionais, além daqueles novos que estavam sendo constituídos na aurora da Revolução Industrial inglesa. Além disso, há uma interessante parte dedicada à chamada “taxonomia do conhecimento humano”, tendo como influência o anterior tratado de Francis Bacon (“Advancement of Learning”). Nessa parte, há a distribuição do conhecimento em três principais ramos: 1) Memória/História; 2) Razão/Filosofia; 3) Imaginação/Poesia.

Pelo título do Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau desdobra a tese anterior em Discurso sobre as ciências e artes: a civilização enquanto degenerada do homem natural. 32

É dessa obra a célebre frase: “o homem é naturalmente bom. A sociedade que o corrompe”. Segundo Rousseau - e aqui apresenta-se sua vinculação às teorias contratualistas - o homem não é egoísta e “lobo do próprio homem” (Hobbes) ou de natureza indeterminada, podendo nascer bom ou mau (Locke). Ao contrário, os homens em estado de natureza são iguais e bons, já que inexistem ambições marcadas pelo desejo de propriedade - sendo esta mesma, também, inexistente. É a teoria do “bom selvagem”. Não obstante, para se assegurarem das intempéries da natureza, de reações violentas ou das “desigualdades naturais” de seus iguais (a saber, a compleição física ou a esperteza), os homens buscam a sociabilidade - que se firma a partir de uma relação contratual. E é precisamente nesse intercurso que se inicia a degeneração humana. É o preço - praticamente inegociável - que se paga para se viver em sociedade. Essa tese também será desdobrada na obra subsequente: O Contrato Social.

Os tipos de desigualdade em Rousseau

Figura 04 - A balsa da Medusa (1818-1819). Autor: Théodore Géricault.

Segundo Rousseau, a desigualdade social tem início com o advento do mundo civil e este está calcado na noção de propriedade privada e na necessária segurança frente às contingências da vida coletiva. Em outras palavras, no sentimento de insegurança em relação aos demais homens, Rousseau distingue dois tipos de desigualdades e busca uma gênese explicativa para cada uma delas. A primeira é fruto da compleição física (desigualdade natural): os indivíduos se diferem em tamanho, força, peso etc. Assim, naturalmente, os homens acabam por auferirem vantagens sobre os outros em virtude de possuir certos atributos necessários ao contexto em que vivem. Essa não equanimidade física não acarreta grandes danos ou distorções para o homem primitivo em função de seu meio. Os homens no “estado de natureza”, no máximo, viviam em bandos. Esporadicamente, se ajudavam, objetivando suprirem uma necessidade emergente, tais como alimentação, proteção e procriação. Na ausência dessas contin-


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

preocupado com a formatação de um “homem ideal”, além de um modelo de sociedade capaz de garantir o usufruto da liberdade civil - base de nossas democracias liberais modernas. Esse “homem ideal” significa ser o “homem natural”. Novamente, não o estágio primitivo e rude. Antes, é aquele que por um processo formativo - a educação - desenvolve suas potencialidades naturais de piedade para com os outros seres da natureza, não sendo, portanto, cruel ou agressivo como a vida em sociedade o convoca. Esse homem deve ser aquele capaz de conciliar os sentimentos e a razão, para que não seja escravo de nenhuma das duas, nem isolado. Dessa forma, seria capaz de tomar as próprias decisões seguindo seu autodiscernimento e habilidade de buscar a perfeição. Sua plenitude daria na vida comunitária, formada por pequenos grupos familiares, sem que haja sobreposições motivadas pela propriedade privada.

A liberdade em Rousseau é um direito natural por excelência. Trata-se daquele sentimento que mais aproxima o homem (ainda que civilizado) de seu estado natural (de “bom selvagem”). A partir do momento em que o homem vê esse direito colocado em risco mediante o ataque de outros homens, ele abre mão de sua liberdade absoluta e busca o refúgio na sociabilização. Ocorre que, ao estar em saciedade, novas demandas e necessidades surgem, afastando-o de suas pulsões naturais, conduzindo-o, inclusive, a desenvolver sentimentos inexistentes no estado de natureza: a soberba, a avareza, o espírito competitivo etc. É importante salientar que todos esses representam um perigo para a condição de liberdade do homem. Viver em sociedade é, portanto, um estágio não-regressivo, conquanto degenerados da condição humana. Importa saber como lidar para que essa corrupção de sua natureza não o conduza à “barbárie civilizacional”. Rousseau, especialmente com essa tese, bifurca a história do pensamento político. De um lado, a tradição liberal pós-revolução francesa encontrará em seu pensamento um repouso na noção de legalidade, enquanto instituição mantenedora do direito de liberdade civil. Noutro espectro, teremos a tradição socialista a se inspirar na crítica à noção de propriedade privada - esta entendida como motor da luta entre classe e de todas as desigualdades sociais.

Rousseau e O Contrato Social Uma leitura desatenta de Jean-Jacques Rousseau pode nos levar a interpretá-lo como um autor anticivilização e antirracionalista, apologista de um retorno inconteste ao estado de natureza. Seus críticos, desde sua época, localizam essa caracterização de sua obra e pensamento. No entanto, como se depreende após uma leitura mais atenta, Rousseau não propõe nem que se possa se abolir a propriedade privada (origem das desigualdades), nem muito menos se diluir a civilização. Mesmo criticando as conquistas desta e afirmando que a mesma corrompe o homem, o filósofo está mais

Figura 05 - Fac-simile da contracapa de O Contrato Social.

É importante frisar que, para Rousseau, essa busca pelo homem ideal/natural não implica uma destruição da sociedade em si. Da mesma forma que sua atestação da propriedade privada enquanto gênese da desigualdade social signifique sua total destituição. Para o filósofo, justamente a existência da sociedade nos permite um desenvolvimento muito mais rápido e amplia nossas perspectivas intelectuais. Além disso, permite o exercício daquilo que é muito caro a Rousseau: a liberdade. Portanto, o conceito de liberdade deve ser entendido em sua dupla acepção: é um direito e um dever, concomitantemente. Trata-se de um direito natural por excelência: um valor humano fundamental - que é intransferível e nem 33

A04  Jean-Jacq ues R ousseau: o bom selvagem e a origem da desigualdade entre os homens

gências, buscavam uma vida isolada e imersa na natureza. Já a segunda, seria a que derivaria na desigualdade tal qual concebemos (desigualdade artificial). Ela seria fruto da percepção do homem primitivo em assegurar-se num determinado território, evitando as continências da vida nômade. Com o surgimento de novas exigências da vida, os homens passaram a ter mais do que o necessário, visando a se assegurarem e protegerem o já adquirido. É quando surge a propriedade privada (fosse ela um animal, terras, armas e, até mesmo, outras pessoas). Ocorre que, dessa aparente necessidade de seguridade da vida, adveio a noção acumuladora de bens, consequentemente e, muitas vezes, somadas com a “desigualdade natural”- a expressão da superioridade frente aos demais. Daí a ocorrência dos conflitos entre as diversas formações pré-societárias e a consequente necessidade da criação de leis (contrato social) para regular os conflitos e garantir o exercício da liberdade, senão total, ao menos civil.


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Filosofia

pode ser tomado de outrem. É na liberdade que os indivíduos reconhecem a si e o outro enquanto seres portadores de direitos e deveres, capazes de distinguir entre vontades que são particulares e vontades que são gerais. O reconhecimento da liberdade é, para Rousseau, justamente a salvaguarda do individualismo - uma das marcas da civilização, sobretudo a partir da idade moderna. Assim, os homens passam a reconhecer a necessidade de estabelecerem normas que os regulem, a fim de a liberdade de um não usurpar a liberdade de outrem. Dessa forma, quando os indivíduos identificam sua vontade com a vontade de seu coletivo, passa a existir então um “contrato social”, que é quando esses indivíduos unem-se de forma livre para formarem uma sociedade, à qual prestam obediência com consideração e respeito. Esse tema foi tão caro a Rousseau que sua principal obra leva o título homônimo: Du Contrat Social ou Principes du droit politique. A obra O Contrato Social é derivada, formalmente, de uma publicação inacabada de Rousseau: as Instituições Políticas. No campo das teses levantadas, consegue amalgamar (e desdobrar) outras já expressas em Discurso sobre as artes e ciências e Ensaio sobre a origem das desigualdades entre os homens. De forma sucinta, o filósofo expõe, nesse trabalho, sua noção de contrato social, apresentando uma ruptura com as concepções contratualistas de Hobbes e Locke. O contrato é um acordo entre os indivíduos para se criar uma sociedade, na qual o Estado é uma instituição mediadora: o contrato não é, portanto, uma submissão ou transferência de poder, mas sim um pacto de associação. Jean-Jacques Rousseau inicia a obra já expondo em sua primeira frase a célebre sentença: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se acorrentado.”. Esse ponto de partida percorrerá toda a obra numa tentativa de equacionar as oposições aparentes: indivíduo/natureza/sociedade e liberdade/ sociedade civil. Dessa forma, já na introdução, ele questiona o que leva os homens a viverem sob as amarras do processo de sociabilidade, da razão de terem abandonado o estado de natureza. O questionamento que surge é: se todos os homens já nascem livres, por qual razão buscar outra forma de liberdade no seio de uma sociedade civil? Segundo Rousseau, a sociedade é um desdobramento da ordem social - um direito sagrado fundado em algo não natural: as convenções. A família seria uma dessas primeiras convenções a se afirmarem, sendo algo mais próximo de uma “sociedade natural”. No entanto, por mais que haja essa aproximação, a família se desdobra e converte-se numa estrutura mais complexa: a sociedade política. A partir do terceiro capítulo, encontramos a contraposição rousseauista ao pensamento hobbesiano/maquiaveliano: nem sempre o mais forte ou mais astuto é capaz de concentrar o poder em si. A força, na maioria dos casos, não é suficiente para assegurar o poder. O argumento é que, se obediência só existe em função da própria força que expressa poder, o que seria da autoridade artificialmente constituída quando a força fenecesse? Assim, conclui que se “(…) a força não faz o direito e que só se é obrigado a obedecer aos poderes legítimos”. Esse capítulo também é essencial, pois é nele que escritor teoriza sobre a causalidade entre igualdade social e exercício da de34

mocracia direta- elementos fundamentais a inspirar os Jacobinos no contexto da Revolução Francesa. Após discorrer sobre os meandros da escravidão e acerca da necessidade de sempre se remontar a uma primeira convenção (capítulo 4 e 5, respectivamente), Rousseau centra sua reflexão em torno da historicidade do pacto social. De início, afirma, o primeiro pacto se formou no momento em que os homens viram não possuir mais a capacidade de subsistência individual, precisando, assim, unir forças e se agregarem. É a passagem do estado natural para a sociedade civil. Posteriormente, o pacto social converteu-se numa acepção mais complexa, passando a se constituir como um contrato social que buscava uma agregação que defenderia e protegeria com toda a força os bens, direitos e interesses de todos os indivíduos. A cláusula pétrea desse contrato seria a alienação de todos os indivíduos e mantê-los iguais, no qual cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo seu poder sob a suprema direção da vontade geral; e recebemos, coletivamente, cada membro como parte indivisível do todo. Após um capítulo sobre as condições de ser de um soberano (cap. 7), Rousseau se põe a refletir sobre o estado civil, propriamente dito. Segundo o filósofo, a partir do momento em que há a passagem de um estado a outro, diversas mudanças ocorrem. A primeira delas, é que o homem substitui o instinto pela Justiça, e sua conduta passa a incorporar a dimensão da moral. A perda da liberdade natural compensa-o com o ganho da liberdade civil que ganha seus limites nos contornos da vontade geral. Nos capítulos finais da obra, após uma longa discussão acerca dos desdobramentos da propriedade privada, procura teorizar sobre as relações entre os direitos de cada indivíduo e os direitos de um homem em uma comunidade. É também debatida a forma como se dariam os diversos sistemas de legislação (instituídos a partir de dois objetos principais: a liberdade e a igualdade), enquanto mediadoras conceituais para o poder do Estado. Por fim, há uma divisão também na categoria das leis (políticas, civis e criminais), afirmando que os usos e os costumes deveriam ser substituídos pelo hábito jurídico que assegura a autoridade e mantém o povo dentro do espírito de sua instituição. As teses de Jean-Jacques Rousseau presentes em O Contrato Social podem ser sintetizadas da seguinte forma: n

O único fundamento legítimo do político é o pacto social;

n

Cada cidadão, submetido ao pacto, como membro do povo, deve concordar em submeter sua vontade particular à vontade geral;

n

Cada homem/cidadão, portanto, só deve obediência ao poder político se esse poder representar a vontade geral do povo ao qual pertence;

n

O compromisso de cada cidadão é com seu povo e somente este é fonte legítima de soberania do Estado;

n

Há uma distinção entre Estado e Governo. O Estado é tido como soberano, intransferível e indivisível, uma


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

vez que fora investido pela vontade geral. Já quanto ao Governo, trata-se apenas do órgão administrativo que se encarrega da aplicação e do controle da lei, objetivando a manutenção operacional das liberdades políticas e civis.

O legado de Rousseau

nas décadas (e séculos) que se seguiram. De pai da pedagogia moderna até precursor das teorias antropológicas, passando pelo escritor do romantismo francês até o filólogo prodigioso, o intelectual genebrino foi capaz de amalgamar fontes e influências, deixando para a posteridade um rico legado. É impossível, sobretudo o campo da teoria política, não beber da fonte rousseaunista- seja para desdobrá-lo ou desconstruí-la.

Ao longo de sua vida, Jean-Jacques Rousseau ocupou-se da escrita de diversos outros gêneros e obras - do romance A nova Heloísa (1756) até seus dois principais livros, em 1762: Emílio ou Da Educação e O Contrato Social. As polêmicas vieram em conjunto com o reconhecimento de suas obras. Logo após a publicação de ambas, o filósofo passa a ser alvo de uma ofensiva por parte do alto clero, pelos protestantes e pelo parlamento. Já não bastasse o desafeto com Voltaire - que a essa altura havia publicado um manifesto criticando Rousseau - agora se via na condição de ter que se refugiar para não ser preso (e, possivelmente, decapitado) pelo Ancien Regimé. Emigra primeiro para Neuchâtel, capital do cantão suíço, situada na parte ocidental do país em fronteira com a França. Posteriormente, refugia-se na Inglaterra a convite do filósofo empirista, David Hume. Somente em 1767, retorna à França, casando-se com seu antigo amor (e mãe de seus filhos entregues para adoção), Thérèse Lavasseur. Durante seus exílios, escreveu boa parte da obra As Confissões, na qual relata de forma autobiográfica toda sua vida e pensamento. Jean-Jacques Rousseau, a síntese moderna entre o homem, o filósofo e o educador, faleceu em Ermenonville, França, no dia 2 de julho de 1778. Seus restos mortais foram transportados para o Panteão de Paris. O pensamento do filósofo mostrou-se vigoroso

engloba os gêneros drama, musical e romance. O longa-metragem é embasado no musical homônimo de autoria de Alain Boublil, Claude-Michel Schönberg e Herbert Kretzmer, baseado na obra Os Miseráveis, o romance francês de 1862 escrito por Victor Hugo. A história se passa em plena Revolução de Julho do século XIX entre duas grandes batalhas: a Batalha de Waterloo e os motins de junho de 1832. O protagonista, Jean Valjean, rouba um pão para alimentar o filho da irmã mais nova e acaba sendo preso por isso. Cumprida a pena, Jean é posto em liberdade condicional com a obrigatoriedade de se apresentar regularmente, correndo o risco de passar o resto da vida preso se não o fizer. Como ex-presidiário, Valjean sente-se discriminado por todos. Contudo, tenta recomeçar sua vida e redimir-se do tortuoso passado. Considerando-se livre, ele quebra a condicional, resultando na fuga contínua pela perseguição do inspetor Javet. Fonte: adaptado de https://pt.wikipedia.org/wiki/Os_Miseráveis_(2012)

FICHA TÉCNICA: Nome do filme: Os Miseráveis Ano: 2012 Idioma: Inglês Direção: Tom Hooper Gênero: Musical/ Drama/ Romance

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Rousseau foi um filósofo que agregou fama e admiração no círculo intelectual europeu, sobretudo francês. Em igual Bibliografia medida, detratores e desafetos. Destaca-se também a tensa ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. São Paulo: relação com o filósofo iluminista, Voltaire. Assim, é conhecida Abril Cultural 1978. a crítica que um faz à obra do outro. Voltaire, ao receber do ______. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desipróprio Rousseau a obra Discurso sobre a origem da desigualgualdade entre os homens. São Paulo: Abril Cultural, 1978. dade entre os homens, endereça uma carta ao filósofo gene______. Emílio ou da educação. São Paulo: Martins Fontes, 1995. brino expressando-se em tom ácido: “(…) Recebi o seu novo livro contra a raça humana, e agradeço. Nunca se usou tal ______. Discurso sobre as ciências e as artes, in Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os hohabilidade no intuito de tornar-nos estúpidos. Lendo este livro, mens. São Paulo: Martins Fontes, 2005 deseja-se andar de gatas; mas eu perdi o hábito há mais de sessenta anos, e sinto-me incapaz de readquiri-lo.” Rousseau, a seu turno, também endereça uma críti#DicaCine Filosofi ca a obra de Voltaire, Cândido ou Otimismo. Aponta que a obra do filósofo iluminista era excessivamente pessimista e teria servido como mera resposta Les Misérables (Os Miseráveis) é sarcástica a suas perspectivas. um filme britânico-americano que


Filosofia Gabarito questão 01 A obra traz as intuições que permearam toda a filosofia social de Rousseau: o conflito entre as sociedades modernas e a natureza humana.

Gabarito questão 02 Segundo Rousseau, a civilização teria inserido no homem um conjunto de necessidades artificiais, dispensáveis, mas que o homem se via escravos dessas paixões. O intelectu-

alismo, a produção da arte e da cultura fizeram com que os homens esquecessem de suas necessidades naturais inerentes e, até mesmo, de sua própria condição humana.

Exercícios de Fixação 01. Em linhas gerais, qual a essência da obra Discurso sobre as ciências e as artes, que fez Rousseau ganhar o prêmio da Academia de Dijon? 02. Qual a principal crítica que Rousseau faz à civilização no contexto da obra Discurso sobre as ciências e as artes?

03. Na obra Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens, Rousseau se opõe aos contratualistas Hobbes e Locke quanto à definição de natureza humana. Qual a visão de Rousseau a respeito? 04. Qual a definição para o “contrato” em Rousseau?

Gabarito questão 04 O contrato é um acordo entre os indivíduos para se criar uma sociedade, na qual o Estado é uma instituição mediadora: o contrato não é, portanto, uma submissão ou transferência de poder, mas sim um pacto de associação.

Exercícios C om p l em en t ares 01. (Unicamp) “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais não deixa de ser mais escravo do que eles. (...) A ordem social, porém, é um direito sagrado que serve de base a todos os outros. (...) Haverá sempre uma grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum considerando-os um povo e seu chefe. Trata-se, caso se queira, de uma agregação, mas não de uma associação; nela não existe bem público, nem corpo político.” (Jean-Jacques Rousseau, Do Contrato Social. [1762]. São Paulo: Ed. Abril, 1973, p. 28,36.) A04  Jean-Jacques Rousseau: o bom selvagem e a origem da desigualdade entre os homens

No trecho apresentado, o autor a) argumenta que um corpo político existe quando os homens encontram-se associados em estado de igualdade política. b) reconhece os direitos sagrados como base para os direitos políticos e sociais. c) defende a necessidade de os homens se unirem em agregações, em busca de seus direitos políticos. d) denuncia a prática da escravidão nas Américas, que obrigava multidões de homens a se submeterem a um único senhor. 02. (Enem PPL) O homem natural é tudo para si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social. As boas instituições sociais são as que melhor sabem desnaturar o homem, retirar-lhe sua existência absoluta para dar-lhe uma relativa, e transferir o eu para a unidade comum, de sorte que cada particular não se julgue mais como tal, e sim como uma parte da unidade, e só seja percebido no todo. (ROUSSEAU, J. J. Emílio ou da Educação. São Paulo: Martins Fontes, 1999)

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Gabarito questão 03 (Fixação) De acordo com Rousseau, “o homem é naturalmente bom. A sociedade que o corrompe”. Nesse sentido, opera uma ruptura com as demais teorias contratualistas

A visão de Rousseau em relação à natureza humana, conforme expressa o texto, diz que a) o homem civil é formado a partir do desvio de sua própria natureza. b) as instituições sociais formam o homem de acordo com a sua essência natural. c) o homem civil é um todo no corpo social, pois as instituições sociais dependem dele. d) o homem é forçado a sair da natureza para se tornar absoluto. e) as instituições sociais expressam a natureza humana, pois o homem é um ser político. 03. (Unioeste) “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça dando às suas ações a moralidade que antes lhes faltava. É só então que, tomando a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o lugar do apetite, o homem, até aí levando em consideração apenas sua pessoa, vê-se forçado a agir baseado em outros princípios e a consultar e ouvir a razão antes de ouvir suas inclinações. Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza, ganha outras de igual monta: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda sua alma se eleva a tal ponto que (...) deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e um homem”. (Rousseau) Com base no texto, seguem as seguintes afirmativas: I. A mudança significativa que ocorre para o homem, na passagem do estado natural para o estado civil, é a de que o homem passa a conduzir-se pelos instintos, como um “animal estúpido e limitado”. II. A conduta do homem, no estado natural, é baseada na justiça e na moralidade e em conformidade com princípios fundados na razão. que a afirmavam que o homem é egoísta e “lobo do próprio homem” (Hobbes) ou de natureza indeterminada, podendo nascer bom ou mau (Locke).


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Ao ingressar no estado civil, na sua conduta, o homem substitui a justiça pelo instinto e apetite, orientando-se, apenas, pelas suas inclinações e não pela “voz do dever” e sem “ouvir a razão”. IV. Com a passagem do estado de natureza para o estado civil, o homem passa a agir baseado em princípios da justiça e da moralidade, orientando-se antes pela razão do que pelas inclinações. V. Com a passagem do estado de natureza para o estado civil, o homem obtém vantagens que o faz um “ser inteligente e um homem”, obtendo, assim a “liberdade civil”, submetendo-se, apenas, “à lei que prescrevemos a nós mesmos”. Assinale a alternativa correta. a) Apenas I e II estão corretas. b) Apenas II e III estão corretas. c) Apenas I e V estão corretas. d) Apenas IV e V estão corretas. e) Apenas II e V estão corretas. 04. (Ufpa) Em O Contrato Social, após reconhecer as vantagens da instituição do estado civil, Rousseau afirma a necessidade de se acrescentar à aquisição deste estado a liberdade moral, pois só assim o homem torna-se senhor de si mesmo. Com base nessa concepção, é correto afirmar que a) o estado civil é o único em que o homem pode viver em liberdade. b) no estado de natureza, todos os homens viviam em situação de escravidão moral. c) na vida civil, os impulsos imorais do homem se acomodam incondicionalmente às regras do Estado de Direito. d) não devemos situar em um mesmo plano civilidade e moralidade. e) Estado, lei e liberdade são uma só e mesma coisa. 05. (UEG) Entendia o filósofo Jean-Jacques Rousseau que a sociedade civil é resultado das transformações que a espécie humana sofreu ao longo de sua história, sobretudo da condição de selvagem para a condição de homem civilizado. O que permitiu essa transformação, segundo este filósofo, é a perfectibilidade. Selecione, nos itens a seguir, aquele que expressa o sentido de perfectibilidade em Rousseau, ou seja, a capacidade que o homem tem de a) aperfeiçoar-se. b) encontrar soluções para seus problemas. c) enfrentar seus medos. d) escapar dos perigos. 06. (Ufsm) Para J. J. Rousseau, “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto da justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava”. (Do contrato social. São Paulo: Abril Cultural, 1973. p. 36. Coleção Os Pensadores).

Nessa passagem do estado de natureza para o estado civil, ocorre que o homem I. perde a liberdade natural e o direito ilimitado, mas ganha a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui. II. mantém a liberdade natural e o direito irrestrito e ainda ganha uma moralidade muito particular guiada pelo seu puro apetite. III. mantém a liberdade natural e o direito ilimitado, mas abdica da liberdade civil em favor da liberdade moral. Está(ão) correta(s) a(s) afirmativa(s) a) I apenas. b) II apenas. c) III apenas. d) I e II apenas. e) I e III apenas. 07. (Ufu MG) Na Filosofia Política de Jean-Jacques Rousseau, para que o Contrato Social se concretize, uma das condições necessárias é a de que cada um aceite ceder todos os seus direitos em favor do Soberano. A partir da afirmação acima, marque a alternativa incorreta. a) Isso significa que o Soberano, que é necessariamente o Rei, terá direito a qualquer ação, pois não é limitado por nenhum contrato. b) Apesar de cederem todos os seus direitos, os homens não são prejudicados, pois todos devem ceder seus direitos igualmente. c) Os homens, apesar de se submeterem ao Soberano, são livres, pois são partícipes da autoridade Soberana. d) Os homens, ao obedecerem as leis, são livres, porque obedecem a si mesmos. 08. (Ufma) Leia com atenção a seguinte afirmação de Rousseau. “Enfim, cada um dando ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem. Se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence à sua essência, ver seguintes termos: ‘Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo. Imediatamente, esse ato de associação produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante, um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos são os votos da assembleia, e que, por esse mesmo ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua vontade.” ROUSSEAU, J. – J. Do Contrato Social. Coleção Os Pensadores.

O Pacto Social somente é possível a partir da vontade geral, descrita acima. Segundo Rousseau, tal conceito significa a) vontade de todos. b) vontade da maioria. c) vontade individual. d) vontade de uma grande parte. e) vontade comum coletiva. 37

A04  Jean-Jacq ues R ousseau: o bom selvagem e a origem da desigualdade entre os homens

III.


FRENTE

A

FILOSOFIA

Gabarito questão 01- O pensamento moderno alicerça-se nos princípios da razão, da separação das esferas pública e privada e da autonomia. Nesse sentido, alguns desses elementos encontram-se no segundo documento. Para Maquiavel, o governante deve apenas aparentar ser religioso para alcançar a admiração de seus súditos, não se orientando pelo princípio cristão. Para manter-se no poder, o governante precisará fazer o mal, usando da razão para decidir quando essa ação será necessária. Escrevendo em um contexto no qual o processo de orientação da vida humana ganha gradualmente autonomia em relação à orientação moral da Igreja Católica, Maquiavel separa religião (moral religiosa) e política (ética política).

Exercícios de A p rof u n dam en t o 01. O príncipe deve aparentar ser todo piedade, fé, integridade, humanidade, religião. Contudo, não necessita possuir todas essas qualidades, sendo suficiente que aparente possuí-las. Até mesmo afirmo que, se possuí-las e usá-las, elas lhes seriam prejudiciais. (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe 2012).

A partir do excerto acima, explique como o pensamento moderno de base maquiavelista compreende a relação entre Igreja e Estado. 02. (UFG) Um príncipe desejoso de conservar-se no poder tem de aprender os meios de não ser bom. (MAQUIAVEL, N. O Príncipe. In: WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política. São Paulo: Ática, 1993. p.37)

Com Nicolau Maquiavel (1469-1527), constitui-se um novo pensamento político, crítico em relação aos critérios que fundamentavam a legitimidade do príncipe medieval. Explique por que o pensamento político moderno excluiu a bondade como critério legitimador do poder do príncipe. 03. Segundo Maquiavel: (…) natureza criou os homens com a sede de tudo abraçar e a impotência de atingir todas as coisas. Como o desejo de possuir é mais forte do que a faculdade de adquirir, disto resulta em secreto desgosto pelo que possuem, ao qual se junta o descontentamento por si próprios. Esta é a origem dos seus variados destinos. Uns querem possuir mais, outros temem perder o que já ganharam; daí o atrito e a guerra, que por sua vez provocam a destruição de um império para servir à elevação de outro. De que forma Nicolau Maquiavel define a natureza humana e como a dimensão do conflito é essencial nesse processo? 04. (Ufu MG) Leia a afirmação abaixo e responda. A função que Hobbes atribui ao pacto de união é a de fazer passar a humanidade do estado de guerra para o estado de paz, instituindo o poder soberano.

06. “Dentre as ideias principais expostas em A riqueza das nações está a defesa do livre comercio entre nações. Ao invés de um determinado país produzir tudo o que puder, vender o mais possível e comprar o menos possível, na obra se argumenta que a divisão do trabalho entre as nações não só tornaria todas mais prósperas. O mesmo principio da divisão do trabalho que se via cada vez mais nas fábricas ainda nascentes, com cada qual cumprindo apenas uma função, e do trabalho de todos, reunido, dando origem a mais mercadorias e mais lucro, é aplicado por Adam Smith à conjuntura internacional. (BRITO, Ari Tank. O Liberalismo Clássico. In: FRATESCHI. Yara; MELO, Rurion; RAMOS, Flamarion C. (Org.). Manual de Filosofia política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. P.136)

Neste contexto, a noção de “Mão invisível do mercado” é essencial em sua teoria. Disserte sobre esse conceito: 07. (UnespSP) Enquanto os homens se contentaram com suas cabanas rústicas, enquanto se limitaram a costurar com espinhos ou com cerdas suas roupas de peles, a enfeitarem-se com plumas e conchas, a pintar o corpo com várias cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus arcos e flechas, a cortar com pedras agudas algumas canoas de pescador ou alguns instrumentos grosseiros de música – em uma palavra: enquanto só se dedicavam a obras que um único homem podia criar e a artes que não solicitavam o concurso de várias mãos, viveram tão livres, sadios, bons e felizes quanto o poderiam ser por sua natureza. O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Defendei-vos de acreditar nesse impostor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos e que a terra não pertence a ninguém”.

BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 43.

(Jean-Jacques Rousseau. Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Adaptado.)

a) Por que, sem o pacto, não há paz entre os homens? b) Por que a instituição do poder soberano é resultado de uma passagem?

Cite a principal diferença estabelecida por Rousseau entre a vida em estado de natureza e a vida na sociedade civil, e explique o significado dessa diferença no âmbito da filosofia política.

05. Conhecido como um dos mais importantes teóricos do liberalismo econômico do século XVIII, Adam Smith afirmava que, ao promover o interesse pessoal, o indivíduo contribuía para o interesse geral e coletivo. Com base nessa afirmação, indique as principais características do liberalismo econômico;

08. (Ufpr) Com base na citação abaixo e em outras informações presentes na mesma obra, explique de que modo, para Rousseau, o estado de natureza ajuda a compreender a origem da desigualdade entre os homens.

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Gabarito questão 02 Há uma crítica à noção de “bom governo”, fundamental para o pensamento político medieval. Segundo essa noção, o rei deveria ser portador de virtudes cristãs, morais e principescas. O príncipe deveria ser amado por seus governados. Para Maquiavel, o rei bom, portador de virtudes morais e religiosas, corre o risco de perecer e perder seu

reino. Sua crítica se dirige à ineficiência do rei bom em conservar o poder. Para manter os principados, sobretudo os recém-conquistados, até alcançar respeito e legitimidade entre seus súditos, ele «tem de aprender os meios de não ser bom». A partir do século XVI, com Maquiavel, o pensamento político se desliga da moral e da religião. Maquiavel substitui na política a categoria «bondade» pela «eficácia».


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

“(...) não constitui empreendimento trivial separar o que há de original e de artificial na natureza atual do homem, e conhecer com exatidão um estado que não mais existe, que talvez nunca tenha existido, que provavelmente jamais existirá, e sobre o qual se tem, contudo, a necessidade de alcançar noções exatas para bem julgar de nosso estado presente.” “Estendi-me desse modo sobre a suposição dessa condição primitiva porque, devendo destruir antigos erros e preconceitos inveterados, achei que devia pulverizá-los até a raiz e mostrar, no quadro do verdadeiro estado de natureza, como a desigualdade, mesmo natural, está longe de ter nesse estado tanta realidade e influência quanto pretendem nossos escritores. (ROUSSEAU, J-J. “Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens”. Trad. Lourdes Santos Machado. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.)

todo cidadão sob a vigência da legalidade. O Estado deve cuidar do bem-estar material dos cidadãos sem tomar partido em questões de matéria religiosa. III. O poder legislativo ocupa papel preponderante. IV. Na estrutura de poder, dentro de certos limites, o Estado tem o poder de fazer as leis e obrigar que sejam cumpridas. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e II são corretas. b) Somente as afirmativas I e III são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e IV são corretas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. II.

Anotações Gabarito questão 03

10. (Uel PR) Leia o texto a seguir. Locke divide o poder do governo em três poderes, cada um dos quais origina um ramo de governo: o poder legislativo (que é o fundamental), o executivo (no qual é incluído o judiciário) e o federativo (que é o poder de declarar a guerra, concertar a paz e estabelecer alianças com outras comunidades). Enquanto o governo continuar sendo expressão da vontade livre dos membros da sociedade, a rebelião não é permitida: é injusta a rebelião contra um governo legal. Mas a rebelião é aceita por Locke em caso de dissolução da sociedade e quando o governo deixa de cumprir sua função e se transforma em uma tirania. (LOCKE, John. In: MORA, J. F. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Loyola, 2001. V. III. p. 1770.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre John Locke, é correto afirmar: I. O direito de rebelião é um direito natural e legítimo de

Segundo Maquiavel- por ser a natureza humana ambiciosa e desejosa- seria impossível evitar que os indivíduos ou grupos não entrassem, cedo ou tarde, em conflito. A própria convivência entre indivíduos distintos em aspirações e objetivos conduziria à contenda, sendo essa, portanto, inerente a qualquer processo de interação social. Porém, argumenta Maquiavel, se o conflito não pode ser evitado, ele pode se transformar em motor para o progresso e a liberdade (a partir de seu desejo). Os homens, indistintamente, combatem por necessidade ou ambição, uma vez que a própria natureza havia os criado de tal maneira que podem tudo desejar, mas não podem tudo conseguir. Os homens são naturalmente perversos e o tempo não lhes muda a natureza. Não fosse a natureza humana o que é, certamente não haveria, na visão de Maquiavel, os conflitos e a disputa necessária para que surgissem boas leis e Estados prodigiosos. Daí a razão de ser do Estado: uma tentativa de dar cabo às ingerências da natureza humana. Gabarito questão 04 a) Porque para Hobbes, que é um contratualista absolutista, os indivíduos são todos iguais no poder e na força de lutar uns contra os outros para assegurarem sua própria sobrevivência e liberdade (“o homem é o lobo do homem”) e isso é o estado-de-guerra vigente (chamado por Hobbes de estado de natureza), que gera incerteza, desconfiança, insegurança e caos (não há paz). Somente se renunciam ao uso do próprio poder e da própria força, transferindo tal uso para um governante (poder público), ou seja, somente se pactuam uns com os outros, criando o poder soberano que esteja acima de todos e a todos possa governar, é que se produz a ordem e a segurança que pode acabar com o caos (com a guerra). b) Porque para Hobbes, o pacto ou contrato, em que todos transferem o poder ao governante como monopolizador do uso da força, produz a passagem ou transformação dos indivíduos, de um estado-de-natureza (como estado de guerra de todos contra todos) para um estado civil ou sociedade política (como estado de lei e ordem). Isto significa, ao mesmo tempo, a passagem para uma situação em que exista um poder soberano legítimo (público), que não existiria sem o consentimento dos súditos. Gabarito questão 05 As noções fundamentais defendidas e ampliadas pelos liberais foram: a defesa de um Estado Laico; uma economia de mercado fruto de um equilibro natural decorrente da lei da oferta e da procura; o princípio do lucro e da livre iniciativa; a valorização do espírito empreendedor e competitivo; e a defesa da propriedade privada (e dos bens de produção). Fundamentalmente, trata-se dentro da ótica liberal, de uma defesa das múltiplas formas de “Liberdade” (incluindo, portanto, as civis, políticas e comportamentais). Gabarito questão 06 Segundo Adam Smith, os agentes econômicos atuando de forma livre chegariam a uma situação de eficiência, dispensando assim qualquer atuação do Estado insuflando a economia. Este deveria se restringir apenas a quatro setores essenciais de administração (Saúde, Educação, Segurança e Justiça)- o que não significava, contudo, que essas eram áreas que dispensassem uma lógica de regulação pelo mercado. Serviços públicos não deveriam ser, necessariamente, gratuitos, especificamente a Saúde e a Educação. Dessa forma, os mercados (todos) seriam regidos por uma “mão invisível”, traduzido pela formula da “lei da oferta e procura” [“quanto maior a oferta, maior a procura; quanto maior a procura, maior a oferta”]. Gabarito questão 07 Segundo Rousseau, os homens em estado de natureza são iguais e bons, já que inexistem ambições marcadas pelo desejo de propriedade - sendo esta mesma, também, inexistente. É a teoria do “bom selvagem”. Não obstante, para se assegurarem das intempéries da natureza, de reações violentas ou das “desigualdades naturais” de seus iguais (a saber, a compleição física ou a esperteza), os homens buscam a sociabilidade - que se firma a partir de uma relação contratual. E é precisamente neste intercurso que inicia-se a degeneração humana. É o preço- praticamente inegociável- que se paga para se viver em sociedade. Assim, a sociedade civil é resultado das transformações que a espécie humana sofreu ao longo de sua história, sobretudo da condição de selvagem para a condição de homem civilizado. Gabarito questão 08 Segundo Rousseau, a desigualdade social tem início com o advento do mundo civil, e este está calcado na noção de propriedade privada e na necessária segurança frente às contingências da vida coletiva. Em outras palavras, no sentimento de insegurança em relação aos demais homens. A liberdade em Rousseau é um direito natural por excelência. Trata-se daquele sentimento que mais aproxima o homem (ainda que civilizado) de seu estado natural (de “bom selvagem”). A partir do momento em que o homem vê esse direito colocado em risco mediante o ataque de outros homens, ele abre mão de sua liberdade absoluta e busca o refúgio na sociabilização, se afastando, portanto, da sua condição natural (o estado de natureza).

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FRENTE A  Ex ercícios de Aprof undamento

09. (Uel PR) Tendo por base a concepção de contrato social em Locke, considere as afirmativas a seguir. I. Os homens firmam entre si um pacto de submissão, por meio do qual transferem a um terceiro o poder de coerção, trocando a condição de desigualdade do Estado de Natureza pela segurança e liberdade do Estado social. II. Os homens firmam um pacto de consentimento, no qual concordam livremente em formar a sociedade para preservar e consolidar os direitos que possuíam originalmente no Estado de natureza. III. O exercício legítimo da autoridade, no Estado social, baseia-se na teoria do direito divino, em que os monarcas, herdeiros dos patriarcas, são representantes diretos que garantem o contrato social. IV. O que leva os homens a se unirem e estabelecerem livremente entre si o contrato social é a falta de lei estabelecida, de juiz imparcial e de uma força coercitiva para impor a execução das sentenças. Estão corretas apenas as afirmativas: a) I e II. c) II e IV. e) II, III e IV. b) I e III. d) I, III e IV.


FRENTE

A

Alegoria sobre os valores da Constituição de 1800, mostrando o lema "Liberté, égalité, fraternité”. Autor: anônimo.


Fonte: Wikimedia Commons

FILOSOFIA Por falar nisso A modernidade pode ser compreendida como uma etapa da história do pensamento ocidental marcada por diversas fases e resultante de vários movimentos. Um de seus principais pilares, seguramente, foi o Iluminismo, também conhecido como século das luzes ou ilustração. De modo geral, esse movimento centrava suas ideias na razão enquanto principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado. Na França - um de seus mais importantes berços − as doutrinas centrais dos filósofos do Iluminismo eram a liberdade individual e a tolerância religiosa em oposição a uma monarquia absoluta e aos dogmas fixos da Igreja Católica Romana. Há uma associação desse movimento fortemente marcada pelo advento do liberalismo filosófico e econômico, assim como por diversas propostas de reforma da sociedade e seus sistemas políticos e organizacionais. Nas próximas aulas, estudaremos os seguintes temas

A05 A06 A07 A08

O Iluminismo de Voltaire e a crítica à intolerância enquanto traços da modernidade...42 Montesquieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes ............................................... 50 O Utilitarismo: de Jeremy Bentham a John Stuart Mill .................................................... 56 Michel Foucault: e a crítica ao panoptismo ..................................................................... 66


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A05

ASSUNTOS ABORDADOS n O Iluminismo de Voltaire e a

crítica à intolerância enquanto traços da modernidade n Voltaire (vida e obra) n A questão da (in)tolerância

O ILUMINISMO DE VOLTAIRE E A CRÍTICA À INTOLERÂNCIA ENQUANTO TRAÇOS DA MODERNIDADE Uma das principais marcas teóricas para se conhecer a modernidade está na relação que ela estabelece entre o antigo/passado e o presente/moderno. Há sempre duas épocas que se digladiam, havendo a necessidade de superação ou de contenção. No caso da contemporaneidade, vigora a primeira: é preciso evocar o novo e deixar o passado a seu próprio tempo.

Figura 01 - O Pátio das Musas de Weimar (1870). Autor: Theobald von Oer

42

A modernidade apresenta-se como uma sucessão de rupturas a essa mentalidade [que jazia suas raízes na Idade Média]. Do humanismo/renascimento, passando pelo racionalismo cartesiano e o empirismo britânico, além da revolução científica, a modernidade encontra seu ápice de afirmação no movimento liberal e iluminista - tomado por alguns historiadores da modernidade como tautológicos, isto é, são expressões de uma única categoria conceitual. Esses últimos desdobram concepções de mentalidades já expressas nos anteriores, como a crença no poder da razão humana em compreender nossa natureza, e derivar daí parâmetros para o nosso “posicionar” no mundo. O homem - razão e centro de todas as coisas − colocava-se como detentor de seu próprio destino, elevando-se contra as imposições de caráter religioso ou político. O ápice da ruptura moderna teria se dado então num forte movimento - localizado predominantemente nos círculos intelectuais franceses e ingleses − denominado Iluminismo.

Fonte: Wikimedia Commons

O antigo − aquilo que carece de ser “superado” − era representado no tempo moderno como a expressão do pensamento clerical sustentado em uma ideia de providência divina e futuro escatológico, apocalíptico. Cada momento do presente era uma sucessão de fracassos morais rumo a um juízo final inexorável. O medo, portanto, era o sentimento de domínio no imaginário coletivo. A igreja, a instituição [única e suficiente em si mesma] capaz de aplacar esse temor com a promessa de salvação.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

De modo objetivo, os ideais iluministas orbitavam em torno da defesa irrestrita da liberdade e da tolerância religiosa. Para tanto, eram necessários o questionamento e a modificação das concepções intelectuais, comportamentais, espirituais e, sobretudo, políticas de sua época. Era preciso, na visão dos “filósofos do esclarecimento”, a sobreposição das crenças religiosas e do misticismo por uma forma de pensamento estritamente racional a moldar a conduta do homem moderno. Qualquer forma de se encrostar os ideais da tradição religiosa ao modus vivendi do indivíduo europeu seria uma forma atávica de se bloquear o progresso da humanidade em todos os seus níveis: intelecto-científico, moral, econômico e social. A filosofia iluminista era, marcadamente, otimista em relação aos benefícios do progresso e do uso construtivo crítico da razão. Contrapondo-se ao sentimento de medo para com o futuro − fomentado pela visão escatológica cristã − o Iluminismo evoca a condição humanista de autonomia humana frente

ao seu próprio presente e destino, além da virtude da coragem como pré-condição para o exercício da liberdade e da própria razão, como bem assinalou o filósofo prussiano, Immanuel Kant. Embora possamos localizar o Iluminismo em diversas paragens da Europa, especialmente a Inglaterra, é fato que sua maior força geográfica esteve na França- palco de recepção orgânica de seus princípios, justamente pelo contexto de insatisfação e contestação com o conluio clero/monarquia absolutista. O princípio da liberdade individual tornou-se central na discussão sobre a política da época na medida em que a filosofia iluminista trazia à tona os direitos individuais- eis a razão do porquê de o Iluminismo ter se destacado na crítica ao Ancien Régime [calcado numa perspectiva tradicional e clerical de se compreender o exercício político], ofertando o combustível necessário para a Revolução Francesa- marco final de ruptura política a expressar em seu lema primal − ao menos em sentido ideológico − os princípios “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”. A Revolução Francesa marca historicamente, portanto, a experiência − resultante da “atitude moderna” − de ruptura paradigmática no modo de pensar ocidental. Se por um lado consolida a modernidade em termos intelectuais, por outro; abre o caminho para uma nova fase cronológica: a idade contemporânea − período ao qual a ciência assume de vez enquanto instituição promotora e detentora na construção de saberes, na medida em que a própria Igreja perdeu a hegemonia do discurso sobre a “verdade histórica”. Não foi somente o Antigo Regime que veio por terra, mas − de forma conectada − o próprio modo religioso/místico de se compreender a história humana e o posicionamento do homem frente a ela. A05  O Iluminismo de Voltaire e a crítica à intolerância enquanto traços da modernidade

O Iluminismo, portanto, foi um movimento intelectual e filosófico também conhecido como Século das Luzes ou Ilustração que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII. Sua manifestação esteve associada a nomes como Montesquieu (1689-1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Jhon Locke (1632-1704), Voltaire (1695-1778) e Immanuel Kant (1724-1804). Cada um, a seu modo, operou uma síntese de princípios que já caracterizavam o surgimento da modernidade (racionalismo, antropocentrismo, laicismo) com os fundamentos do pensamento liberal. Não raro, muitos de seus teóricos compunham esse escopo filosófico, tais como Locke e Rousseau.

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O que é o esclarecimento [Aufklärung] - um dos termos também traduzido por “iluminismo”? A pergunta provocativa levou o filosofo prussiano, Immanuel Kant, a formular um dos textos mais importantes do chamado Iluminismo tardio. Nascido em Königsberg (1724 – 1804), Kant é considerado um dos maiores filósofos da era moderna - quiçá de toda a história da filosofia. Sua vida e sua obra são marcadas por uma profícua produção literária, elaborando clássicos que mudaram a história da ciência e da visão filosófica da época, tais como Crítica da Razão Pura, Crítica da Razão Prática, a Metafísica dos Costumes, dentre outros. Seis anos antes da Revolução Francesa, Kant escreve um texto-resposta à pergunta: Que é Esclarecimento? A seguir, dois fragmentos que sintetizam a resposta que o filósofo prussiano apresenta, bem como um “diagnóstico” acerca do que caracterizaria a época pretensamente “iluminada” que ele vivia: “[...] Esclarecimento [Aufklärung] é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung] [...] [...] “Não, vivemos em uma época de esclarecimento”. Falta ainda muito para que os homens, nas condições atuais, tomados em conjunto, estejam já numa situação, ou possam ser colocados nela, na qual em matéria religiosa sejam capazes de fazer uso seguro e bom de seu próprio entendimento sem serem dirigidos por outrem. Somente temos claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados. Considerada sob este aspecto, esta época é a época do esclarecimento [...]

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Filosofia

A modernidade − (a)firmada como a experiência da Revolução Francesa, fruto do Iluminismo — mostrou-se como o indicativo capaz de incrustar no homem as formas do pensamento liberal, libertando-o do dogmatismo clerical que o colocava como mero expectador dos acontecimentos históricos. O homem moderno foi aquele capaz não somente de compreender a liberdade como uma condição e direito natural (herança contratual e liberal), mas de experienciá-la por meio das revoluções pretendidas [da científica à política], tomando para si as rédeas dos novos rumos que a sociedade europeia se conduzia. Fundamentalmente, era a ideia de presente-futuro como algo promissor que se desenhava ao homem renovado pelo esclarecimento.

Voltaire (vida e obra) “Posso não concordar com uma só palavra sua, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-la.” ― Voltaire

Figura 02 - Voltaire (aos 24 anos). Autor: Nicolas de Largillière (1656-1746)

O Iluminismo marcou a ideia de um homem racional e determinado por sua liberdade. Razão e liberdade não seriam algo intrínseco à natureza humana, mas uma conquista do processo de civilização. Para o filósofo Voltaire, esses princípios (civis) - essenciais para a sociedade moderna - nascem de forma indireta, isto é, não são frutos da natureza, mas antes resultados das convicções de formação social. Voltaire (pseudônimo de François-Marie Arouet) nasceu em 21 de novembro de 1695, em Paris. De família francesa abastada, pôde estudar no Collège Louis-le-Grand − importante instituição jesuíta. Não obstante sua formação cristã, durante sua vida associou-se a diversos grupos tidos por “libertinos e livre pensadores”, como a Societé du Temple. Voltaire abandonou os estudos da área do Direito para dedicar-se inteiramente à literatura, obtendo grande sucesso com suas obras, especialmente com as peças de tragédias clássicas. Aos 30 anos, já era um homem abastado, independente de seu patrimônio familiar.

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Desde sua juventude, Voltaire já se destacava intelectualmente pelo tom irreverente de suas críticas, não escapando nem os eclesiásticos de sua época, muito menos os filósofos. Por causa do tom de suas obras com críticas endereçadas aos governantes, foi preso na Bastilha (1717-1718), onde iniciou a tragédia Édipo (1718) e o Poema da Liga (1723). Anos mais tarde, foi preso novamente depois de participar de uma discussão com o príncipe Rohan-Chabot. Após a soltura, se viu obrigado a exilar-se por dois anos na Inglaterra. Nesse período, trabalhou na proposta de uma filosofia reformadora, pautada em claros ideais iluministas. Passados alguns anos, publicou a tragédia Brutus (1730), debatendo o tema da liberdade; História de Carlos XII (1731), criticando a guerra; Epístola a Urânio (1733) e O Templo do gosto (1733), questionando os dogmas da cristandade e a literatura de sua época, respectivamente. Desse período profícuo, ainda se destaca a publicação de Cartas Filosóficas − obra na qual critica o regime político absolutista francês, indicando seu atraso intelectual e sua postura clerical obsoleta [sic]. Novamente Voltaire é perseguido pelas autoridades, que o obrigaram a se refugiar no Castelo de Cirey. Nessa época, trabalhou na readaptação da tragédia Zaire (1732), A morte de César (1735) e Mérope (1743). A partir de 1745, passou a trabalhar na corte como historiógrafo real. Em 1750, mudou-se para Berlin com o intuito de viver na corte de Potsdam, a convite de Frederico II. Nesse período, destacaram-se as obras Zadig (1747) e, posteriormente, O século de Luís XIV (1751) e Micrômegas (1752). Em 1753, depois de um conflito com Frederico II, retirou-se para as proximidades de Genebra. São dessa época também suas conhecidas obras de crítica religiosa ao catolicismo e protestantismo, tais como A donzela de Orléans (1755) e Ensaio sobre os costumes (1756), respectivamente. Foi célebre, ainda, sua celeuma com Jean-Jacques Rousseau, ao contexto da publicação da 44


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Voltaire morreu em 30 de maio de 1778, em Paris, aos 83 anos de idade. Ao longo de uma vida profícua, publicou mais de 70 obras, vindo a influenciar toda uma geração posterior de pensadores e revolucionários. Tanto a Revolução Americana quanto a Revolução Francesa devem aos iluministas sua cota de inspiração. Voltaire, seguramente, figura entre as personalidades (em vida e obra) mais representativas desse contexto.

A questão da (in)tolerância Voltaire foi um dos filósofos que mais encarnaram o Iluminismo enquanto modo de ser. Foi capaz não somente de produzir intelectualmente, como fazer de sua vida um reflexo das ideias que proferia, dos comportamentos e concepções que criticava. Como vimos anteriormente, o Iluminismo calcava seus princípios numa crítica ao autoritarismo tanto político (monárquico), quanto eclesiástico (a instituição da igreja romana). Embora tido por esses como contrário filosoficamente à concepção de um Estado centralizado ou taxado rigorosamente de ateu, ele foi um filósofo que soube bem encarnar a crítica enquanto reformadora, e não enquanto instância de negação absoluta, seja de uma crença ou forma de governo. No tocante às questões sociopolíticas, Voltaire não se opunha, necessariamente, à monarquia. Antes, àquilo que possivelmente Aristóteles se reportaria ao investigar as formas (puras) de governo: a degeneração do poder que se faz pelo detrimento do bem comum. Dessa forma, acreditava que as nações de sua época não estavam prontas para se tornarem repúblicas ou democracias. Seria um processo que ainda demandaria um amadurecimento intelectual necessário, a que os povos ainda não estavam habituados. Não obstante, operava crítica à oligarquia na mesma medida em que louvava uma monarquia, entretanto “esclarecida”: posição que não fazia coro entre os demais iluministas. Em semelhança a seus pares, tinha simpatia pelas ideias liberais, seja em sentido filosófico ou econômico. Assim, opunha-se à tortura, pena de morte e outras práticas típicas do absolutismo (e em certa medida, também, de liberais revolucionários de tempos posteriores). Por outro lado, defendia em algumas de suas obras a liberdade política e a crítica à intolerância religiosa, tendo por fundamento a igualdade, justiça e tolerância.

Do ponto de vista religioso − que reside a maior amplitude de seu pensamento (e também o seu caráter inusitado) − temos um Voltaire crítico à instituição da Igreja, sem, contudo, a negação de uma espécie de Deísmo. Precursor de uma espécie de agnosticismo, o Deísmo trata de uma doutrina − amplamente difundida entre os iluministas − que considera a razão como a única via capaz de nos assegurar da existência de Deus, rejeitando, para tal fim, o ensinamento ou a prática de qualquer religião organizada. Voltaire, portanto, se enquadrava nessa categoria. Como deísta, admitia a ideia de um Deus, conquanto rejeitava a qualquer igreja o direito de ser seu representante. Em sua crítica mais mordaz, afirmava que a Igreja era uma fonte de injustiças e superstições, além de “infame” e “suja de sangue”, sendo responsável pelo fanatismo e pela intolerância religiosa. O tema da tolerância religiosa foi capital para Voltaire. Em certa medida, calhava ao ideal de uma religião autêntica que ele julgava melhor para si e para a marcha de desenvolvimento da sociedade: a religião natural. Nesta, Deus é um ser distante do mundo, responsável somente pela sua criação e que não interfere na história dos homens. Deus seria, em sua perspectiva, uma causa necessária e primária para todos os efeitos da “criação”. Novamente grita sua herança aristotélica. E por mais que haja uma rejeição ao clericalismo, não há uma negação à filosofia patrística ou escolástica do Cristianismo medieval. Não no sentido de encontrar apoio teológico para o Deus cristão bíblico. A propósito, o filósofo iluminista criticava a exegese dos textos bíblicos, colocando em dúvida sua fundamentação histórica e sua legitimidade moral. Dessa forma, a apropriação filosófica de Voltaire da filosofia medieval se ancora tão somente na afirmação de que Deus é algo evidente em si mesmo, e a crença nele não se trata de algo necessariamente de fé, mas fundamentalmente de razão. Ainda, esse Deus que Voltaire (re)constrói não divide as pessoas entre “salvos” e “não salvos”. Não é, jamais, causa de intolerância entre os homens (seus fiéis ou não), simplesmente por ser um Deus universal, acessível a todos por meio da razão. Deus é aquele que embora tenha criado o universo, se faz de expectador: cabe ao homem- enquanto ser livre - agir na transformação e melhoria do mundo. Para Voltaire, o tema da tolerância partia, então, da necessidade de substituição da religião Católica por uma “natural”, pautada numa moral também natural, tolerante e que busca unir os homens espiritualmente, respeitando as diferenças culturais. Não se tratava, porém, de uma espécie velada de materialismo (ou mesmo ateísmo, por mais que seus detratores o identifiquem assim). Ao contrário, Voltaire acreditava que era justamente a negação de uma crença natural, intrínseca à condição humana, que levava a sociedade a sua destruição, justamente por solapar as virtudes humanas. Nesse ponto, chega a afirmar que era melhor uma sociedade pautada numa falsa religião (como a Católica), do que em 45

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obra Discurso sobre a origem da desigualdade, do pensador genebrino expresso, sobretudo, em sua obra Poema sobre os desastres de Lisboa (1756). Além de dezenas de outras obras incluindo tragédias e contos filosóficos, suas três publicações de maior destaque foram Cândido ou Otimismo (1759), Tratado sobre a tolerância (1763) e Dicionário Filosófico (1764), tratando, fundamentalmente, de abusos políticos, corrupção e desigualdades sociais, fanatismo religioso e as deficiências da justiça. Tudo isso evocando no cerne de suas obras o triunfo da razão e da liberdade.


Filosofia

nenhuma. O ideal, porém, era o fomento de uma religião natural calcada na razão e numa filosofia crítica capaz de contrapor a tradição para poder diferenciar o que é verdadeiro do que é falso. A questão da tolerância tornou-se um ponto de inflexão na biografia intelectual de Voltaire. Após ter se exilado na Inglaterra em 1726, o iluminista francês tomou como bom grado a liberdade dos súditos britânicos, assim como a ciência experimental de nomes como Isaac Newton ou as teses do empirismo britânico, sobretudo de Jhon Locke. Deste último, seguiu os passos do que entendia como sendo o vetor para o clima de prosperidade e harmonia inglês: o exercício da liberdade, sobretudo a partir da tolerância religiosa e seus impactos no processo de produção do conhecimento científico e filosófico.

Nesse sentido, destacam-se duas obras seminais nas quais emergem o tema. A primeira obra, escrita em favor da soltura do protestante, Jean Calas, intitula-se Traité sur la tolérance (Tratado sobre a Tolerância), datada de 1763. Calas foi um homem de origem pobre que sofreu a pena de esquartejamento, sendo antes confiscados todos os seus (parcos) bens. A causa: um erro judicial motivado por fanatismo religioso. Sua morte ocorreu em 10 de março de 1762, em

Voltaire cita ambientes mercantis - como a “Bolsa de Valores de Londres” como um modelo de tolerância, no qual todos buscavam um bom convívio entre as diferenças. Do calvinista ao muçulmano, do judeu ao católico, todos coabitavam aquele ambiente [costumeiramente frequentado por Voltaire] na busca por prosperidade econômica, auxiliando uns aos outros e, por consequência, ao próprio reino. Em decorrência do clima europeu para com a (in)tolerância, Voltaire não acreditava que o poder clerical abriria concessões em sua defesa irrestrita da fé cristã e necessidade de conversão e perseguição aos “hereges”. Assim sendo, o filósofo dirigia-se de forma objetiva à opinião pública - “instituição” cada vez mais crescente a partir do século XVII. Através dela, acreditava que haveria uma pressão feita às autoridades seculares que simpatizavam com as ideias iluministas - tais quais os Déspotas Esclarecidos - para coibir a intolerância.

SAIBA MAIS O Despotismo Esclarecido foi um modelo de governança monárquica europeia, caracterizada pelos fundamentos iluministas que o regia - daí a alcunha de “esclarecido”. Destacou-se em regiões consideradas atrasadas do ponto de vista econômico e com uma burguesia ainda pouco atuante, como era o caso da região da Prússia. Temendo levantes revolucionários, o despotismo esclarecido visava acelerar o processo de modernização de alguns países e assim aumentar seu poder e prestígio, a fim de enfraquecer a oposição ao seu governo. Alguns monarcas absolutistas, ao observar a força desse movimento, decidiram aderir ao pensamento, sem, contudo, interromper totalmente seu poder absoluto. Os principais déspotas esclarecidos que compuseram esse movimento foram Catarina II, da Rússia, Frederico II, da Prússia, José II, da Áustria, Carlos III, da Espanha, e José I, de Portugal, os quais fizeram reformas em seus países, principalmente nos âmbitos econômico e religioso, porém ainda reprimindo movimentos reivindicatórios. Em que pese essas reformas, a maioria delas tiveram vida curta, sendo anuladas pelos seus sucessores. Frederico II, da Prússia - figura representativa do Despotismo Esclarecido. Autor: Antoine Pesne (1683-1757)

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Locke já havia, a seu tempo, defendido a necessidade da tolerância como antídoto para as discórdias civis e religiosas em sua obra Cartas sobre a tolerância (1689). Para Voltaire, nessa mesma linha de entendimento, uma poderia derivar da outra. Daí a necessidade das duas deverem ser asseguradas no âmbito sociopolítico.

Toulouse - mesma cidade em que o filósofo italiano, Vanini, foi condenado pelo “crime” de ateísmo, pela inquisição católica em 1619. Já a segunda, é o Dictionaire Philosophique (Dicionário Filosófico), de 1764, no qual há um verbete sobre a tolerância. De acordo com Voltaire, o fanatismo religioso é uma espécie de enfermidade d’alma que conduz os homens a tomarem seus delírios por verdades, levando a cabo a vida alheia por simplesmente discordarem de sua visão tacanha de mundo. É aquilo que ele define “a aliança entre a ignorância e a crueldade”. Voltaire define - na forma de verbete - a tolerância como sendo “(…) o apanágio da humanidade” frente à fraqueza de nossos erros que leva a nos perder em nossa própria tolice.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Bibliografia FORTES, Luiz R. Salinas. O Iluminismo e os Reis Filósofos. São Paulo: Brasiliense, 1993. GRAY, John. Voltaire e o Iluminismo. Tradução de Gilson César Cardoso de Souza. São Paulo: Unesp, 1999. ISRAEL, Jonathan. Iluminismo Radical: A Filosofia e a Construção da Modernidade 1650 – 1750. Tradução de Cláudio Blanc. São Paulo: Madras, 2001. LOCKE, John. Carta Sobre a Intolerância. Tradução de João da Silva Gama revista por Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1965. ________. Ensaio Acerca do Entendimento Humano. Tradução Anoar Alex. São Paulo: Nova Cultural, 1997.

VOLTAIRE. Tratado Sobre a Tolerância – A Propósito da Morte de Jean Calas. Introdução, notas e bibliografia René Pomeau. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ________. Cândido ou o Otimismo. Tradução, apresentação e notas de Miécio Tati. Rio de Janeiro: Ediouro, 1988. ________. Cartas Filosóficas. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ________. O Preço da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ________. Dicionário Filosófico. São Paulo: Atena, 1956.

Fonte: Wikimedia commons

#DicaCine Filosofi O filme Voltaire e o Caso Calas reconstitui a participação de Voltaire, um dos principais integrantes do Iluminismo, com o intuito de reabilitar, judicialmente, Jean Calas. Ele foi vítima da intolerância religiosa, em uma situação que deu origem ao famoso livro Tratado sobre a Tolerância (1763). 1761, Tolouse. Marc-Antoine, um dos filhos de Calas, foi encontrado morto (por enforcamento) dentro de casa. Seu pai foi acusado injustamente de tê-lo estrangulado, já que o filho queria se converter ao Catolicismo. Após o desenrolar de um processo sumário, induzido pela opinião popular, Calas foi torturado, supliciado na roda até a morte e queimado. Com isso, Voltaire mostrou-se indignado e iniciou uma batalha, a fim de expor as inconsistências do processo, bem como a injustiça provocada pelo fanatismo religioso.

Ficha técnica Título: Voltaire e o Caso Calas Título original: Voltaire et l’Affaire Calas País de produção: França Ano de produção: 2007 Gênero: Drama Direção: Francis Reusser Tempo de duração: 90 min.

Gabaritos Exercícios de fixação Questão 01. O Iluminismo foi um movimento intelectual e filosófico também conhecido como Século das Luzes ou Ilustração, que dominou o mundo das ideias na Europa durante o século XVIII. Sua manifestação esteve associada a nomes como Montesquieu (1689- 1755), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Jhon Locke (1632-1704), Voltaire (1695-1778) e Immanuel Kant (1724-1804). Cada um, a seu modo, operou uma síntese de princípios que já caracterizavam o surgimento da modernidade (racionalismo, antropocentrismo, laicismo) com os fundamentos do pensamento liberal. Não raro, muitos de seus teóricos compunham esse escopo filosófico, tais como Locke e Rousseau. Questão 02. O Iluminismo marcou a ideia de um homem racional e determinado por sua liberdade. Razão e liberdade não seriam algo intrínseco à natureza humana, mas uma conquista do processo de civilização. Para o filósofo Voltaire, esses princípios (civis) - essenciais para a sociedade moderna - nascem de forma indireta, isto é, não são frutos da natureza, mas antes resultados das convicções de formação social. Questão 03. A Revolução Francesa marca, historicamente, a experiência - resultante da “atitude moderna” - de ruptura paradigmática no modo de pensar ocidental. Se por um lado consolida a modernidade em termos intelectuais, por outro, abre o caminho para uma nova fase cronológica: a idade contemporânea - período ao qual a ciência assume de vez enquanto instituição promotora e detentora na construção de saberes, na medida em que a própria Igreja perdeu a hegemonia do discurso sobre a “verdade histórica”. Questão 04. Voltaire cita ambientes mercantis como a “Bolsa de Valores de Londres” - como um modelo de tolerância, no qual todos buscavam um bom convívio entre as diferenças. Do calvinista ao muçulmano, do judeu ao católico, todos coabitavam aquele ambiente [costumeiramente frequentado por Voltaire] na busca por prosperidade econômica, auxiliando uns aos outros e, por consequência, ao próprio reino. Questão 05. O Despotismo Esclarecido foi um modelo de governança monárquica europeia, caracterizada pelos fundamentos iluministas que o regia - daí a alcunha de “esclarecido”. Destacou-se em regiões consideradas atrasadas do ponto de vista econômico e com uma burguesia ainda pouco atuante, como era o caso da região da Prússia. Temendo levantes revolucionários, o despotismo esclarecido visava acelerar o processo de modernização de alguns países e assim aumentar seu poder e prestígio, a fim de enfraquecer a oposição ao seu governo.

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A05  O Iluminismo de Voltaire e a crítica à intolerância enquanto traços da modernidade

MAUROIS, André. O Pensamento Vivo de Voltaire. Tradução de Lívio Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 1954.


Filosofia

Exercícios de Fixação 04. Que exemplo Voltaire utiliza para expor a viabilidade da tolerância?

01. Em linhas gerais, defina o Iluminismo. 02. Dos valores do Iluminismo, quais- e por qual razão- serviram de mote para o pensamento de Voltaire?

05. O que foi o Despotismo Esclarecido?

03. O que representou a Revolução Francesa para o movimento iluminista?

Exercícios C om p l em en t ares

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01. (Mackenzie SP) Sobre o Iluminismo, é correto afirmar que a) defendia a doutrina de que a soberania do Estado absolutista garantiria os direitos individuais e eliminaria os resquícios feudais ainda existentes. b) propunha a criação de monopólios estatais e a manutenção da balança de comércio favorável, para assegurar o direito de propriedade. c) criticava o mercantilismo, a limitação ao direito à propriedade privada, o absolutismo e a desigualdade de direitos e deveres entre os indivíduos. d) acreditava na prática do entesouramento como meio adequado para eliminar as desigualdades sociais e garantir as liberdades individuais. e) consistia na defesa da igualdade de direitos e liberdades individuais, proporcionada pela influência da Igreja Católica sobre a sociedade, através da educação. 02. (FGV SP) “O gênero humano é de tal ordem que não pode subsistir, a menos que haja uma grande infinidade de homens úteis que não possuam nada.” (Dicionário filosófico, verbete Igualdade)

“O comércio, que enriqueceu os cidadãos na Inglaterra, contribuiu para os tornar livres, e essa liberdade deu por sua vez maior expansão ao comércio; daí se formou o poderio do Estado.” (Cartas inglesas)

Sobre os trechos de Voltaire, é correto afirmar que o autor a) define, com suas ideias, os interesses da burguesia como classe, no século XVIII: o comércio como condição para a acumulação de capital, a riqueza como fator de liberdade e do poder de Estado e a propriedade ligada à desigualdade. b) crê, como filósofo iluminista do século XVIII, nas igualdades social e política, pois a filosofia burguesa elabora uma doutrina universalista que confunde a causa da burguesia com a de toda a humanidade.

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c) critica a centralização do poder na medida em que ela breca a liberdade, impedindo o progresso das técnicas e a expansão do comércio que geram riqueza, e, ao mesmo tempo, aceita a propriedade como fundamento da igualdade. d) considera que a burguesia não se constitui em uma classe no século XVIII, e ela precisa do poder do Estado centralizado para garantir a sua riqueza e, nessa medida, aproxima-se da nobreza para obter apoio político. e) defende, como representante da Ilustração, a liberdade ligada à ausência da propriedade e elabora princípios universais, com direitos e deveres para todos os homens, o que faz a igualdade econômica ser o fundamento da sociedade. 03. (Puc RJ) Em meados do século XVIII, diversas monarquias europeias se modernizaram com base nos ideais iluministas para um programa de reformas que assegurasse uma administração mais racional e eficiente do Estado. Embora afirmassem agir em nome da “maior felicidade dos povos”, estes permaneciam excluídos da tomada de decisões políticas. Considerando as relações entre a cultura iluminista e as reformas promovidas pelos “soberanos esclarecidos”, analise as afirmativas a seguir. I. Os soberanos reformadores concentraram seus esforços no desmantelamento de privilégios fiscais e no redimensionamento dos poderes eclesiásticos, como no caso de Frederico II na Prússia e de D. José I e de seu ministro Pombal em Portugal. II. Os filósofos iluministas forneceram o tema da razão, da boa administração e da pública felicidade aos projetos absolutistas dos monarcas e o da liberdade à oposição antiabsolutista. III. Os opositores do reformismo monárquico eram juristas e magistrados tradicionalistas, a nobreza fundiária e o alto clero, ameaçados pela dissolução da sociedade de ordens promovida pelos soberanos esclarecidos.


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04. (UEPB) O século XVIII europeu foi marcado pela crise do Antigo Regime” e pelo advento do Iluminismo - um movimento intelectual e político favorável ao uso da razão como forma de se alcançar a liberdade, a felicidade e o bem-estar social. Analise as assertivas abaixo: I. Enquanto movimento intelectual, o Iluminismo pretendia divulgar o conhecimento até então produzido pela humanidade. Foi por isso que se produziu, entre 1751 e 1780, uma Enciclopédia (composta de 35 volumes). A ideia dos enciclopedistas era travar uma batalha permanente contra a ignorância e a favor da educação popular. II. A base ideológica do Antigo Regime, assim chamado por se inspirar na elaboração aristotélica, era a crítica ao poder absolutista e a defesa da soberania popular. Filosoficamente, se filiava à elaboração de enciclopedistas como Voltaire, d’Alembert, Montesquieu e Rousseau. III. As sociedades europeias do Antigo Regime eram estamentais e o poder político e econômico estava nas mãos da nobreza e da Igreja. Mas a educação ficava a cargo dos enciclopedistas, que fundaram universidades para lecionar aos filhos da elite um tipo de conhecimento laico, científico e comprometido com a reestruturação social. IV. Enquanto movimento político, o Iluminismo criticava as sociedades estamentais baseadas no Antigo Regime. Os “homens da ilustração” questionavam a influência política e cultural da Igreja, os privilégios da nobreza, a servidão no campo e a censura às chamadas ideias perigosas”. Assinale a alternativa correta: a) I, II e III corretas, enquanto IV incorreta. b) IV correta, enquanto I, II e III incorretas. c) II e III corretas, enquanto I e IV incorretas. d) II correta, enquanto I, II e IV incorretas. e) I e IV corretas, enquanto II e III incorretas. 05. (UPE) O Iluminismo foi um movimento intelectual, portador de uma visão unitária do mundo e do homem, apesar da diversidade de leituras que lhe são contemporâneas, conservou uma grande certeza quanto à racionalidade do mundo e do homem, a qual seria imanente em sua essência. (FALCON, F. J. C. Iluminismo, São Paulo: Ática, 1986. Adaptado.)

Suas principais linhas de força foram. a) o pensamento crítico, o primado da razão, a antropologia e a pedagogia. b) a ideia de progresso, a antropologia, a manutenção das tradições e a explicação racional para tudo.

c) o direito coletivo, o direito à propriedade, o primado da razão, a ideia de progresso. d) o sentimento humanitário, a futilidade da guerra, a manutenção das tradições e a explicação racional para tudo. e) a ideia de socialismo, o pensamento crítico, o antropocentrismo e o naturalismo. 06. (UFF) O Iluminismo do século XVIII abrigava, dentre seus valores, o racionalismo. Tal perspectiva confrontava-se com as visões religiosas do século anterior. Esse confronto anunciava que o homem das luzes encarava de frente o mundo e tudo nele contido: o Homem e a Natureza. O Iluminismo era claro, com relação ao homem: um indivíduo capaz de realizar intervenções e mudanças na natureza para que essa lhe proporcionasse conforto e prazer. Seguindo esse raciocínio, pode-se dizer que, para o Homem das Luzes, a Natureza era a) misteriosa e incalculável, sendo a base da religiosidade do período, o lugar onde os homens reconheciam a presença física de Deus e sua obra de criação. b) infinita e inesgotável, constituindo-se um campo privilegiado da ação do homem, dando em troca condição de sobrevivência, principalmente no que se refere ao seu sustento econômico. c) apenas reflexo do desenvolvimento da capacidade artística do homem, pois ajudava-o a criar a ideia de um progresso ilimitado relacionado à indústria. d) um laboratório para os experimentos humanos, pois era reconhecida pelo homem como a base do progresso e entendimento do mundo; daí a fisiocracia ser a principal representante da industrialização iluminista. e) a base do progresso material e técnico, fundamento das fábricas, sem a qual as indústrias não teriam condições de desenvolver a ideia de mercado. 07. (UFMG) Leia o texto. “Se existem ateus, a quem devemos culpar senão os tiranos mercenários das almas que, provocando em nós a nossa revolta, contra as suas velhacarias e hipocrisias, levam alguns espíritos fracos a negarem o Deus que esses monstros desonram? Quantas e quantas vezes essas sanguessugas do povo não levaram os cidadãos oprimidos a revoltarem-se contra o seu próprio rei?” Esse texto é de autoria de a) Descartes, no DISCURSO DO MÉTODO, em que apontava a fé como um empecilho ao conhecimento. b) Erasmo de Roterdã que, em O ELOGIO DA LOUCURA, condena a leviandade com que o clero conduz os assuntos sagrados. c) John Locke, em O SEGUNDO TRATADO SOBRE O GOVERNO CIVIL, em que defendeu o direito à rebelião contra um governo tirânico. d) Spinoza que, em sua obra TRACTUS THEOLOGICO-POLITICUS, investe contra a intolerância religiosa e apregoa o livre pensamento. e) Voltaire, que faz do seu DICIONÁRIO FILOSÓFICO um libelo anticlerical com fortes críticas à conduta dos sacerdotes. 49

A05  O Iluminismo de Voltaire e a crítica à intolerância enquanto traços da modernidade

Assinale: a) se somente a afirmativa I estiver correta. b) se somente as afirmativas I e II estiverem corretas. c) se somente as afirmativas I e III estiverem corretas. d) se somente as afirmativas II e III estiverem corretas. e) se todas as afirmativas estiverem corretas.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A06

ASSUNTOS ABORDADOS n Montesquieu: o espírito das leis

e a divisão dos poderes

n O Espírito das Leis (L’Esprit des lois - 1748) n Caracterização geral da democracia e sua (possível) degeneração e consequência

MONTESQUIEU: O ESPÍRITO DAS LEIS E A DIVISÃO DOS PODERES Quando vou a um país, não examino se há boas leis, mas se as que lá existem são executadas, pois boas leis há por toda a parte” (Montesquieu) A modernidade no campo teórico-político nasce do contexto pós-humanista e se afirma no contratualismo jusnaturalista. Não obstante, as tentativas de se justificar um direito divino dos reis vigoravam no ideário político da aristocracia europeia. O enfraquecimento dessa concepção foi fundamental para a emergência das doutrinas contratuais e, posteriormente, para a própria afirmação do Liberalismo e do Iluminismo. A insatisfação com o modelo monárquico absolutista tornava-se cada vez mais patente. Na mesma medida, os movimentos reformistas também buscavam, a seu modo, fragilizar a estrutura centralizadora (no campo da fé e da política) da Igreja romana. A bem da verdade, a doutrina do direito divino dos reis só se sustentava (política e teológica) a partir de um conluio entre o modelo absolutista de monarquia e a hegemonia cultural do Catolicismo. Assim, à medida que o protestantismo avançava e o poderio da Igreja diminuía, o discurso de fundamentação da política absolutista passava a ter dificuldades de manutenção.

Fonte: Wikimedia Commons

Nesse intercurso, esse clima de instabilidade e, ao mesmo tempo, de abertura filosófica (e desconstrução teológica) promoveu cada vez mais um ímpeto de emancipação econômica e política por parte da burguesia nascente, na mesma proporção que a nobreza passou a franquear os tronos e almejar o poder. Na tentativa de conter esses avanços, o poder absolutista - cada vez mais centralizador e opressor - buscou apoio entre as massas, concedendo-lhes benefícios graduais. Por obviedade, a nobreza tornava-se ainda mais descontente com a situação, na mesma medida que a burguesia também se encontrava - seja em relação à própria nobreza ou à monarquia absolutista (vistas com parte de um só sistema de centralização de privilégios) - insatisfeita. O nascente sistema capitalista e sua teórica possibilidade de emancipação surgiu como uma esperança para a sociedade não nobre europeia em buscar a superação da escassez dos bens necessários à vida e, potencialmente, gerar riquezas através da livre-iniciativa. Naturalmente, o ideário liberal calhou bem a essa motivação econômica. Tal emancipação era, fundamentalmente, a do próprio indivíduo (liberal) que se faz sujeito de sua atividade econômica em oposição ao mercantilismo estatal. A fragilização dos modelos mercantilista-absolutista-clerical levou muitos intelectuais da época - identificados com o Liberalismo/Iluminismo - a promoverem reflexões sobre a nova forma de o homem se posicionar frente à realidade social, política, econômica e espiritual. A transposição do pensamento metafísico/transcendental para o racional (ou a laicização do pensamento) levou os filósofos iluministas a buscarem uma conexão entre as diversas formas de conhecimento (as ciências naturais e a reflexão filosófica), na tentativa de tratar a história como algo factual e construtivo. É justamente nesse intercurso que emergirá a obra do Barão de Montesquieu - um dos principais representantes do pensamento iluminista.

Figura 01 - Retrato de Montesquieu. Autor desconhecido (1728)

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Charles-Louis de Secondat (conhecido como Montesquieu) nasceu em Bordeaux, França, em 18 de janeiro de 1689. Sua família era mista (franceses e ingleses) e abastada. Diante dos recursos de nobreza, Montesquieu recebeu uma educação domésti-


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Durante esse período e com relativa folga econômica, a vida intelectual de Montesquieu fervilhou. Por força de sua formação acadêmica, na Universidade de Bourdeuax, deu continuidade aos estudos em Direito Romano, seguindo de forma inusitada o seu interesse por Ciências Naturais. Foi, nesse contexto, que ele teve contato com o ideário iluminista, embora desde os tempos do Colégio Juilly já tivesse se aproximado das primeiras obras desse movimento. A despeito do colégio ter uma orientação católica, as ideias iluministas de tolerância, liberdade e autonomia integravam a pedagogia de ensino da instituição. É desse período, a publicação de suas primeiras obras (textos) versando sobre a convergência entre ciências naturais e humanas. Em 1721, Montesquieu publicou sua primeira obra de grande repercussão: Cartas Persas. De forma satírica, construiu um enredo em que procurou criticar a filosofia e os costumes franceses da época. Com sarcasmo - e em tom de narrativa - apresentou dois personagens persas (Rica e Usberck) em viagem para Paris, durante o reinado de Luís XIV. De lá, eles redigem cartas descrevendo os costumes e as instituições políticas francesas (incluindo o Estado Absolutista), além dos abusos da Igreja Romana naquele período. O sucesso de Cartas Persas levou Montesquieu à admissão nos círculos intelectuais franceses. Novamente, sua condição abastada lhe permitiu iniciar uma maratona por diversas universidades europeias em busca de atualização de seu conhecimento. Nesse contexto, conheceu figuras ilustres da época, como o historiador Pietro Giannone (1676-1748) e o filósofo Vico (1668-1744). Após percorrer diversos países da Europa entre os quais a Holanda e a Alemanha, fixou-se na Inglaterra onde passou a integrar os círculos políticos da ilha britânica. Essas relações o levaram a integrar a maçonaria e a Academia Real. Foi, precisamente, nesse período, que Montesquieu reforçou suas influências iluministas e passou a dedicar-se, a pensar e escrever sobre as questões sociopolíticas do continente europeu. Ele foi um intelectual - fruto de seu tempo - que buscou incessantemente a confluência entre as ciências naturais e a realidade social. Ao revelar uma intuição já sentida por Hobbes e, posteriormente, desenvolvida na física social de Augusto Comte, Montesquieu articulou a possibilidade das “leis sociais” obedecerem à mesma cadeia de causalidades das “leis físicas”.

O filósofo francês defendia a tese de que o estudo (e aplicação) dos princípios científicos poderiam beneficiar a humanidade de diversas maneiras. O homem sempre demandaria um desejo de conhecer mais, e toda descoberta acabaria por inspirá-lo a sempre querer saber mais. Nessa relação, quem se favoreceria seria o próprio ser humano, uma vez que se descobririam soluções para diversos problemas que a sociedade enfrentaria. A ciência, justamente por trazer essa espécie de contribuição social, representava para Montesquieu um símbolo da realização humana. Assim, imbuído desse ideal acerca da ciência, o filósofo buscou inserir o método experimental no estudo das ciências humanas, ou seja, procurou trazer cientificidade para o estudo das leis e regras do direito, da religião e da política. Após tomar contato com a realidade de diferentes localidades, inclusive não europeias − e abandonado por um tempo a magistratura - Montesquieu começou a escrever sua obra prima O Espírito das Leis (1748). Esse texto tornou-se uma das principais referências para juristas, legisladores e filósofos sociais de sua época. Fruto de um estudo multidisciplinar, a obra custou dez anos de investigações e elaboração. Como não poderia deixar de ser um clássico da literatura filosófica moderna, seu pensamento foi alvo de críticas e contestações. Anos após seu lançamento, editou um livro-resposta intitulado Defesa do Espírito das Leis. Apesar de todo esforço, a obra O Espírito das Leis foi indexada pela Igreja Católica. O que não impediu seu sucesso, todavia. Suas obras posteriores seguiram-se controversas. Protestantes, católicos, membros da nobreza, jesuítas e até a própria Universidade de Sorbonne levantaram vozes contra sua produção intelectual. Montesquieu morreu aos 66 anos de idade, em decorrência de uma febre, em 10 de fevereiro de 1755. Dado o estado de uma cegueira anterior, deixou por incompleta sua contribuição para a Enciclopédia, de Diderot e D’Alembert. Seu corpo encontra-se sepultado na L’eglise Saint-Sulpice, em Paris, na França.

O Espírito das Leis (L’Esprit des lois - 1748) A obra mais famosa e impactante de Montesquieu, L’Esprit des lois (1748), é um extenso compêndio de teoria política e jurídica, publicada inicialmente em dois volumes. A partir de uma inspiração lockeana e no seu estudo das instituições políticas-inglesas, a produção é resultante desse esforço intelectual em discutir o “espírito das leis”de sua época. Em um trabalho próximo ao que chamaríamos de sociologia comparada”, Montesquieu buscou compreender as diversas legislações pertinentes a diferentes lugares e épocas. O impacto da obra foi tamanho que serviu de fonte para as doutrinas constitucionais de base liberal e inspiração aos redatores da Constituição de 1791. 51

A06  Montesq uieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes

ca e somente aos onze anos de idade entrou para o Colégio Juilly - escola tradicional dirigida por padres oratorianos e que concentrava alunos das famílias mais ricas da região. Aos dezesseis anos, ingressou na Universidade de Bordeaux para cursar Direito, formando-se em 1708. Seis anos depois, com a morte de um abastado tio (seu pai havia falecido cinco anos antes), o filósofo herdou uma grande fortuna. Em seguida, assumiu a presidência do parlamento de Bordeaux, e foi nomeado Barão de Montesquieu.


Filosofia

A publicação, como um todo, surpreende pela forma como Montesquieu analisa suas fontes num rigoroso esboço de interpretação histórica e sociopolítica. Há o prenúncio em sua obra de diversas abordagens contemporâneas no campo das ciências sociais. Ainda que escrita num contexto moderno, já residem ali elementos que constituem as ciências humanas para além de uma história descritiva e linear ou de uma filosofia política ainda de base metafísica. Há uma preocupação com o método e a análise que precedem a constituição de uma sociologia científica. O título do trabalho é sintomático: há uma tentativa de se estabelecer princípios gerais que nos permitam compreender a ação humana em sua vida sociopolítica. É o Espírito das Leis: um conjunto de atributos que caracterizam (e governam) todos os seres humanos por meio de variante: os climas, as religiões, a história, as leis, os costumes. Para Montesquieu, o espírito geral de uma sociedade aparece como resultante de causas físicas (clima), causas morais (costumes, religião etc.) e das máximas de um governo. Estas diriam respeito aos tipos e conceitos que dariam conta daquilo que as causas não abrangem. Seriam, por conseguinte, o princípio (o que põe os governos em movimento, o princípio motor em linguagem filosófica e aristotélica, constituído pelas paixões e necessidades dos homens) e a natureza (aquilo que faz um governo ser o que é, determinado pela quantidade daqueles que detêm a soberania) de um governo. A partir dessa tipologia, Montesquieu afirma a existência (e necessária distinção) entre três formas de governo: n n n

Monarquia − soberania nas mãos de uma só pessoa (o monarca), seguindo leis positivas e o seu princípio é a honra; Despotismo − soberania nas mãos de uma só pessoa (o déspota), seguindo a vontade deste e o seu princípio é o medo; República − a soberania está nas mãos de muitos e o seu princípio motor é a virtude.

Embora profundamente influenciado pelo pensamento aristotélico - e sua teoria das formas (im)puras de governo- Montesquieu compreende de forma, ligeiramente distinta, a divisão dos sistemas de governança. Assim, democracia e aristocracia seriam duas formas de exercício de poder adstritas/agrupadas na república. Já o despotismo não seria uma degeneração da monarquia, logo, uma tirania, como asseverava Aristóteles. Antes, uma forma de governança como as demais. Se para o filósofo grego uma forma de governo é pura quando atinge o “bem comum”, para Montesquieu a legitimidade do poder estar na conformidade do seu exercício de acordo com as leis.

Fonte: Wikimedia Commons

A06  Montesq uieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes

SAIBA MAIS Aristóteles, na obra A Política, constrói uma interessante teoria das formas de governo. Segundo o filósofo de Estagira, para compreendermos a maneira pela qual elas se caracterizam, deveríamos indagar duas questões básicas: quem governa e como se governa? Para Aristóteles, as formas de governo poderiam ser classificadas em três formas principais: a monarquia (mono = uno + arquia = governo) − referindo-se a um governo gerido por um homem só; a aristocracia (aristein = melhores + kratos = poder) − referindo-se a um governo dos mais capacitados; a politeia (poli = muitos + teia = assembleia)- reportando-se à governança de uma coletividade. Cada uma dessas formas, desde que mantivesse o foco de governar visando ao “bem comum” da Pólis, configurava-se como forma boa, ou “pura”. A partir do momento que essas formas se tornassem marcadas por alterações em seu foco de governo, estando sujeitas à degradação por interesses privados e pessoais dos homens, elas passariam ao seu estágio de degeneração. Como exemplos respectivos, teríamos a tirania, a oligarquia e a democracia. De todas elas, a mais virtuosa seria a Politeia. Mas também ao seu turno, uma vez degenerada, seria a mais difícil de ser remediada. Retrato de Aristóteles. Autor: Francesco Hayez, 1811

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Quando os poderes legislativo e executivo ficam reunidos numa mesma pessoa ou instituição do Estado, a liberdade desaparece (...) Não haverá também liberdade se o poder judiciário se unisse ao executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor. E tudo estaria perdido se uma mesma pessoa ou instituição do Estado exercesse os três poderes: o de fazer as leis, o de ordenar a sua execução e o de julgar conflitos entre os cidadãos.

Assim, a teoria da tripartição dos poderes ganhou corpo, configurando-se como uma das pedras angulares do exercício do poder democrático. Competiria ao Executivo a efetuação das normas e decisões relativas à administração pública. Ao Legislativo, a elaboração e aprovação das leis. E, por fim, ao Judiciário, a aplicação das leis e distribuição da proteção jurisdicional pedida pelos juízes. O poder legislativo - convocado pelo poder executivo - deveria ser separado em dois corpos (casas): 1) dos “comuns”- composto por representantes eleitos do povo; 2) dos “nobres” - formado por membros da nobreza, em caráter hereditário, e com incumbência de vetar decisões do corpo comum. Manifestando demandas diferentes, essas casas constituiriam suas assembleias e deliberações em separado. As outras duas instâncias de poder (Judiciário e Executivo) manteriam sua estrutura unitária. A grande proposta de Montesquieu está na direção de entender que cada poder sofre um processo de moderação, sobretudo o poder executivo. Preocupado com os excessos dos governantes, o filósofo francês advogou a necessidade do “poder que limita o próprio poder”- daí a necessidade de cada poder manter-se autônomo e constituído por pessoas e grupos diferentes. Embora se atribua a Montesquieu toda influência sobre nosso constitucionalismo contemporâneo, a bem da verdade, é que sua proposição de divisão de poderes não se mostrou tão rígida ao longo de sua obra. Há, de fato, uma crítica à monarquia absolutista e seu poder centralizador. O filósofo estava mais preocupado em realçar a relação de forças e a necessidade de equilíbrio e harmonia entre os três poderes. Diferente de seus outros pares iluministas, Montesquieu não pretendia ser um revolucionário. Sua origem socioeconômica (a nobreza) ainda lhe cobrava seus privilégios. O correto seria classificá-lo como um iluminista que reverbera a noção de uma aristocracia liberal, ainda que suas críticas e proposições tenham servido no futuro para desencadear processos revolucionários (como a Americana) e instauração de uma república burguesa pós-Revolução Francesa.

Caracterização geral da democracia e sua (possível) degeneração e consequência Montesquieu compreendia a democracia como uma forma de governo republicano, uma vez que a característica de ambos era a concentração do poder soberano ao povo em seu conjunto ou em parte. No entanto, há uma diferença para o uso helênico do conceito. Segundo o filósofo, é o povo − em sentido abrangente [e não uma classe de “eupátridas modernos”; de aristocratas] - que constitui o poder soberano sendo súdito ao mesmo tempo. A lei é o imperativo que regula as ações desse governo que atende a vontade da maioria a partir do sufrágio. Segundo o pensador, há algo no modelo democrático-republicano que o diferencia, por exemplo, para a monarquia. E isso refere-se à disposição moral para o exercício cívico. Na monarquia, os indivíduos que detêm o poder estão acima das leis. Na democracia, ao contrário, o governante - por se identificar com o povo comum - está sob o império da lei. Logo, ele age por amor ao “bem público” e não por devoção a uma estrutura perene de poder. No início do terceiro livro de O Espírito das Leis, Montesquieu afirma que a virtude- identificada como “amor à república” - é o motor do estado democrático. Para que essa forma de governo prospere e atinja seu objetivo de promover o bem público, é preciso que os indivíduos anseiem menos pela satisfação de suas paixões e desejos individualistas e concentrem-se no interesse/vontade coletiva. Assim como Aristóteles, quando se refere à Politeia e sua degeneração, Montesquieu pondera acerca dos limites da Democracia. Uma vez corrompidos os princípios basilares que sustentam o edifício de um modelo de governo, as consequências podem ser inimagináveis. No caso da democracia, ela é extremamente danosa se relacionarmos a outros modelos. Essa corrupção aludida refere-se ao ponto em que os indivíduos violam o princípio da isonomia, isto é, da igualdade de todos perante a lei, especialmente quando não reconhecem a autoridade daquele que por sufrágio foi escolhido para governar. Em outras palavras, ao tornarem o princípio da igualdade apenas no que tange à forma jurídica de direitos e deveres, os indivíduos - ao contrário - a usam como uma diluição da hierarquia e distinção de funções no exercício da governança. E assim inicia-se a degeneração. Segundo Montesquieu (2000, p.121): “A partir deste momento, o povo, não podendo suportar o próprio poder que delegou, quer fazer tudo sozinho, deliberar pelo senado, executar pelos magistrados e despojar todos os juízes.” A consequência imediata é a descrédito das instituições que compõe o corpo legislativo e judiciário do governo. Ao perderem suas respectivas autoridades, os magistrados e senadores passam a não ser respeitados. O impacto disso é social: a carência de referências levaria a uma própria desintegração do lar, uma vez que nem os velhos e os pais seriam, também, respeitados. 53

A06  Montesq uieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes

A influência do filósofo francês está presente nas doutrinas constitucionalistas do Direito. Ao investigar as relações entre as leis e a natureza/princípio de cada governo, ele desenvolveu uma teoria que defendia a distribuição da autoridade por meios legais, evitando assim o arbítrio de um governante que centralizasse o poder em suas mãos, levando a abusos. A esse respeito, afirmou Montesquieu (2000, p.168)


Filosofia Questão 01. A ciência, justamente por trazer essa espécie de contribuição social, representava para Montesquieu um símbolo da realização humana. Questão 02. Montesquieu afirma a existência (e necessária distinção) entre três formas de governo: Monarquia - soberania nas mãos de uma só pessoa (o monarca), seguindo leis positivas e o seu princípio é a honra; Despotismo - soberania nas mãos de uma só pessoa (o déspota), seguindo a vontade deste e o seu princípio é o medo; República - a soberania está nas mãos de muitos e o seu princípio motor é a virtude.

Bibliografia ARISTÓTELES. A Política. Tradução Nestor Silveira Chaves. Editora Edipro, 2009. BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Editora UnB, 1981.

Questão 03. Com base na teoria da divisão do poder em três categorias distintas e independentes: Executivo, Legislativo e Judiciário.

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Cartas Persas. Coleção Os Pensadores - Montesquieu. São Paulo, Abril Cultural, 1973.

Questão 04. Evitar abusos dos governantes e proteger as liberdades individuais; frear o poder dos reis, colocando um limite nesse poder que desejava ser absoluto; e esperava eliminar a base centralizadora do absolutismo com poderes paralelos.

MONTESQUIEU, Charles Louis de. Do Espírito das Leis. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Questão 05. A consequência imediata é o descrédito das instituições que compõe o corpo legislativo e judiciário do governo. Ao perderem suas respectivas autoridades, os magistrados e senadores passam a não ser respeitados. O impacto disso é social: a carência de referências levaria a uma própria desintegração do lar, uma vez que nem os velhos e pais seriam, também, respeitados.

WEFFORT, Francisco. Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau, O Federalista. São Paulo: Ática, 2001

#DicaCine Filosofi

A06  Montesq uieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes

O Segredo dos Seus Olhos[1][2] (em espanhol: El Secreto de Sus Ojos) é um filme de origem argentina, produzido em 2009, dirigido por Juan José Campanella e baseado no livro La Pregunta de sus Ojos, de Eduardo Sacheri. Além de receber o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2010, venceu o Prêmio Goya de melhor filme do ano. A trama narra a história de Benjamín Espósito, um ex-servidor da justiça penal argentina. Recém-aposentado, procura aproveitar o tempo livre para escrever um livro. Desse modo, inspira-se em um caso real, ocorrido há 25 anos e que sempre lhe comoveu: o brutal estupro seguido de assassinato de uma bela jovem, Liliana Colotto. A obra retrata temas caros para a discussão no campo das Teorias da Justiça e da Filosofia Política, sobretudo quando mostra a atuação invasiva do Estado sobre as Instituições, principalmente no contexto de uma Ditadura, e quanto ela pode ser danosa ao Sistema de Justiça. De modo singular e conceitual, o filme aborda o conceito de Justiça em sua acepção montesquiana: a justiça que se sobrepõe à Lei que nada mais é que a representação da Justiça, e não ela em si.

Fonte: Wikimedia commons

Ficha Técnica:

Título: O Segredo dos seus olhos (El secreto de sus ojos) Direção: Juan José Campanella Roteiro: Eduardo Sacheri & Juan José Campanella Gênero: Drama Policial Idioma: Espanhol Ano: 2009

Exercícios de Fixação 01. Para o filósofo francês, Montesquieu, qual o maior símbolo de realização humana?

04. Segundo Montesquieu, qual a finalidade básica da separação dos poderes do Estado?

02. De que forma Montesquieu tipologiza as formas de governo?

05. Para Montesquieu, qual a consequência imediata do descrédito das instituições?

03. Montesquieu, no livro Espírito das Leis, escreveu em poucas linhas uma maneira de eliminar a base centralizadora do poder absolutista dos reis.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Exercícios C om p l em en t ares

02. (Enade Direito) Montesquieu, na sua clássica obra O Espírito das Leis, elaborou a ideia da Separação de Poderes, com base na experiência política inglesa. Esse princípio, presente na Constituição brasileira sob a forma de cláusula pétrea, consiste I. na absoluta e necessária independência dos poderes, de modo que apenas o Poder Judiciário possa socializar os demais. II. no esquema de independência equilibrada entre os poderes, que constitui o sistema de freios e contrapesos. III. no regime presidencialista, já que no parlamentarismo o chefe do executivo é determinado pelo poder legislativo e, portanto, não há separação entre os poderes. IV. na atribuição das diversas competências do Estado a cada um dos poderes. Estão CORRETAS somente as afirmativas a) I e III b) I e IV c) II e IV d) II e III e) I, II e III 03. (Enem MEC) É verdade que nas democracias o povo parece fazer o que quer; mas a liberdade política não consiste nisso. Deve-se ter sempre presente em mente o que é independência e o que é liberdade. A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder. MONTESQUIEU. Do Espírito das Leis. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997 (adaptado).

A característica de democracia ressaltada por Monstesquieu diz respeito a) ao status de cidadania que o indivíduo adquire ao tomar as decisões por si mesmo. b) ao condicionamento da liberdade dos cidadãos à conformidade às leis. c) à possibilidade de o cidadão participar no poder e, nesse caso, livre da submissão às leis.

d) ao livre-arbítrio do cidadão em relação àquilo que é proibido, desde que ciente das consequências. e) ao direito do cidadão exercer sua vontade de acordo com seus valores pessoais. 04. (Enem MEC) Para que não haja abuso, é preciso organizar as coisas de maneira que o poder seja contido pelo poder. Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos. Assim, criam-se os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, atuando de forma independente para a efetivação da liberdade, sendo que esta não existe se uma mesma pessoa ou grupo exercer os referidos poderes concomitantemente. MONTESQUIEU, B. Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (adaptado). A divisão e a independência entre os poderes são condições necessárias para que possa haver liberdade em um Estudo. Isso pode ocorrer apenas sob um modelo político em que haja a) exercício de tutela sobre atividades jurídicas e políticas. b) consagração do poder político pela autoridade religiosa. c) concentração do poder nas mãos de elites técnico-científicas. d) estabelecimento de limites aos atores públicos e às instituições do governo. e) reunião das funções de legislar, julgar e executar nas mãos de um governo eleito. 05. (UFF) De acordo com o filósofo iluminista Montesquieu, no livro clássico O Espírito das Leis, quando as mesmas pessoas concentram o poder de legislar, de executar e de julgar, instaura-se o despotismo, pois, para que os cidadãos estejam livres do abuso de poder, é preciso que “o poder freie o poder”. Identifique a sentença que melhor resume esse pensamento de Montesquieu. a) Para que a sociedade seja bem governada é necessário que uma só pessoa disponha do poder de legislar, agir e julgar. b) A separação dos poderes enfraquece o Estado e toma a sociedade vulnerável aos ataques de seus inimigos. c) A separação e independência entre os poderes é uma das condições fundamentais para que os cidadãos possam exercer sua liberdade. d) A sociedade melhor organizada é aquela em que o executivo goza de poder absoluto. e) As mesmas pessoas podem concentrar o poder, desde que sejam bem intencionadas.

A06  Montesq uieu: o espírito das leis e a divisão dos poderes

01. (UEBA) No período do Iluminismo, no século XVIII, o filósofo Montesquieu defendia: a) divisão da riqueza nacional. b) divisão dos poderes executivo, legislativo e judiciário. c) divisão da política em nacional e internacional. d) formação de um Poder Moderador no Congresso Nacional. e) implantação da ditadura moderna.

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FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A07

ASSUNTOS ABORDADOS n O Utilitarismo: de Jeremy

Bentham a John Stuart Mill n Princípios fundamentais e o “Utilitarismo para a liberdade” de John Stuart Mill n Crítica ao Utilitarismo por Robert Nozick (e sua contraposição)

O UTILITARISMO: DE JEREMY BENTHAM A JOHN STUART MILL Ao contrário dos teóricos do Iluminismo (e principalmente do Contratualismo), muitos filósofos políticos do início do século XIX puderam experienciar eventos que marcaram profundamente suas formas de conceberem a esfera política e social. Regimes democráticos e experiências republicanas já se manifestavam por diversas localidades da Europa. E ainda muitas monarquias já haviam passado por reformas eleitorais sensíveis, transformando-as em parlamentárias, com destaque para o Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda). Contudo, por mais que o mundo europeu - e também o americano já tivessem angariado os louros da Revolução Francesa (1789) ou da Independência dos Estados Unidos da coroa britânica (1776), o mundo vivia uma crise dos valores liberais. De um lado, desenvolveram-se as críticas socialistas ao modelo liberal de economia e sociedade e por outro, uma tentativa de ressignificar o próprio liberalismo do ponto de vista ético. É, nesse contexto, que emergem as figuras de Jeremy Bentham e John Stuart-Mill com o Utilitarismo. O Utilitarismo foi uma escola filosófica fundada por Jeremy Bentham (1748-1832). Filósofo e jurista, ele foi um dos últimos pensadores da tradição liberal-iluminista a propor a construção de um sistema axiológico que pudesse ofertar uma solução prática para os dilemas de ordem moral e organizacional da sociedade europeia de seu tempo. A matriz intelectual dessa escola concebe a necessidade de se estabelecer um corpo moral voltado para o bem-estar das pessoas, pela avaliação em função das consequências da qualidade moral das ações ou das regras de ação e pela concepção de que o bem-estar das pessoas afetadas por um curso de ações deve ser maximizado, e o sofrimento minimizado. A somatória desses axiomas constituem o chamado “princípio da utilidade”.

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Figura 01 - Carlos X distribuindo os prêmios no Salão de 1824. Autor: (1827)

Para além de um caráter especulativo ou formal, o Utilitarismo (sobretudo concebido por Bentham) objetivava uma reforma profunda e estrutural da sociedade a partir de seu sistema político. Em seus escritos, fica explícita a necessidade de uma forte aplicação do direito sendo sustentado por um aparato também expressivo de autoridade, neste caso, o governo.

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“O Utilitarismo (…) tinha como princípio básico o fato de que o ser humano foge da dor e aproxima-se do prazer. Dito dessa forma, tal doutrina deveria ser uma filosofia hedonista, embasada na busca dos prazeres. Mas nada estaria mais longe da verdade: os utilitaristas notabilizaram-se pela sua contínua luta por grandes reformas políticas e sociais. Aproximar os seres humanos da felicidade possível não era uma tarefa que poderia ser realizada apenas com o desfrute dos prazeres da vida. Mudanças profundas, por meio de legislações, seriam necessárias para que o princípio racional da felicidade prevalecesse. Como evitar a dor e usufruir prazeres é o que basicamente leva os seres humanos à ação, seria totalmente racional que os ditames éticos e as leis seguissem a propensão humana. (…) Como não há garantias de que essa busca da felicidade tenha qualquer sucesso, se as condições vigentes não auxiliam nessa procura, é necessário que o poder estatal se incline na direção utilitarista”. Outro ponto importante é que o Utilitarismo possui características sui generis. Mesmo que haja um núcleo estruturante do pensamento utilitarista e que unifica todos os demais pensadores dessa corrente, a abordagem de seu fundador acarreta uma posição notadamente consequencialista, como veremos à frente. O ponto de partida da doutrina benthaniana configura-se por uma crítica ao jusnaturalismo das doutrinas contratualistas. Segundo o filósofo e jurista, o direito natural pressupõe a necessidade de um contrato social original que acarrete a necessidade de uma obediência irrestrita dos súditos aos seus soberanos. E eis seus limites: primeiro, porque assim como a própria condição de Estado de natureza foi colocada em xeque pelos próprios contratualistas, agora é a noção de um contrato originário que é posta sob dúvida. Em outras palavras, não seria possível provar historicamente sua existência; segundo, porque ainda que fosse possível mapear a origem da existência desse contrato, os argumentos que sustentam a necessidade de subserviência irrestrita ao contrato não encontra fundamentação filosófica sustentável. Para contrapor, então, as teses contratualistas de legitimação do poder por meio do pacto social, Bentham argumenta contrário à existência de direitos naturais e, por consequência, da afirmação de direitos universais para o homem. Para o filósofo e jurista, o indivíduo só possuía direitos na medida em que conduzisse suas ações para o bem da sociedade como um todo. Assim, não haveria direitos subjacentes à natureza humana. Afirmar isso, seria para Bentham, incentivar comportamentos individualistas e egoístas. Portanto, processos revolucionários que partiam da defesa/conquista de direitos

John Stuart Mill by London Stereoscopic Company, 1870.

John Stuart Mill nasceu em Londres, em 20 de maio de 1806 e morreu em Avignon, em 8 de maio de 1873, consagrando-se como filósofo e economista britânico. É considerado por alguns como o filósofo de língua inglesa mais influente do século XIX. Além disso, é conhecido principalmente por seus trabalhos nos campos da filosofia política, ética, economia política e lógica, além de influenciar inúmeros pensadores e áreas do conhecimento. Defendeu o Utilitarismo, a teoria ética proposta inicialmente por seu padrinho, Jeremy Bentham. Também é um dos mais proeminentes e reconhecidos defensores do liberalismo político. Seus livros são fontes de discussão e inspiração sobre as liberdades individuais ainda nos tempos atuais. Mill chegou a ser membro do Parlamento Britânico, eleito em 1865, quando defendeu, principalmente, o direito das mulheres, chegando a apresentar uma petição para estender o sufrágio a elas. Stuart Mill escreveu várias obras ao longo de sua vida. Destacam-se aqui apenas algumas que são consideradas mais marcantes: Sistema de Lógica Dedutiva (1843); Princípios de Economia Política (1848); A Liberdade (1859); Utilitarismo (1861); O Governo Representativo (1861); Sujeição das mulheres (1869).

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Em conjunto com outros pensadores como John Stuart Mill e James Mill, o filósofo e jurista Bentham propôs uma teoria ética normativa e prescricional que tinha por objetivo responder a questões práticas da existência humana com a finalidade de maximização da felicidade. Para essa corrente, todas as ações humanas deveriam ser analisadas diretamente em função da tendência de aumentar ou reduzir o bem-estar das pessoas. Por essa razão, não se pode divorciar essa reflexão de suas consequências sociais. Daí se explica a necessidade de concebê-las no âmbito do direito, economia, política - áreas que circunscrevem, por excelência, o agir humano. Embora haja essa tentativa de potencialização dos prazeres (identificada como felicidade), o Utilitarismo não pode ser reduzido a uma releitura do hedonismo helenístico. Segundo BRITO (2012, p.137):

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Assim, o Utilitarismo caracterizou-se por uma escola de reflexão e crítica às mais diversas áreas do Direito - por entender que este é o campo de manifestação por excelência da organização social. Embora os princípios dessa doutrina - em especial Bentham - objetivassem a implementação de suas teorias, sobretudo no campo do Direito penal e econômico, tinham clareza de que era necessário, antes, operar uma profunda reflexão acerca das práticas que vinham sendo exercidas no âmbito da governança da sociedade e da formação e execução das leis. Assim, seria possível construir propostas efetivas de reformas, tornando os sistemas, em si, mais eficazes.


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naturais e universais pecavam por princípio e só poderiam conduzir a sociedade à sua degeneração. Em síntese, mesmo que supostos “direitos humanos fossem colocados em suspenso, isso seria necessário desde que as ações pretendidas levassem a uma reconciliação entre indivíduo e sociedade.” Para Jeremy Bentham, o objetivo central do Direito e das leis não seria, necessariamente, a promoção da justiça. Antes, a promoção da segurança. E aqui essa segurança deve ser entendida em seu sentido liberal como a condição social na qual a proteção da vida e da propriedade sejam resguardadas. Assim, somente através desse estado de segurança plena, a sociedade poderia (melhor) se organizar. A propósito, seria justamente isso que diferenciaria uma civilização da barbárie: a capacidade de seus membros ofertarem proteção uns aos outros contra ameaças externas (e de si mesmos). Por fim, essa segurança é aquilo que para Bentham permitiria que o ator social, racional, pudesse fazer o cálculo utilitarista de sua medida de felicidade e, com base nele, tomar suas decisões. A propósito, um dos temas mais inusitados do pensamento de Bentham - e que gerará rupturas - diz respeito exatamente ao que o filósofo entendia por “cálculo utilitarista da felicidade”. Tal teoria abarca uma das múltiplas formas como os utilitaristas buscavam lidar conceitualmente com o projeto de “maximização do bem-estar”, por se tratar de um termo bastante abrangente, trazendo uma enorme possibilidade de interpretações distintas. A teoria do filósofo está inserida no conceito da abordagem “mentalista do bem-estar”. Nessa concepcão, há uma espécie de abordagem quantitativa do bem-estar, isto é, trata-se de uma forma de se buscar a maximização deste a partir da minimização do sofrimento. Assim,

a moralidade é um ato calculável, não sendo determinada a partir de princípios diante de um valor intrínseco e universal. Nesse cálculo, leva-se em conta as consequências do bem-estar para o maior número de pessoas possíveis. Supõe-se, assim, a possibilidade de se calcular as consequências de seu impacto sobre o maior número de pessoas possíveis. De acordo com BRITO (Idem, p.138): “Mais do que inúmeros planos de reformas em todos os campos da vida social, os utilitaristas como Bentham tinham algo a mais a oferecer: um cálculo para a felicidade. Chamado de cálculo felicífico, esse cálculo permitiria saber quando e quanto a quantidade de felicidade numa dada situação, ou instituição, superava a infelicidade. Teria permitido, aliás, se fosse possível realizá-lo. Como concluiu posteriormente Stuart Mill, discordando de Bentham e de seu pai, James Mill, também filósofo utilitarista, há mais na felicidade do que quantidade: a qualidade deve ser levada em conta. E a entrada da qualidade na equação subverte, pois quando se pensa em termos qualitativos sobre a razão de viver a questão da escolha ética se impõe, e muito facilmente se pode concluir que em vários momentos se deve escolher não a felicidade, mas o dever. Mais ainda, uma felicidade tola não é de modo nenhum preferível a um estado de infelicidade consciente”. Assim, embora Stuart Mill possa ser enquadrado na concepção mentalista, ele difere-se de Bentham na medida em que defende uma abordagem qualitativa do bem-estar. Seria necessário, para ele, destacar-se a existência de diferentes prazeres a serem devidamente considerados, de outros prazeres que - se não são direitos naturais - são manifestações que deveriam ser enobrecidas em relação a todas as demais. A saber, a felicidade, o respeito e a liberdade.

Jeremy Bentham nasceu em 15 de fevereiro de 1748. Era o primogênito de Jeremiih Bentham e Alicia Whitehorn Grove. Sua família almejava uma carreira jurídica e política como advogado ou juiz. Dessa forma, submeteu-o a uma educação rigorosa. Em casa, Jeremy aprendeu latim, grego, música, desenho e dança. Entre os anos de 1755 e 1760, ele não frequentou nenhuma escola. Essa formação lhe causou grande impacto negativo devido ao ambiente de enorme despotismo. Em 1760, devido à ambição de seu pai, ingressou no The Queen’s College de Oxford, onde bacharelou-se em outubro de 1773. Tal formação também não lhe gerou um impacto positivo. Ainda por pressão de seu pai, Bentham encerrou um relacionamento com uma mulher de classe social inferior, não desenvolvendo mais nenhuma relação de proximidade com outra mulher, dedicando-se somente aos estudos e à escrita. Em novembro de 1763, Bentham ingressou em Lincoln`s Inn que era um alojamento da Corte Britânica destinado a preparar os estudantes para a prática do direito. Em dezembro do mesmo ano, retornou brevemente a Oxford para assistir às aulas do professor William Blackstone, que trouxeram grande impacto à sua vida. As aulas de direito em Oxford eram uma grande novidade, pois nenhuma outra universidade oferecia um ensino formal de direito em Retrato de Jeremy Bentham. Autor: inglês. No começo, restringiam-se apenas ao ensino do Direito Canônico e do Direito Romano. Apesar de Henry William Pickersgill (1875) sua dedicação ao Direito, Bentham pouco praticou a profissão, motivado pela insatisfação com o que observou como estudante nas cortes de justiça, mas também com as justificações teóricas de comentadores ingleses como o professor William Blackstone, autor dos Commentaries on English Law. No ano de 1770, devido ao seu descontentamento com o sistema legislativo, Bentham passou a dedicar-se à elaboração de um sistema de jurisprudência, codificação e reforma tanto do Direito Civil, como do Direito Penal. Fonte: Wikimedia Commons

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Fato é que essa perspectiva mentalista sofre críticas por seu caráter subjetivista. Assim, a segunda interpretação do utilitarismo propõe que o bem-estar é uma questão de maximização de preferências ou do interesse de cada um daqueles que estejam sendo afetados. No entanto, essa interpretação em pouco se difere da própria crítica que problematiza: falta a ela critérios objetivos para a definição dessas preferências. Dessa forma, emerge a terceira via utilitarista, denominada de “objetivista”. Para esse grupo, determinadas coisas poderiam ser consideradas boas ou ruins para a transcendência dos estados mentais positivos. Assim, o bem-estar seria algo vinculado aos conceitos objetivamente estabelecidos e universalizados. Essas três variáveis do Utilitarismo são passíveis de críticas. A primeira delas é o caráter finalista que elas acarretam. Isto é, uma teoria ética que se sustenta não por postulados, a priori, mas antes pela única premissa que a correção da ação somente se justifica em função do bem a que se visa ou mesmo da finalidade da ação. Dessa forma, o caráter consequencialista das teorias utilitaristas poderiam legitimar atitudes que violariam o Direito estabelecido e positivado, somente pelo fato de que se uma dada ação atinge o máximo de bem-estar para a maioria da população, ele já se validaria por si. A Ética seria um mero controle dos fins, e não dos meios. O Direito, um instrumento de força legal para atender os interesses de uma maioria, desconsiderando uma abordagem de justiça universal e isonômica. Mas, seguramente, a principal crítica ao Utilitarismo se dá pelas limitações espaço-temporal do consequencialismo. Há uma impossibilidade de previsão ou mesmo interrupção de condutas, contrariando a efetivação do bem-estar: que carece justamente de controle para se perceber seus limites e fundamentos. A probabilidade de se calcular riscos, de forma a prejudicar a previsão do que seria considerado mais adequado ou formador de um bem-estar revela-se inviável, sobretudo por ele desconsiderar sempre o indivíduo (micro) em relação ao social (macro). O resultado é que, na tentativa de se minimizar o sofrimento em última instância, o que se veria na prática e- em sentido governamental - seria uma ditadura/tirania a desconsiderar a dimensão de justiça e equidade do Direito em nome de uma “tirania da maioria”. Além disso, mesmo que isso não fosse considerado eticamente problemático, a teoria do cálculo felicítico é falível, pois supõe a invariabilidade da individualidade humana, seus afetos, contingências etc. Ela também abarca um instrumental inaplicável, pois parte da premissa que seria possível metrificar os sentimentos e vontades humanas com precisão, certeza e objetividade. De forma sintética, os axiomas fundamentais comuns a todas as variáveis do Utilitarismo são:

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Princípio do bem-estar: não é um direito natural por excelência. Mas há um bem que é definido pelo impulso humano em buscar o bem-estar (físico/emocional, mental/intelectual, moral/consciencial), afastando-se do sofrimento. Nota-se a influência (e releitura) das doutrinas éticas do período helenístico, especialmente o epicurismo. Princípio de otimização: embora não seja uma ética deontológica (isto é, orientada pelo dever), o Utilitarismo assume como tal na perspectiva de exigência de uma maximização do bem-estar. O “dever” é para com o desenvolvimento de mecanismos que engendrem esse objetivo. Consequencialismo: o único critério existente para o julgamento da moralidade de uma ação são as consequências que ela traz ao maior número de pessoas possíveis. Assim, não importa ao Utilitarismo se um dado agente detém ou não uma “qualidade moral intrínseca”: isso só pode ser avaliado em função de suas ações. Princípio da agregação: se a condição moral do agente é indiferente (senão em virtude da consequência de seus atos), não podendo ser levado em conta no cálculo felicítico, o que então precisa ser sopesado na equação utilitarista?

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A resposta seria o “saldo líquido”, isto é, o resultante da quantidade de pessoas afetadas por uma ação que vise ao bem-estar. Independente da socialização ou não desse saldo, o que importa aos utilitaristas é o quanto uma ação tem potencialmentede afetar globalmente os indivíduos. E é, precisamente, aqui que a ideia de “utilitarismo sacrificial” é empreendida. Nessa perspectiva, seria válido sacrificar o interesse de uma minoria (quantitativamente falando), cujo bem-estar estaria diminuído, a fim de aumentar o bem-estar de uma maioria geral. Princípio da imparcialidade e universalismo: admiti-se a ideia de que prazeres e sofrimentos devem ser igualmente pesados em importância quanto ao seu potencial de impacto na vida das pessoas. Esse princípio visa servir de uma espécie de “mecanismo de compensação” ao necessário princípio da agregação: todos os indivíduos teriam o mesmo peso dentro do cálculo geral do bem-estar. Assim não haveria privilégios. O direcionamento das ações e do reordenamento social levaria em conta sua abrangência das consequências, tão somente. O aspecto universalista consiste numa atribuição de valores do bem-estar que é independente das culturas ou das particularidades regionais.

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Princípios fundamentais e o “Utilitarismo para a liberdade” de John Stuart Mill O Utilitarismo de Jhon Stuart Mill difere-se do Utilitarismo preconizado por Bentham não somente em questão metodológica, como também no campo de aplicação teórica. Em outras palavras, Mill direciona sua reflexão para além do campo jurídico, centrando nas áreas da Ética e Filosofia política seu desiderato teórico. Por sua influência marcadamente liberal, Mill procurou uma associação entre as formulações utilitaristas com uma profunda preocupação com o tema da liberdade humana e sua consequências no âmbito do exercício do poder. A esse respeito, Stuart Mill (2010, p.49) afirma que (…) o único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma justa sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, é o de previnir danos aos outros”. A “teoria do dano” é basilar para compreender sua noção de liberdade (civil). Esse princípio assegura que cada indivíduo possui o direito de livre ação, desde que seu agir não prejudique outras pessoas. Se uma dada ação possui reflexo apenas sobre si mesmo, a sociedade não teria direito de intervir, mesmo que esse indivíduo esteja atentando contra sua própria vida ou meramente se prejudicando. O indivíduo seria soberano sobre si mesmo. Não obstante, ainda que o indivíduo seja livre para agir sobre si, é preciso considerar que ele não vive isolado da sociedade. Logo, suas ações- ainda que voltadas para si - podem ter reflexos na coletividade. 60

Em síntese é praticamente impossível que um indivíduo gere dano a si sem gerar no próximo. E uma vez gerando - salvo casos de seres incapazes de se autogovernar (crianças, senis etc)- elas devem estar sob a regência da lei. Assim, a liberdade não pode existir sem limitações. Em Sobre a Liberdade, Mill empreende um esforço na defesa da liberdade de expressão. Trata-se de uma condição necessária para o progresso intelectual e social. Ainda que seja um conjunto de expressões falsas, Mill advoga o direito de ela se manifestar. Não no sentido do iluminista Voltaire, mas antes enquanto um duplo efeito pedagógico: primeiro, os indivíduos são propensos a abandonar crenças errôneas se eles se envolvem em uma discussão aberta de ideias; segundo, ao forçar os outros indivíduos a reexaminar e reafirmar suas crenças no processo do debate. Segundo BRITO (2012, p.139): “A liberdade de pensamento e de gosto deve ser praticamente irrestrita, mas não a liberdade para agir, já que “ninguém defende que as ações possam ser tão livres quanto opiniões”. As ações, afinal, têm consequências que podem estar ao controle e ser sujeitas à repressão das leis. Também a liberdade de expressão de opiniões não é irrestrita: o que pode ser exemplificado em uma situação na qual alguémpropague, numa roda de amigos, que toda propriedade é um roubo. Quanto a isso não há nenhum problema maior. Mas expressar a mesma opinião aos brados, acompanhado de uma multidão enfurecida, diante da mansão de uma pessoa rica é outra coisa. Falar em público é, de certa forma, agir ou levar à ação. E as más consequências da ação ou da fala de uma determinada pessoa não são protegidas pelo princípio da liberdade, estando além de seus limites, já que as consequências dos atos devem caber às pessoas que praticam uma ação. E a sociedade, por vias legais, pode e deve punir severamente aqueles que, por seus atos, prejudicam outras pessoas”. Embora Stuart Mill seja um filósofo preocupado em ampliar a democracia (como um regime afeito a garantir melhor - dentre todos os outros - o bem-estar geral), ele defende que sua implementação deve ser paulatina. Inclusive, afirma que o despotismo seria uma forma de governo aceitável em sociedades nos quais se observassem barreiras para o progresso espontâneo. Para tanto, o déspota deve estar imbuído de bons interesses, tão somente. Seria necessário, então, que as mudanças ocorressem sem que com isso se almejassem processos revolucionários – que, em última instância, apenas substituiriam uma tirania por outra. Segundo BRITO (Idem, p. 140): “A questão é manter o momento, o impulso de mudanças, e não tentar transformar tudo de uma vez. Uma democracia não se faz apenas com leis eleitorais. Na ver-


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dade, estas devem acompanhar o momento ético de cada população, pois se trata, acima de tudo, de assumir responsabilidades, de votar corretamente, em escala nacional, e de agir em conjunto, em escalas menores, que poderíamos chamar distritais. Para se ter um governo representativo, não seria o caso de que cada pessoa obtivesse direito ao voto (homens e mulheres - Mill lutou sempre contra a sujeição política e social das mulheres), pois isso significaria que pessoas que não têm condições de cuidar de si votariam sob ordens de outrem. Também não é o caso do voto secreto: eles têm de ser dados às claras, o que, em sua visão, ajudaria a impedir que maus candidatos fossem eleitos”. Stuart Mill preocupava-se bastante com os limites da democracia, da representatividade e da governança. Para o filósofo utilitarista, a liberdade civil (que ele nomina de “social”) deveria servir como um instrumento de combate à “tirania da maioria” (termo emprestado da obra de Alexis de Tocqueville, a Democracia na América). A luta entre liberdade e autoridade (ou autoritarismo) seria um dos mais sensíveis embates da história política. Se, na antiguidade, a liberdade era uma “competição entre sujeitos - ou algumas classes de sujeitos - e o governo”, agora, na modernidade, deveria se constituir justamente no instrumento (político e jurídico) de proteção contra a “tirania dos governantes políticos”. Assim, a liberdade social é aquela que trata de impor os limites aos governantes, de modo que estes não possam usufruir dos cargos públicos, objetivando satisfações pessoais, gerando dano agravado à sociedade. Stuart Mill destaca duas formas básicas de limitação: as imunidades civis e aquelas por garantias institucionais. As primeiras se constituiriam numa série de direitos e liberdades políticas conferidas aos cidadãos. As segundas, em garantias institucionais administradas por órgãos governamentais que zelassem pelo povo, assim como limitassem algumas decisões do governante à aprovação popular. Posto isso, Mill conclui que limitar o poder do governo, tão somente, não seria suficiente.

Alexis de Tocqueville nasceu em 29 de julho de 1805 e morreu em 16 de abril de 1859. Foi um pensador político, historiador e escritor francês. Tornou-se célebre por suas análises da Revolução Francesa, da democracia americana e da evolução das democracias ocidentais em geral. Suas obras incluem: Do sistema penitenciário dos Estados Unidos e sua aplicação na França (1833), Da Democracia (1840) e O Antigo Regime e a Revolução (1856). Tocqueville foi um defensor da liberdade e da democracia. Sua publicação mais célebre, embasada nas suas viagens aos Estados Unidos, foi traduzida para o português com o nome de A democracia na América e é frequentemente usada em cursos de história americana do século XIX e de teoria política moderna. Em 1831, ele foi enviado pelo governo francês para estudar o sistema prisional americano. Chegou a Nova Iorque em maio do mesmo ano e passou nove meses em viagem pelo país norte-americano, tomando notas não só acerca das prisões, mas também sobre todos os aspectos da sociedade americana, incluindo sua economia e seu sistema político, então único no mundo. Após o retorno à França, em fevereiro de 1832, submeteu seu relatório penal e escreveu Da democracia na América. Essa obra foi impressa muitas vezes ainda no século XIX e acabou por tornar-se um clássico. Tocqueville ficou conhecido também por ser o primeiro a cunhar o termo social-democracia, ideologia política que se espalhou pela Europa.

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Retrato de Alexis de Tocqueville (1850). Autor: Théodore Chassériau (1819-1856)

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Crítica ao Utilitarismo por Robert Nozick (e sua contraposição) O Utilitarismo recebeu várias críticas bem elaboradas de pessoas que pensavam que essa teoria não interpretava corretamente a moralidade. Uma dessas críticas foi elaborada por um filósofo contemporâneo chamado Robert Nozick. O experimento mental criado por Nozick, chamado de Máquina de experiências, foi pensado para criticar a ideia utilitarista de que devemos levar em consideração as consequências de uma ação ao avaliar se está certa ou errada. Segue sua formulação (NOZICK, 2009, p.74-5): “Suponhamos que havia uma máquina de experiências que proporcionaria ao leitor a experiência que desejasse. Super neuropsicólogos podiam estimular o seu cérebro de maneira a pensar e sentir que escrevia um grande romance, fazia uma amigo, ou lia um livro interessante. Durante todo o tempo, estaria a flutuar numa cuba, com eléctrodos ligados ao cérebro. Dever-se-ia ligar esta máquina durante toda a vida, pré-programando as suas experiências de vida? Se está preocupado com a perda de experiências desejáveis, podemos supor que as empresas investigaram exaustivamente a vida de muitos outros. O leitor pode escolher a partir da sua imensa biblioteca ou bufete dessas experiências, seleccionando as suas experiências de vida para, digamos, dois anos seguintes. Após dois anos, poderia passar dez minutos ou dez horas fora da cuba, para selecionar as experiências dos seus dois anos seguintes. Evidentemente, enquanto está na cuba, não saberá que ali está; pensará que tudo aquilo acontece efectivamente. Os outros podem também ligar-se e ter as experiências que quiserem, pelo que não há necessidade de estar desligado para os servir.

(Ignore problemas como o de saber quem cuidará das máquinas se todos se ligarem.) Ligar-se-ia? O que mais pode ter importância para nós, além do modo como são as nossas vidas a partir de dentro? Tampouco se devia abster por causa dos escassos momentos de angústia entre o momento em que decide e aquele em que já está ligado. O que são alguns momentos de angústia comparados com uma vida inteira de felicidade (se é isso que o leitor escolhe), e por que sentir angústia se a sua decisão é a melhor? O que tem para nós importância, além das nossas experiências?” Em linhas gerais, Nozick afirma que as únicas respostas para essas perguntas finais seriam, respectivamente, “não” e “muita coisa”. E isso abre um leque subjetivo que um pretenso cálculo objetivo não abarcaria. Outro apontamento que esse experimento traz é o de saber se as pessoas , de fato, escolheriam passar a vida na máquina que lhe gerasse prazer intermitente. Embora pareça óbvio a ideia de que todos escolheriam uma vida simulada de puro prazer, Nozick acredita que a maioria das pessoas não escolheria ficar plugadas nela. Isso se daria porque, para o filósofo, a vida humana porta significados para além de uma mera obtenção de prazer. Logo, o suposto bem-estar não é a única coisa que possui valor intrínseco: as experiências de uma vida real marcada por expectativas frustradas e desapontamentos, a mistura usual de sucessos parciais e sonhos incompletos, abarca a condição humana que é capaz de atribuir valor e sentido a essas experiências. Embora o experimento de Nozick apresente uma boa crítica aos limites do Utilitarismo, há aqueles que entendem que a formulação do filósofo americano serve como uma contraposição ao hedonismo estrito - algo que o Utilitarismo atualiza, mas não abarca em sua integralidade. Em

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Fonte: Wikimedia Commons

SAIBA MAIS Robert Nozick nasceu em Nova Iorque, em 16 de novembro de 1938, e morreu em 23 de janeiro de 2002, destacando-se como um proeminente filósofo norte-americano e professor da Universidade Harvard. Ele foi responsável pela criação de uma análise inovadora em matéria de filosofia política, recebendo por isso o National Book Award, além de diversos outros prêmios. Nozick contestou as teses políticas sociais liberais, socialistas e conservadoras, e expôs uma nova teoria sobre justiça distributiva - um modelo utópico de Estado que se presta à experimentação sob o novo conceito de Estado mínimo, assim como uma proposta de integração entre ética, filosofia e economia. Ele também questionou os atos e a legitimidade do Estado moderno, que utiliza seu aparato coercitivo-jurídico para forçar o indivíduo e violar seus direitos. Não poupou críticas aos governos liberal, socialista e conservador, que segundo ele, desrespeitavam o contrato social de que são parte em detrimento das liberdades inerentes ao homem. Nozick desenvolveu ainda outros trabalhos, embora menos influentes, nas áreas de epistemologia e teoria da decisão. Sua obra Anarquia, Estado e Utopia, de 1974, foi uma resposta libertária à Uma Teoria da Justiça, de John Rawls, publicada em 1971. Foto do filósofo americano, Robert Nozick.

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Bibliografia BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril, 1979. BRITO, Ari Tank. O Liberalismo Clássico. In: FRATESCHI. Yara; MELO, Rurion; RAMOS, Flamarion C. (Org.). Manual de Filosofia política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. MILL, John Stuart. O governo representativo. São Paulo: Ibrasa, 1995. ______. Princípios de Economia Política. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. ______. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra, 2010. NOZICK, Robert. Anarquia, Estado e Utopia. Lisboa: Edições 70, 2009.

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Questão 02. O Utilitarismo foi uma escola filosófica fundada por Jeremy Bentham. Sendo um dos últimos pensadores da tradição liberal-iluminista, ele propôs a construção de um sistema axiológico que pudesse ofertar uma solução prática para os dilemas de ordem moral e organizacional da sociedade europeia de seu tempo. Questão 03. Primeiramente, Bentham questiona o Contratualismo ao afirmar que não era possível provar historicamente a existência de um contrato social originário; segundo, porque, ainda que fosse possível mapear arqueológicamente a existência desse contrato, os argumentos que sustentam a necessidade de subserviência irrestrita ao contrato não encontra fundamentação filosófica sustentável. Questão 04. 1) Princípio do bem-estar; 2) Princípio de otimização; 3) Consequencialismo; 4) Princípio da agregação; 5) Princípio da imparcialidade e universalismo. Questão 05. Segundo Mill, na obra Sobre a Liberdade, “(…) O único fim pelo qual se permite que a humanidade, coletiva e individualmente, interfira com a liberdade de ação de qualquer um dos seus números é a autoproteção. Que o único propósito pelo qual o poder pode ser exercido de forma justa sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade dele, é o de previnir danos aos outros.”

Sinopse Mar Adentro é uma produção cinematográfica de origem espanhola, com coprodução francesa e italiana. Elaborado em 2004 sob o gênero “Drama”, o filme foi dirigido pelo chileno radicado na Espanha, Alejandro Amenábar. A obra apresenta fatos da vida real e relata a história de Ramón Sampedro, marinheiro que ficou tetraplégico após sofrer um acidente durante um mergulho, trazendo à tona sua luta pelo direito de se matar. Ramón contava com o apoio de sua família e amigos, além da ajuda de uma advogada que defendeu sua causa gratuitamente.

Fonte: Wikimedia commons

outras palavras, que a noção de bem-estar, na perspectiva utilitária, não pode estar atrelada à simples obtenção de prazer, mas, antes, que a “boa vida” consiste no saldo entre experiências da vida real (incluindo aí sonhos e frustrações, conquistas e superações). Assim, se houvesse uma máquina capaz de maximizar a utilidade individual local em harmonia com a utilidade global, garantindo com que as pessoas não viessem a sofrer eventuais más experiências (como doenças), seguramente as pessoas adeririam à máquina ad etermum.

Questão 01. O Utilitarismo foi uma teoria desenvolvida no âmbito da filosofia liberal inglesa por autores como Jeremy Bentham e Stuart Mill. Segundo esses filósofos, uma ação só pode ser considerada boa ação ou a boa regra de conduta se for caracterizada pela utilidade e pelo prazer que podem proporcionar a um indivíduo e, em extensão, à coletividade.

A07  O Utilitarismo: de Jeremy Bentham a John Sturt Mill

Ficha técnica: Direção: Alejandro Amenábar Produção: Alejandro Amenábar e Fernando Bovaira Roteiro: Mateo Gil Gênero: Drama Idioma: Espanhol e Catalão Ano: 2004

Exercícios de Fixação 01. Em linhas gerais, defina o Utilitarismo. 02. De forma sintética, exponha a proposta utilitária de Jeremy Bentham.

04. Quais são os cinco princípios fundamentais comuns a todas as variáveis do Utilitarismo? 05. De que forma Stuart Mill concebe os limites para a liberdade?

03. Qual a crítica que Jeremy Bentham faz às doutrinas contratualistas?

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Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares 01. O Utilitarismo é uma teoria moral que surgiu no século XIX. Assinale a alternativa que contenha apenas nomes de filósofos utilitaristas: a) Kant e Stuart Mill. b) Rousseau e Aristóteles. c) Stuart Mill e Bentham.

d) Kant e Bentham. e) Platão e Stuart Mill.

02. O Utilitarismo é uma teoria moral que procura oferecer uma forma de diferenciar ações corretas e incorretas. Assinale qual das expressões abaixo melhor explica a ética utilitarista: a) Uma ação moralmente correta é aquela que gera mais felicidade para o agente. b) Uma ação moralmente correta é aquela está de acordo com o imperativo categórico. c) Uma ação moralmente é aquela em que a pessoa age com honestidade. d) Uma ação moralmente correta é aquela que produz o maior saldo positivo de prazer para todos os afetados pela ação, considerados imparcialmente. e) Uma ação moralmente correta é aquela que está de acordo com a máxima que diz “não faça aos outros aquilo que não gostaria que fizessem para ti”.

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03. (UncisaL AL)

A abordagem utilitarista à ética aparece no cartum considerando a) defender o ato moral por suas consequências. b) reverter o tratamento nocivo aos não humanos. c) estabelecer a imoralidade da exploração animal. d) combater o status moral dos animais sencientes. e) proteger os animais como condição de bem-estar. 04. (IFG) Na contramão das previsões que anunciaram a morte da filosofia moral utilitarista, essa doutrina continua sendo um tema privilegiado no campo de estudos sobre a Ética. A que se deve atribuir a vitalidade atual dos estudos sobre o Utilitarismo?

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a) É possível afirmar que, se o Utilitarismo continua fecundando a reflexão ética em nossos dias, é porque, à luz dessa doutrina, os direitos têm prioridade sobre o bem. Por isso, na “era dos direitos”, para falar com Norberto Bobbio, é compreensível que as éticas dos direitos busquem inspiração no Utilitarismo. b) Os utilitaristas chegaram a um consenso na interpretação do conceito de utilidade. Um conceito que privilegia o interesse individual em detrimento do interesse geral e que leva a sério a pessoa humana. c) Não se pode ignorar que justiça e equidade estão suficientemente asseguradas na teoria utilitarista. Daí a importância que essa teoria adquire no cenário atual. O Utilitarismo não admite que minorias sejam oprimidas e direitos humanos violados. d) Qualquer sistema ético deve promover o bem-estar e preocupar-se com a minimização do sofrimento. Daí a pertinência do Utilitarismo, uma doutrina sensível às preocupações distributivas, que não opõe princípio de utilidade e princípio de equidade. e) O Utilitarismo é um modelo ético desafiante que nos leva a pensar sobre importantes questões da ética normativa, da metaética e da teoria da ação. A doutrina tem o mérito de considerar e ao mesmo tempo avaliar a importância das consequências da ação humana, como também de colocar em primeiro plano a satisfação das necessidades e dos interesses humanos da maioria. 05. (Unioeste) Texto 1: “Por princípio da utilidade entende-se aquele princípio que aprova ou desaprova qualquer ação, segundo a tendência que tem a aumentar ou a diminuir a felicidade da pessoa cujo interesse está em jogo, ou, o que é a mesma coisa em outros termos, segundo a tendência de promover ou comprometer a referida felicidade. Digo qualquer ação, com o que tenciono dizer que isto vale não somente para qualquer ação de um indivíduo particular, mas também de qualquer ato ou medida de governo. [...] A comunidade constitui um corpo fictício, composto de pessoas individuais que se consideram como constituindo os seus membros. Qual é, nesse caso, o interesse da comunidade? A soma dos interesses dos diversos membros que integram a referida comunidade”. (BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 10)

Texto 2: “Para compreendermos o valor que Mill atribui à democracia, é necessário observar com mais atenção a sua concep-


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

(WEFFORT, F. (org.). Os clássicos da política 2. 3 ed. São Paulo: Ática, 1991. p. 197-98).

Sobre o Utilitarismo e o pensamento de Bentham e Stuart Mill, é INCORRETO afirmar. a) Para o utilitarismo clássico, o principal critério para a moralidade é o princípio da utilidade, que defende como morais as ações que promovem a felicidade e o bem-estar para o maior número de pessoas envolvidas. b) Para os utilitaristas Bentham e Stuart Mill, uma ação é considerada moralmente correta se promove a felicidade e o bem-estar para o indivíduo, não importando suas consequências em relação ao conjunto da sociedade. c) Utilitaristas como Bentham defendem que o papel do legislador é o de produzir leis que sejam do interesse dos indivíduos que constituem uma comunidade e que resultem na maior felicidade para o maior número deles. d) O pensamento de Stuart Mill propõe mudanças importantes à agenda política, na medida em que reconhece que a participação política não pode ser tomada como privilégio de poucos. O Estado deverá, portanto, adotar mecanismos que garantam a institucionalização da participação mais ampliada dos cidadãos. e) Enquanto Bentham defendia a democracia representativa como sendo uma forma de impedir que os governos imponham seus interesses aos do povo, Stuart Mill defende tal forma de governo como a melhor forma para se controlar os governantes e ao mesmo tempo aumentar a riqueza total da sociedade. 06. (Unifesp SP) Tradição de pensamento ético fundada pelos ingleses Jeremy Bhentam e John Stuart Mill, o utilitarismo almeja muito simplesmente o bem comum, procurando eficiência: servirá aos propósitos morais a decisão que diminuir o sofrimento ou aumentar a felicidade geral da sociedade. No caso da situação dos povos nativos brasileiros, já se destinou às reservas indígenas uma extensão de terra equivalente a 13% do território nacional, quase o dobro do espaço destinado à agricultura, de 7%. Mas a mortalidade infantil entre a população indígena é o dobro da média nacional e, em algumas etnias, 90% dos integrantes dependem de cestas básicas para sobreviver. Este é um ponto em que o cômputo utilitarista de prejuízos e benefícios viria a calhar: a felicidade dos índios não é proporcional à extensão de terra que lhes é dado ocupar. (Veja, 25.10.2013. Adaptado.)

A aplicação sugerida da ética utilitarista para a população indígena brasileira é baseada em a) uma ética de fundamentos universalistas que deprecia fatores conjunturais e históricos. b) critérios pragmáticos fundamentados em uma relação entre custos e benefícios.

c) princípios de natureza teológica que reconhecem o direito inalienável do respeito à vida humana. d) uma análise dialética das condições econômicas geradoras de desigualdades sociais. e) critérios antropológicos que enfatizam o respeito absoluto às diferenças de natureza étnica 07. (Enem MEC) A moralidade, Bentham exortava, não é uma questão de agradar a Deus, muito menos de fidelidade a regras abstratas. A moralidade é a tentativa de criar a maior quantidade de felicidade possível neste mundo. Ao decidir o que fazer, deveríamos, portanto, perguntar qual curso de conduta promoveria a maior quantidade de felicidade para todos aqueles que serão afetados. RACHELS, J. Os elementos da filosofia moral. Barueri-SP: Manole, 2006.

Os parâmetros da ação indicados no texto estão em conformidade com uma a) fundamentação científica de viés positivista. b) convenção social de orientação normativa. c) transgressão comportamental religiosa. d) racionalidade de caráter pragmático. e) inclinação de natureza passional. 08. (FGV OAB) Há um limite para a interferência legítima da opinião coletiva sobre a independência individual, e encontrar esse limite, guardando-o de invasões, é tão indispensável à boa condição dos negócios humanos como a proteção contra o despotismo político. John Stuart Mill afirma que a consciência jurídica deve levar em conta o delicado balanço entre a liberdade individual e o governo das leis. No livro A liberdade. Utilitarismo, John Stuart Mill sustenta que um dos maiores problemas da vida civil é a tirania das maiorias. Conforme a obra citada, assinale a opção que expressa corretamente a maneira como esse autor entende o que seja tirania e a forma de proteção necessária. a) A tirania resulta do poder do povo como autogoverno porque o povo não é esclarecido para fazer suas escolhas. A proteção contra essa tirania é delegar o governo aos mais capacitados, como uma espécie de governo por meritocracia. b) A deliberação de juízes ao imporem suas concepções de certo e errado sobre as causas que julgam, produz a mais poderosa tirania, pois subjuga a vontade daqueles que estão sob a jurisdição desses magistrados. Apenas o duplo grau de jurisdição pode proteger a sociedade desta tirania. c) Os governantes eleitos impõem sobre o povo suas vontades e essa forma de opressão é a única tirania da maioria contra a qual se deve buscar a proteção na vida social, o que é feito por meio da desobediência civil. d) A sociedade, quando faz as vezes do tirano, pratica uma tirania mais temível do que muitas espécies de opressão política, pois penetra nos detalhes da vida e escraviza a alma. Por isso é necessária a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes. 65

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ção de sociedade e indivíduo [...]. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão”.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A08

ASSUNTOS ABORDADOS n Michel Foucault: e a crítica ao

panoptismo

MICHEL FOUCAULT: E A CRÍTICA AO PANOPTISMO “Trata-se (…) de captar o poder em suas extremidades, em suas últimas ramificações (…) captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais, principalmente no ponto em que ultrapassando as regras de direito que o organizam e delimitam. (Michel Foucault, 1979, p.182)

O filósofo inglês Jeremy Bentham destacou-se entre seus pares de teoria não somente por ter sido o fundador da corrente utilitarista e o mecanismo do cálculo felicítico. O direcionamento de suas reflexões acerca da reforma da sociedade a partir de uma reorientação do Direito serviu de inspiração para diversos estadistas e juristas dos séculos subsequentes. Na mesma medida que foi objeto de releituras, também recebeu duras críticas ao longo do tempo, com destaque para as implicações de ordem ético-políticas evidenciadas pelo filósofo francês, Michel Foucault. Durante os séculos XVIII e XIX, o Direito Moderno partia do princípio do caráter retributivo da pena. Em outras palavras, a sanção jurídica se esgota na ideia de pura retribuição ao agente delituoso: a reação punitiva obedece ao grau de ação do sujeito culpado - e somente para ele. Trata-se de uma resposta ao mal constitutivo do delito com outro mal que se impõe ao autor do delito. O Utilitarismo, em contrapartida, rejeitará essa concepção, buscando uma forma de conceber o Direito (e as leis) enquanto instituições ocupadas com instâncias antes preventivas de novos delitos do que meramente punitiva de atos. Dito de outra forma, o sistema retributivo não coíbe novas ações. A esse respeito, o jurista Césare Beccaria (1997, p.27) afirma:

Figura 01 - Modelo de Prisão por dentro de sua construção. Ano: 2005

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De acordo com o cálculo utilitarista, a concepção retributiva - ao trazer consequências diretas apenas para o delituoso- não acarretaria um bem para a sociedade em si. No máximo, poderia impedir novos crimes, mas jamais remediar, por razões óbvias. Assim, Bentham defende um caráter preventivo da lei, na medida em que ela deve coibir futuras ações delituosas. É nessa perspectiva que emerge sua teoria do panóptico- uma arquitetura penitenciária que tinha como objetivo “vigiar” o detento, impedindo por meio de um mecanismo disciplinar de controle, novos crimes, ainda que dentro do complexo prisional.

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É melhor prevenir os crimes a ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males da vida.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Por essa razão, Jeremy Bentham estudou a arquitetura dos sistemas prisionais de sua época. Objetivando desenvolver uma estrutura que pudesse colocar o delituoso aos olhos da vigilância, criou um projeto de prisão circular, no qual o observador central poderia ver todos os locais onde houvesse presos. Denominado Panóptico, essa estrutura poderia servir para qualquer ambiente que necessitasse de uma constante vigilância de comportamentos: escolas, hospitais, fábricas etc. A arquitetura desse sistema resultava em um controle mais eficiente dos estabelecimentos. Aquele que estivesse sobre uma torre ou estrutura circular central, poderia observar todos os vigiados, exercendo o controle/previsão de suas ações.

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No esboço original, Bentham insere uma galeria ou estrutura circular no centro de um edifício, também circular, dividido em celas. Cada uma comportando uma janela para o exterior, a fim de permitir a entrada de luz, e uma porta gradeada voltada para o vasto pátio interior e voltada para a torre de vigilância. Ocupando celas que os isolavam por paredes, os prisioneiros ficavam sujeitos ao escrutínio coletivo e individual de um vigilante, que se instalava, mantendo-se oculto. Para que isso fosse Figura 02 - O panóptico. Desenho do arquiteto inglês Willey Reveley, 1791 possível, o projeto deveria contar com espécie de persianas ou venezianas nas janelas da torre de observação, além de conexões labirínticas entre as salas da torre, evitando assim vultos ou ruídos que pudessem delatar a posição e o olhar do observador. Fato é que o sistema concebido por Bentham, além de oneroso, era bastante complexo e exigia prédios dispendiosos com vasta área de construção. São raros os edifícios panópticos prisionais no mundo de hoje que obedecem à risca o modelo por ele imaginado. Não obstante, embora a proposta de racionalização do sistema prisional tenha encontrado pouca operacionalidade nos séculos após sua concepção, seu conceito foi transposto para outros espaços que demandavam controle. Para o filósofo francês, Michel Foucault, o esboço de Bentham tornou-se um conceito que expressa a ideia de um “dispositivo disciplinar” que permite seu uso para a vigilância e o controle social. Nos termos de Gilles Deleuze, o sistema panóptico estaria na base da chamada “sociedade de controle”.

SAIBA MAIS

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Gilles Deleuze foi um filósofo francês, nascido em Paris, em 18 de janeiro de 1925. Após concluir o curso de Filosofia em 1948 na Universidade de Paris (Sorbonne), tornou-se professor de 1957 a 1960 da cátedra de História da Filosofia. Junto com Michel Foucault foi responsável pelo ressurgimento do interesse pelo pensamento de Nietzsche nos círculos intelectuais franceses. Sua trajetória intelectual pode ser dividia em dois eixos: 1) a produção historiográfica e conceitual acerca do pensamento de filósofos modernos, tais como Spinoza, Leibniz, Hume, Kant, Nietzsche, Bergson, Foucault e obras de artistas (Proust, Kafka e o pintor moderno Francis Bacon); 2) exploração de temas filosóficos ecléticos, centrados na produção de conceitos como diferença, sentido, evento, rizoma etc., dialogando com as obras de Foucault, Guatarri e com a Psicanálise. Destaque para suas obras Nietzsche et la philosophie (1962); Proust et les signes (1964); Logique du sens (1969) Spinoza (1970); Foucault (1986); e Critique et clinique (1993). No que tange a leitura de Gilles Deleuze sobre o sistema panóptico, o filósofo francês o define como um dos diversos instrumentos (e representações) da “sociedade de controle”. Em seus últimos textos, evoca a “instalação progressiva e dispersa de um sistema de dominação” de indivíduos e populações, dando origem à “sociedade de controle”.

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Filosofia

Michel Foucault compreende o panóptico como um dos efeitos do século XVIII para lidar com as contingências do aumento populacional europeu, seguidas das transformações sociais condicionadas por esse elemento e pelas revoluções industriais. Tal qual numa fábrica - não à toa o sistema também se emprega numa “cadeia” produtiva - é preciso a otimização de recursos. O que se propõe é uma resolução de problema de ordem logística, isto é, de como controlar um número crescente de indivíduos, empregando um número reduzido de controladores do processo. Assim, em Foucault, a premissa de Bentham é meramente retórica: o que se está em jogo é como uma sociedade burguesa em formação “(…) necessita tornar mais sutis seus mecanismos de poder, para gerir um maior número de relações e pessoas”. (FOUCAULT, 1979, p. 211-214). Na perspectiva foucaultiana, o sistema benthaniano caracteriza-se por um instrumento de economia do tempo e do espaço dos detentos. Dessa forma, requeria que os indivíduos postos sob escrutínio devessem tornar-se objetos de informação, à medida que os “controladores” mensuram o que é visto e analisado, ao mesmo tempo em que introjeta nos encarcerados o sentimento de vigilância constante. Para Foucault, a punição e a violência nada mais são do que instrumentos de poder destinados a educar as pessoas para que elas cumpram normas, leis e mandamentos de acordo com a vontade daqueles que operam o poder: seja aqueles

que legislam ou aqueles que aplicam a sanção. A vigilância, portanto, tem a função de evitar com que algo aconteça na medida que regulamenta a vidas das pessoas. Já a punição é o instrumento utilizado para “corrigir as falhas” das pessoas que infligem as regras estabelecidas juridicamente (ou simbolicamente) pela sociedade. Tem efeito educativo, uma vez que exemplifica as consequências para aqueles que insistem em transgredir o controle da vigilância. Entretanto, para Foucault, a punição deveria vir em último caso. Não por ela ser moralmente questionável, mas simplesmente pelo fato de que se é mais eficaz vigiar do que punir. Na perspectiva de uma economia do Estado, é mais vantajoso evitar o delito (e os custos materiais e sociais) do que dispensar recursos num processo de ressociabilização de um detento, por exemplo. Mais rentável, inclusive. Dentro do sistema panóptico, a vigilância é otimizada: é possível monitorar o maior número de pessoas possíveis por apenas um único ou pequeno grupo de outros agentes. A punição, quando devida, deve ser individualizada a seu turno: cada sujeito possui maneiras distintas de se reeducar. Por essa razão, a punição é o último recurso dentro da economia do panóptico. O “custo-benefício” do panóptico pôde, ao longo do tempo, ser incorporado com outras instâncias que igualmente visavam à gestão eficiente de pessoas a partir dos mecanismos de vigilância/punição: hospitais (psiquiátricos) e escolas tornam-se exemplos patentes desse uso.

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Michel Foucault nasceu em Poitiers, em 15 de outubro de 1926, e morreu em Paris, em 25 de junho de 1984, tornando-se conhecido como filósofo, historiador das ideias, teórico social crítico literário. Suas teorias abordam a relação entre poder e conhecimento e como eles são usados como uma forma de controle social por meio de instituições sociais. Embora muitas vezes seja citado como um pós-estruturalista e pós-modernista, Foucault acabou rejeitando esses rótulos, preferindo classificar seu pensamento como uma história crítica da modernidade. Formou-se na Escola Normal Superior de Paris, onde desenvolveu seu interesse por filosofia e teve influência de seus tutores, Jean Hyppolite e Louis Althusser. Após vários anos atuando como diplomata cultural no exterior, ele retornou à França e publicou seu primeiro grande livro, A História da Loucura. Depois de ter trabalhado na Universidade de Clermont-Ferrand, entre os anos de 1960 e 1966, Foucault produziu duas publicações ainda mais significativas: O Nascimento da Clínica e As Palavras e as Coisas, que exibiu seu crescente envolvimento com o estruturalismo, um movimento teórico na antropologia social, do qual ele distanciou-se mais tarde. De 1966 a 1968, o filósofo lecionou na Universidade de Túnis, na Tunísia, antes de retornar para a França, onde tornou-se chefe do departamento de filosofia de uma nova universidade experimental, a Paris VIII. Em 1970, ele foi admitido no Collège de France, onde permaneceu até sua morte. Foucault também tornou-se ativo em alguns grupos de esquerda envolvidos em campanhas antirracistas, contra violações aos direitos humanos pela luta por uma reforma penal. Ele passou a publicar A Arqueologia do Saber, Vigiar e Punir e História da Sexualidade. Nestes livros, ele desenvolveu métodos arqueológicos e genealógicos que enfatizavam os jogos de poder na evolução do discurso na sociedade.

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Michel Foucault, em sua obra Vigiar e Punir: O nascimento das prisões (1975), expressa-se a respeito das formas de sujeição, controle e disciplina impetrados pelo Estado Moderno. O objetivo, inclusive, dessa obra é avaliar como são elaboradas essas “modalidades de poder” e a partir de quais contextos elas encontram guarida e reforço. Embora o subtítulo da obra seja O nascimento da prisão, Foucault afirma que o que se estava em questão era refletir sobre a prisão não somente em seu sentido literal, mas também simbólico. Em outras palavras, o cárcere era uma metáfora para os mecanismos disciplinares. De modo central, Foucault (1975, p.23) propunha um exame acerca de “(...) uma história correlativa da alma moderna e de um novo poder de julgar”, operando uma espécie de “(...) genealogia do atual complexo científico-judiciário em que o poder de punir se apoia, recebe suas justificações e suas regras, estende seus efeitos e mascara sua exorbitante singularidade”. No entanto, o que Michel Foucault entende por “poder”? Na mesma medida, o que representa (e se conceitua) a noção de “punir”? Na perspectiva de Franck Évrard (1995, p.76), o poder deve ser entendido “(...) como uma estratégia complexa em uma determinada sociedade, com suas disposições, suas manobras, suas técnicas, seus funcionamentos.” Dessa forma, ele transcende sua mera manifestação enquanto instituição, embora o Estado expresse um dos seus principais veículos de ação. Em síntese, o poder é uma prática social constituída historicamente. São formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. Ele (o poder) está por toda parte e provoca ações e uma relação flutuante, não estando em uma instituição nem em ninguém. Daí sua “capilaridade”: ele encontra-se não exatamente na mão de um soberano, mas nas relações sociais existentes, sendo ações sobre ações. Porém, embora o poder se apresente “capilarmente”, nos termos de Foucault, é seguramente no âmbito de um estatuto da legalidade e da legitimidade (conferidas pelo Estado) que ele manifesta-se em maior proporção. A lei, portanto, é o dispositivo-mor desse processo a se expressar como um processo homogêneo, coercitivo e portador de um “discurso de interdição”.

Há de se distinguir, todavia, as formas de manifestação desse poder, que ora se apresenta como uma ação do Estado sob a vida de seus súditos, ora - e principalmente demonstra-se como uma resultante de múltiplas relações (de poder) dentro da esfera social. Para Foucault (Idem, p.88), “(...) as análises em termos do poder não devem postular, como dados iniciais, a soberania do Estado, a forma da lei ou a unidade global da dominação; estas são apenas, e antes de mais nada, suas formas terminais.” Nesse sentido, a dimensão do poder e do Estado caminha na contramão da formulação sociológica clássica de Max Weber, para a qual o Estado detém o “monopólio legítimo da força física”. A propósito, para Foucault, a violência, juridicamente validada, seria apenas uma das expressões advindas das relações de poder, ou em seus termos, de uma “multiplicidade de correlações de força.” (CARVALHO, 2017). De acordo com Fernando Danner (2011, p.2829), essa definição de poder implica, primeiramente (...) em que não se pode conceber o poder “como conjunto de instituições e aparelhos garantidores da sujeição dos indivíduos em um Estado determinado”; em segundo lugar, o poder não deve ser concebido “‘como um modo de sujeição que, por oposição à violência, tenha a forma da regra”; finalmente, por poder não se deve entender ‘um sistema geral de dominação exercida por um elemento ou grupo sobre o outro e cujos efeitos, por derivações sucessivas, atravessem o corpo social inteiro”. Foucault nos oferece uma definição nominalista de poder: o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa em uma determinada sociedade.

A definição de “punição” em Foucault perpassa o estabelecimento de quatro níveis de entendimento: 1) concebê-la não em função de seu aspecto de sanção, mas antes sobre o tipo de relação que se estabelece entre os indivíduos no seio desse processo. Trata-se de uma “função social complexa”, nos termos do filósofo francês; 2) compreender por qual método/técnica ou “(...) processos específicos de poder” ela se assenta. Dessa forma, a mera compreensão da punição enquanto um “prolongamento das regras do direito”, ou ainda, enquanto “(…) reflexo das próprias estruturas sociais” postas em segundo plano; 3) perceber se há ou não pontos de convergência entre os diversos métodos punitivos ancorados no Direito Penal e nas formas de produção do conhecimento no campo das ciências humanas. Isto é, trata-se de se identificar as cadeias dessa suposta relação, sobretudo se dessa se poderia – nas palavras de Foucault - “(...) colocar a tecnologia do poder no princípio tanto da humanização da penali69

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Não obstante, a reflexão foucaultiana não somente amplia a percepção sobre os múltiplos uso do sistema panóptico, na medida em que a aponta como um dispositivo de controle e sujeição de indivíduos pelo Estado Moderno. Não sem razão, esse modelo de “gestão de corpos” eclode justamente num período em que o Estado começa a delimitar seus contornos de atuação nas fronteiras da esfera pública e da esfera privada. Em outras palavras, o sistema benthaniano é um instrumento utilizado com eficácia dentro das instituições geridas pelo Estado - que ao mesmo tempo o sustenta e o legitima.


Filosofia

dade quanto do conhecimento do homem”; 4) investigar se esta correlação não trata de um desdobramento direto de uma nova forma de se conceber o corpo dos indivíduos e de como esses são sujeitados e ressignificados nas próprias relações de poder, sobretudo a partir da emergência dos múltiplos saberes científicos contemporâneos, tais como a psiquiatria, psicologia, pedagogia etc. (Idem, 2011. Cf: FOUCAULT, 1975, p.24). Para Foucault, o cerne de sua obra Vigiar e Punir está na tentativa de se compreender a essência dos métodos punitivos e dos mecanismos pelos quais sua ação se “racionalizou”. Não se trata de um mero exame das instituições sociais em si, mas antes da compreensão das “(...) práticas – com o objetivo de apreender as condições que tornam essas aceitáveis em um dado momento”. De acordo com Fernando Danner (Ibidem, p.39-40): Foucault busca compreender o modo como, em nossa cultura, os seres humanos são objetos de uma série de tecnologias específicas de poder (...), que perpassam o corpo social e que, por conseguinte, formam e moldam o caráter do próprio indivíduo: a alma humana, segundo ele, não é um simples efeito ou uma representação ideológica de uma determinada sociedade, mas, ao contrário, ela é algo que “[...] existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno, na superfície, no interior do corpo em funcionamento de um poder que se exerce sobre os que são punidos – de uma maneira geral sobre os que são vigiados, treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados, sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a existência”.

A08  Michel Foucault: e a crítica ao panoptismo

Questão 01. Esse princípio refere-se às formas de sanção jurídica, sob as quais essa se esgotaria na ideia de pura retribuição ao agente delituoso: a reação punitiva deveria obedecer ao grau de ação do sujeito culpado - e somente para ele. Trata-se de uma resposta ao mal constitutivo do delito com outro mal que se impõe ao autor do delito.

Vigiar e Punir marca um momento decisivo na história da repressão: “o momento em que se percebeu que era mais eficiente e rentável, em termos de economia do poder, colocar os indivíduos sob vigilância do que sujeitá-los a algum castigo exemplar”. Esse momento está ligado à emergência de uma ‘nova’ forma de exercício do poder, que se desenvolveu no fim do século XVII e no decorrer do século XVIII, conforme salientado de passagem acima. Além

Questão 02. Inicialmente, o panóptico foi uma arquitetura prisional desenvolvida pelo filósofo utilitarista, Jeremy Bentham, que objetivava colocar delituosos sob constante vigilância. Uma estratégia desenvolvida em contraposição ao uso da concepção retributiva da pena. Assim, ao “vigiar” o detento, deveria impedir através de um mecanismo disciplinar de controle - a ocorrência de novos crimes, ainda que dentro do complexo prisional.

do mais, segundo Foucault, foi o surgimento desse novo tipo de poder que tornou possível o

Questão 03. Trata-se de uma obra acerca das formas de sujeição, controle e disciplina impetrados pelo Estado Moderno. O objetivo é avaliar como são elaboradas essas “modalidades de poder” e a partir de quais contextos elas encontram guarida e reforço. O cerne da obra Vigiar e Punir está na tentativa se compreender a essência dos métodos punitivos e dos mecanismos pelos quais sua ação se “racionalizou”. Não se trata de um mero exame das instituições sociais em si, mas antes na compreensão das “(...) práticas – com o objetivo de apreender as condições que tornam essas aceitáveis em um dado momento”.

Retomando a problematização sobre relação entre poder e Estado, embora Foucault o tipifique como mero reflexo das relações de poder que se institucionalizam, importa considerar o potencial de sua dinâmica de atuação. Em outras palavras, é relevante compreender a forma como o Estado in(ter)fere sobre os modos de existência e subjetivação da sociedade. Nos termos de Foucault, sua “governantabilidade”. Este termo é um neologismo cunhado pelo filósofo francês, em meados de 1978. Seu propósito era o de conceituar a forma como os governos ao longo da história organizaram o comportamento/condutas humanas, a partir de diversos mecanismos engendrados no âmbito das relações de poder. “A governantabilidade é a maneira de pensar, calcular e operar a política. O Estado é a ideia reguladora dessa forma de pensamento, dessa intervenção, do processo estatístico; ele comanda a razão governamental” (MENEZES, 2008, p. 98). Em suma, o Estado não é o poder, mas é um meio eficiente pelo qual ele se manifesta em suas dimensões de “gestão dos comportamentos humanos”: uma atualização conceitual e operacional que certamente Jeremy Bentham não foi capaz de teorizar sobre seu panóptico - concebido por Foucault como uma das melhores metáforas para o exercício do poder na modernidade.

Questão 04. o poder é uma prática social constituída historicamente. São formas díspares, heterogêneas, em constante transformação. Ele (o poder) está por toda parte e provoca ações e uma relação flutuante, não estando em uma instituição nem em ninguém, daí sua “capilaridade”: ele se encontra não exatamente na mão de um soberano, mas nas relações sociais existentes, sendo ações sobre ações. Questão 05. O termo governantabilidade é um neologismo criado pelo filósofo francês como uma forma de conceituar a maneira pela qual os governos, ao longo da história, organizaram o(s) comportamento (s)/ condutas humanas, a partir de diversos mecanismos engendrados no âmbito das relações de poder.

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exercício do poder no próprio corpo social. O interesse da genealogia do poder de Foucault reside, portanto, na compreensão “de sua forma capilar de existir, o ponto onde o poder chega ao mais fino grão dos indivíduos, toca seus corpos e insere-se em suas ações e atitudes, seus discursos, os processos de aprendizagem e suas vidas cotidianas”.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Bibliografia BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Trad. De Flório de angelis. Bauru, Edipro, 1997. CARVALHO, Diego A. M. O martírio no sol poente: das agruras (e)(i)migratórias à formação de milícias ultranacionalistas no contexto do pós- guerra no Brasil – o caso Shindo-Renmei (1868 – 1956). Tese de Doutorado. Goiânia: PPGH-UFG, 2017. DANNER, Fernando. Biopolítica e liberalismo: a crítica da racionalidade política em michel foucault. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. 2011 DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. ÉVRARD, Franck. Michel Foucault Et I’Histoire du Sujet en Occident. Paris: Bertrand-Lacoste, 1995. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: O nascimento das Prisões. Petrópolis: Vozes, 1975. MENEZES, Leandro Alves Martins. Uma análise da trajetória das artes de governar no pensamento de Michel Foucault. Dissertação de Mestrado (PPGH/UFG). Goiânia: 2011.

Ficha técnica Direção: Laís Bodanzky Produção e roteiro: Luiz Bolognesi Adaptação da obra de: Austregésilo Carrano Bueno Gênero: Drama Música: André Abujamra & Pena Schimidt Idioma: Português Ano de lançamento: 2001

A08  Michel Foucault: e a crítica ao panoptismo

Sinopse Bicho de Sete Cabeças é um drama brasileiro, de 2000, dirigido por Laís Bodanzky e com roteiro de Luiz Bolognesi. A obra embasada no livro autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, Canto dos Malditos, conta a história de Neto (Rodrigo Santoro), um jovem que é internado em um hospital psiquiátrico após seu pai descobrir um cigarro de maconha em seu casaco. Nesse local, Neto é submetido a situações abusivas. Além de abordar a questão dos abusos feitos pelos hospitais psiquiátricos, o filme também retrata a questão das drogas, a relação entre pai e filho e as consequências geradas na estrutura da família.

Fonte: Wikimedia commons

#DicaCine Filosofi

Exercícios de Fixação 01. O que seria o princípio jurídico de retribuição da pena? 02. O que foi o panóptico? 03. Do que se trata a obra Vigiar e Punir: O nascimento das prisões (1975), de Michel Foucault?

04. O que é o poder para Foucault? 05. O que significa o conceito de “governantabilidade” em Foucault?

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Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares 01. (Enem MEC) O edifício é circular. Os apartamentos dos prisioneiros ocupam a circunferência. Você pode chamá-los, se quiser, de celas. O apartamento do inspetor ocupa o centro; você pode chamá-lo, se quiser de alojamento do inspetor. A moral reformada; a saúde preservada; a indústria revigorada; a instrução difundida; os encargos públicos aliviados; a economia assentada, como deve ser, sobre uma rocha; o nó górdio da Lei sobre os Pobres não cortado, mas desfeito – tudo por uma simples ideia de arquitetura!

03. Foucault, em “Vigiar e Punir”, faz uma reflexão importante sobre os mecanismos de disciplina. Considere os itens abaixo. I.

exclusivo das prisões e, sim, permeava várias instituições, como as fábricas, exércitos, hospitais e escolas. II.

A08  Michel Foucault: e a crítica ao panoptismo

02. (FCC) Com fundamento no ensinamento de Michel Foucault sobre panoptismo, é correto afirmar: a) A localização GPS inserida em fotos de pessoas tiradas de celulares juntamente ao reconhecimento facial automatizado permite um controle de deslocamento constante e invisível dessas pessoas, porém não é um exemplo de panóptico por não se poder visualizar quem o exerce. b) A indefinição do ponto de vigilância, de quem vigia e de quem aplicará eventual sanção normalizadora é considerada uma falha no sistema panóptico e exige correção, por via de procedimento de exame. c) Há distinção entre panoptismo e sistema panóptico, sendo que este último apenas pode ser operado via instâncias disciplinadoras oficiais do Estado, como as escolas e prisões. d) O monitoramento eletrônico de presos, via colocação de tornozeleiras eletrônicas com SIM Cards, é exemplo de panoptismo, cuja função de vigilância é exercida com auxílio de um software de georrastreamento e) A arquitetura panóptica refere-se unicamente a estruturas físicas de edifícios (prisões, escolas, hospitais etc.), não se cogitando que sistemas de informação sejam arquitetados para operar em panoptismo.

72

A disciplina não pode se identificar com uma instituição nem com um aparelho, mas com uma sociedade disciplinar.

BENTHAM, J. O panóptico. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

Essa é a proposta de um sistema conhecido como panóptico, um modelo que mostra o poder da disciplina nas sociedades contemporâneas, exercido preferencialmente por mecanismos a) religiosos, que se constituem como um olho divino controlador que tudo vê. b) ideológicos, que estabelecem limites pela alienação, impedindo a visão da dominação sofrida. c) repressivos, que perpetuam as relações de dominação entre os homens por meio da tortura física. d) sutis, que adestram os corpos no espaço-tempo por meio do olhar como instrumento de controle. e) consensuais, que pactuam acordos com base na compreensão dos benefícios gerais de se ter as próprias ações controladas.

Foucault notou que o controle disciplinar não era

III.

É pela disciplina que as relações de poder se tornam mais facilmente observáveis, pois é por meio da disciplina que se estabelecem as relações.

IV.

A prisão é o final previsível da passagem por instituições pela qual a sociedade acredita impedir a delinquência, como os abrigos e medidas socioeducativas.

A alternativa com a indicação correta dos itens que melhor representam o pensamento de Foucault é: a) I e II b) I e III c) I, II e III d) II e IV e) I, II, III, IV 04. O filósofo e teórico social Michel Foucault (1926-1984) dedica sua obra Vigiar e Punir − (1999) para o entendimento das formas de controle social externas e internas. Segundo o autor, a construção do sujeito dócil, útil e submisso à ordem estabelecida é possível apenas por meio de processos “disciplinadores”, nos quais o corpo e a mente do sujeito são moldados de acordo com o que se pede no meio social. Para entender esse fenômeno, Foucault voltou-se para a observação de instituições disciplinadoras, como a escola e os quartéis, onde os indivíduos que ali permanecem vivem sob o controle da instituição. Podemos concluir que, para Foucault, controle social é: a) a forma de controlar a reprodução biológica de um grupo social. b) a forma de estabelecer critérios em relação à reprodução humana em países superpopulosos. c) um conjunto entre formas externas e internas de intervenção no comportamento do sujeito desviante. d) um conjunto de regras que limita a interação entre indivíduos de classes e estratos diferentes em sociedades estamentais.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Assinale, portanto, a alternativa INCORRETA: a) A disciplina-bloco se estabeleceu com o esquema moderno do panóptico, uma vez que a disciplina-mecanismo, desenvolvida no período medieval para resolver o problema da peste, estava em falência. b) A disciplina-bloco se refere à instituição fechada, totalmente voltada para funções negativas, proibitivas e impeditivas. c) A disciplina-mecanismo é um dispositivo funcional que visa otimizar e tornar mais rápido o exercício do poder, mediante o modelo panóptico. d) É possível dizer que houve um processo de mudança da disciplina-bloco para a disciplina-mecanismo, passando pelas etapas de inversão funcional das disciplinas, ramificação dos mecanismos e estatização dos mecanismos disciplinares. e) A disciplina-mecanismo tem como estratégia a vigilância múltipla, inter-relacionada e contínua, pela qual o indivíduo deve saber que é vigiado e, por consequência, o poder se exerce automaticamente. 06. (FCC) A expressão microfísica do poder, cunhada pelo filósofo Michel Foucault, designa: a) as mudanças de regime político nos períodos revolucionários. b) uma rede de dispositivos ou mecanismos de poder que se disseminam por toda a estrutura social. c) a forma repressiva da dominação capitalista. d) o Estado como instância coercitiva que origina e fundamenta todo tipo de poder social. e) o aparato de pompa envolvido no espetáculo das punições durante o Antigo Regime. 07. A lei não nasce da natureza, junto das fontes frequentadas pelos primeiros pastores: a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror: a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. FOUCAULT. M. Aula de 14 de janeiro de 1976. In. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes. 1999

O filósofo Michel Foucault (séc. XX) inova ao pensar a política e a lei em relação ao poder e à organização social. Com base na reflexão de Foucault, a finalidade das leis na organização das sociedades modernas é a) combater ações violentas na guerra entre as nações. b) coagir e servir para refrear a agressividade humana. c) criar limites entre a guerra e a paz praticadas entre os indivíduos de uma mesma nação.

d) estabelecer princípios éticos que regulamentam as ações bélicas entre países inimigos. e) organizar as relações de poder na sociedade e entre os Estados. 08. Leia a citação a seguir e responda ao que se pede O que está em questão é o que rege os enunciados e a forma como estes se regem entre si para constituir um conjunto de proposições aceitáveis cientificamente e, consequentemente, susceptíveis de serem verificadas ou infirmadas por procedimentos científicos. Em suma, problema de regime, de política do enunciado científico. FOUCAULT, M. Microfísica do Poder, cap. I - tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Graal, 2007.

Segundo o francês Michel Foucault, a) o esforço moderno por conhecer a loucura promoveu a superação da cisão entre sujeito e objeto. b) o conflito moderno entre razão e experiência deve ser superado através do retorno genealógico ao discurso originário dos primeiros filósofos. c) o sujeito não é fruto de uma construção histórica, mas sim a origem perene dos saberes determinados historicamente. d) os saberes próprios de uma época são autônomos frente às relações de poder que nela se desdobram. e) as relações de poder regulam a produção do saber. 09. (Unioeste) Os estudos realizados por Michel Foucault (19261984) apresentam interfaces que corroboram para estudos em diversas áreas de conhecimento, entre as quais a Filosofia, Ciências Sociais, Pedagogia, Psiquiatria, Medicina e Direito. Em 1975, Foucault publicou a obra Vigiar e Punir: história da violência das prisões, na qual propunha uma nova concepção de poder, a qual abandonava alguns postulados que marcaram a posição tradicional da esquerda do período. Sobre a concepção de poder foucaultiana, é CORRETO afirmar. a) Só exerce poder quem o possui, por se tratar de um privilégio adquirido pela classe dominante que detém o poder econômico. b) O poder está centralizado na figura do Estado e está localizado no próprio aparelho de Estado, que é o instrumento privilegiado do poder. c) Todo poder está subordinado a um modo de produção e a uma infraestrutura, pois o modo como a vida econômica é organizada determina a política. d) O poder tem como essência dividir os que possuem poder (classe dominante) daqueles que não têm poder (classe dos dominados). e) O poder não remete diretamente a uma estrutura política, ao uso da força ou a uma classe dominante: as relações de poder são móveis e só podem existir quando os sujeitos são livres e há possibilidade de resistência. 73

A08  Michel Foucault: e a crítica ao panoptismo

05. (Puc PR) Michel Foucault, em Vigiar e punir, apresenta duas imagens de disciplina: a disciplina-bloco e a disciplina-mecanismo. Para mostrar como esses dois modelos se desenvolveram, o autor destaca dois casos: o medieval da peste e o moderno do panóptico.


FRENTE

A

FILOSOFIA

Exercícios de A p rof u n dam en t o 01. “Seria mais correto chamarmos o Iluminismo de ideologia re-

04. Segundo Montesquieu, “(…) A corrupção dos governantes qua-

volucionária... Pois o Iluminismo implicava a abolição da ordem

se sempre começa com a corrupção dos seus princípios.” De

política e social vigente na maior parte da Europa”

que forma Montesquieu compreendia a Democracia e de que

Eric J. Hobsbawm. A Era das Revoluções, 1789-1848.

Descreva a ordem política e social que o Iluminismo criticava e pretendia destruir.

maneira ela se degenera? 05. Leia o texto a seguir e responda o que se pede: Mais do que inúmeros planos de reformas em todos os cam-

02. (UFRJ) “Dois acontecimentos que fizeram época marcam o iní-

pos da vida social, os utilitaristas como Bentham tinham algo

cio e o fim do absolutismo clássico. Seu ponto de partida foi a

a mais a oferecer: um cálculo para a felicidade. Chamado de

guerra civil religiosa. O Estado moderno ergue-se desses confli-

cálculo felicífico, esse cálculo permitiria saber quando e quanto

tos religiosos mediante lutas penosas, e só alcançou sua forma

a quantidade de felicidade numa dada situação, ou instituição,

e fisionomia plenas ao superá-los. Outra guerra civil – a Revolução Francesa – preparou seu fim brusco.”

superava a infelicidade. Teria permitido, aliás, se fosse possível

Fonte: KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise. Rio de Janeiro, Eduerj & Contraponto, 1999, p. 19.

dando de Bentham e de seu pai, James Mill, também filósofo

Identifique dois aspectos que caracterizavam o exercício da au-

dade deve ser levada em conta. E a entrada da qualidade na

toridade pelo Estado Absolutista.

equação subverte, pois quando se pensa em termos qualitati-

03. (Uerj RJ) A liberdade política é esta tranquilidade de espírito que provém da opinião que cada um tem sobre a sua segurança; e para que se tenha esta liberdade é preciso que o governo seja tal que um cidadão não possa temer outro cidadão. Quando o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade. Tampouco existe liberdade se o poder de julgar não for separado do poder legislativo e do executivo.

utilitarista, há mais na felicidade do que quantidade: a quali-

vos sobre a razão de viver a questão da escolha ética se impõe, e muito facilmente se pode concluir que em vários momentos se deve escolher não a felicidade, mas o dever. Mais ainda, uma felicidade tola não é de modo nenhum preferível a um estado de infelicidade consciente. (BRITO, Ari Tank. O Liberalismo Clássico. In: FRATESCHI. Yara; MELO, Rurion; RAMOS, Flamarion C. (Org.). Manual de Filosofia política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. p.138):

De acordo com o texto, explique em que medida a concepção Montesquieu. O Espírito das leis, 1748.

O direito eleitoral ampliado, a dominação do parlamento, a debilidade do governo, a insignificância do presidente e a prática do referendo não respondem nem ao caráter, nem à missão que o Estado alemão deve cumprir tanto no presente como no futuro próximo.

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realizá-lo. Como concluiu posteriormente Stuart Mill, discor-

mentalista de Stuart Mill se diferencia para a proposta do cálculo felicítico de Jeremy Bentham. 06. Na obra Sobre a Liberdade, Stuart Mill afirma: O único fim pelo qual se permite que a humanidade, coletiva e individualmente, interfira com a liberdade de ação de qualquer

Jornal Kölnishe Zeitung, 04/08/1919. Adaptado de REIS FILHO, Daniel Aarão (org.). História do século XX. Volume 2. Rio de Janeiro: Record, 2002.

um dos seus números é a autoproteção. Que o único propósito

Os trechos apresentam aspectos do pensamento político em duas épocas distintas: o liberalismo proposto por Montesquieu no século XVIII e a crise do liberalismo na crítica de um jornal alemão na recém-estabelecida República de Weimar.

quer membro de uma comunidade civilizada, contra a vontade

Identifique um dos princípios liberais expresso no texto de Montesquieu e a opinião no texto do jornal alemão que contradiz esse princípio. Apresente, também, um fator que explique a crise do liberalismo no período entre as duas grandes guerras.

Disserte sobre a noção de liberdade de expressão, expondo o que o filósofo utilitarista entende por essa questão, sobretudo quando afirma que a publicização de falsas opiniões seriam benéficas/produtivas.

pelo qual o poder pode ser exercido de forma justa sobre qualdele, é o de previnir danos aos outros. (MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. São Paulo: Hedra, 2010, p.73)


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

07. (Unesp SP)

Anotações

O biopoder, sem a menor dúvida, foi elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, que só pode ser garantido à custa da inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos. Para o biopoder, que tem a tarefa de se encarregar da vida, sua necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos exige distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar. Uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida. (Michel Foucault. História da sexualidade, vol. 1, 1988. Adaptado.)

Texto 2 Uma pesquisa anunciada recentemente na Suíça revelou que, com um simples exame de sangue, será possível detectar a Síndrome de Down (ou trissomia do 21) no feto. O aval ao novo teste pré-natal foi dado recentemente pela Agência Nacional de Produtos Terapêuticos da Suíça, em meio à controvérsia de que o exame poderia levar a um aumento no número de abortos. Os testes estarão disponíveis no mercado ainda neste mês. Apesar de a legislação de países europeus como Espanha, Itália e Alemanha garantir autonomia à mulher na escolha sobre o aborto, o tema não passou isento de discussão. A Federação Internacional das Organizações de Síndrome de Down, que reúne 30 associações de 16 países, entrou com uma representação na Corte Europeia de Direitos Humanos pedindo a proibição do teste. (http://zerohora.clicrbs.com.br, 22.08.2012. Adaptado.)

Com base no texto de Foucault, comente o papel da ciência como possível instrumento de eugenia e normalização, relacionando-o com as implicações biopolíticas do lançamento do teste pré-natal. 08. (Enem MEC) A lei não nasce da natureza, junto das fontes frequentadas pelos primeiros pastores; a lei nasce das batalhas reais, das vitórias, dos massacres, das conquistas que têm sua data e seus heróis de horror: a lei nasce das cidades incendiadas, das terras devastadas; ela nasce com os famosos inocentes que agonizam no dia que está amanhecendo. FOUCAULT, Michel. Aula de 14 de janeiro de 1976. In: Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

O filósofo Michel Foucault (séc. XX) inova ao pensar a política e a lei em relação ao poder e à organização social. Com base na reflexão de Foucault, a finalidade das leis na organização das sociedades modernas seria...

Questão 01. O fragmento textual é uma alusão ao Antigo Regime - que vigorava em boa parte da Europa na Idade Moderna. O Ancien Régime caracterizava-se, no campo político, pela monarquia absolutista, baseada na teoria do direito divino dos reis (Jean Bodin); no campo social, pela sociedade de privilégios, baseada no nascimento. O movimento iluminista tinha como bandeira a luta pela igualdade e pela liberdade - elementos para se alcançar o progresso humano por meio do desenvolvimento científico e da razão. Questão 02. O Estado ampliou sua autoridade por meio do monopólio do poder militar e da justiça, da formação de uma burocracia estatal e da interferência na economia. O candidato poderá ainda, apoiado na moderna historiografia sobre o assunto, afirmar que o Estado do Antigo Regime baseava sua autoridade nas contínuas negociações com os poderes locais (como a aristocracia e as Comunas Urbanas), e no exercício da justiça como forma de garantir a ordem social e política. Questão 03. Um dos princípios liberais: a divisão dos poderes em três, como forma de não concentrar o poder nas mãos de apenas uma pessoa. A opinião do jornal que contradiz o princípio: “a dominação do parlamento, a debilidade do governo e a insignificância do presidente”. Com a crise econômica que abateu o mundo no período entreguerras, o sistema liberal entrou em colapso, com especial destaque para a Crise de 1929, nos EUA. Em países europeus já debilitados pela Primeira Guerra, como a Alemanha, a crise econômica fortaleceu a formação de regimes de extrema direita, como o Fascismo. Questão 04. Montesquieu compreendia a democracia como uma forma de governo republicano, uma vez que a característica de ambos era a concentração do poder soberano ao povo em seu conjunto ou parte. No entanto, há uma diferença para o uso helênico do conceito. Segundo o filósofo, é o povo- em sentido abrangente [e não uma classe de “eupátridas modernos”; de aristocratas] - que constitui o poder soberano sendo súdito ao mesmo tempo. A lei é o imperativo que regula as ações desse governo que atende à vontade da maioria a partir do sufrágio. Assim como Aristóteles, quando se refere a Politeia e sua degeneração, Montesquieu pondera acerca dos limites da Democracia. Uma vez corrompido os princípios basilares que sustentam o edifício de um modelo de governo, as consequências podem ser inimagináveis. No caso da democracia, ela é extremamente danosa se relacionarmos a outros modelos. Essa corrupção aludida refere-se ao ponto em que os indivíduos violam o princípio da isonomia, isto é, da igualdade de todos perante a lei, especialmente quando não reconhecem a autoridade daquele que por sufrágio foi escolhido para governar. Em outras palavras, ao tornarem o princípio da igualdade apenas no que tange à forma jurídica de direitos e deveres, os indivíduos - ao contrário - a usam como uma diluição da hierarquia e distinção de funções no exercício da governança. E assim inicia-se a degeneração. Questão 05. Embora Stuart Mill possa ser enquadrado na concepção mentalista, ele se difere de Bentham na medida em que defende uma abordagem qualitativa do bem-estar. Seria necessário, para ele, destacar-se a existência de diferentes prazeres a serem devidamente considerados, de outros prazeres que - se não são direitos naturais - são manifestações que deveriam ser enobrecidos em relação a todos os demais. A saber, a felicidade, o respeito e a liberdade. Questão 06. Na obra em questão, o filosofo Stuart Mill argumenta que a liberdade de discurso é uma condição necessária para o progresso intelectual e social. Ele afirma que permitir que uma pessoa expresse publicamente uma opinião falsa é produtivo por dois motivos: primeiro, porque os indivíduos são propensos a abandonar crenças errôneas se eles se envolvem em uma discussão aberta de ideias; segundo, porque ao forçar os outros indivíduos a re-examinar e reafirmar suas crenças no processo do debate, estas são protegidas da depauperação em um mero dogma. Questão 07. A resposta para essa pergunta pode incorporar uma abordagem tanto do ponto de vista das ciências humanas, quanto das ciências da natureza, em especial, a biologia. [Resposta do ponto de vista da disciplina de Biologia. No primeiro caso, entende-se que o desenvolvimento da ciência e da tecnologia em campos como a Biologia e a Medicina está, em parte, a serviço do modo de produção dominante. Assim, partes dos avanços no combate às doenças e no controle populacional estão em consonância com os interesses das empresas capitalistas, a exemplo do papel exercido pelas companhias farmacêuticas e hospitais privados em várias partes do mundo. O avanço da pesquisa no campo da genética pode ser utilizado na prevenção de doenças, mas também de forma pouco ética e preconceituosa, a exemplo do teste que detecta a Síndrome de Down de modo precoce. No segundo caso, a detecção precoce da síndrome de Down poderia aumentar o número de abortos provocados, constituindo-se num ato relacionado à eugenia. O aborto provocado poderia impedir o desenvolvimento de um ser humano que não é culpado de ser portador de uma anomalia cromossômica. Questão 08. a lei é uma das formas/dispositivos que se vale o poder- sobretudo Estatal - de se operar a sociedade. Embora o poder não se restrinja ao Estado, sendo antes uma expressão “capilar” quanto à sua atuação, seguramente é âmbito de um estatuto da legalidade e da legitimidade (conferidas pelo Estado) que ele se manifesta em maior proporção. A lei, portanto, é o dispositivo-mor desse processo a se expressar como um processo homogêneo, coercitivo e portador de um “discurso de interdição”.

75

FRENTE A  Ex ercícios de Aprof undamento

Texto 1


FRENTE

A A persistência da memória. Autor: Salvador Dali.


Fonte: Wikimedia Commons

FILOSOFIA Por falar nisso O século XIX marca um importante período de transição para a história das ideias. Em igual medida, para a própria modernidade. A crise do iluminismo já havia sido pressentida por Immanuel Kant. Ainda que evocando o homem europeu ao ideal de esclarecimento (aufklärung), o filósofo prussiano já chamava a atenção para os riscos dos processos revolucionários. Na esteira do oitocentista, Marx inaugura um neohegelianismo a fazer frente com uma concepção de ciência burguesa não atenta às demandas das classes dominadas pelo processo capitalista. Nietzche, ainda que denegando tanto o marxismo quanto o hegelianismo, será sensível à ideia de que a “religião é o ópio do povo”, operando uma profunda crítica à sociedade massificada e ao império da metafísica. Freud, a seu turno, opera a virada para o século XX inaugurando a categoria de inconsciente, sepultando o domínio da razão - instância fundante da modernidade. Nas próximas aulas, estudaremos os seguintes temas

A09 A10 A11 A12

A ética deontológica de Immanuel Kant e a questão do esclarecimento..78 Karl Marx e o materialismo histórico .......................................................... 86 Friedrich Nietzsche e o crepúsculo dos ídolos ............................................ 94 Freud, a teoria do insconsciente e o “mal-estar na civilização” ............... 103


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A09

ASSUNTOS ABORDADOS n A ética deontológica de Immanuel

Kant e a questão do esclarecimento n A deontologia kantiana n Resposta à questão: O que é o esclarecimento?

A ÉTICA DEONTOLÓGICA DE IMMANUEL KANT E A QUESTÃO DO ESCLARECIMENTO Não raro, Immanuel Kant é tido como o principal filósofo da Era Moderna. Em hipótese histórica, ele é aquele que marca o último bastião do pensamento moderno a prenunciar as importantes transições/rupturas intelectuais do século XIX. Antecipando em vida as Guerras Napoleônicas (1804-1815), Kant afirmou-se no Século das Luzes, ainda que configurado naquilo que ficou conhecido como iluminismo tardio. Seu pensamento, contudo, não somente reflete a aura do esclarecimento, como reconfigura (e encerra) toda uma forma de se fazer filosofia na modernidade. No campo epistemológico, operou aquilo que ele próprio denominou de “revolução copernicana na filosofia”. Tal qual Nicolau Copérnico e seu heliocentrismo, Kant propunha uma inversão da metodologia predominante, em que não mais o sujeito se regulará pela natureza do objeto, mas este que regular-se-á pela natureza do sujeito do conhecimento. Ao operar uma crítica à tradição filosófica, explicitando notadamente os limites do racionalismo de René Descartes e Gottfried Wilhelm Leibniz (onde imperava a forma de raciocínio dedutivo) e a tradição empírica inglesa de David Hume, John Locke e George Berkeley (que valoriza a indução), Kant projetou uma espécie de “metafísica segura”. Isto é, uma filosofia que fosse capaz de fundamentar qualquer tipo de saber em nível transcendental. A esse respeito, afirma no seguinte trecho do prefácio da segunda edição da Crítica à Razão Pura (KANT, 2001):

Fonte: Wikimedia Commons

Figura 01 - Retrato de Immanuel Kant. Autor: Johann Gottlieb Becker (1720-1782)

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O destino não foi até hoje tão favorável que permitisse trilhar o caminho seguro da ciência à metafísica, conhecimento especulativo da razão completamente à parte e que se eleva inteiramente acima das lições da experiência, mediante simples conceitos (não, como a matemática, aplicando os conceitos intuição), devendo, portanto, a razão ser discípula de si própria; é, porém, a mais antiga de todas as ciências e subsistiria mesmo que as restantes fossem totalmente subvertidas pela voragem de uma barbárie, que tudo aniquilasse. Na verdade, a razão sente-se constantemente embaraçada, mesmo quando quer conhecer a priori (como tem a pretensão) as leis que a mais comum experiência confirma. É preciso arrepiar caminho inúmeras vezes, ao descobrir-se que a via não conduz aonde se deseja; e no que respeita ao acordo dos seus adeptos, relativamente às suas / afirmações, encontra-se a metafísica ainda tão longe de o alcançar, que mais parece um terreiro de luta, propriamente destinado a exercitar forças e onde nenhum lutador pôde jamais assenhorear-se de qualquer posição, por mais insignificante, nem fundar sobre as suas vitórias conquista duradoura. Não há dúvida, pois, que até hoje o seu método tem sido um mero tateio e, o que é pior, um tateio apenas entre simples conceitos.

Para ele, a metafísica diz respeito a um conhecimento especulativo, teórico, que transcende a experiência. Trata-se de um conhecimento que procura seu objeto fora da experiência mediante simples conceitos, sem se referir a objetos: a metafísica é um conhecimento puramente conceitual, desvinculado da experiência ou intuição. Não é o objeto que determina o sujeito, mas o sujeito que determina o objeto. As categorias (importante instrumento kantiano no criticismo) seriam conceitos puros, a priori, anteriores à experiência. Os objetos só se tornam conhecíveis na medida em que o sujeito cognoscível reveste-se das condições de o conhecê-lo.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Na dialética transcendental, Kant examina, enfim, a possibilidade dos “juízos sintéticos a priori” na metafísica. Aquilo que o filósofo prussiano nominava de “a coisa em si” (alma, Deus, essência do cosmos etc.) - tudo o que não nos é dado em experiência alguma, é questionado por Kant em virtude da razão. Em outras palavras, como a razão forma esses objetos? Kant afirma, por meio das antinomias, que a razão pura é capaz de demonstrar a finitude e a infinitude do universo, a liberdade, o determinismo, a existência e a não existência de Deus. Ao ultrapassar os limites da experiência, aplica arbitrariamente as categorias e pretende conhecer o incognoscível. Se a metafísica é impossível como ciência - já que busca o transcendente, ela se afirma como a mais pura filosofia. Não obstante, para Kant, a razão não se trataria apenas de um instrumento de cognoscência. O sujeito não é somente aquele que conhece, mas sobretudo aquele que age. E age segundo o livre-arbítrio, isto é, a liberdade de escolha. Não significa um agir de modo aleatório, desmedido, sem leis ou princípios. A razão, para ele, também possui uma dimensão prática e é responsável por estabelecer leis necessárias ao agir humano. O edifício da filosofia kantiana encontra sua completude nas obras Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Julgamento (1790). Na primeira, Kant transpõe a forma como lidou com o conhecimento no trato com a moralidade. Na segunda, dedicou-se a filosofar sobre nossas faculdades mentais que não conferem conhecimento factual e nem nos impelem à ação, propriamente dita: o julgamento estético (do Belo e Sublime) e o julgamento teleológico (Construção de Coisas Como Tendo “Fins”). Esses tipos de julgamento, segundo ele, conectados com nossos julgamentos morais e empíricos, unificariam seu sistema.

SAIBA MAIS

Fonte: Wikimedia Commons

A09  A ética deontológica de Immanuel Kant e a questão do esclarecimento

Immanuel Kant foi um filósofo prussiano, nascido em Königsberg (atual Kaliningrado), no dia 22 de abril de 1724. Pertencente a uma família de artesãos e protestantes (luterana), teve uma educação em uma escola pietista - que frequentou graças à intervenção de um pastor. Estudou filosofia, física e matemática na Universidade de Königsberg. Após ter passado um período lecionando geografia, começou a ministrar aulas de ciências naturais. Em 1770 foi nomeado para uma cátedra da Universidade, da qual nunca se licenciou. A propósito, seus biógrafos narram que ele sequer saiu da cidade de Königsberg durante toda sua vida, preferindo levar uma vida monótona, pontual e dedicada aos estudos e produção filosófica. Em seus quase 80 anos de vida (morreu em 4 de fevereiro de 1804), Kant foi um autor muito profícuo. Destacam-se entre suas obras: n Pensamentos sobre o Verdadeiro Valor das Forças Vivas (1747); n História Geral da Natureza ou Teoria do Céu (1755) n Monodologia Física (1756); n Meditações sobre o Optimismo (1759); n A Falsa Subtileza das Quatro Figuras Silogísticas (1762); n Dissertação sobre a Forma e os Princípios do Mundo Sensível e Inteligível (1770); n Crítica da Razão Pura (1781); n Prolegômenos para Toda Metafísica Futura que se Apresente como Ciência (1783); n Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita (1784); n Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785); n Primeiros Princípios Metafísicos da Ciência Natural (1786); n Crítica da Razão Prática (1788); n Crítica do Julgamento (1790); n A Religião Dentro dos Limites da Mera Razão (1793); n A Paz Perpétua (1795); n Doutrina do Direito (1796); n A Metafísica da Moral (1797); n Princípios Metafísicos da Doutrina do Direito (1797); n Antropologia do Ponto de Vista Pragmático (1798).

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Filosofia

A deontologia kantiana Somadas as obras “críticas”, uma das que em particular ganha relevo para aqueles que estudam a filosofia moral é A Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785). É nesse livro que Kant delimita as funções da ação moralmente fundamentada e apresenta conceitos como o Imperativo categórico e a “Boa vontade”, estruturando sua ética deontológica. São designadas por éticas deontológicas (do grego dei, “dever”) todas as teorias morais segundo as quais certas ações devem ou não ser realizadas, independentemente das consequências que resultem da sua realização ou não realização. São, portanto, éticas centradas na noção de dever. A deontologia kantiana é estruturada a partir de três premissas: 1) Só a boa vontade é boa em si mesma; 2) Uma boa vontade é uma vontade que age por dever; 3) A ação por dever é a ação praticada por puro respeito à lei em si mesma. Kant distingue ação por dever (ação moral) de ação conforme ao dever (ação legal). O que determina a moralidade da ação não é o propósito a atingir, mas o querer que a origina. A razão prática - isto é, aquela que visa ao agir - não é boa em si mesma: ela atua segundo imperativos. A doutrina dos imperativos é um importante ponto na deontologia kantiana. Para o filósofo, eles podem ser de duas formas: hipotéticos e categóricos. O imperativo hipotético prescreve que uma ação é boa porque é um meio necessário para conseguir algum propósito ou fim. Trata-se de algo particular e contingente. O imperativo categórico prescreve que uma ação é boa se for realizada por puro respeito à representação da lei em si mesma. Trata-se, portanto, de algo universal e necessário. Por outro lado, o imperativo categórico age apenas segundo uma máxima tal que possa, ao mesmo tempo, querer que ela se torne lei universal. Em Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785), Kant explicita bem a distinção:

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Todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéticos representam a necessidade prática de uma ação possível como meio de alcançar qualquer coisa que se quer ou que é possível que se queira. O imperativo categórico é aquele que nos representa uma ação como objetivamente necessária por si mesma, sem relação com qualquer outra finalidade. No caso da ação ser apenas boa como meio para qualquer outra coisa, o imperativo que ordena é hipotético; se a ação é boa em si, então o imperativo é categórico.

Imperativo Categórico - Ordena que uma ação seja realizada pelo seu valor intrínseco. - Ordena que se cumpra o dever sempre por dever, ou seja, ordena que a vontade cumpra o dever exclusivamente motivada pelo que é correto fazer. - Ordena que se aja por dever. - Ordena que sejamos imparciais e desinteressados, agindo segundo máximas que todos podem adotar. - Ordena que respeitemos o valor absoluto de cada ser racional nunca o reduzindo à condição de meio que nos é útil.

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Imperativo Hipotético - O cumprimento do dever é uma ordem condicionada pelo que de satisfatório ou proveitoso pode resultar do seu cumprimento. - As ações que nele se baseiam são ações conformes ao dever, feitas ao se pensar nas consequências ou resultados de fazer o que é devido. - As ações que cumprem o dever baseadas em interesses seguem máximas que não podem ser universalizadas. - As ações conformes ao dever não respeitam absolutamente o que somos enquanto seres humanos.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

O imperativo categórico é enunciado com três diferentes fórmulas (e suas respectivas variantes). São elas: n

n

n

Lei Universal: “age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, através da tua vontade, uma lei universal.” Variante: “age como se a máxima da tua ação fosse para ser transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da natureza.” Fim em si mesmo: “age de tal forma que uses a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de qualquer outro, sempre e ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio.” Legislador Universal (ou da Autonomia): “age de tal maneira que tua vontade possa encarar a si mesma, ao mesmo tempo, como um legislador universal através de suas máximas.” Variante: “age como se fosses, através de suas máximas, sempre um membro legislador no reino universal dos fins.”

Para fugir das doutrinas utilitaristas/consequencialistas da moral, Kant propôs uma deontologia baseada nas exigências de um imperativo categórico, em que o valor moral de uma ação deveria derivar-se de sua máxima e não de suas consequências: uma forma de sistema moral que estivesse para além da subjetividade e pudesse ser aplicado universalmente. Nesse sistema, a moralidade determinaria (ou seria determinada por) uma ação em que se considerasse, sempre, os motivos do agente e não as consequências da ação promovida por ele. É o que Kant denominava por “Boa vontade” - e é absolutamente boa a vontade que age segundo uma máxima que, ao transformar-se em lei universal, não se contradiz nem derrota a si mesma.

Resposta à questão: O que é o esclarecimento? Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Tem coragem de fazer uso de seu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte

dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma condição estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida. (KANT, I. Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985)

Um ano antes da Revolução Francesa, 1783, Immanuel Kant publicou uma resposta dada à questão: “O que é esclarecimento?”. Sua formulação figura como um marco filosófico para se compreender a essência do pensamento iluminista: o Aufklãrung - o tomar o uso da razão para a autocompreensão e o governo de si [autononia]. Já no primeiro parágrafo do curto artigo, Kant afirma que o esclarecimento (Aufklãrung) seria “(…) “a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado”. O conceito de menoridade aqui se atribui à condição do indivíduo incapaz de usar seu entendimento sem ser auxiliado por outra pessoa - um sujeito heterônomo, isto é, orientado por normas que vêm de fora de sua autocompreensão: estabelecidas por outrem que faz as vias de pensar por ele. Na busca pela autonomia [esclarecimento], o indivíduo deve “ousar saber” (sapere aude) - o que demanda a virtude da coragem e da proatividade (contrários à covardia e a preguiça - comportamentos que impedem o esclarecimento). O indivíduo que lança mão da livre razão se constitui como um ser autônomo, atingindo, portanto, a “maioridade” - que nada tem a ver com uma questão biológica ou cronológica. Ocorre que muitas pessoas simplesmente não desejam passar por esse estágio, já que é muito cômodo a condição de menoridade. Diz Kant (1985): É tão cômodo ser menor. Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor espiritual que por mim tem consciência, um método que por mim decide a respeito de minha dieta etc., então não preciso esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos negócios desagradáveis.

Para isso, Kant afirma que não somente é preciso superar a preguiça e a covardia, como se estimular um ambiente de livre pensar, no qual a razão exerce um fato preponderante para questionar as ordens estabelecidas e as imposições de pensamentos e condutas sem que as pessoas possam meditar a respeito de suas validades (institucionais e filosóficas). Assim, de acordo com o filósofo, o uso livre da razão seria um exercício não somente intelectual, quanto existencial e político - pois levaria o homem a repensar sua condição no mundo e na sociedade em que se insere, transformando a si e o ambiente a sua volta. Ao contrário, caso o indivíduo insista em sua menoridade, abrindo mão do uso da razão em busca de seu Aufklãrung, sua vida passaria a ser gerida por outros indivíduos, manipulando-o - ainda que com seu próprio consentimento- e impedindo-o de pensar e se conduzir por si mesmo. 81

A09  A ética deontológica de Immanuel Kant e a questão do esclarecimento

Para Kant, o imperativo categórico é o único critério válido que devemos seguir para decidir se um ato é ou não moralmente permissível. Por ser assertivo, não se vincula a nenhuma particularidade, incluindo a identidade da pessoa, devendo ser aplicável a qualquer ser racional. Essa é a razão pela qual o imperativo categórico, em suas primeiras formulações, foi chamado “princípio da universabilidade”.


Filosofia

O esclarecimento, em Kant, possui uma íntima conexão com o tema da liberdade. Em lugares nos quais a liberdade não é uma premissa de governo ou sociedade, o esclarecimento é limitado. Contudo, essa liberdade não significa- em absoluto- a negação de qualquer autoridade externa ao sujeito, seja ela institucional ou intelectual. Ainda que Kant defenda uma ética deontológica para um sujeito que se autodetermina pelo uso da razão, isso não significa que o indivíduo deva se posicionar de forma a não respeitar as leis do estado, os costumes ou as instituições hierárquicas. Contudo, deve entender que esse tipo de obediência - ainda que secundada pela razão (ao qual Kant chama de “uso privado”)- não conduz ao esclarecimento; apenas permite com que o indivíduo se posicione pragmaticamente na sociedade. A esse respeito, afirma que: Seria muito prejudicial se um oficial, a quem seu superior deu uma ordem, quisesse pôr-se a raciocinar em voz alta no serviço a respeito da conveniência ou da utilidade dessa ordem. Deve obedecer. Mas razoavelmente, não se lhe pode impedir, enquanto homem versado no assunto, fazer observações sobre os erros do serviço militar, e expor essas observações ao seu público para que as julgue (...). Do mesmo modo também o sacerdote está obrigado a fazer seu sermão aos discípulos do catecismo ou à comunidade, de conformidade com o credo da Igreja a que serve, pois foi admitido com essa condição. Mas, enquanto sábio, tem completa liberdade, e até mesmo o dever, de dar conhecimento ao público de todas as suas ideias cuidadosamente examinadas e bem-intencionadas, sobre o que há de errôneo naquele credo, e expor suas propostas no sentido da melhor instituição da essência da religião e da Igreja.

Immanuel Kant propõe dois usos para a razão: 1) “uso privado”; 2) “uso público”. Para o pensador prussiano, o primeiro não é inteiramente livre, já que demanda obediência a instituições que impendem o exercício pleno da liberdade de pensar. No entanto, ele é necessário - como afirmado - para a coesão social/institucional. Dessa forma, é salutar que se obedeça, mas é necessário que também se faça o uso público da razão, pois somente dessa forma o esclarecimento é alcançado, ou seja, um homem pode pessoalmente e, por algum tempo apenas, adiar esse esclarecimento, mas “renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade”. O segundo (o “uso público”) é, portanto, não somente desejável, mas aquele único a poder conduzir a vontade humana ao Aufklãrung. Por uso público, Kant entende como o nome dado para a utilização: A09  A ética deontológica de Immanuel Kant e a questão do esclarecimento

(…) de sua própria razão aquele que qualquer homem, enquanto sábio, faz dela diante do grande público do mundo letrado. Denomino uso privado aquele que o sábio pode fazer de sua razão em um certo cargo público ou função a ele confiado.

Nesse contexto, Kant constrói uma noção de direito individual por intermédio do uso público da razão, uma vez que esse expediente é aquele que possibilita o uso da razão livre, por consequência, o esclarecimento. Reiterando, para o filósofo, o esclarecimento é uma expressão (e consequência da liberdade). E vice e versa. Assim, o direito de livre pensar se impõe como uma regra necessária à emancipação do indivíduo e da sociedade. Portanto, somente um público esclarecido poderia ter a liberdade de agir. E, antes disso, seria necessária uma verdadeira reforma na maneira de pensar da sociedade, não somente um processo revolucionário que se limitaria apenas a “(…) substituir preconceitos antigos por novos.” Em suas palavras, “(…) Uma revolução poderá talvez realizar a queda do despotismo pessoal ou da opressão ávida de lucros ou de domínios, porém nunca produzirá a verdadeira reforma do modo de pensar. Apenas novos preconceitos, assim como os velhos servirão como cintas para conduzir a grande massa destituída de pensamento”. Eis um dos pilares da crítica Kantiana à Revolução Francesa. Ao final do texto, Kant estabelece uma série de colocações. A saber, o questionamento se estávamos vivendo uma época esclarecida, em virtude das revoluções liberais (no campo político e das ideias) que se avizinhavam ou se consolidavam. Para ele, a resposta é negativa, mas alentadora: vivia-se uma época de esclarecimento. Era um 82


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

processo, portanto; não uma consolidação. Para o filósofo, faltava muito ainda para que os homens, dadas àquelas circunstâncias, estivessem em condições de já terem coletivamente atingido o esclarecimento. Dessa forma, somente teríamos “(….) claros indícios de que agora lhes foi aberto o campo no qual podem lançar-se livremente a trabalhar e tornarem progressivamente menores os obstáculos ao esclarecimento geral ou à saída deles, homens, de sua menoridade, da qual são culpados”. Bibliografia KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985. ______. Crítica da razão pura. Tradução de Manuela Pinto Dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas de Alexandre Fradique Morujão. 5a ed. Coimbra: Fundação Calouste, 2001. ______. Crítica da razão prática. São Paulo: Marins Fontes, 2008. ______. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Discurso/ Barcarolla, 2009. RAMOS, Flamarion Caldeira. Moralidade, Sociedade Civil e Estado: Kant e Hegel. In: FRATESCHI, Y; MELO, R. RAMOS, F. Manual de Filosofia Política: para os cursos de Teoria do Estado & Ciência Política e Ciências Sociais. São Paulo: Editora Saraiva, 2012

Q. 01. Resposta esperada: Assim como Nicolau Copérnico e seu heliocentrismo, Kant propunha uma inversão da metodologia predominante, em que não mais o sujeito se regulará pela natureza do objeto, mas este que regular-se-á pela natureza do sujeito do conhecimento. Isso ficou conhecido, dado aos problemas resolvidos e à ampliação teórica sugerida, como a “revolução copernicana na filosofia”. Q. 02. Resposta esperada: Segundo Kant, a metafísica refere-se a um conhecimento especulativo, teórico, que transcende a experiência. Trata-se de um conhecimento que procura seu objeto fora da experiência mediante simples conceitos, sem se referir a objetos: a metafísica é um conhecimento puramente conceitual, desvinculado da experiência ou intuição. Q. 03. Resposta esperada: São designadas por éticas deontológicas (do grego dei, “dever”) todas as teorias morais, segundo as quais certas ações devem ou não ser realizadas, independentemente das consequências que resultem da sua realização ou não realização. São, portanto, éticas centradas na noção de dever. Q. 04. Resposta esperada: o imperativo categórico é o único critério válido que devemos seguir para decidir se um ato é ou não moralmente permissível. Por ser assertivo, não se vincula a nenhuma particularidade, incluindo a identidade da pessoa, devendo ser aplicável a qualquer ser racional. Essa é a razão pela qual o imperativo categórico, em suas primeiras formulações, foi chamado “princípio da universabilidade”.

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Ficha técnica: Título: Feitiço do Tempo (Original: Groundhog Day) Direção: Harold Ramis Roteiro: Harold Ramis e Danny Rubin Gênero: Comédia dramática / Fantasia Idioma: Inglês País de lançamento: Estados Unidos Ano: 1993

Fonte: Wikimedia Commons

Feitiço do Tempo (Groundhog Day) é uma obra filmográfica dirigida e roterizada por Harold Ramis. A narrativa se passa na cidade de Punxsutawney, na Pensilvânia, onde o metereologista Phil Connors é escalado para a cobertura do tradicional Dia da Marmota (2 de fevereiro). Por conta de uma armadilha temporal, o presunçoso e arrogante Connors é aprisionado num ciclo que se repete, que o faz reviver o mesmo dia infindamente. Embora de início ele se valha dessa condição para agir de forma irresponsável, logo o tédio o leva a repensar suas ações. Após concluir que não poderia mais continuar a levar a vida egoísta e hedonista que cultivava, toma uma decisão “kantiana”: suas novas ações refletem um imperativo categórico, pelo qual uma pessoa age sem interesse pessoal para tornar a vida das pessoas ao seu redor melhor. Através de sua nova perspectiva de vida, consegue escapar o ciclo repetitivo em que se viu aprisionado.

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Exercícios de Fixação 01. O que foi a “revolução copernicana” aludida à filosofia de Kant: 02. Como Kant define a Metafísica: 03. O que é uma deontologia?

04. Para Kant, o que é um imperativo categórico? 05. O que seria, para Kant, um sujeito heterônomo, portanto, esclarecido? Quais devem ser as condições para que ele atinja o esclarecimento?

Q. 05. Resposta esperada: Um sujeito heterônomo é aquele orientado por normas que vêm de fora de sua autocompreensão: estabelecidas por outrem que faz as vias de pensar por ele. Na busca pela autonomia [esclarecimento], o indivíduo deve “ousar saber” (sapere aude) - o que demanda a virtude da coragem e da proatividade (contrários à covardia e à preguiça- comportamentos que impedem o esclarecimento). O indivíduo que lança mão da livre razão constitui-se como um ser autônomo, atingindo, portanto, a “maioridade” - que nada tem a ver com uma questão biológica ou cronológica.

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física eres. proecesnão nada ado. onsdo e mitinando do e

Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares 01. (UFSM) A necessidade de conviver em grupo fez o homem desenvolver estratégias adaptativas diversas. Darwin, num estudo sobre a evolução e as emoções, mostrou que o reconhecimento de emoções primárias, como raiva e medo, teve um papel central na sobrevivência. Estudos antigos e recentes têm mostrado que a moralidade ou comportamento moral está associado a outros tipos de emoções, como a vergonha, a culpa, a compaixão e a empatia. Há, no entanto, teorias éticas que afirmam que as ações boas devem ser motivadas exclusivamente pelo dever e não por impulsos ou emoções. Essa teoria é a ética a) deontológica ou kantiana. b) das virtudes. c) utilitarista. d) contratualista. e) teológica.

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02. (Enem MEC) Uma pessoa vê-se forçada pela necessidade a pedir dinheiro emprestado. Sabe muito bem que não poderá pagar, mas vê também que não lhe emprestarão nada se não prometer firmemente pagar em prazo determinado. Sente a tentação de fazer a promessa; mas tem ainda consciência bastante para perguntar a si mesma: não é proibido e contrário ao dever livrar-se de apuros desta maneira? Admitindo que se decida a fazê-lo, a sua máxima de ação seria: quando julgo estar em apuros de dinheiro, vou pedi-lo emprestado e prometo pagá-lo, embora saiba que tal nunca sucederá.

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KANT, I. Fundamentação da metafísica dos costumes. São Paulo: Abril Cultural, 1980.

De acordo com a moral kantiana, a “falsa promessa de pagamento” representada no texto a) assegura que a ação seja aceita por todos a partir da livre discussão participativa. b) garante que os efeitos das ações não destruam a possibilidade da vida futura na Terra. c) opõe-se ao princípio de que toda ação do homem possa valer como norma universal. d) materializa-se no entendimento de que os fins da ação humana podem justificar os meios. e) permite que a ação individual produza a mais ampla felicidade para as pessoas envolvidas. 03. (Unesp SP) A fonte do conceito de autonomia da arte é o pensamento estético de Kant. Praticamente tudo o que fazemos na vida é o oposto da apreciação estética, pois praticamente tudo o que fazemos serve para alguma coisa, ainda que apenas para satisfazer um desejo. Enquanto objeto de apreciação estética, uma coisa não obedece

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a essa razão instrumental: enquanto tal, ela não serve para nada, ela vale por si. As hierarquias que entram em jogo nas coisas que obedecem à razão instrumental, isto é, nas coisas de que nos servimos, não entram em jogo nas obras de arte tomadas enquanto tais. Sendo assim, a luta contra a autonomia da arte tem por fim submeter também a arte à razão instrumental, isto é, tem por fim recusar também à arte a dimensão em virtude da qual, sem servir para nada, ela vale por si. Trata-se, em suma, da luta pelo empobrecimento do mundo. (Antônio Cícero. “A autonomia da arte”. Folha de São Paulo, 13.12.2008. Adaptado.)

De acordo com a análise do autor, a) a racionalidade instrumental, sob o ponto de vista da filosofia de Kant, fornece os fundamentos para a apreciação estética. b) um mundo empobrecido seria aquele em que ocorre o esvaziamento do campo estético de suas qualidades intrínsecas. c) a transformação da arte em espetáculo da indústria cultural é um critério adequado para a avaliação de sua condição autônoma. d) o critério mais adequado para a apreciação estética consiste em sua validação pelo gosto médio do público consumidor. e) a autonomia dos diversos tipos de obra de arte está prioritariamente subordinada à sua valorização como produto no mercado. 04. (Enem MEC) Esclarecimento é a saída do homem de sua menoridade, da qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento. A preguiça e a covardia são as causas pelas quais uma tão grande parte dos homens, depois que a natureza de há muito os libertou de uma condição estranha, continuem, no entanto, de bom grado menores durante toda a vida. (KANT, I. Resposta à pergunta: o que é esclarecimento? Petrópolis: Vozes, 1985)

Kant destaca no texto o conceito de Esclarecimento, fundamental para a compreensão do contexto filosófico da Modernidade. Esclarecimento, no sentido empregado por Kant, representa


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expressão da maioridade. b) o exercício da racionalidade como pressuposto menor diante das verdades eternas. c) a imposição de verdades matemáticas, com caráter objetivo, de forma heterônoma. d) a compreensão de verdades religiosas que libertam o homem da falta de entendimento. e) a emancipação da subjetividade humana de ideologias produzidas pela própria razão. 05. (Uel PR) O desenvolvimento não é um mecanismo cego que age por si. O padrão de progresso dominante descreve a trajetória da sociedade contemporânea em busca dos fins tidos como desejáveis, fins que os modelos de produção e de consumo expressam. É preciso, portanto, rediscutir os sentidos. Nos marcos do que se entende predominantemente por desenvolvimento, aceita-se rever as quantidades (menos energia, menos água, mais eficiência, mais tecnologia), mas pouco as qualidades: que desenvolvimento, para que e para quem? (LEROY, Jean Pierre. Encruzilhadas do Desenvolvimento. O Impacto sobre o meio ambiente. Le Monde Diplomatique Brasil. jul. 2008, p.9.)

Tendo como referência a relação entre desenvolvimento e progresso presente no texto, é correto afirmar que, em Kant, tal relação, contida no conceito de Aufklärung (Esclarecimento), expressa: a) A tematização do desenvolvimento sob a égide da lógica de produção capitalista. b) A segmentação do desenvolvimento tecnocientífico nas diversas especialidades. c) A ampliação do uso público da razão para que se desenvolvam sujeitos autônomos. d) O desenvolvimento que se alcança no âmbito técnico e material das sociedades. e) O desenvolvimento dos pressupostos científicos na resolução dos problemas da filosofia prática. 06. (Uel PR) Leia o texto a seguir. Na Primeira Secção da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant analisa dois conceitos fundamentais de sua teoria moral: o conceito de vontade boa e o de imperativo categórico. Esses dois conceitos traduzem as duas condições básicas do dever: o seu aspecto objetivo, a lei moral, e o seu aspecto subjetivo, o acatamento da lei pela subjetividade livre, como condição necessária e suficiente da ação. (DUTRA, D. V. Kant e Habermas: a reformulação discursiva da moral kantiana. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. p. 29.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre a teoria moral kantiana, é correto afirmar:

a) A vontade boa, enquanto condição do dever, consiste em respeitar a lei moral, tendo como motivo da ação a simples conformidade à lei. b) O imperativo categórico incorre na contingência de um querer arbitrário cuja intencionalidade determina subjetivamente o valor moral da ação. c) Para que possa ser qualificada do ponto de vista moral, uma ação deve ter como condição necessária e suficiente uma vontade condicionada por interesses e inclinações sensíveis. d) A razão é capaz de guiar a vontade como meio para a satisfação de todas as necessidades e assim realizar seu verdadeiro destino prático: a felicidade. e) A razão, quando se torna livre das condições subjetivas que a coagem, é, em si, necessariamente conforme a vontade e somente por ela suficientemente determinada. 07. (UEMA) No texto Que é “Esclarecimento”? (1783), o que significa, conforme Kant, a saída do homem da menoridade da qual ele mesmo é culpado? a) O uso da razão crítica, exceto quando se tratar de doutrinas religiosas. b) A capacidade de aceitar passivamente a autoridade científica ou política. c) A liberdade para executar desejos e impulsos conforme a natureza instintiva do homem. d) A coragem de ser autônomo, rejeitando, portanto, qualquer condição tutelar. e) O alcance da idade apropriada para uso da racionalidade subjetiva. 08. (UFU MG) Autonomia da vontade é aquela sua propriedade graças à qual ela é para si mesma a sua lei (independentemente da natureza dos objetos do querer). O princípio da autonomia é, portanto: não escolher senão de modo a que as máximas da escolha estejam incluídas simultaneamente, no querer mesmo, como lei universal. (KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 1986, p. 85)

De acordo com a doutrina ética de Kant: a) O Imperativo Categórico não se relaciona com a matéria da ação e com o que deve resultar dela, mas com a forma e o princípio de que ela mesma deriva. b) O Imperativo Categórico é um cânone que nos leva a agir por inclinação, vale dizer, tendo por objetivo a satisfação de paixões subjetivas. c) Inclinação é a independência da faculdade de apetição das sensações, que representa aspectos objetivos baseados em um julgamento universal. d) A boa vontade deve ser utilizada para satisfazer os desejos pessoais do homem. Trata-se de fundamento determinante do agir, para a satisfação das inclinações.

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a) a reivindicação de autonomia da capacidade racional como


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A10

ASSUNTOS ABORDADOS n Karl Marx e o materialismo his-

tórico

n O materialismo histórico dialético e a influência hegeliana

KARL MARX E O MATERIALISMO HISTÓRICO “O processo de vida material condiciona o processo de vida social, política e individual em geral. Não é a consciência dos homens que lhes determina o ser, mas pelo contrário, é o seu ser social que lhes determina a consciência.” (Karl Marx)

O filósofo alemão Karl Marx é, sem sombra de dúvidas, um dos pensadores mais controversos da história contemporânea. Possivelmente, de todos os tempos. Parte disso deve-se ao conjunto de suas ideias no campo da economia política ter servido para as experiências do socialismo real no século XX. Independente das interpretações que se fazem de suas consequências, nenhum outro filósofo ganhou tamanha projeção ao ter seu corpo teórico sido apropriado - de forma distorcida ou não - por um regime político ou modelo de sociedade. Mesmo após a queda do muro de Berlim (marco simbólico para os limites tanto da Guerra Fria, quanto para a derrocada do Bloco Socialista majoritário), o pensamento marxista não foi deixado de lado. Ao contrário, ele se reoxigena nas experiências de um socialismo moderado a partir dos anos 1990.

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Mas é sobretudo no campo epistemológico que o marxismo sobreviveu com fôlego, principalmente acadêmico. Embora não mais majoritário quanto fora nos círculos intelectuais das áreas de humanidades até os anos 1980, ainda assim o materialismo histórico dialético possui força teórica proeminente, influindo sobre diversas áreas, tais como a sociologia, economia, história, filosofia, psicologia, literatura etc. Marx, portanto, é um ponto de inflexão inegável para a produção acadêmica; seja para superá-lo ou denegá-lo, seja enquanto ponto de partida ou como recurso epistemológico a se somar com outras abordagens sobre o/do conhecimento. Assim, iremos apresentar o marxismo para além de sua precisa contribuição para a economia política. Isto é, procuraremos, a partir de agora, compreender sua estrutura teórico-metodológica aplicada às mais variadas áreas e aos campos do saber. O método de Marx é conhecido em sua completude como Materialismo Histórico Dialético. Em sentido geral, trata-se de um método que procura compreender a gênese e o desenvolvimento das transformações sociais sem recorrer a uma causa pretérita da metafísica/não natural. Afirma-se, portanto, que o início e o desenvolvimento de tudo o que existe depende da matéria e da natureza, em permanente movimento e transformação. Em síntese, o Materialismo Histórico rejeita a existência de um princípio espiritual que liga toda a realidade à matéria e a suas modificações. Dessa forma, admite que “(…) o modo de produção da vida material condiciona o conjunto da vida social, política e espiritual”. É um método de compreensão e análise da história, das lutas e das evoluções econômicas e políticas. A história (enquanto processo)- para Marx- é um processo de (re)criação e satisfação das necessidades humanas, sendo precisamente aquilo que distingue os homens dos animais, uma vez que para estes últimos suas necessidades são fixas e imutáveis; diferente das humanas, portanto. Assim sendo, quando pretendemos estudar a forma com que as sociedades humanas se desenvolveram, é necessário lançar um olhar empírico sobre os processos reais, concretos, da vida social. Os seres humanos não podem ser considerados em estado de isolamento, mas antes enquanto seres inseridos em um processo de evolução real, a que estão submetidos em determinadas condições materiais e históricas.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

De acordo com Tom Bottomore (2001, p.254-5), o Materialismo Histórico compreende três dimensões: 1) A ontológica que afirma a dependência unilateral do ser social em relação ao ser biológico (e, de modo geral, ao ser físico) e a emergência do primeiro a partir do segundo; 2) A epistemológica - que afirma a existência independente e a atuação “transfactual” de pelo menos alguns dos objetos do pensamento científico; 3) A do materialismo prático - que afirma o papel constitutivo da ação transformadora do homem na reprodução e na transformação das formas sociais. Na doutrina marxista, essas três dimensões não existem em separado, mas dialogam entre si em complementaridade. Não obstante, importa nos deter na dimensão prática do materialismo, cuja perspectiva fundamenta-se na centralidade da práxis humana, isto é, na produção e reprodução da vida sociocultural e, por consequência, no significado do “trabalho” enquanto atividade que transforma a natureza e media as relações sociais. De acordo com Marx (2002), “(…) toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem ao misticismo encontram sua solução racional na práxis humana e na compreensão dessa práxis”.

os indivíduos e os agrupamentos estabeleceram o sentido do trabalho e de como ele se distribuiu/dividiu no seio das coletividades. Marx parte da premissa de que as condições econômicas definem os modelos sociais em circunstâncias historicamente determinadas. Assim, cada época histórica se constitui - na perspectiva materialista - por: 1) um tipo específico de produção econômica; 2) uma organização de trabalho; 3) um controle de propriedade. Compreender a gênese e a dinâmica de interrelação entre essas instâncias expressa o objetivo do método materialista enquanto abordagem epistemológica dos processos histórico-sociais. Assim, os seres humanos não deveriam ser considerados num isolamento, mas num processo de evolução real a que estão submetidos em determinadas condições materiais e históricas (desenvolvimento das relações sociais). Compreender as ações humanas no transcurso histórico pressupõe lançar o olhar para a concretude de suas relações.

O trabalho, portanto, é uma categoria central para o marxismo (materialismo histórico). Ele não é somente uma atividade de transformação e recriação da natureza, mas a expressão concreta das ações humanas. Trata-se de uma ação deliberada sobre o meio, caracterizada e dirigida pela inteligência e capacidade de abstração, sendo, portanto, o elemento que diferencia o homem dos outros animais. Para Marx (1985, p. 49), o homem, ao atuar “(…) sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza”.

A descoberta da concepção materialista da história, ou melhor, a continuação e extensão consistentes do materialismo no domínio do fenômeno social, eliminou dois defeitos principais das teorias históricas anteriores. Em primeiro lugar, eles, na melhor das hipóteses, examinaram apenas os motivos ideológicos da atividade histórica dos seres humanos, sem compreender as leis objetivas que governam o desenvolvimento do sistema de relações sociais. Em segundo lugar, as teorias anteriores não abrangeram as atividades das massas da população, enquanto o materialismo histórico tornou possível pela primeira vez o estudo com a precisão das ciências naturais as condições sociais da vida das massas e as mudanças nessas condições”.

A centralidade dessa categoria conceitual para Marx está em afirmar que o estudo sobre as sociedades é marcado pela forma como cada época estabeleceu justamente esse processo de (re) criação sobre a natureza. Isto é, a forma como

A importância (e originalidade) do método marxista é bem expressa nas palavras do teórico e revolucionário socialista, Vladmir Lênin (1974, p.318)

A10  Karl Marx e o materialismo histó rico

Karl Marx foi um teórico e revolucionário socialista. Nascido em Tréveris, na Prússia, em 5 de maio de 1818, logo tornou-se um apátrida, passando grande parte de sua vida em Londres, no Reino Unido. Ele pertencia a uma família de origem judaica de classe média, convertida ao luteranismo por força das restrições impostas à presença de judeus no serviço público. Seu pai, Herschel Marx (1777–1838), era descendente de uma família de rabinos. Marx iniciou seus estudos em 1839 - ano que em que eclodiram diversas revoluções em países europeus, no Liceu Friedrich Wilhelm, em Tréveris. Anos mais tarde, ingressou na Universidade de Bonn para cursar Direito, sendo transferido, posteriormente, para a Universidade de Berlim. Destaca-se que foi nessa universidade que tomou contato com a obra de Georg Wilhelm Friedrich Hegel, especialmente porque o filósofo havia sido professor e reitor da instituição. Embora tenha ingressado no Clube dos Doutores e aprofundado nos estudos do hegelianismo, especialmente após o contato que teve com seu líder, o filósofo Bruno Bauer, Marx se distancia do Direito, vindo a dedicar-se inteiramente à Filosofia. Posteriormente, como sua obra testemunha, opera uma ruptura/superação, também, com o pensamento hegeliano. Nesse intercurso, ingressa no Doutorado na Universidade de Berlim em Filosofia, vindo a defender, em 1841, uma tese intitulada Diferenças da filosofia da natureza em Demócrito e Epicuro. Marx morre em Londres, no dia 14 de março de 1883.

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Filosofia

O materialismo histórico dialético e a influência hegeliana Embora Marx tenha concluído seu doutoramento acerca da filosofia pré-socrática, o período em que esteve na Universidade de Berlim foi fundamental para seu processo formativo, sobretudo pelo contato que o filósofo alemão teve com o pensamento de Hegel. O idealismo alemão é o ponto de partida e ressignificação dentro (e para) o materialismo histórico, e é dele que sua última designação é tomada emprestada: a abordagem dialética. Para o filósofo Hegel, nada no mundo é permanente, estático: tudo está em constante “vir-a-ser”. Essa tese não é de todo original, já que o filósofo pré-socrático Heráclito de Éfeso já fizera alusão a essa noção hegeliana. Não obstante, Hegel vai além ao afirmar que esse processo do devir é justamente a história. A historicidade é concebida enquanto história do progresso da consciência de liberdade. As formas concretas da organização social deveriam ser guiadas pelos imperativos da consciência humana geral - aquela que é comum a todos os indivíduos e manifesta na ideia de Deus. A realidade (que pode ser percebida e racionalizada) é determinada pelas ideias dos homens, que concebem novas ideias de como deve ser a vida social em função dos conflitos inerentes à condição de coerção e liberdade que os homens se impõem frente à sua condição natural. Segundo Hegel, o homem liberta-se de seu estado natural (“selvageria”) através da racionalização (reflexão filosófica) - que permite

a ele se perceber como o real sujeito da história. Hegel denomina esse processo de “espiritualização”. De Hegel, também é caro o uso da dialética. O termo é proveniente do grego διαλεκτική (dialéctica) e designa um método de diálogo cujo foco é a contraposição ou contradição de ideias que levam a outras. Em tradução literal, o termo significa “caminho entre as ideias”. No uso hegeliano, ela consiste em um modo esquemático de explicação da realidade que se baseia em oposições e em choques entre situações diversas ou opostas: o método dialético busca elementos conflitantes entre dois ou mais fatos para explicar uma nova situação decorrente desse conflito. Para Hegel, o real é racional e o racional é real. Logo, a razão- como instrumento por excelência para a atividade filosófica - é capaz de descrever a realidade, refletindo sobre ela. A dialética seria o modo pelo qual essa reflexão opera, não no sentido de apenas interpretá-la, mas de compreendê-la. Contudo, para além de um método, ela é - em si - aquilo que descreve o movimento da história. Em outras palavras, a história seria, também, uma progressão dialética compreendida dialeticamente. Hegel afirma a existência de três momentos do processo dialético: a tese (aquilo que se afirma no devir histórico), a antítese (a contradição decorrente dessa afirmação, mediante novas contingências) e a síntese (o movimento final dessa etapa, que posteriormente se converte em nova tese). A síntese é tomada por Hegel como a etapa do “espírito”. A história caminharia em sentido desse “espírito absoluto” e cada época histórica seria uma “fase” em que se manifesta o “espírito do mundo”.

A10  Karl Marx e o materialismo histórico

Georg Wilhelm Friedrich Hegel é considerado um dos mais importantes e influentes pensadores da história da filosofia. Nascido em Stuttgart (27 de agosto de 1770), pertence a uma corrente denominada de Idealismo Alemão: um movimento filosófico marcado por intensas discussões filosóficas entre pensadores de cultura alemã (Prússia) do final do século XVIII e início do século XIX. Em conjunto com os filósofos Friedrich Schelling e Friedrich Hölderlin, escreveu a obra O Mais Antigo Programa de Sistema do Idealismo Alemão - um tratado a dialogar com a Crítica da Razão Pura, de Immanuel Kant. Posteriormente, Hegel desenvolveu um sistema filosófico que denominou Idealismo Absoluto: uma filosofia capaz de compreender aquilo que se mostrara impossível na metafísica kantiana: o saber “absoluto”. Hegel influenciou um grande número de pensadores, com destaque para Freud e Marx. Embora crítico do Iluminismo, era fascinado pelas obras de Spinoza, Kant e Rousseau, assim como pela Revolução Francesa. Muitos consideram que ele representa o ápice do Idealismo Alemão. A primeira e a mais importante das maiores obras de Hegel é sua Fenomenologia do Espírito. Em vida, o pensador ainda viu publicada a Enciclopédia das Ciências Filosóficas, a Ciência da Lógica, e os Princípios (Elementos da Filosofia do Direito). Várias outras obras sobre filosofia da história, religião, estética e história da filosofia foram compiladas a partir de anotações feitas por seus estudantes, tendo sido publicadas postumamente. Hegel faleceu em Berlim, no dia 14 de novembro de 1831.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Após a morte de George Hegel em 1831, dois grupos de neo-hegelianos se formaram: os “jovens hegelianos” (hegelianos de esquerda) e os “hegelianos de direita”. Os primeiros foram formados por um grupo de estudantes e jovens professores na Universidade Humboldt de Berlim. Eles se opunham aos hegelianos de direita - os quais detinham as cátedras do departamento e outras posições de prestígio na universidade e no governo. Em suma, esses últimos acreditavam que as evoluções dialéticas haviam sido completadas, sendo a Prússia a culminação de todo o desenvolvimento social para a época. A prova disso era seu rico e extenso sistema de serviços civis, universidades, industrialização e alta empregabilidade. Já os jovens hegelianos defendiam que ainda haveria a necessidade de mudanças dialéticas mais extensas e que a sociedade da Prússia da época estava longe de expressar esse ideal, já que era possível observar em sua vasta extensão territorial, focos de pobreza além de um governo pautado em censuras e discriminação religiosa contra os não-luteranos. Os neo-hegelianos (tanto de direita, quanto de esquerda) coexistiam com uma corrente dominante nos círculos franceses, desenvolvida no séc. XVIII, advinda do enciclopedismo. Para essa corrente, as concepções e ideias dos homens são reflexos/produtos das circunstâncias sociais em que estão inseridos. Em outras palavras, seriam as circunstâncias materiais a produzirem a consciência dos homens. Os filósofos ligados a essa corrente foram identificados como “materialistas orgânicos”. De acordo com eles, ainda, a realidade social gerava a ignorância nos homens. Para modificar essa situação, seria necessária uma força maior capaz de romper com o mecanismo do obscurantismo da condição humana

(LÖWY, 2010). Já para os neo-hegelianos, a mudança da realidade social demandava uma luta crítica contra as formas de pensamento dominantes: analisar, refletir e criticar a ordem vigente já seriam suficientes para gerar uma força de transformação necessária das práticas sociais daquele contexto. Durante um certo tempo, Karl Marx se considerou um hegeliano de esquerda. Não obstante, após sua leitura do pensamento de Ludwig Feuerbach, operou uma revisão crítica sobre os preceitos/conceitos hegelianos. Feuerbach havia atraído a atenção de diversos intelectuais de sua época com seu materialismo. Nesse sentido, destaca-se uma de suas obras seminais- Das Wesen des Christentums – A essência do cristianismo (1831). Essa publicação teve forte impacto sobre Marx, Engels e os jovens hegelianismo. Nesse trabalho, critica o posicionamento “religiosista” de Hegel, afirmando que a religião nada mais seria do que uma projeção dos desejos humanos e uma forma de alienação, quanto ao uso da dialética (como método e essência do devir histórico). Segundo o filósofo, a concepção lógica da dialética hegeliana estaria “de cabeça para baixo”, uma vez que apresenta o homem como um atributo do pensamento, ao invés do pensamento como um atributo do homem. Feuerbach sustentava o entendimento hegeliano da história enquanto progressão dialética, porém desconsiderando a dimensão “espiritual” da filosofia idealista. O “Espírito do Mundo” não é um sujeito ou essência, antes uma mera abstração do idealismo. A origem da realidade social não reside nas ideias, na consciência que os homens têm dela, mas sim na ação concreta (material) dos homens, portanto, no trabalho humano. A existência material precede qualquer pensamento; inexiste possibilidade de pensamento sem existência concreta. A partir dessa reorientação/crítica, Marx irá inverter

Ludwig Feurbach. Autor: August Weger (1823-1982)

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Ludwig Andreas Feuerbach foi um filósofo alemão nascido em Landshut, em 28 de julho de 1804. Feuerbach é reconhecido pelo ateísmo humanista e pela influência que seu pensamento exerce sobre Karl Marx. Ele iniciou seus estudos em Teologia, abandonando-os, posteriormente, para se tornar aluno do filósofo Hegel, em Berlim. Em 1828, passou a estudar ciências naturais em Erlangen e dois anos depois publicou, anonimamente, o primeiro livro, Pensamentos sobre Morte e Imortalidade. Nesse trabalho, atacou a ideia da imortalidade, sustentando que, após a morte, as qualidades humanas são absorvidas pela natureza. Entre suas principais obras, destacam-se: Abelardo e Heloísa (1834), Piere Bayle (1838) e Sobre Filosofia e Cristianismo (1839). Na primeira parte desta última obra, que influenciou Marx, Feuerbach discutiu a “essência verdadeira ou antropológica da religião”. Na segunda parte, analisou a “essência falsa ou teológica”. De acordo com essa filosofia, a religião é uma forma de alienação que projeta os conceitos do ideal humano em um ser supremo. Ao atacar religiosos ortodoxos entre 1848 e 1849, anos de turbulência política, foi considerado um herói por muitos revolucionários. O posicionamento filosófico de Feuerbach representa uma transição entre o Idealismo Alemão, de uma parte e, de outra, o materialismo histórico de Marx e o materialismo cientificista da segunda metade do século XIX. Tal posicionamento é caracterizado pela inflexão antropológica que o filósofo imprimiu a algumas categorias herdadas de Hegel.

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Filosofia

em definitivo a dialética hegeliana, uma vez que- inspirado em Feuerbach- coloca a materialidade (e não as ideias) na gênese do movimento histórico que constitui o mundo. Sem dúvidas, o aporte teórico de Ludwig Feuerbach foi determinante para as críticas marxistas tanto à religião (“ópio do povo”), como para a ressignificação do hegelianismo dentro da filosofia de Marx. De um hegeliano de esquerda, o filósofo alemão converte-se em uma síntese entre alguns desdobramentos dessa corrente somada à perspectiva francesa do materialismo orgânico e, como depreendido, principalmente das formulações da filosofia da Feuerbach. Disso nasce seu próprio materialismo histórico dialético. Para Marx (2012, p.40) “(...) os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. É notório a forma como o hegelianismo, a seu tempo, compreendia o movimento da história. Para Hegel, a história não era a mera acumulação ou justaposição de fatos acontecidos no tempo, mas, antes, o resultado de um processo determinado pelas contradições. Cada sociedade seria única e particular, determinada pelo seu processo histórico. Dessa forma, os indivíduos teriam um papel importantíssimo no seio de uma sociedade, já que suas ações movimentam o devir da história. Essa noção é cara para Marx, uma vez que sob a perspectiva do materialismo histórico, todos os fenômenos sociais e econômicos devem ser analisados dentro de sua historicidade- do contexto da vida social e material produzida pelos homens. Os indivíduos são o que produzem e dependem das condições materiais de sua produção, as quais não são fatores absolutos, permanentes e imutáveis.

Não existem, para Marx, leis absolutas e eternas, tudo pode ser transformado com a ação do homem. Um exemplo muito objetivo dessa formulação diz respeito à noção de moral - tomada pelas concepções essencialistas como algo possível de ser desvelado em seu caráter absoluto e imutável. Marx afirma que a moral nada mais seria do que uma das expressões da consciência humana que, por sua vez, são reflexos das relações sociais estabelecidas no mundo do trabalho. Nesse caso, conforme variam os modos de produção, mudam não só as normas morais, mas também os valores políticos, estéticos etc. O materialismo histórico dialético rompeu com as polaridades entre o idealismo e o enciclopedismo francês, na mesma medida que reorientou o neo-hegelianismo, a partir da leitura (crítica) de Feuerbach. Ao superar o materialismo mecânico, traz a dialética enquanto instrumento de compreensão, mas também de transformação social - a começar pela consciência dos homens. Há para os marxistas, uma superação objetiva do hegelianismo (e de todas as correntes predecessoras ou concomitantes) na medida em que demonstra que a consciência e suas práticas sociais são processos simultâneos (a mudança de uma implica a necessária modificação da outra). E a partir do momento em que as ideias se modificam, transforma-se a realidade social num processo contínuo de superação, ocasionado, sobretudo, pela revolução das classes dominadas (a antítese dialética). Assim, para Marx, não basta simplesmente interpretar o mundo. É preciso, também, modificá-lo. Em suas palavras (Idem, p.44), “(…) os filósofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porém, o que importa é transformá-lo”. Segundo Löwy (2010, p.19), Marx inverte radicalmente o hegelianismo quando introduz a necessidade da “(…) transformação revolucionária das práticas sociais”.

Vladimir Ilyich Ulyanov (Lênin) nasceu em Simbirsk (Rússia) em 22 de abril de 1870. Foi um teórico e revolucionário socialista que serviu como chefe de governo nas principais transições políticas da Rússia. Sob seu comando, seu país de origem e, em seguida, a União Soviética, tornaram-se um Estado socialista unipartidário, governado pelo Partido Comunista. Embora identificado com o marxismo, suas teorias políticas tornaram-se desdobramentos (ramificações), conhecidos como “leninismo”. Lênin pertenceu a uma das duas tradições básicas do marxismo: o “marxismo soviético” que se diferenciava do “marxismo ocidental”, de nomes como Lukács e Ernst Bloch, Karl Korsch e Gramsci. Fundamentalmente, a distinção entre essas duas correntes originava-se da interpretação dada ao materialismo histórico. De acordo com os “ocidentais”, a filosofia bolchevique de Lenin era essencialmente determinista - fato que resultou na ascensão de Stálin, sistematizando sua filosofia naquilo que ficou compreendido como “marxismo-leninismo”. Em termos filosóficos, ambas ainda diferiam-se pela ênfase dada a cada aspecto do pensamento marxista. De um lado, os leninistas evidenciam seu apreço pelo estudo da dialética hegeliana a partir de um ponto de vista não-idealista (tal qual Marx). Já os “ocidentais”, centravam suas reflexões e desdobramentos teóricos a partir do estudo dos Manuscritos Econômico-Filosóficos, de Marx.

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A10  Karl Marx e o materialismo histórico

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Pintura de Lenin na frente do Instituto Smolny. Artista: Isaak Brodski.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Bibliografia BOTTOMORE, Tom. Dicionário do pensamento Marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LENIN, Vladmir I. Cuadernos Filosóficos. Buenos Aires, Ed. Estudio, 1974. LÖWY, Michael. Ideologias e ciência social: elementos para uma análise marxista. 19 ed.- São Paulo: Cortez Editora, 2010. MARX, Karl. Sobre a Questão Judaica. apud McLELLAN, David. As Ideias de Marx. Tradução de Neto, Aldo Bocchini. Editora Cultrix. São Paulo,1977 ______. O Capital: crítica da economia política. São Paulo: Nova Cultural, 1985. ______. Teses sobre Feuerbach. In: MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3. reimpr. 2. Ed. São Paulo; Martins Fontes, 2002. ______.; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. In: JINKINGS, Ivana; SADER, Emir (Orgs.). As armas da crítica: antologia do pensamento de esquerda. Tradução: Paula Almeida. São Paulo: Boitempo, 2012.

Q. 01. Resposta esperada: Em sentido geral, trata-se de um método que procura compreender a gênese e o desenvolvimento das transformações sociais em recorrer a uma causa pretérita da metafísica/não natural. Nesse sentido, afirma-se que o início e o desenvolvimento de tudo o que existe depende da matéria e da natureza, em permanente movimento e transformação. Q. 02. Resposta esperada: Materialismo corresponde à noção epistemológica que afirma que a sociedade existe somente a partir das relações materiais. Marx é materialista porque extrai das relações de trabalho a existência do social. Segundo ele, a sociedade só existe a partir das relações materiais de produção. Q. 03. Resposta esperada: A realidade (que pode ser percebida e racionalizada) é determinada pelas ideias dos homens, que concebem novas ideias de como deve ser a vida social em função dos conflitos inerentes à condição de coerção e liberdade que os homens se impõem frente à sua condição natural. Q. 04. Resposta esperada: Há duas críticas. A primeira é contra a religião, afirmando que esta consiste numa projeção dos desejos humanos e numa forma de alienação. A segunda é quanto à dialética hegeliana que, segundo Feurbach, estaria “invertida”, porque apresenta o homem como um atributo do pensamento, ao invés do pensamento como um atributo do homem.

#DicaCine Filosofi Dirigido pelo produtor haitiano (e ex-ministro da cultura de seu país), Raoul Peck, o filme narra a história de vida de Karl Marx em sua juventude, no contexto de seu exílio junto à sua esposa, Jenny Marx. Em 1844, em Paris, ele conhece Friedrich Engels, filho de um industrialista que investigou o nascimento da classe trabalhadora britânica. Do encontro do casal com Engels, nasce uma visão de mundo. Entre a censura e a repressão, os tumultos e as repressões políticas, eles lideram o movimento operário em meio à Era Moderna.

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O jovem Karl Marx

Título: O jovem Karl Marx Data de lançamento: 28 de dezembro de 2017 (Brasil) Direção: Raoul Peck Produção: Raoul Peck, Robert Guédiguian, Rémi Grellety, Nicolas Blanc Roteiro: Raoul Peck, Pascal Bonitzer, Pierre Hodgson

01. Em linhas gerais, defina o conceito de materialismo histórico dialético.

04. Qual a crítica que Feurbach fará ao idealismo hegeliano e que será apropriada por Marx?

02. Afirma-se que teoria marxista corresponde a um materialismo histórico. O que significa esse materialismo em Marx? Justifique sua resposta.

05. De que forma, a partir do materialismo histórico, Marx explica a noção de “moral”?

A10  Karl Marx e o materialismo histó rico

Exercícios de Fixação

03. De que forma Hegel define que a realidade pode ser determinada? Q. 05. Resposta esperada: Em Marx, a moral nada mais seria do que uma das expressões da consciência humana que, por sua vez, são reflexos das relações sociais estabelecidas no mundo do trabalho. Nesse caso, conforme variam os modos de produção, mudam não só as normas morais, mas também os valores políticos, estéticos etc.

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Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares 01. (UFSJ) Para Caio Prado Jr., A observação de Engels: “O núcleo que encerra as verdadeiras descobertas de Hegel… o método dialético na sua forma simples em que é a única forma justa do desenvolvimento do pensamento”, revela a) a herança da dialética hegeliana assumida por Karl Marx. b) a filosofia de Marx com sua herança escolástica partilhada por Hegel. c) a perspectiva dialética do Homem, que permite considerá-lo capaz de conceituar termos científicos no aspecto ou feição do Universo. d) o tema central da filosofia, a saber, o desenvolvimento da dialética do ser humano, fator determinante do existencialismo contemporâneo.

a) a sociedade capitalista transforma todas as formas de consciência em representações ilusórias da realidade conforme os interesses da classe dominante. b) ao mesmo tempo que Marx critica a ideologia ele a considera um elemento fundamental no processo de emancipação da classe trabalhadora. c) a superação da cegueira coletiva imposta pela ideologia é um produto do esforço individual principalmente dos indivíduos da classe dominante. d) a frase “o trabalho dignifica o homem” parte de uma noção genérica e abstrata de trabalho, mascarando as reais condições do trabalho alienado no modo de produção capitalista.

02. (IF PI) O filósofo alemão Karl Marx, na busca de um caminho epistemológico que fundamentasse o conhecimento para a interpretação da realidade histórica e social que o desafiava no século XIX, superou posições que diziam respeito à dialética hegeliana e conferiu-lhe um caráter materialista e histórico.

04. (UEG GO) A reflexão sobre o poder político acompanhou a história da filosofia desde a antiguidade e o pensamento sociológico desde seu surgimento na sociedade moderna. Nos últimos anos vêm ocorrendo diversas manifestações, protestos e revoltas em todo mundo. A esse respeito, com base no pensamento filosófico e sociológico, verifica-se que a) esses processos revelam a incompetência do Estado em ser o “cérebro da sociedade”, o que confirma as teses de Durkheim. b) essas ações coletivas podem ser interpretadas como processos derivados da expansão de uma ética protestante, confirmando as análises de Weber. c) os movimentos contestadores atuais expressam um processo de vontade de potência que é corroborado pela filosofia kantiana. d) as lutas sociais contemporâneas revelam as contradições da sociedade capitalista, o que estaria de acordo com a teoria de Marx.

A10  Karl Marx e o materialismo histórico

Pode-se afirmar que a única alternativa que NÃO corresponde ao materialismo histórico é: a) É a consciência dos homens que determina o seu ser; Não é o seu ser social que, inversamente, determina sua consciência. b) O conjunto das relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. c) O modo de reprodução de vida material determina o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. d) Defende que a História não é um progresso linear e contínuo, mas um processo de transformações sociais determinadas pelas contradições entre os meios de produção e as forças produtivas. e) A luta de classes exprime as contradições sociais, sendo o motor da História. 03. (UEG GO) Para Marx, diante da tentativa humana de explicar a realidade e dar regras de ação, é preciso considerar as formas de conhecimento ilusório que mascaram os conflitos sociais. Nesse sentido, a ideologia adquire um caráter negativo, torna-se um instrumento de dominação na medida em que naturaliza o que deveria ser explicado como resultado da ação histórico-social dos homens, e universaliza os interesses de uma classe como interesse de todos. A partir de tal concepção de ideologia, constata-se que

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05. (Nucepe) O materialismo histórico dialético é o método de análise da sociedade criado por Karl Marx. A respeito desse método, é possível afirmar que: a) o materialismo explica que as condições materiais de existência não são fatores determinantes para o modo de ser e pensar de cada um. b) a sociedade e a política surgem da ação da natureza e não da ação concreta dos seres humanos no tempo. c) o materialismo explica que são as relações sociais de produção que determinam o modo de ser e pensar de cada indivíduo. É um modo histórico, já que a sociedade e a política surgem da ação concreta dos seres humanos no tempo. d) a História é um processo contínuo e linear, logo a realidade é estática e o movimento da história possui uma base material e econômica, mas não obedece a um movimento dialético.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

06. (UECE) O século XIX foi marcado pelo surgimento de correntes de pensamento que contestavam o modelo capitalista de produção e propunham novas formas de organizar os meios de produção e a distribuição de bens e riquezas, buscando uma sociedade que se caracterizasse pela igualdade de oportunidades. No que diz respeito a essas correntes, assinale a afirmação verdadeira. a) O socialismo cristão buscava aplicar os ensinamentos de Cristo sobre amor e respeito ao próximo aos problemas sociais gerados pela industrialização, mas apesar de vários teóricos importantes o defenderem, a Igreja o rejeitou através da Encíclica Rerum Novarum, lançada pelo Papa Leão XIII. b) No socialismo utópico, a doutrina defendida por Robert Owen e Charles Fourrier, prevaleciam as ideias de transformar a realidade por meio da luta de classes, da superação da mais valia e da revolução socialista. c) O socialismo científico proposto por Karl Marx e Friedrich Engels, através do manifesto Comunista de 1848, defendia uma interpretação socioeconômica da história dos povos, denominada materialismo histórico. d) O anarquismo do russo Mikhail Bakunin defendia a formação de cooperativas, mas não negava a importância e a necessidade do Estado para a eliminação das desigualdades. 07. (UFU MG) Considere a citação abaixo e, a seguir, marque a alternativa correta acerca da concepção materialista da história formulada por Karl Marx. ... na produção social de sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. MARX, Karl. Contribuição para a crítica da economia política. Lisboa: Estampa, 1973. p. 28.

a) Marx expressa, também nessa passagem, sua concepção determinista e finalista, segundo a qual o conjunto das relações sociais reduz-se ao âmbito da produção econômica. b) Marx afirma que a moral, os sistemas políticos, os princípios jurídicos e as ideologias não têm vida própria diante do modo pelo qual os homens produzem e reproduzem a existência.

c) Marx nega todo e qualquer papel ativo na história à consciência, sendo esta, antes, um mero reflexo da esfera da produção material. d) Marx sustenta que o ser social que pensa, que atua politicamente e que representa o seu espaço reproduz simplesmente as condições históricas vigentes, independente de sua classe social. 08. (UFU MG) De acordo com a teoria de Marx, a desigualdade social se explica a) pela distribuição da riqueza de acordo com o esforço de cada um no desempenho de seu trabalho. b) pela divisão da sociedade em classes sociais, decorrente da separação entre proprietários e não proprietários dos meios de produção. c) pelas diferenças de inteligência e habilidades inatas dos indivíduos, determinadas biologicamente. d) pela apropriação das condições de trabalho pelos homens mais capazes em contextos históricos, marcados pela igualdade de oportunidades. 09. (UEL PR) Analise a figura a seguir.

NOVAS, Carlos Eduardo, Capitalismo para principiantes. São Paulo: Ática, 1995. p.123.

A figura ilustra, por meio da ironia, parte da crítica que a perspectiva sociológica baseada nas reflexões teóricas de Karl Marx (1818-1883) faz ao caráter ideológico de certas noções de Estado. Sobre a relação entre Estado e sociedade segundo Karl Marx, é correto afirmar: a) A finalidade do Estado é o exercício da justiça entre os homens e, portanto, é um bem indispensável à sociedade. b) O Estado é um instrumento de dominação e representa, prioritariamente, os interesses dos setores hegemônicos das classes dominantes. c) O Estado tem por finalidade assegurar a felicidade dos cidadãos e garantir, também, a liberdade individual dos homens. d) O Estado visa atender, por meio da legislação, a vontade geral dos cidadãos, garantindo, assim, a harmonia social. e) Os regimes totalitários são condição essencial para que o Estado represente, igualmente, os interesses das diversas classes sociais. 93

A10  Karl Marx e o materialismo histó rico

e) a base material ou econômica constitui a “superestrutura” da sociedade, que exerce influência direta na “infraestrutura” da sociedade, ou seja, nas instituições jurídicas, políticas e ideológicas.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A11

ASSUNTOS ABORDADOS n Friedrich Nietzsche e o crepús-

culo dos ídolos

n As mortes de Deus e a transvaloração de todos os valores n As obras de Nietzsche e o tema da transvaloração (e suas implicações)

Fonte: Wikimedia Commons

FRIEDRICH NIETZSCHE E O CREPÚSCULO DOS ÍDOLOS O século XIX marca um importante período de transições e rupturas intelectuais. Afirma-se que do ponto de vista intelectual, ele nasceu como fruto das filosofias de Hegel e Kant, mas se encerra operando uma transformação incalculável para a história do pensamento ocidental, a partir de nomes como Marx, Nietzsche e Freud (embora este último veja o despertar e influência de suas ideias apenas no século seguinte). Desses - em igual importância, mas em caráter inusitado - destaca-se o pensamento de Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900). Compreender o pensamento de Nietzsche sugere um esforço e repertório ímpar, além de uma fruição que demanda sensibilidade. Há duas razões para isso. A primeira é que, do ponto de vista literário, refere-se a uma escrita sui generis. Não se trata de uma dissertação que obedece a uma estrutura padrão. Algumas de suas obras, como Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres (Menschliches, Allzumenschliches, Ein Buch für freie Geister (1886), predomina o estilo aforismático. Do grego aphorismus (ἀφορίζειν), que significa “definição breve”, “sentença”, trata-se de um texto breve que enuncia uma regra de um princípio ou expressa um pensamento moral. Sendo realçada pela natureza de uma mensagem verdadeira e concisa, é uma sentença estilística que articula a literatura e a filosofia, nas quais a percepção sobre a vida, a realidade e a sociedade se expressam. Se por um lado há um forte apelo literário e que permite um condensamento (poético) de sentenças, a escrita aforismática traz suas dificuldades por não ofertar um texto linear e um encadeamento lógico de sentenças que permita deduzir uma tese central e/ou final. A segunda razão é que Nietzsche constrói uma sensível crítica a toda a tradição filosófica ocidental. Compreendê-la pressupõe um repertório de conhecimento dessa tradição que remonta mais de dois mil anos de construção do pensamento racional, crítico e sistemático. De Sócrates e Descartes, de Platão a Kant, a crítica nietzscheana abarca dezenas de autores e temas de difícil trato e interpretação. A obra de Nietszche, portanto, demanda para seu entendimento, ao mesmo tempo, uma erudição e uma sofisticação da linguagem. Seguramente, seus anos de formação (e docência) em filologia o ajudaram nesse intercurso literário. O mesmo pode ser dito acerca de seu arquivo intelectual, oriundo primeiramente de sua experiência familiar. Filho, neto e bisneto de pastores protestantes, aos quatorze anos recebeu uma bolsa de estudos de preparação para a vida eclesiástica, destacando-se não somente nos estudos religiosos, como também nos de literatura alemã e estudos clássicos. Após se formar em Filologia, em 1864, dá sequência aos seus estudos em Teologia e Filologia clássica, na Universidade de Bonn, vindo a abandonar a Teologia para estudar as obras dos filósofos Kant e Schopenhauer - a quem seguramente deve uma de suas principais influências em início de vida intelectual.

Figura 01 - Desenho de Friedrich Nietzsche. Autor: Hans Olde (1855-1917)

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O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 - 1860) ofertou a Nietzsche a inspiração para uma de suas perspectivas centrais presentes ao longo de suas obras: a crítica radical ao valor e objetividade da verdade. É célebre sua sentença nietzscheana de que “não há fatos, somente interpretações”. Segundo Nietzsche, essas interpretações seriam fruto, tão somente, de um subjetivismo que impregna, sempre, a relação sujeito-objeto. Para além dessa proposição que poderia remeter aos filósofos sofistas, é de Schopenhauer que Nietzsche


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extrai a essência de sua crítica. Schopenhauer havia sido o filósofo, a de forma contundente, se opor ao hegelianismo, afirmando que a razão não teria acesso ao que o pensador chamava de “espírito absoluto”. O mundo seria a resultante de um processo de representação. Assim, não conhecemos o mundo como ele realmente é, somente temos instrumentos sensoriais que nos mostram o mundo dentro das suas capacidades perceptivas. Sendo, o mundo, uma construção nossa, ele se afirma como uma mera representação. Nada mais. A relação entre sujeito e objeto é mediada unicamente pela representação. Para que esta exista, é necessária a relação entre o sujeito (aquele que sustenta o fenômeno da representação e do conhecer) e o objeto (aquilo que se conhece de forma “deformada” na experiência fenomênica). O mundo como representação é um fenômeno. E o fenômeno é uma percepção deformada do objeto que cobre a essência da realidade. E essa, só pode ser alcançada pela vontade - que é a representação que fazemos do nosso corpo: o objeto imediato da nossa consciência. A vontade é onde não podemos mais diferenciar de forma transparente o sujeito do objeto; a vontade é a essência do nosso ser e ela manifesta-se na racionalidade humana. Hegel afirmava que “o real é racional e o racional é real”. Schopenhauer supera esse entendimento afirmando que o real é representacional, sendo a vontade aquilo que em essência media a racionalidade enquanto instrumento do conhecer (e a supera, uma vez não carecer a vontade da própria racionalidade). De Schopenhauer, Nietzsche apropriou-se de seu discurso sobre a vontade e a natureza representacional do conhecimento. Em que pese a influência (e admiração), ele procura superar Schopenhauer ao longo de sua vida intelectual. Fato que, de início, a obra O mundo como vontade de representação

(1819) causou-lhe assombro. Sobretudo, pelo papel atribuído à faculdade da vontade. Segundo Schopenhauer, a vontade (traduzida no querer, no desejar) era a verdadeira essência do homem - contrariamente ao que a tradição filosófica assumia, quanto, sendo a razão, o elemento ontológico por excelência da natureza humana. Dada sua notória influência das doutrinas orientais - notadamente o budismo - afirmava que o viver era uma força implacável que conduzia cegamente o homem na senda do desejo insaciável. Por ser infindo, esse desejo seria a causa do sofrimento humano, uma vez que seria fonte de insatisfação perene. Assim, o homem deveria se esforçar por renunciar a vontade, libertando-se, por consequência, da infelicidade. Viver deveria ser uma expressão da negação da vontade de viver, por meio do estancamento do desejo, reduzindo a existência a uma dinâmica contemplativa e ascética ou estética (a arte libertaria o homem das dores do mundo). Nietzsche não nega que a vontade e o simples viver podem conduzir o homem ao sofrimento. Não obstante, supera a visão pessimista de Schopenhauer ao afirmar que a vida é o único critério de avaliação que se impõe a si mesmo, e não uma mera história natural da dor. Segundo Frederíck Coppleston (1979, p. 211): Nietzsche aceita prontamente a ideia de que a vontade faz viver e sofrer, porém, Nietzsche não negará a vida, não sucumbirá à fraqueza de rejeitar a vontade de viver, mesmo nos seus aspectos terríveis e dolorosos. Para o discípulo de Diónisos, as doutrinas ascéticas ou de renúncia à vida serão objeto de violentas críticas. Nietzsche foi atraído para Schopenhauer pelo ateísmo deste último, pela sua negação do sobrenaturalismo e da transcendência, pela sua doutrina do caráter fundamentalmente irracional do universo — num forte contraste com Hegel, que era o verdadeiro fel, tanto para Schopenhauer como para Nietzsche — e pela sua su-

Figura 02 - Arthur Schopenhauer. Autor: Jules Lunteschütz (1822–1893)

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Arthur Schopenhauer foi um filósofo alemão do século XIX, nascido em 22 de fevereiro de 1788, em Frankfurt. É conhecido, principalmente, pela influência que exerceu sobre o pensamento de Friedrich Nietzsche além de ter introduzido elementos orientais (notadamente, do budismo indiano) na metafísica alemã. Sua principal obra intitula-se O mundo como vontade e representação (1818). Nesta, caracteriza o mundo fenomênico como produto de uma mera vontade metafísica. Embora crítico de Kant, sobretudo quanto ao idealismo transcendental, Schopenhauer desenvolve um sistema metafísico a partir deste, mas de caráter ateu e ético - que tem sido descrito como uma manifestação de um pessimismo filosófico. O dito pessimismo de Schopenhauer se reflete no que o filósofo concebe a respeito da vida humana: o desejo- manifesto através da vontade- é aquilo que move o homem. No entanto, nunca há satisfação para esse desejo, levando o homem a se perder nesse afã de sempre querer mais. É a vontade (traduzida nas mais variadas formas de se buscar satisfação) que conduz o homem fatalmente ao sofrimento. A vida acadêmica de Schopenhauer teve início no Liceu de Weimar, em 1807. Dois anos depois, ingressa na faculdade de medicina de Göttingen, embora nunca tenha atuado diretamente no campo clínico. O período serviu mais para a aquisição de conhecimentos científicos pelo filósofo. Em 1811, na Universidade de Berlim, assiste os cursos de Schleiermacher e Fichte - a quem Schopenhauer atribui como sendo uma mera cópia intelectual do pensamento kantiano. Em 1813, obteve o Doutorado pela mesma universidade, defendendo a tese Sobre a Quádrupla Raiz do Princípio de Razão Suficiente.

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Filosofia

bordinação do intelecto à vontade. Esses elementos mantiveram-se comuns em ambos, mas, à medida que as ideias peculiares a Nietzsche se foram desenvolvendo e foram tomando uma forma concreta, ele chegou a verificar, a uma luz sempre mais clara, a antítese que havia entre Schopenhauer e ele próprio. Na filosofia de Schopenhauer, o ideal do homem é a negação da vida, ao passo que na filosofia de Nietzsche é a afirmação da mesma vida. Os homens não têm de fugir à vida, como os pessimistas, mas, como alegres convivas de um banquete, que desejam as suas taças novamente cheias, dirão sim à vida: Uma vez mais! Assim Nietzsche desenvolveu-se fora de Schopenhauer e, se, por um lado, temos o pessimismo de Schopenhauer combinado com um ideal predominantemente negativo de comportamento, temos, por outro lado, o otimismo de Nietzsche combinado com um ideal predominantemente positivo e ativo de comportamento.

É marcante no pensamento de Nietzsche a proposição de se demolir antigas crenças ao colocar em questão a escala de valores impostas por essas. Segundo o filósofo alemão, grande parte dos comportamentos morais foram incorporadas à conduta humana como se elas fossem naturais e imutáveis, e não fruto tão somente do hábito ou imposição discursiva da religião ou da tradição filosófica. Em outras palavras, os valores morais foram construídos e impostos (muitas vezes em conluio entre as tradições), não sendo, portanto, dados naturais de conduta - espécies de comportamentos inscritos na lei da natureza. Dessa forma, a filosofia nietszcheana se orienta no sentido de se recuperar as forças (do) insconsciente, vitais e instintivas que foram subjugadas tanto pela religião

(sobretudo judaico-cristã), quanto pela metafísica filosófica da tradição socrático-platônica. A superação schopenhaureana de Nietzsche (que se reflete na ruptura mesmo com as próprias tradições criticadas) baseia-se na necessidade de se conceber os atos humanos como instituições de força, vitalidade, distante de critérios pautados pela mediocridade de virtudes (pré) estabelecidas, recuperando, assim, o sentimento de potência, a alegria de viver, a capacidade de invenção. As obras de Nietzsche sempre foram marcadas por uma estética peculiar, quer seja no estilo de escrita (aforismático), quer seja nos títulos inusitados escolhidos para seus livros. Destaque para a obra O Anticristo - Praga contra o Cristianismo (Der Antichrist. Fluch auf das Christentum - 1888). Apesar do título chamativo, a publicação direciona-se muito mais como uma crítica aguda à figura de Paulo de Tarso do que de Cristo. Chega a afirmar que o cristianismo não seria o que é sem a atuação de Paulo, conquanto tenha se tornado uma deturpação da ideia original. Não que Nietzsche fosse um entusiasta da mensagem cristã, ainda que primitiva e supostamente original, mas acusa Paulo de Tarde de ter forjado uma ideia de salvação que se realiza na promessa de um mundo além. Por essa razão, Nietzsche afirmará que essa transmutação fará do discurso cristão aquilo que permitiu sua posterior racionalização na patrística: um mero “platonismo para pobres de espírito”. É nessa obra basilar que o filósofo alemão iniciará a abordagem de uma série de temas/conceitos caros dentro de seu pensamento, como a “vontade de potência” e a “transvaloração de todos os valores”, além das “mortes de Deus”.

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Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em 15 de outubro de 1844, em Röcken, antigo reino da Prússia. Destacou-se como um dos principais críticos da cultura e do pensamento moderno. Filólogo por formação, suas obras eram evidenciadas no campo da filosofia, tendo em seus textos críticos alvos como a religião, a moral, a ciência e o discurso filosófico da tradição socrático-platônica. Sua escrita era recheada de metáforas, aforismos e recursos linguísticos variados, como a ironia. A carreira acadêmica de Nietzsche começou com sua formação em Filologia Clássica. Seu interesse (ou retorno) pela/para a filosofia surge posteriormente. Aos 24 anos de idade, foi nomeado para a cátedra de Filologia Clássica na Universidade de Basileia - o mais jovem acadêmico a ocupar essa posição. Sua trajetória profissional não dura tanto tempo. Em 1889, aos 44 anos, sofre um colapso que o leva a uma perda completa de suas faculdades mentais. O diagnóstico à época, ainda que controverso, foi atribuído à paresia geral atípica, devido à sífilis terciária. Nietzsche viveu seus últimos anos sob os cuidados de sua mãe e irmã, até falecer, em 25 de agosto de 1900, em Weimar, no já Império Alemão. Mesmo com curta vida, não deixou de ser um autor profícuo. Destacam-se as obras:

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n O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música (1872) n A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos (1873) n Sobre a Verdade e a Mentira em Sentido Extramoral (1873) n Considerações Extemporâneas (1873-6) n David Strauss, o Confessor e o Escritor (1873) n Dos Usos e Desvantagens da História Para a Vida (1874); n Schopenhauer como Educador (1874) n Richard Wagner em Bayreuth (1876) n Humano, Demasiado Humano, um Livro para Espíritos Livres (1879) n O Andarilho e sua Sombra ou O Viajante e sua Sombra (1880) n Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais (1881) n A Gaia Ciência (1882) n Assim Falou Zaratustra, um Livro para Todos e para Ninguém

(1883-85) n Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (1886) n Genealogia da Moral, uma Polêmica (1887) n O Crepúsculo dos Ídolos, ou como Filosofar com o Martelo

(1888) n O Caso Wagner, um Problema para Músicos (1888) n O Anticristo - Praga contra o Cristianismo (1888) n Ecce Homo, de como a gente se torna o que a gente é (1888) n Nietzsche contra Wagner (1888).


As mortes de Deus e a transvaloração de todos os valores “Deus morreu na cruz”. Uma das frases mais emblemáticas da obra nietzscheana antecipa um de seus conceitos mais famosos (e controversos): as “mortes de Deus”. Para o filósofo alemão, há a necessidade de se conceber esses “plurais” acerca da morte divina. Deus aqui é tanto a representação antropomórfica judaico-cristã, quanto a concepção de verdade da tradição filosófica socrático-platônica. Não era gratuito, portanto, que a palavra “logos” fosse frequentemente identificada como uma expressão divina, o “verbo de Deus”, nos textos testamentários. Em síntese, tanto uma quanto outra tradição incorrem no mesmo desiderato: a crença na existência de uma verdade absoluta, seja seu acesso mediado pela razão ou esta sujeitada pela fé. Para Nietzsche, o século XIX findava-se com o sepultamento em definitivo do último refúgio de crença no absoluto, pautado no discurso científico. Não somente o Deus cristão havia tomado seu último golpe de misericórdia com o advento da modernidade, como a própria modernidade - calcada no discurso científico da razão e na pretensa possibilidade de se atingir uma verdade absoluta (O Deus da modernidade) - também houvera encontrado seus limites. O que restara então? A necessidade de transvalorar todos os valores que haviam sido subjulgados ao longo de mais de dois mil anos por ambas as tradições (filosófica-científica ou judaico-cristã). O significado dessa palavra (transvalorar) não significa negar ou simplesmente reduzir toda questão axiológica a um relativismo absoluto. Ao contrário, significa construir uma base moral tomando como referência outros critérios que não os de ordem metafísica (ou restritos a uma lógica excessivamente racionalista). Visa-se superar o niilismo inerente a esses sistemas, pautando-se no único critério válido por si só: a vida. Segundo Nietzsche (1988, §5), “(…) Quando falamos de valores, falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a vida mesma nos obriga a instaurar valores, a vida mesma valora através de nós quando instauramos valores…”. Para entendermos essa conceituação de niilismo, temos que nos reportar à classificação feita pelo filósofo Gilles Deleuze ao interpretar o pensamento de Nietzsche. Haveria quatro formas a se compreender: n

Niilismo Negativo: aquele que nega o mundo em nome de outros valores. Para compensar sua rejeição a esse mundo, ele cria outros para servir de meta. A tradição cristã e também a platônica são expressões disso na medida em que dividem a realidade em dois mundos: um debaixo - sensível, mutável, corporal, imperfeito, temporal; outro suprassensível - imutável, ordenado, perfeito, atemporal. Para negar esse mundo, o platônico despreza a experiência sensorial e o mundo

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comum. O cristão vale-se do ressentimento na expectativa de poder pertencer ao outro mundo. Por não ter se mostrado forte durante a vida, acolhe a ideia de um Deus que lhe promete a “graça”. Nietzsche afirma que o Deus cristão era uma divindade para os fracos e oprimidos, não podendo ser ele uma fonte inesgotável de potência. Ao contrário, os indivíduos projetam em seus deuses aquilo que reverbera em suas personalidades. Niilismo Reativo: há a negação de Deus pelo materialismo moderno. Essa negação implica uma das mortes de Deus aludida por Nietzsche. A primeira, marca uma mensagem que se guiou biograficamente até o calvário - e lá morreu crucificado (“Deus morreu na cruz”). Segundo o pensador alemão, Jesus foi o único cristão que realmente existiu. Tudo o que veio depois, converteu-se em um simulacro distorcido de sua mensagem. Um exemplo seriam as próprias epístolas paulinas. A segunda morte do Deus cristão ocorreu com o advento da modernidade. Nosso cotidiano passou a não ser mais guiado pelos preceitos divinos. É a ciência e a razão que nos guiam diuturnamente. Contudo, Nietzsche afirma que a ciência e sua noção de revolução humana a se afirmar com o progresso falhou em seu propósito. Seu único legado era: substituir o Deus antropomórfico e castrador pela crença do homem que sacraliza-se quando mira o olhar no futuro, em que “no dia da revolução todos serão redimidos”. Se outrora o homem trabalhava para ser merecedor da graça dos ressentidos, agora ele labora para um “mundo melhor”, guiado pela ciência. Esta, em si, será capaz de dar todas as respostas. Dessa forma, o homem moderno não perdeu sua religiosidade. Ele apenas matou a verdade fora deste mundo, mas ainda crendo numa verdade metafísica: o progresso. Niilismo Passivo: a “vontade de potência” se exauriu no indivíduo que se vê entregue à forma mais autêntica do significado da palavra niilismo (do Latim, Nihil): ausência de sentido. O homem se entrega a uma vida sem propósitos e significados, já que seus heróis e crenças foram soterrados. Segundo Nietzsche, o homem perdeu a si mesmo e a capacidade de gerar valores ou dar colorido à própria existência. Anseia a morte, ainda que continue a viver. Como cita poeticamente na parte IV de Assim Falou Zaratustra (1883): “Onde está o mar para que eu possa me afogar?”. Niilismo Ativo: ocorre quando as forças de negação atingem seu limite. Entretanto, o homem que segue atinge a outra margem: o niilismo nega a si mesmo, operando um rompimento. Ele caminha para a morte, mas essa não é a aniquilação literal de sua vida: é a morte simbólica de seu niilismo reativo e passivo. O indivíduo redescobre sua “vontade de potência”. É nesse momento que após as definitivas mortes dos deuses que o assombravam, o homem é capaz de superar as formas niilistas e promover um supra-homem (Übermensch): um agente capaz de criar novos valores. 97

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Filosofia

Para instituir essa nova cadeia de valores proposta por Nietzsche, dever-se-ia não somente destruir os valores reinantes, como ir além deles. Atravessar o niilismo é negar sua própria condição de negação, tornando-se uma força de criação e afirmação. A partir do momento em que isso é feito, já se deixa para trás a vingança, o hedonismo vazio, o ressentimento e a nostalgia - todos aqueles sentimentos e comportamentos característicos das formas niilistas, sobretudo religiosas. Aos poucos, a destruição - que opera um estágio inicial - cede espaço a uma afirmação maior que vai, lentamente, tomando forma, possibilitando a instauração de novas avaliações para os valores: é o transvalorar. Das formas religiosas de niilismo, como demonstrado anteriormente, Nietzsche avalia de forma bastante crítica o processo de construção/constituição dos valores cristãos. Para o filósofo alemão, o cristianismo reflete a forma do niilismo negativo. Trata-se de uma religião de cultos vazios, já que se projeta para um “outro mundo”, negando o real, além de prestar reverência a um “deus fraco”. Na história do niilismo, a religião cristã é aquela que prega um Deus de compaixão, de triste afeto, e que se perdurou no mundo através do discurso da “vitória dos fracos e oprimidos” - algo sedutor àquele que não possui “vontade de potência”. Contudo, não é só a religião o alvo maior de crítica. Após a superação do niilismo negativo, outro de igual peso se desvela: a dimensão reativa do niilismo expresso no discurso filosófico da modernidade. Embora o niilismo tenha reagido contra si mesmo, restou a sombra de um Deus: o da verdade científica. Novos ídolos passam a ser cultuados, trazendo uma nova vida e uma nova fé. A ciência converteu-se em um cientificismo e os valores humanos foram subjugados aos seus parâmetros de racionalidade. O espírito apolíneo se sobrepõe ao ímpeto dionisíaco, sem que haja a necessária conjugação.

A história do niilismo não é um processo necessariamente dialético. São formas que podem coexistir em um mesmo tempo histórico. Mesmo nas suas superações, a linearidade abre as fronteiras para algo que pode conduzir as mentes a uma passividade ou se irromper em uma enorme força criadora. Justamente por não ser possível prever o fim de uma forma ou d’outra, Nietzsche propõe acelerar esse processo. Sua aposta está na dissolução do homem moderno, que procurou erigir seu edifício de pseudo-verdades absolutas e agora não pode mais recuar à sua própria destruição. Esse homem, agora desvestido dos seus múltiplos deuses, deve se ver diante da tarefa e edificar seu próprio futuro. Todas as formas de niilismo se consomem, restando ao cabo o niilismo ativo, o exercício “negar para afirmar algo maior”; a saber, o questionamento inicial sobre quais são as possibilidades para se pensar novos valores. “O que pode a vida?”, indaga Nietzsche. Segundo R. Trindade (2016): Passamos muito tempo pensando o que podem os outros mundos, o que podem os ideais, o que pode o espírito, mas nos esquecemos de apostar na nossa própria existência, para esta ainda não foram criados valores (nossa filosofia ainda é sacerdotal), os que temos aí estão velhos e caducos. Estes valores são ou divino ou humanos, demasiado humanos. (…) Nietzsche, com a proposta de transvaloração de todos os valores impõe a mais alta exigência já feita à humanidade. Caminhávamos impotentes, arrastados de um lado para o outro, sobre uma terra infértil. Valores divinos ou humanitários eram nossa bússola, nosso niilismo transformou-se lentamente em um nada de vontade, um niilismo passivo que já não tem forças nem mesmo para caminhar. Mas a filosofia nietzschiana nos ensina como caminhar para a grande saúde. Onde quer que estejamos, é preciso caminhar buscando a expansão e o crescimento, caminhar sem saber ainda para onde, mas agora usando como bússola o próprio cor-

Friedrich Nietzsche sempre mostrou-se um grande erudito, sobretudo no que concernia seus estudos da filosofia e cultura clássica. Em sua obra, O Nascimento da Tragédia, publicado em 1872, o pensador alemão faz uma interessante abordagem acerca do papel da arte para a cultura humana. Especialmente referindo-se à antiguidade grega, afirma que aquela civilização atingiu seu ápice de criatividade e beleza quando foram capazes de conjugar forças estéticas antagônicas. Inspirando-se no léxico da mitologia grega, chama de apolíneo o princípio que representa a razão como beleza harmoniosa, organizada, comedida. Por dionisíaco, entende-se a representação do caos, do impulsivo, da falta de medida, da paixão e gozo da vida. Enquanto analogias, expressa o termo apolíneo para se reportar ao espírito racional da filosofia e do discurso científico, ao passo que por dionisíaco, como o ideal de expressão da vida: algo pulsional e não necessariamente organizado. Ambos são conceitos centrais que permeiam toda sua obra. Segundo Nietzsche, nenhuma arte pode ser puramente apolínea nem puramente dionisíaca. A Figura 03 - Cena de simpósio com Apolo e criação humana depende da articulação desses dois princípios, uma vez que o dionisíaco nos dá Dioniso. Pintura em vaso, c. 350-330 a.C. o princípio criativo e o apolíneo nos dá a ordem e a harmonia necessárias para a produção de Museu Arqueológico de Espanha algo belo. Por essa razão, de acordo com o filósofo alemão, é a arte que com suas forças de criação nos faz plenamente humanos, pois é ela que nos dá a oportunidade de produzir nossa própria vida, construindo o que somos, a partir da conjugação desses princípios contrários. Fonte: Wikimedia Commons

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po e as relações que ele efetua em seus caminhos. O crescimento é feito nos encontros, não há mais tábuas de mandamentos, apenas mapas abertos, com montanhas, trilhas, rios, matas fechadas e clareiras. (…) Da mesma forma que a aposta de Pascal, existe uma aposta para este mundo. Essa aposta serve para destruir com as três primeiras formas de niilismo. Isto porque acreditar no mundo pode nos trazer ganhos infinitos! Mas não acreditar neste mundo nos traz perdas terríveis! A realidade existe, isso não necessita de prova alguma, mas como se situar nela? É preciso apostar em pessoas com processos criativos e afirmativos. Fazer da vida a matéria prima para criar dentro de si, só assim se pode viver bem, mesmo com a dor, a morte, a pobreza e principalmente com a tolice!

As obras de Nietzsche e o tema da transvaloração (e suas implicações) O trabalho literário de Nietzsche destaca-se por uma descontinuidade temática. No entanto, é comum conceitos reaparecerem em melhor ou mais profunda (re) elaboração. A questão da crítica ao cristianismo e às formas de niilismo, as “mortes de deus(es)”, a transvaloração e a noção de “supra-homem” (Übermensch) estão presentes em diversas obras e reaparecem como fio condutor do projeto nietzscheano de crítica à tradição e (auto) superação da visão condicionada de homem construído por esta. Por ordem cronológica, destacaremos Aurora, Reflexões sobre Preconceitos Morais (Morgenröte. Gedanken über die moralischen Vorurteile, 1881). Nesta obra, aparece a compreensão hedonística acerca das razões da ação humana e da moral, que passam a ser substituídas pela ideia de poder e sensação de poder - um prelúdio para o conceito “vontade de potência”.

Na sequência, temos A Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft, 1882). No terceiro capítulo, em especial, temos a célebre citação no parágrafo 125: “Deus está morto. Deus continua morto. E fomos nós que o matamos”. Além da teoria do “Eterno retorno” - fundamental para se compreender as formas de superação do niilismo - há a apresentação da figura metafórica de Zaratustra- o criador da moral personificada do Bem e do Mal que, como personagem na obra posterior, finalmente superará sua própria criação e anunciará o advento de um novo homem. Na obra, Assim Falou Zaratustra, um Livro para Todos e para Ninguém (Also Sprach Zarathustra, Ein Buch für Alle und Keinen, 1883-85) há a continuidade da figura afirmativa do personagem Zaratustra. O conceito de supra-homem (Übermensch) emerge quando o homem já não mais se identifica com seus semelhantes. A partir desse momento, há a necessidade de superação, reafirmando os valores imutáveis da natureza (a força vital, o amor e o devir) tornam-se indispensáveis para que não se perca a própria identidade em meio ao caos do mundo, ainda que os homens comuns olhem isso com desdém. “Quanto mais alto voamos, menores parecemos aos olhos daqueles que não sabem voar”, afirma o filósofo alemão. Superar esses olhares é fundamental para a afirmação desse (supra) homem. Em Além do Bem e do Mal, Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (Jenseits von Gut und Böse. Vorspiel einer Philosophie der Zukunft, 1886) são expostos de forma explícita os conceitos de vontade de potência, além da necessidade de se considerar a natureza da realidade considerada por ela mesma, isto é, livre de instâncias transcendentais. Nessa densa obra, o autor critica de forma radical as filosofias metafísicas em todas as suas instâncias, justificando a necessidade de criação de valores como prerrogativa nobre que deve ser

Figura 04 - Retrato de Nietzsche. Autor: Edvard Munch, 1906

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O conceito de Vontade de Potência (Der Wille zur Macht) é central na filosofia de Nietzsche e central para o desenvolvimento de outras ideias. Trata-se de uma proposição ontológica que sustenta toda sua teoria moral. Ela (a vontade) é descrita como a principal força motriz dos seres humanos, caracterizada pelo ímpeto de realização, ambição e esforço para alcançar a mais alta posição na vida. É um conceito em aberto, haja visto que Nietzsche não chegou a sistematizá-lo, deixando sua interpretação a se moldar. Inspirado em Schopenhauer- para quem a vontade é uma força inerente à condição humana, porém cega, insaciável e além de nossos sentidos - Nietzsche a compreende como algo que não está fora do mundo, mas que se dá na relação com o real. O mundo seria uma luta constante, sem equilíbrio constante, apenas uma tensão que se move por força da vontade- que sempre deve ser vista em seu sentido plural, nunca una e divisível. No entanto, a Vontade de potência não está relacionada a nenhum tipo de força física ou dinâmica; antes, é a lei originária que rege todas as outras neste mundo. É esse desejo insaciável, premente aos sentidos, que se mostra como a essência e a própria “luta de forças” que formam a natureza e o mundo que habitamos: é o impulso que reage e resiste no interior das forças, uma multiplicidade de forças que em suas gradações manifesta-se na sua forma última em fenômenos políticos, culturais, astronômicos, permeando a natureza e o próprio homem.

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Filosofia

posta em prática por uma nova espécie de filósofos. A obra Genealogia da Moral, uma Polêmica (Zur Genealogie der Moral, Eine Streitschrift, 1887) segue como uma sequência complementar, uma espécie de compêndio aplicado, no qual o filósofo disseca o surgimento e o real significado de nossos corriqueiros juízos de valor. Por fim, em O Crepúsculo dos Ídolos, ou como Filosofar com o Martelo (Götzen-Dämmerung, oder Wie man mit dem Hammer philosophiert - 1888), de forma contundente, Nietzsche evidencia a insustentabilidade das antigas crenças e dos ídolos (ideais ou autores do filosófico), analisando toda a gênese da culpa no ser humano- que gera o ressentimento e a negação da vida. Ao longo de sua vida intelectual, Nietzsche se mostrou um autor bastante profícuo. Mesmo após sua morte, suas obras continuaram a ser editadas e redescobertas. A quantidade deixada de cadernos manuscritos e correspondências catalogadas chegam a superar em quantidade o número de obras publicadas em vida. Parte desses textos, notadamente escritos durante os anos de 1870 se referem a uma teoria do conhecimento. A partir dos anos de 1880, seus textos caracterizam-se por reflexões de caráter ontológico, especialmente sobre as doutrinas da “vontade de potência” e do “eterno retorno”. Esses fragmentos foram compilados, em especial, por sua irmã e publicados posteriormente à sua morte. Embora haja essa grande contribuição enquanto editoração e preservação, a curadoria de sua irmã conduziu os lei-

tores de Nietzsche a uma equivocada interpretação desses textos. Casada com um antissemita alemão, Bernhard Förster, as obras do pensador alemão foram adequadas à ideologia nacionalista e antijudaica - algo sempre muito questionado pelo próprio Nietszche em vida. Assim, através das edições de Förster-Nietzsche, o nome do filósofo tornou-se associado com o militarismo alemão e o nazismo, por mais que haja uma tentativa de seus biógrafos e estudiosos posteriores do século XX tentarem neutralizar esse equívoco sobre suas ideias. Fato é que a obra de Nietzsche continua a despertar fascínio e um constante instigar do pensamento. Suas ideias-chave acerca da “vontade de potência”, as “mortes de Deus”, o “perspectivismo” e o conceito de “supra-homem” (Übermensch) permeiam diversas reflexões e correntes aparentemente distintas do ponto de vista epistemológico. Suas ideias tiveram um impacto profundo sobre pensadores do final do século XIX e início do século XX, que usaram esses conceitos como pontos de partida para o desenvolvimento de suas filosofias. Seu questionamento radical do valor e da objetividade da verdade tem sido o foco de extenso comentário e sua influência continua a ser substancial, especialmente na tradição filosófica continental - uma expressão criada originalmente pelos filósofos analíticos anglófonos, principalmente estadunidenses e britânicos, para descrever várias tradições filosóficas procedentes da Europa continental, principalmente da Alemanha e da França, compreendendo existencialismo, pós-modernismo e pós-estruturalismo.

O eterno retorno é um conceito filosófico desenvolvido pela escola helenística do estoicismo, que propunha uma repetição do mundo no qual se extinguia para voltar a criar-se. Friedrich Nietzsche o usa como um conceito-chave (Ewige Wiederkunft) na forma de um “experimento do pensamento”, em A Gaia Ciência: E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: “Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez, e tu com ela, poeirinha da poeira!”. Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderías: “Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!” Se esse pensaFigura 05 - A serpente Ouroboros em um antigo mento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te tritumanuscrito alquímico grego rasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: “Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?” pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?” Fonte: Wikimedia Commons

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

COPPLESTON, Frederíck. Nietzsche, Filósofo da Cultura. Porto: Livraria Tavares Martins, 1979. DELEUZE, Gilles: Nietzsche e a Filosofia. Porto, Ed. Rés, 1976. HALÉVY , Daniel. Nietzsche: Uma Biografia. Rio de Janeiro, Ed. Campus 1991. HENRY, Michel. A Morte dos Deuses, Vida e Afetividade em Nietzsche. Rio de Janeiro, Ed. Jorge Zahar, 1985. LEBRUN, Gerard: Nietzsche. Coleção Os Pensadores, Obras incompletas. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1983. LEFEBVRE, Henry. Hegel, Nietzsche, Marx. Madrid, Ed. Siglo Vinteuno, 1986. MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1985. MARTON, Scarlet: Nietzsche. Das Forças Cósmicas aos Valores Humanos. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1985. MULLER-LAUTER, Wolfgang. A Doutrina da Vontade de Poder em Nietzsche. São Paulo, Ed. Annablume, 1997. TRINDADE, Rafael (2016). Niilismo ativo – transvaloração de todos os valores. In: https://razaoinadequada.com/2016/03/02/niilismo-ativo-transvaloracao-de-todos-os-valores/

#DicaCine Filosofi

Q. 02. Resposta esperada: O filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 - 1860) ofertou a Nietzsche a inspiração para uma de suas perspectivas centrais presentes ao longo de suas obras: a crítica radical ao valor e objetividade da verdade. Q. 03. Resposta esperada: Niilismo é uma palavra proveniente do latim Nihil, que signfica ausência de sentido. É o nome dado às formas ilusórias criadas pelos homens para justificarem suas cadeias de crenças antinaturais, tal como a religião e o cientificismo. As quatro formas classificadas por Gilles Deleuze, a partir de sua leitura da filosofia de Nietzsche, são: 1) Niilismo Negativo; 2) Niilismo Reativo; 3) Niilismo Passivo; 4) Niilismo Ativo. Q. 04. Resposta esperada: Nietzsche chama de apolíneo o princípio que representa a razão como beleza harmoniosa, organizada, comedida. Por dionisíaco, entende-se a representação do caos, do impulsivo, da falta de medida, da paixão e gozo da vida. Q. 05. Resposta esperada: O conceito de Vontade de Potência (Der Wille zur Macht) é um conceito central na filosofia de Nietzsche e central para o desenvolvimento de outras ideias; trata-se de uma proposição ontológica que sustenta toda sua teoria moral. Ela é descrita como a principal força motriz dos seres humanos, caracterizada pelo ímpeto de realização, ambição e esforço para alcançar a mais alta posição na vida. É um conceito em aberto, haja vista que Nietzsche não chegou a sistematizá-lo, deixando sua interpretação a se moldar.

Sinopse Filmado entre os anos 1995 e 2000, o filme brasileiro recria o período entre abril de 1888 e janeiro de 1889, no qual o filósofo Friedrich Nietzsche residiu em Turim, na Itália. Foi nesse período que o pensador alemão desenvolveu três de suas principais obras: Ecce Homo, Crepúsculo dos Ídolos e Ditirambos de Dionísio - seu compêndio de poemas. O drama conquistou o prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Brasília em 2001. Já no Festival de Veneza, o filme recebeu o prêmio Bastone Bianco, concedido pela crítica italiana. Ficha técnica: Direção: Júlio Bressane Roteiro: Júlio Bressane/ Rosa Dias Gênero: Drama / Biográfico Idioma: Português Ano: 2001 País: Brasil

Exercícios de Fixação 01. Um dos recursos estilísticos presente nas obras de Nietzsche é o aforisma. Do que se trata um aphorismus (ἀφορίζειν)? 02. De início, qual foi a principal inspiração filosófica de Nietzsche? Do que se tratou essa contribuição?

04. O que Nietzsche entendia pelos termos “apolíneo” e “dionisíaco” enquanto metáforas para a categorização da estética grega? 05. Do que se trata a “Vontade de Potência”?

03. O que é o niilismo e quais são suas quatro formas possíveis?

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BRUM, José Thomaz. O Pessimismo e suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche. Rio de Janeiro, Ed. Rocco, 1998.

Q. 01. Resposta esperada: O aphorismus (ἀφορίζειν) significa “definição breve”, “sentença”; trata-se de um texto breve que enuncia uma regra de um princípio ou expressa um pensamento moral. Sendo realçada pela natureza de uma mensagem verdadeira e concisa, é uma sentença estilística que articula a literatura e a filosofia, nas quais a percepção sobre a vida, a realidade e a sociedade se expressam.

Fonte: Wikimedia Commons

Bibliografia


Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares 01. (UFSJ) Nietzsche identificou os deuses gregos Apolo e Dionísio, respectivamente, como a) complexidade e ingenuidade: extremos de um mesmo segmento moral, no qual se inserem as paixões humanas. b) movimento e niilismo: polos de tensão na existência humana. c) alteridade e virtu: expressões dinâmicas de intervenção e subversão de toda moral humana. d) razão e desordem: dimensões complementares da realidade.

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02. (UFFS) No pensamento de Nietzsche, pode-se encontrar grande quantidade de considerações a respeito dos valores. Assinale a alternativa que não está de acordo com a filosofia de Nietzsche sobre os valores. a) A perda da fé em Deus conduz à desvalorização de todos os valores. b) É preciso reconhecer que, pelos seus próprios critérios, nossa moral é imoral. c) Deve-se criar novos valores por meio da vontade de potência. d) A moral deve expressar as condições de vida e de desenvolvimento de um povo. e) Não existe papel para a razão na compreensão dos valores. 03. (UFFS) No pensamento de Nietzsche, pode-se encontrar grande quantidade de considerações a respeito dos valores. Assinale a alternativa que não está de acordo com a filosofia de Nietzsche sobre os valores. a) A perda da fé em Deus conduz à desvalorização de todos os valores. b) É preciso reconhecer que, pelos seus próprios critérios, nossa moral é imoral. c) Deve-se criar novos valores por meio da vontade de potência. d) A moral deve expressar as condições de vida e de desenvolvimento de um povo. e) Não existe papel para a razão na compreensão dos valores. 04. (UFFS) As alternativas a seguir apresentam e descrevem conceitos encontrados na filosofia de Nietzsche, exceto: a) A vontade de potência: motivo básico da ação do homem, a vontade de viver e dominar. b) O super-homem: indivíduo que é capaz de superar-se e possui um valor em si. c) O eterno retorno: recorrência permanente dos mesmos eventos. d) O ideal dionisíaco: conciliação do saber apolíneo e do saber dionisíaco.

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e) A moral dos escravos: ressentimento dos que não podem realmente agir e são compensados com uma vingança imaginária. 05. (UFFS) Para lidar com o tratamento dos valores no pensamento de Nietzsche, o conceito da “morte de Deus” é essencial. Assinale a alternativa que reflete esse conceito. a) A morte de Deus desvaloriza o mundo. b) A morte de Deus gera necessariamente o super-homem. c) A morte de Deus implica a perda das sanções sobrenaturais dos valores. d) A morte de Deus exige o retorno a Apolo e a Dionísio. e) A morte de Deus impossibilita a superação dos valores hoje aceitos. 06. (UFSJ) Na filosofia de Friedrich Nietzsche, é fundamental entender a crítica que ele faz à metafísica. Nesse sentido, é CORRETO afirmar que essa crítica a) tem o sentido, na tradição filosófica, de contentamento, plenitude. b) é a inauguração de uma nova forma de pensar sem metafísica através do método genealógico. c) é o discernimento proposto por Nietzsche para levar à supressão da tendência que o homem tem à individualidade radical. d) pressupõe que nenhum homem, de posse de sua razão, tem como conceber uma metafísica qualquer, que não tenha recebido a chancela da observação. e) a metafísica é válida, pois trata de Deus e da liberdade humana. 07. (IF PE) Sobre a crítica de Nietzsche à moral, é correto afirmar que: a) O cristianismo é a origem do conceito de bem em si e, por isso Nietzsche defere uma crítica mordaz a essa doutrina religiosa. b) O projeto de Nietzsche de traçar uma genealogia da moral encontra eco em Foucault na arqueologia do saber. Nietzsche diferencia-se de Foucault por acreditar que é possível um fato moral. c) Para Nietzsche, não existem fatos morais, mas interpretações sobre a moral, cuja estrutura se remete à essência do homem. d) A transvaloração dos valores é um projeto de rompimento com a moral tradicional, cujo ponto central é a crítica a todos os valores ocidentais. e) Ao contrário do cristianismo, a filosofia de Platão traz elementos importantes para a definição do conceito de bem e nela se pode vislumbrar a moral que Nietzsche procurava.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A12

FREUD, A TEORIA DO INSCONSCIENTE E O “MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO” O crepúsculo do século XIX marca uma das principais transições para o mundo moderno no campo da história das ideias. Não raro, o conceito de pós-moderno é atribuído a um conjunto de teorias e pensadores que operam uma releitura das críticas oitocentistas aos parâmetros da cultura e da filosofia. Ainda incrustado numa modernidade filosófica, Kant e Hegel e (posteriormente reorientado por) Marx já haviam apontado os limites e possibilidades da razão no processo de aquisição do conhecimento, ou mais incisivamente na transformação da sociedade, cada um a seu modo, seja através dos idealismos respectivos ou do materialismo histórico dialético.

ASSUNTOS ABORDADOS n Freud, a teoria do insconsciente e

o “mal-estar na civilização”

n O nascimento da psicanálise e seus conceitos fundamentais n As pulsões e o mal-estar na civilização n As influências de Schopenhauer e Nietzsche no pensamento freudiano n Crítica à psicanálise (e sua sobrevivência)

Fonte: Wikimedia Commons

Circunscrevendo inteiramente os limites dessa razão como instrumento de governança do homem e do saber, encontraremos ao fim do século XIX, o pensamento de Nietzsche operando uma ruptura com os antigos ídolos e deuses (a ciência e a metafísica). A razão é destronada como outrora foi a fé para o homem moderno. Era necessário resgatar as forças do insconsciente, a pulsão pela vida - único critério objetivo - e a estética do existir. A tradição socrático-platônica e seu essencialismo já haviam sido soterrados pelo materialismo marxista. Restou a Nietzsche o trabalho de colocar em xeque todo o edifício não somente da metafísica tradicional, mas também da crença cientificista que se instaurou na modernidade. Na esteira desse processo, ainda que não identificado habitualmente nas fileiras da história da filosofia, temos a figura de Sigmund Freud e seu projeto de metapsicologia conhecido como psicanálise. Ampliando aspectos do idealismo alemão de Kant e Hegel e dando sequência às intuições nietzscheana sobre os limites da razão enquanto instrumento de governo de si, Freud lança as bases de uma das mais influentes doutrinas do século XX e XXI. Assim como o marxismo, a psicanálise se afirmou como uma das correntes de maior desdobramento temático e epistemológico. Seus postulados foram apropriados pelos mais diferentes campos do saber, transcendendo seu mero uso clínico.

Figura 01 - Criança geopolítica observando o nascimento do homem novo. Autor: Salvador Dali (1943)

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Filosofia

O nascimento da psicanálise e seus conceitos fundamentais A história de surgimento da psicanálise une-se a um ponto sensível na biografia intelectual de profissional de Sigmund Freud. Em Viena, passa um considerável tempo entre sua formação acadêmica e o início de sua carreira como pesquisador. Após estagiar por quatro semanas no laboratório de Carl Friedrich Claus, em Trieste, passa a trabalhar no Hospital Geral de Viena, por recomendação do fisicalista Ernst Brücke. Tempos depois, consegue um licenciamento e parte em viagem (também por recomendação Brücke) para Paris, onde trabalhava Jean-Martin Charcot- famoso clínico e pesquisador do Hospital Psiquiátrico Saltpêtrière, que estudava o fenômeno da histeria e os usos terapêuticos da hipnose. Ao se deparar com as experiências de relativo sucesso de Charcot, inicia a elaboração de sua tese de que a histeria não tinha causa orgânica, e, sim, psicológica. Freud já era um bom conhecedor de anatomia e histologia do cérebro humano, fruto do contato que teve com os estudos de Brücke- que já havia se tornado não somente seu amigo, como referência de modelo de ciência. Por essa razão, ao atender pacientes portadoras de histerias (um conjunto de sintomas aparentemente neurológicos que compreendiam paralisia, cegueira

parcial, alucinações, perda de controle motor, mas que não podiam ser diagnosticados com exames), Freud passa a considerar justamente uma dimensão não física do processo. Nasce então a noção rudimentar de inconsciente. Inicialmente, Freud vale-se do mesmo expediente de Charcot para tratar os casos de histeria - uma doença que afetava principalmente jovens mulheres. O uso da técnica da hipnose servia como um instrumento para supostamente acessar os conteúdos mentais e obter o controle da situação. Por meio da sugestão hipnótica, poderia se obter um conjunto de sintomas de histeria bem definidos e regulares - novamente, o que atestava para o fato da histeria não possuir uma matriz fisiológica, mas, sim, psicológica. A hipnose seria capaz, em tese, de gerar uma situação de rememoração da experiência traumática em caráter temporário. Assim, a partir na narrativa dos pacientes sobre sua história pessoal, determinados componentes discursivos surgiriam, até que o clínico fosse capaz de localizar o momento traumático que desencadeou a histeria. Ocorre que uma das coisas observadas por Charcot era que, sistematicamente, surgiam no corpo das narrativas um componente sexual. Embora preponderante e patente que aí encontrava-se um elo entre a histeria e a sexualidade,

Sigmund Freud nasceu em 6 de maio de 1856, em Freiberg in Mähren, atualmente localizada em Příbor, na República Tcheca, à época pertencente ao Império Austríaco. Aos 17 anos, ingressa na Universidade de Viena. Embora planejasse estudar Direito, acabou por ingressar na faculdade de Medicina, onde, de forma inusitada, dá início também aos seus estudos de Filosofia, com o professor Franz Brentano, paralelo aos estudos de zoologia, com o professor darwinista Carl Friedrich Claus. Freud residiu em Viena até 1938. Após a anexação da Áustria à Alemanha nazista, se refugia na Inglaterra, onde faleceu em 23 de setembro de 1939. Em razão de sua etnia judaica, ele e sua família sofreram forte perseguição. Quatro de suas cinco irmãs padeceram nos campos de concentração. As teorias de Freud, bem como seus desdobramentos nas áreas clínicas, seguem dividindo espaço entre a influência e a controvérsia para a psicologia atual, além do contínuo debate sobre sua aplicação no tratamento clínico ou na validação de seus postulados téorico-científicos. O psicanalista foi um autor bem profícuo, publicando cerca de 15 obras completas em vida. São elas: n A Interpretação dos Sonhos, primeira parte, 1900 n A Interpretação dos Sonhos, segunda parte, 1900 n Sobre a Psicopatologia da Vida Cotidiana, 1901 n Um Caso de Histeria, 1901 n Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, 1905 n Os Chistes e sua Relação com o Inconsciente, 1905 n Cinco Lições de Psicanálise, 1910 n Leonardo da Vinci, 1910 n O caso Schereber, 1911 n Totem e tabu, alguns pontos de concordância entre a vida mental dos selvagens e dos neuróticos, 1913 n Além do Princípio do Prazer, 1920 n O Ego e o ID, 1923 n O Futuro de uma Ilusão, 1927 n O Mal-estar na Civilização, 1930 n Moisés e o Monoteísmo, 1939 Figura 02 - Retrato de Sigmund Freud. n Esboço de Psicanálise, 1940 Autor: Max Halberstadt (1921) Fonte: Wikimedia Commons

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Em 1892, Freud publica o artigo Um caso de cura pelo hipnotismo, no qual se vale das influências de Charcot e mais precisamente de Joseph Breuer, quanto ao método de se fazer o paciente remontar, sob efeito hipnótico, à préhistória psicológica da doença que gerou o distúrbio, gerando a catarse. Este termo deriva da palavra grega kátharsis (κάϑαρσις - “purgação”). Tratava-se, na proposta de Breuer, de uma descarga do afeto que originalmente estaria ligada à experiência traumática. A hipnose, através do mecanismo de sugestão, remeteria o paciente a esse passado, de modo que ao acessá-lo, seria capaz de liberar essa carga afetiva (chamada de ab-reação), liberando-se do trauma. De início, Freud acreditava em um duplo uso para a hipnose. Em um primeiro momento, como instrumento para se sugestionar diretamente o paciente a fim de se chegar aos fatos traumáticos, gerando a ab-reação. Já em um segundo, quando esses fatos tivessem vindo à tona, fazer da hipnose um mecanismo para eliminar os traumas ou pelo menos debilitar sua força de adoecimento (patogênica). A “cura” viria por esse expurgar, através da fala, do trauma/conflito experienciado de outrora. Entretanto, após várias experiências utilizando a hipnose como método e profilaxia, Freud identifica um mecanismo sui generis nesse processo de rememoração e catarse potencializado pela hipnose: a defesa. Segundo ele, os mecanismos de defesa são proteções da psique e da supressão ou distorção do conteúdo considerado perigoso, podendo se dar no contato tanto com conteúdos reais quanto imaginários. Freud já intuía desde seu artigo Comunicação preliminar (1895)- proposto junto a Breuer- a existência desse mecanismo, embora somente em As neuropsicoses da defesa (1894) é que ele, de fato, admitirá não somente tal conceito, como afirmará que a hipnose impedia o “acesso puro” à manifestação desse fenômeno. A defesa - que posteriormente Freud chamará de recalcamento – transforma-se na mola-mestra da psicanálise. Segundo Freud (1974a [1914], p.26): (…) A teoria do recalque é a pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise. É a parte mais essencial dela e todavia nada mais é senão a formulação teórica de um fenômeno que pode ser observado quantas vezes se desejar se se empreende a análise de um neurótico sem recorrer à hipnose. Em tais casos encontra-se uma resistência que se opõe ao trabalho de análise e, a fim de frustrá-lo, alega falha de memória. O uso da hipnose ocultava essa resistência; por conseguinte, a história da psicanálise propriamente dita só começa com a nova técnica que dispensa a hipnose.

Assim, temos um novo capítulo na pré-história da psicanálise. O uso da hipnose - independente de seus usos por Freud - havia demonstrado seus limites. Ao contrário, mais do que limites, havia se tornado um obstáculo maior, seja na eclosão do processo catártico, já que não era capaz de trazer à tona todos os conteúdos da profunda psique. Assim, o pensador passa a se utilizar de outras técnicas como a associação livre, a análise dos atos falhos e a interpretação dos sonhos. Dentre outros propósitos, entendia que, através desses métodos, os mecanismos de recalcamento emergiriam com maior facilidade e objetividade, servindo como importantes componentes para se entender a dimensão do conflito trazido pelo paciente. Sabe-se que o mecanismo de defesa é uma estratégia psíquica de “proteção” da personalidade frente ao que se considera como “ameaça” à sua constituição. No entanto, essa defesa configura-se como uma distorção da realidade, indicando sintomas neuróticos. Ocorre que uma percepção, por mínima que seja, de algo no mundo externo ou interno que gere desconforto, faz com o que o indivíduo busque a anulação desse desprazer. Dessa forma, distorce ou suprime a realidade para afastar os conteúdos psíquicos que o desagradam. Mas ainda que seja uma estratégia do sujeito, trata-se de um mecanismo inconsciente, ocorrendo de forma involuntária e independente. Os principais mecanismos de defesa são: Negação - mecanismo que exclui a realidade. Consiste na tendência em negar sensações dolorosas e sentimentos de dor e perda. São muito comuns em crianças ou pessoas em geral, face a notícias de traição ou morte. Racionalização - É uma redefinição da realidade. Acontece quando o indivíduo constrói toda uma argumentação intelectualmente aceitável para justificar sua deformação da realidade ou da verdade. Isto é, ele “justifica” sua conduta a partir de uma lógica própria e convincente (a si e aos demais). Em outras palavras, a racionalização seria como uma mentira inconsciente que se põe no lugar da verdade daquilo que não se quer aceitar. Formação reativa - Promove uma inversão da realidade, caracterizada pela adoção de uma atitude de sentido oposto a um desejo que foi recalcado. Na formação reativa, o psiquismo assume um impulso indesejável de ação. Comportamentos de superproteção, ternura excessiva etc, são exemplos de condutas que “conscientemente” os indivíduos não desejariam para si, mas que impõem aos outros a sua volta. Isolamento - Típico das neuroses obsessivas, o mecanismo de isolamento divide a realidade. Atua na forma de isolar um comportamento ou pensamento, levando o indivíduo a interromper qualquer possibilidade de outras formas de pensamento ou mesmo o conhecimento de si. O mecanismo de defesa do isolamento gera: a) pausas no decurso do pensamento; b) fórmulas e rituais; c) ações que criam um hiato na sucessão temporal. 105

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Charcot preferiu recusar essa causalidade. E é justamente a partir daqui que Freud tomará um caminho além dos esforços iniciais de seu mestre. A sexualidade passa a se tornar um núcleo central para toda a construção da metapsicologia freudiana. Era o ponto de partida da psicanálise.


Filosofia

Projeção - Trata-se de uma incapacidade do indivíduo lidar com algo que é seu, seja um comportamento ou sentimento. Daí, projeta algo de si no mundo externo, sem perceber que aquilo diz respeito a algo seu, que é indesejado. Um exemplo: alguém difama outra pessoa justamente acusando-a de ser difamadora. Novamente, é um processo inconsciente. Regressão - Um escape da realidade. O sujeito recua a um estágio anterior de seu desenvolvimento para fugir de situações conflitivas. Um exemplo ocorre quando o indivíduo toma a posição de uma criança em alguma situação problemática, em vez de agir de forma mais adulta. Repressão - Esse mecanismo atua de forma patogênica evitando a realidade. O objetivo é fazer desaparecer da consciência qualquer impulso ameaçador, sejam eles sentimentos ou desejos. Após o abandono da hipnose e a identificação dos mecanismos de defesa, Freud começa a postular um de seus principais conceitos junto ao de recalcamento: a noção de inconsciente. Segundo Laplanche & Pontalis (2001 p.17), o inconsciente é usado para exprimir, em um sentido descritivo, o conjunto dos conteúdos não presentes no campo afetivo da consciência. No sentido “tópico”, o inconsciente “(…) designa um dos sistemas definidos por Freud no quadro da sua primeira teoria do aparelho psíquico. É constituído por conteúdos recalcados, aos quais foi recusado o acesso ao sistema pré-consciente pela ação do recalque.

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Segundo Freud, os pensamentos humanos são desenvolvidos por diferenciados processos que se articulam no campo da semântica. Em outras palavras, a mente desenvolve pensamentos em um intrincado sistema de linguagem baseado em imagens - as quais são meras representações de significados latentes. Segundo Garcia-Roza (1985, p. 174): O inconsciente freudiano não é uma substância espiritual, contrafação da res cogitans cartesiana, nem é um lugar ou uma coisa. O termo “conteúdo do inconsciente” não designa uma relação de conteúdo a continente análogo a quando dizemos que o copo contém água. Dizer que uma representação é inconsciente ou que está no inconsciente não significa outra coisa senão que ela está submetida a uma sintaxe diferente daquela que caracteriza a consciência. O inconsciente é uma forma e não lugar ou uma coisa. Melhor dizendo: ele é uma lei de articulação e não a coisa ou o lugar onde essa articulação se dá.

Assim, o que define o inconsciente não são seus conteúdos, mas a forma segundo a qual ele opera, impondo a esses conteúdos um determinado modo. Esse modo/forma é sua função simbólica - isto é, a maneira pela qual a linguagem media a relação entre inconsciente-consciente através de representações imagéticas. Como afirma Freud (1974b [1915], p.230): “(…) A representação (Vorstellung) consciente abrange a representação da coisa mais a representação da palavra 106

que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação da coisa apenas”. A linguagem, portanto, é o mediador para a emergência do inconsciente. Ele, em si, é estruturado como uma linguagem. Segundo Ernst Cassirer (1998 [1954]), a função simbólica é aquela pela qual o indivíduo constitui seus modos de objetivação, percepção e discurso, capaz de mediar a realidade ao mesmo tempo que constitui o indivíduo enquanto indivíduo humano: ser desejante e comunicante. Em diversas obras, Freud busca essa articulação entre inconsciente e linguagem. Especialmente em Os chistes e suas relações com o inconsciente (1905), o psicanalista austríaco não somente desenvolve sua teoria do inconsciente, como articula o conteúdo deste ao ato da fala, especialmente quando ele emerge na dinâmica dos atos falhos. Segundo Laplanche & Pontalis (1980, p.4), o ato falho é ação pela qual (…) o sujeito, a despeito de si mesmo, substitui um projeto ao qual visa deliberadamente por uma ação ou uma conduta imprevistas. Tal como em relação ao lapso, Sigmund Freud foi o primeiro, a partir da Interpretação dos Sonhos, a atribuir uma verdadeira significação ao ato falho, mostrando que é preciso relacioná-lo aos motivos inconscientes de quem o comete. O ato falho ou acidental torna-se equivalente a um sintoma, na medida em que é um compromisso entre a intenção consciente do sujeito e seu desejo inconsciente.

Segundo Freud, a psique humana subdivide-se em três níveis. A analogia com o iceberg é recorrente. Na camada visível e na oscilante, estariam o consciente (materiais perceptíveis) e o pré-consciente (materiais latentes, mas possíveis de emergirem à consciência). Na camada não visível, o inconsciente (material de difícil acesso; o conteúdo mais profundo da mente). Como em um Iceberg, a parte visível é bem menor do que a parte submersa - que dá sustentação a todo o bloco de gelo. Dentro da metapsicologia freudiana, outros três conceitos aparecem em evidência: de id, ego e superego - estruturas formativas da personalidade. São representados, sinteticamente, pela impulsividade, racionalidade e moralidade, respectivamente. n

O Id representa os processos primitivos do pensamento. É o componente nato dos indivíduos. Consiste nos desejos, vontades e pulsões primitivas, formado principalmente pelos instintos e desejos orgânicos pelo prazer. Segundo Freud, toda energia proveniente da atividade humana advém do Id, constituindo-se com o reservatório das pulsões. A partir do Id se desenvolvem as outras partes que compõem a personalidade humana: Ego e Superego. Segundo Laplanche & Pontalis (Idem, p.3), o Id é “(…) o reservatório inicial da energia psíquica; do ponto de vista dinâmico, entra em conflito com o ego e o superego que, do ponto de vista genético, são suas diferenciações”.


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O Ego surge a partir da interação com a realidade, adequando (alternando) as crenças morais constituídas e as necessidades primitivas advindas do Id, no ambiente em que vive. É a instância que se inclui no consciente. O Ego é o mecanismo de equilíbrio da personalidade, regulando os impulsos na mesma medida em que tenta satisfazê-los de modo mais ponderado e menos imediatista. Segundo Freud, o Ego começa a se desenvolver já nos primeiros anos de vida do indivíduo. O Superego desenvolve-se a partir do Ego e consiste na representação dos ideais e valores morais e culturais do indivíduo, afirmando-se como uma contra ação ao Id. Em outras palavras, o Superego atua como uma espécie de “conselheiro” ao Ego, alertando-o sobre atos que não dizem respeito ao conjunto de princípios internalizados ao longo da vida pelo sujeito. Segundo Laplanche & Pontais (Ibidem, p.28), o papel do Superego (ou Supereu) assemelha-se “(…) ao de um juiz ou de um censor relativamente ao ego”. De acordo com Freud, essa instância psíquica atua na formação de ideias e na auto-observação, gerando a “consciência moral”. Começa a se desenvolver a partir do quinto ano de vida, quando o contato com a sociedade começa a se intensificar (por exemplo, após a entrada na escola) e as relações sociais passam a ser melhor interpretadas pelas pessoas.

As pulsões e o mal-estar na civilização O interesse de Freud na dinâmica da (in)consciência e nas instâncias formativas da personalidade o levou à teorização sobre as pulsões. A pulsão é um processo dinâmico que consiste numa pressão/carga energética que leva o organismo tender a um objetivo. De acordo com Freud, uma pulsão busca atingir sua meta: a supressão da tensão que reina na fonte pulsional. Inicialmente, Freud considerava que todas as pulsões poderiam ser de três tipos: 1) de origem sexual; 2) da necessidade de autopreservação; 3) de movimento contrário ao das pulsões de agregação e autopreservação. Em todas elas, a atuação do Id é determinante, já que elas são frutos de demandas primitivas. Para o psicanalista, a pulsão tem um papel tão preponderante na dinâmica do (in) consciente sobre a vida humana que não poderíamos, sequer, cogitar a formação da civilização sem levar em consideração seu papel. Em duas de suas mais célebres obras “antropológicas” (Totem e Tabu, O futuro de uma ilusão e O mal estar da civilização) a questão é retomada para explicar como o homem constitui o processo de vida social a partir de um “gerenciamento” da economia das pulsões.

Fonte: Wikimedia Commons

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Figura 03 - O grande masturbador. Autor: Salvador Dali (1929)

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Filosofia

Segundo Freud, a civilização é nomeada pelo agrupamento de homens que se afastam da vida animal. Trata-se do controle humano sobre a aleatoriedade da natureza. A civilização (ou cultura - já que ele não estabelece distinções) produz um profundo mal-estar nos homens, uma vez que há um antagonismo de difícil superação entre o que viver em sociedade traz e face às exigências pulsionais. Nesse processo, para que a civilização se mantenha, é necessário um sacrifício do indivíduo: a renúncia de sua satisfação pulsional, destacadamente sua agressividade e vida sexual.

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Nesse ponto, Freud se assemelha aos filósofos contratualistas, quando afirma ser a natureza humana apetitosa, ambiciosa, egoísta etc, carecendo de uma fonte legal ou institucional para frear seus impulsos e garantir a estabilidade social e seus direitos naturais (vida, propriedade, liberdade…). Noutra perspectiva, Freud dirá que a civilização é justamente a inimiga da condição de ser de um indivíduo, e viver em sociedade não é somente abrir mão de um impulso, mas também dos desejos, vontades e até prazeres. Segundo o psicanalista, todos os homens possuem sua dose de tendências autodestrutivas, antissociais e, portanto, anti-culturais. A vida em civilização é a marca dessa negação, uma expressão dialética entre o homem isolado e sua liberdade, face ao poder do coletivo que se sobrepõe ao poder do indivíduo que a sociedade sobrepõe no processo civilizatório. O papel da civilização, para Freud, é o de evitar o sofrimento e ofertar segurança, na medida em que coloca o prazer em segundo plano. No entanto, ela demanda de mecanismos para lograr esse empreendimento. É nesse ponto que surge a função da religião. Freud ao longo de sua obra sempre mostrou-se um crítico mordaz das mais variadas tradições religiosas. Não obstante, reconhece que ela é uma das ferramentas do processo social para gerar coesão e harmonia entre “múltiplas pulsões”, justamente por que ela lida com a dimensão da repressão (travestida pelo discurso da “culpa”, “pecado” etc). A religião atua como elemento de conservação da sociedade. No enfrentamento de um estado de desamparo infantil que persiste até a idade adulta, o homem se apega à religião como uma forma de preencher essa lacuna. Nesse sentido, ela seria capaz de ofertar a segurança de um pai, que ao mesmo tempo poupa seus filhos de uma neurose individual, mas os submete a um “delírio de massa”. Assim, a alusão de Freud à religião não é em sentido positivo e chega a dizer que ela seria até dispensável para a constituição de uma civilização. Se um dia ela fosse extinta, invariavelmente, os homens desenvolveriam outros sistemas doutrinários para se “defender”. 108

De acordo com Freud haveria três aspectos fundamentais que se entrelaçam na formação de uma civilização: a agressividade, a angústia e, especialmente, o sentimento de culpa. Para ele, a culpa era o aspecto central a mediar a relação entre o indivíduo e a cultura. A culpa seria a exata tensão entre o Ego e o Superego, na qual emergiria uma necessidade de punição. Haveria, segundo ele, duas origens para esse sentimento de culpa, sendo que o medo era a mola-mestra dessa relação. O primeiro, um medo para com uma autoridade exterior; o segundo, um temor frente ao superego. No primeiro caso, a culpa poderia ceder a uma renúncia pulsional, evitando seu sentimento. Já no segundo caso isso seria impossível, uma vez que o desejo permaneceria, mas não teria força suficiente para irromper o Superego. Em suma, só existe civilização por que ela consegue manter os indivíduos atados pelo medo e pelo sentimento de culpa - que gera um desenvolvimento do Superego, cuja incidência constante produz a evolução da cultura como conhecemos (independente para onde isso está nos levando).

As influências de Schopenhauer e Nietzsche no pensamento freudiano Embora as diversas biografias de Freud não o coloque como tributário da tradição filosófica, são inegáveis as intuições colhidas de suas leituras, particularmente de Montaigne, Pascal, Hegel e, sobretudo, Shopenhauer e Nietzsche. Não obstante, por mais que relegue a segundo plano a influência filosófica (centrando a psicanálise numa dimensão empírica forjada na clínica) é patente a apropriação de muitas ideias originárias da filosofia moderna. Contudo, parte dos historiadores da psicanálise preferem defender a tese de que a obra de Freud responde a um zeitgeist próprio do século XIX e início do século XX. Daí a semelhança em muitas teorias e críticas. Em outras palavras (psicanalíticas), a obra de Freud seria um sintoma da crise filosófica da modernidade e da necessidade de se repensar a subjetividade humana e reorientar o conceito de metafísica. Por isso a sincronia com a Filosofia em muitas de suas abordagens e intuições. Tal qual Nietzsche, a obra de Freud é marcada por uma crítica às religiões, notadamente a cristã. Para ele - e não diferente para Nietzsche- o cristianismo e a moral da civilização ocidental são a principal causa da neurose. Em Cinco Lições de Psicanálise (1909) é taxativo a noção de que “(…) A neurose substituiu no nosso tempo o convento em que eles usaram para retirar todas as pessoas a quem a vida tinha decepcionado ou que se sentiram muito fracos para lidar com isso.” Na crítica que tanto um quanto outro fazem, percebe-se não somente o teor, mas também os procedimentos metodológicos para se constituí-las. Em


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Obras como Totem e Tabu são categóricas em demonstrar o uso que o psicanalista faz do método genealógico na análise da origem da religião cristã (e os ritos católicos, como a eucaristia), na tentativa de compreender os elementos que levam uma dada cultura a produzir/estabelecer seus “ídolos” a partir de estruturas de repressão. Na obra Moisés e o Monoteísmo, Freud faz uma alusão ao niilismo e às “mortes de Deus” - conceitos eminentemente nietzscheanos - ressignificados na análise que faz do pecado original e do crime de parricídio no texto bíblico. Segundo ele, o “crime primitivo” que a tradição judaico-cristã miticamente chama de “pecado original”, tenderia a voltar sempre à consciência da humanidade. O Cristianismo excederia o monoteísmo judaico como uma religião, porque admite a morte de Deus como uma forma de remissão do pecado primeiro. Essa morte não é somente a literalidade do sacrifício, mas é a diluição de uma forma de Deus que precisa se fazer carne, anular-se e padecer para livrar o homem de sua culpa. E isso tem um preço severo. Ela clama do fiel não somente a aceitação de um sacrifício, mas a imitação do ato: o anular a si em virtude de uma ideia construída, que nada mais é do que uma segunda forma de lidar com as perdas de referência paterna - uma forma de niilismo. Em termos freudianos, a confissão da morte de Deus no Cristianismo, embora mascarada, não é completamente revelada. Portanto, em vez de se manifestar de forma clara a consciência, ela aparece sob a forma de sintomas, isto é, como neurose. E uma das principais neuroses é a fé cega num evento específico e que procura encerrar todos os significados no que é aparente, não profundo ou inconsciente: a mera morte na cruz e o significado que o clero estabeleceu “niilisticamente” para isso. Por decorrência, observa-se essa cadeia de influências. O mesmo pode ser afirmado acerca das intuições de Schopenhauer, já presentes no pensamento de Nietzsche e que aparecem com vigor em Freud. O tema da vontade - que em Nietzsche aparece reorientado como “vontade de potência” - possui muitas características com o conceito de inconsciente, em Freud. Tanto para um quanto para outro, há algo no homem maior do que a vida consciente, racional e previsível. Uma espécie de impulso cego, um esforço sem fim a se manifestar de formas indiretas: a vontade através da representação e o inconsciente por meio dos sonhos, do ato falho etc.

Outro ponto em comum diz respeito à noção de recalque para a psicanálise. Em suma, trata-se de um mecanismo de defesa em que o conteúdo de uma experiência dolorosa ou traumática é “apagada” da memória recente e transferida para o inconsciente, evitando assim que o sujeito tenha acesso imediato a ela. A vontade, segundo Schopenhauer, atua de maneira análoga: ela impede que certos conteúdos cheguem ao intelecto quando compreende que esses poderiam prejudicar o indivíduo. Em casos extremos, se não houvesse esse mecanismo, o indivíduo seria levado à loucura. Um segundo ponto de confluência- e que para a psicanálise é central - é o tema da sexualidade. Inclusive, sobre o assunto, há um dos poucos tributos de Freud à filosofia moderna ao afirmar que Schopenhauer foi um dos pioneiros a pontuar a questão devidamente. Tanto Freud quanto Schopenhauer, compreendem a sexualidade como uma força capital das ações humanas, transpondo o mero significado do sexo enquanto coito ou reprodução, elevando sua representação ao nível abrangente do impulso por maximização do prazer - algo presente em absolutamente todas as manifestações humanas. Em 1920, Freud publica a obra Além do princípio do prazer, em que o tema da morte aparece em relevância. É nesse texto basilar que o psicanalista austríaco postula os conceitos de “pulsão de morte/vida”. A primeira pulsão (morte) seria uma força que supera a tudo e a todos, buscando trazer todas as coisas para uma quietude, inércia infinda, eliminando qualquer lugar de tensão. Embora se afirme a morte biológica, é internamente que o indivíduo primariamente morre quando condensa e direciona sua existência para um “não lugar”. Schopenhauer afirma que um dos impulsos da vontade é justamente o de “encerrar em si mesma”: por mais que o indivíduo lute para manter-se, ele é conduzido invariavelmente para a morte (que é algo maior e que tudo supera e dilui). A morte seria assim a meta final de todo o ser vivo: a anulação do desejo - que é o que move, mas também traz o sofrimento pela impossibilidade de completo saciar.

Crítica à psicanálise (e sua sobrevivência) Embora bastante influente, sobretudo no campo acadêmico das ciências humanas e linguagens e goze de prestígio no campo clínico, é fato que a psicanálise é um dos saberes mais controversos do último século. Não raro, há a acusação de que seus postulados não podem ser tomados como rigorosamente científicos, sendo no máximo um esforço estético - não diferindo-se de um “gênero literário”, por exemplo. 109

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certa medida, Freud emprega um amadurecimento do método genealógico de Nietzsche quando se dispõe a analisar a cultura, especialmente o fenômeno religioso.


Filosofia

Q. 01. Resposta esperada: O uso da técnica da hipnose servia como um instrumento para supostamente acessar os conteúdos mentais e obter o controle da situação. Por meio da sugestão hipnótica, poderia se obter um conjunto de sintomas de histeria bem definidos e regulares. Q. 02. Resposta esperada: O mecanismo de defesa é uma estratégia psíquica de “proteção” da personalidade frente ao que se considera como “ameaça” à sua constituição. São eles: Negação; Racionalização; Formação reativa; Isolamento; Projeção; Regressão e Repressão. Q. 03. Resposta esperada: A analogia utilizada é a do iceberg. Na camada visível e na oscilante, estariam o consciente (materiais perceptíveis) e o pré-consciente (materiais latentes, mas possíveis de emergirem à consciência). Na camada não visível, o inconsciente (material de difícil acesso; o conteúdo mais profundo da mente). Como num Iceberg, a parte visível é bem menor do que a parte submersa - que dá sustentação a todo o bloco de gelo. Q. 04. Resposta esperada: Dentro da metapsicologia freudiana, outros três conceitos aparecem em evidência: de id, ego e superego - estruturas formativas da personalidade. São representados, sinteticamente, pela impulsividade, racionalidade e moralidade, respectivamente. Q. 05. Resposta esperada: Não obstante, Freud reconhece que ela é uma das ferramentas do processo social para gerar coesão e harmonia entre “múltiplas pulsões”, justamente por que ela lida com a dimensão da repressão (travestida pelo discurso da “culpa”, “pecado” etc), a religião atua como elemento de conservação da sociedade.

O filósofo e epistemólogo austríaco, Karl Popper, afirma ser a psicanálise uma pseudociência. Para o pensador, toda ciência para ser aceita como tal, precisa de uma contraprova que a colocasse em xeque, para aí sim, após sua superação, ser validada como ciência. Não seria o caso da psicanálise. Na pretensão de tudo explicar, encaixando a experiência em modelos fechados e ao mesmo tempo não verificáveis empiricamente, ela não poderia ser aceita como ciência, de fato. Faltaria, portanto, uma “contraprova” à psicanálise. Segundo Popper (1980, p.64) As teorias psicanalíticas, apesar de se apresentarem como científicas, de fato tem mais elementos em comum com os mitos primitivos do que com a ciência. A teoria é compatível com as mais divergentes condutas humanas, de modo que é praticamente impossível indicar um comportamento que não possa ser interpretado como uma confirmação da teoria. (…) Essa parece ser a força e o fascínio da teoria: poder explicar tudo ou quase tudo.

Outro trabalho de destaque, que objetivou demonstrar os limites conceituais e epistemológicos da psicanálise, foi a obra do psiquiatra inglês, Willian Sargant: A possessão da mente (1975). Neste trabalho, o autor questiona o método psicanalítico, afirmando categoricamente que a relação analista-paciente seria suficiente para provocar estados de sugestionabilidade. Em outras palavras, o que os pacientes relatavam com suas experiências nada mais eram do que as crenças do próprio psicanalista que tudo faria para conduzir os relatos a um enquadre dentro da rígida e limitada estrutura teórica da psicanálise. Sargant partia de seu estudo sobre relatos de pacientes com traumas de guerra. Segundo o psiquiatra inglês, no corpo de seus testemunhos - dadas as suas fragilidades psíquicas - havia uma identificação com aquilo que era sugestionado pela condução do médico. O mesmo se daria na psicanálise: uma ficcionalização das experiências geradas na própria relação entre analista-analisado.

SAIBA MAIS Karl Popper foi um filósofo austríaco naturalizado britânico. Nasceu em Viena no dia 28 de Julho de 1902 e faleceu em Londres no dia 17 de Setembro de 1994. É seguramente um dos pensadores mais influentes do século XX no campo da Filosofia da Ciência. Doutorou-se em Filosofia em 1928. Após ter lecionado durante cerca de seis anos, mudou-se para a Nova Zelândia e, em seguida, para a Inglaterra. Neste país foi nomeado professor em 1949. Embora suas principais obras versem sobre o referido campo temático, destacou-se também como um importante filósofo social e político, tornando-se um grande defensor da democracia liberal, tecendo severas críticas às experiências totalitárias, seja ao nazismo ou ao comunismo. De suas obras, destacam-se A Sociedade Aberta e Seus Inimigos (1974) e A Lógica da Pesquisa Científica (1993) Entre suas teses, a principal é a defesa do falsificacionismo - um critério da demarcação entre a ciência e a não ciência. De acordo com essa teoria, só se é possível afirmar a validade de uma tese (enquanto substrato científico) se ela for possível de ser “falseada”. Foi o que ocorreu com Einstein quando recolheu elementos capazes de demonstrar as inconsistências da teoria newtoniana. A falseabilidade, em síntese, é um instrumento metodológico-conceitual que testa o grau de confiança das teorias existentes. Em suma, se uma teoria resiste aos erros, mais consistente ela é. Se uma dada teoria encerra-se em si mesma, ela não pode sequer ser chamada de científica. Figura 04 - Fotografia de Karl Popper (1980) Fonte: Wikimedia Commons

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Por mais que a psicanálise siga até os dias atuais sendo bastante criticada, seja como prática clínica ou ciência, é indubitável que muitas de suas abordagens, sobretudo os conceitos estruturantes da psique humana, continuem a vigorar nos mais diversos círculos de saberes. Ainda que possamos mapear muitas das ideias de Freud em autores da filosofia como Montaigne, Pascal, Hegel, Kant e Nietzsche, é inegável a originalidade no uso da (auto) análise no processo explicativo dos problemas da subjetividade humana. A procura clínica e a estabilidade e prestígio que auferem a comunidade psicanalítica no mundo inteiro dão a tônica e resposta social para a importância e relativa “eficácia” de seus métodos, mediante suas propostas e abordagens sui generis. A vasta produção acadêmica nos mais variados campos do saber atestam para a atualidade do debate psicanalítico, ainda que controverso em suas conclusões.

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Bibliografia CASSIRE, E. (1964). Filosofia de las formas simbólicas. México: Fondo de Cultura Econômica, 1998. FREUD, S. (1914) A história do movimento psicanalítico. In: Obras Completas, Volume XIV. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1974a ______. (1915) O Inconsciente. In: Obras Completas, Volume XIV. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1974b GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Freud e o inconsciente. 2 edição. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1985. LAPLANCHE; PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2001. POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Brasília: Editora da UnB. 1980. MEZAN, Renato. Que tipo de ciência é a psicanálise. In: Patto, M.H; Frayze Pereira, J.A. Pensamento Cruel: humanidade e ciências humanas: há lugar para a psicologia? São Paulo, Casa do Psicólogo, 2007. MEYER, Catherine (Org.). O livro negro da psicanálise: Viver e pensar melhor sem Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. SARGANT, William. A possessão da mente. São Paulo: Editora Imago, 1975.

Título: Face a Face (do original, Ansikte mot ansikte) Direção: Ingmar Bergman Ano: 1976 País: Suécia Idioma: Sueco Gênero: Drama

Exercícios de Fixação 01. Na pré-história da psicanálise, a hipnose foi um importante instrumento utilizado por Freud no tratamento da histeria. Discorra sobre essa prática pelo psicanalista austríaco. 02. O que é um mecanismo de defesa? Quais são eles?

04. Quais são as instâncias formativas da personalidade para a psicanálise? 05. De que forma crítica Freud concebe a função da religião na civilização?

03. Segundo Freud, a psique humana subdivide-se em três níveis. Quais são eles e que analogia Freud usa para defini-los?

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Sinopse Face a face é um filme de drama sueco, escrito e produzido em 1976 pelo cineasta e dramaturgo Ingmar Bergman - diretor aclamado por filmes cujos temas principais centram-se no estudo psicológico dos personagens e das famílias disfuncionais, assim como na angústia causada pela ausência de referências espirituais. Na trama, a personagem Jenny Isaksson é uma psiquiatra que passa a sofrer profunda depressão e ser assombrada por visões de uma velha. Na procura desesperada de fugir desse pesadelo, ela- casada- passar a ter um caso com Tomas Jacobi, um médico, também casado. Essa “proibida relação” desencadeia na jovem Jenny um quadro histérico, quando após novas alucinações com a velha mulher, tenta suicídio. Enquanto está entre a vida e a morte, começa a repassar em sua memória todas as pessoas que tiveram influência em sua vida. Quando está se recuperando, consegue entender o significado da assombração da velha senhora e por qual motivo essa alucinação provoca tanto sofrimento.

Fonte: Wikimedia Commons

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Exercícios C om p l em en t ares 01. Freud acredita que as doenças psíquicas seriam tratadas a partir: a) da psicanálise, que encontra no ser humano apenas doenças físicas. b) da psicanálise, que seria a cura pela fala. c) da psicanálise, que seria a solução dos males do corpo. d) da psiquiatria, que se manifesta para solucionar os males do espírito. e) da psiquiatria, que seria a cura pela fala. 02. Pode-se dizer que o conceito de resistência foi introduzido cedo por Freud e que ele exerceu um papel decisivo no aparecimento da psicanálise, impulsionando-o a renunciar à hipnose e à sugestão, por causa da resistência que lhes apunham certos pacientes. Nesse sentido, a resistência corresponde a tudo o que, no decorrer do tratamento a) psicanalítico, nos atos e palavras do analisando, se opõe ao acesso deste ao seu inconsciente. b) analítico, nas fantasias e emoções do analisando, se alinha ao acesso deste ao seu inconsciente. c) de elucidação dos sintomas, colabora com o acesso aos conteúdos conscientes e inconscientes. d) cognitivo do discurso do paciente, se põe como acesso aos conteúdos conscientes, pré-conscientes e inconscientes. e) analítico, nas somatizações ou ações do analisando, melhora o acesso deste ao seu inconsciente. 03. Os conceitos centrais no pensamento freudiano para entender como funciona a psique humana são:

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a) imaginação, superação de si e traumas. b) consciência e traumas reais. c) consciência e realidade latente. d) Sonhos, traumas e anomalias. e) Ego, Id e Superego. 04. (FCC) A premissa inicial de Freud era de que há conexões entre todos os eventos mentais. Quando um pensamento ou sentimento parece não estar relacionado aos pensamentos e sentimentos que o precedem, as conexões estão: a) no pré-consciente; b) na consciência; c) no subconsciente; d) no prazer; e) no inconsciente. 05. Para Freud, algumas das formas de analisar o inconsciente humano são: a) traumas e Ego. b) recalques e anomalias. c) Sonhos e imaginação. d) Ego e consciência. e) atos falhos e sonhos.

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06. Freud (1856-1939), médico austríaco, teve como principal novidade a descoberta do inconsciente e a compreensão da natureza sexual da conduta, que foram golpes fortes na noção de liberdade racional da sociedade ocidental. Sobre as teorias de Freud, marque a alternativa incorreta. a) A teoria de Freud é duramente criticada pela psicologia de linha naturalista, pois não usa a experiência no sentido tradicional do método científico. b) Freud trabalha com uma realidade hipotética, considerada inverificável nos moldes tradicionais: o inconsciente. c) A vida inconsciente, segundo Freud, é apenas a ponta do iceberg, e a montanha submersa é o consciente. d) A vida consciente, segundo Freud, é apenas a ponta do iceberg, e a montanha submersa é o inconsciente. e) a vida inconsciente é manifestação do ser enquanto ser. 07. Freud comparava o inconsciente a um grande salão de entrada no qual um grande número de pessoas, cheias de energia e consideradas de má reputação, movem-se desordenadamente, agrupam-se e lutam incansavelmente para escapar até um pequeno salão contíguo. No entanto, um guarda atento protege o limiar entre o grande salão de entrada e a pequena sala de recepção. O guarda possui dois métodos para prevenir que elementos indesejáveis escapem do salão de entrada: ou os recusa na porta de entrada ou expulsa aqueles que haviam ingressado clandestinamente na sala de recepção. O efeito nos dois casos é o mesmo: os indivíduos ameaçadores e desordeiros são impedidos de entrar no campo de visão de um hóspede importante que está sentado no fundo da sala de recepção, atrás de uma tela. O significado da analogia é óbvio. As pessoas no salão de entrada representam as imagens inconscientes. A pequena sala de recepção é a) a representação de um mecanismo de defesa consciente. b) a consciência. c) a pré-consciência. d) o superego. e) o ego. 08. Para Sigmund Freud, a personalidade forma-se ao redor de três estruturas: o id, o ego e o superego. O id a) funciona às vezes pelo princípio do prazer e às vezes pelo princípio de realidade, sendo pré- consciente. b) controla as atividades de pensamento e raciocínio, sendo parte consciente e parte inconsciente. c) age consciente, pré-consciente e inconscientemente e é responsável pela consciência dos padrões morais. d) funciona pelo princípio de realidade e o seu conteúdo pode ser facilmente recuperado. e) é completamente inconsciente e consiste de desejos e impulsos que buscam expressar-se permanentemente.


FRENTE

A

FILOSOFIA

Exercícios de A p rof u n dam en t o 01. (UFU MG) Ao discutir sobre a noção de esclarecimento, I. Kant em sua obra Resposta à pergunta: que é Esclarecimento? ressalta: “Para este esclarecimento [.Aufklärung.] porém nada mais se exige senão LIBERDADE. E a mais inofensiva entre tudo aquilo que se possa chamar liberdade, a saber: a de fazer uso público de sua razão em todas as questões.”

04. De que forma Marx se apropria da crítica de Feuerbach para operar uma revisão da dialética hegeliana? Na resposta, considere o posicionamento de Feuerbach frente ao hegelianismo. 05. Friedrich Nietzsche (1844 – 1900) não poupou críticas à filosofia socrático-platônica, à religião judaico-cristã e a diversas

(KANT, I. Resposta à pergunta: que é Esclarecimento.? In: Textos Seletos. 2 ed. Trad. de Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1985, p. 104)

outras formas de pensamento ético. Para ele, a característica

Por que o uso público da razão está em oposição à menoridade do entendimento humano?

alizado, superior ao mundo terreno que lhe deveria servir de

02. (UFU MG) Leia com atenção o texto abaixo. Um menino, a pedido de sua mãe, foi de manhã à padaria para comprar pães de queijo. Como estivesse em dificuldades financeiras, o comerciante cobrou-lhe trinta centavos a mais pela mercadoria, considerando que este dinheiro por certo não faria falta a uma criança da aparência tão saudável. No início da noite, o pai do menino voltou à padaria para comprar leite, e equivocou-se ao pagar o comerciante, dando-lhe cinquenta centavos a mais. O comerciante, no entanto, prontamente, restituiu ao freguês os cinquenta centavos pagos a mais, considerando que o pai do menino era fiscal da prefeitura e que, em qualquer caso, seria conveniente manter boas relações com as autoridades locais. Em conformidade com o pensamento kantiano, responda às três questões que se seguem. a) Por que a primeira atitude do comerciante (em relação ao menino) é contrária ao dever e imoral? b) Por que a segunda atitude do comerciante (em relação ao pai do menino) é conforme ao dever, mas mesmo assim imoral? c) De acordo com o pensamento de Kant, cite, para o caso 1 (relativo ao menino) e para o caso 2 (relativo ao pai do menino), uma regra que o comerciante poderia ter seguido para agir moralmente. 03. (UEL PR) O marxismo contribuiu para a discussão da relação entre indivíduo e sociedade. Diferente de Émile Durkheim e Max Weber, Marx considerava que não se pode pensar a relação indivíduo – sociedade separadamente das condições materiais em que essas relações se apoiam. Para ele, as condições materiais de toda a sociedade condicionam as demais relações sociais. Em outras palavras, para viver, os homens têm de, inicialmente, transformar a natureza, ou seja, comer, construir abrigos, fabricar utensílios, etc., sem o que não poderia existir. Para Marx qual é o ponto de partida para o estudo de qualquer sociedade?

comum desses sistemas é negar a vida, ao criar um mundo idemodelo. Portanto, Nietzsche propõe uma transvaloração de todos os valores, cujo objetivo é o equilíbrio das forças instintivas e vitais do mundo. Conforme Chauí, A força vital se manifesta como saúde do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso, os fortes desconhecem a angústia, medo, remorso, humildade, inveja. A moral dos fracos, porém, é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida, invejam os fortes e procuram, pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito, vingar-se da força vital. (CHAUÍ, M. Filosofia. São Paulo: Ática, 2007, p. 178)

Com base nos textos acima e nos seus conhecimentos sobre o pensamento de Nietzsche, responda. a) Qual é a relação entre o dionisíaco e o apolíneo que marcou a cultura helênica até o aparecimento da filosofia socrático-platônica? b) Defina o que é a moral do senhor e destaque algum exemplo dessa moral no texto acima. c) Defina o que é moral do escravo e destaque algum exemplo dessa moral no texto acima. 06. (UFU MG) Leia atentamente o texto a seguir. “O cristianismo, por sua vez, esmagou e alquebrou completamente o homem, e o mergulhou como que em um profundo lamaçal: então, no sentimento de total abjeção, fazia brilhar de repente o esplendor de uma piedade divina, de tal modo que o surpreendido, atendido pela graça, lançava um grito de embevecimento e por um instante acreditava carregar o céu inteiro em si.” (NIETZSCHE, F. Humano, demasiado humano. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 59)

Com base no texto de Nietzsche, responda às seguintes questões: 113


Filosofia

a) O cristianismo pode ser considerado “moral do escravo” ou “moral do senhor”? b) Selecione uma frase do texto que apresenta a característica fundamental do cristianismo para Nietzsche. c) Com base na frase selecionada, explique se, para Nietzsche, o cristianismo é uma doutrina que nega ou que valoriza a força, a saúde e a vida. 07. Leia o fragmento a seguir e responda ao que se pede: Percebi que meus amigos admiradores de Marx, Freud e Adler impressionavam-se com uma série de pontos comuns às três teorias, e sobretudo com sua aparente capacidade de explicação. Essas teorias pareciam poder explicar praticamente tudo nos seus respectivos campos. O estudo de qualquer uma delas parecia ter o efeito de uma conversão ou revelação intelectual, abrindo os olhos para uma nova verdade, escondida dos ainda não iniciados. Uma vez abertos os olhos, podia-se ver exemplos confirmadores em toda parte: o mundo estava repleto de verificações da teoria. Qualquer coisa que acontecesse vinha confirmar isso. A verdade contida nessas teorias, portanto, parecia evidente; os descrentes eram nitidamente aqueles que não queriam vê-la: recusavam-se a isso para não entrar em conflito com seus interesses de classe ou por causa de repressões ainda não analisadas, que precisavam urgentemente de tratamento. (POPPER, Karl R. Conjecturas e Refutações. Brasília: Editora da UnB. 1980)

Por que para filósofo e epistemólogo austríaco Karl Popper a psicanálise não poderia ser considerada uma ciência? 08. (Enem MEC) Na produção social que os homens realizam, eles entram em determinadas relações indispensáveis e independentes de sua vontade; tais relações de produção correspondem a um estágio definido de desenvolvimento das suas forças materiais de produção. A totalidade dessas relações constitui a estrutura econômica da sociedade – fundamento real, sobre o qual se erguem as superestruturas política e jurídica, e ao qual correspondem determinadas formas de consciência social.

FRENTE A  Exercícios de Aprofundamento

MARX, K. Prefácio à Crítica da economia política. São Paulo: Edições Sociais, 1977

Para o autor, a relação entre economia e política estabelecia no sistema capitalista faz com que a) o proletariado seja contemplado pelo processo de mais-valia. b) o trabalho se constitua como o fundamento real da produção material. c) a consolidação das forças produtivas seja compatível com o progresso humano. d) a autonomia da sociedade civil seja proporcional ao desenvolvimento econômico. e) a burguesia revolucione o processo social de formação da consciência de classe. 114

09. (UEG GO) No século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche vislumbrou o advento do “super-homem” em reação ao que para ele era a crise cultural da época. Na década de 1930, foi criado nos Estados Unidos o Super-Homem, um dos mais conhecidos personagens das histórias em quadrinhos. A diferença entre os dois “super-homens” está no fato de Nietzsche defender que o super-homem a) agiria de modo coerente com os valores pacifistas, repudiando o uso da força física e da violência na consecução de seus objetivos. b) expressaria os princípios morais do protestantismo, em contraposição ao materialismo presente no herói dos quadrinhos. c) abdicar-se-ia das regras morais vigentes, desprezando as noções de “bem”, “mal”, “certo” e “errado”, típicas do cristianismo. d) representaria os valores políticos e morais alemães, e não o individualismo pequeno burguês norte-americano. 10. (FEESP) Nietzsche empreendeu uma Genealogia da moral, com a qual desejou mostrar que os valores da tradição judaico-cristã eram basicamente niilistas. No prólogo do livro, Nietzsche enuncia sua nova exigência, segundo a qual: a) Será preciso descobrir a verdade dos valores morais. b) O próprio valor dos valores morais deverá ser questionado. c) A vontade de vingança deverá operar contra a metafísica. d) Os fracos deverão ser protegidos da vontade dos fortes. e) A vontade de saber deverá prevalecer sobre todas as outras. 11. (UFSJ) Na perspectiva nietzscheana, o livre-arbítrio é um erro porque a) ao declarar que os homens são livres, as forças coercitivas, como o poder da Igreja, agem com o claro intuito de castigá-los, julgá-los e declará-los culpados. b) os homens, indignos como são, jamais alcançarão a dimensão da ideia implícita no livre-arbítrio. c) o cristianismo, apesar de seus esforços candentes, não conseguiu tirar a culpa do ser humano. d) a fatalidade impressa no ser humano está na sua historicidade, no seu livre-arbítrio, e por isso mesmo o Homem está condenado à culpa. 12. (FCC) Em Psicopatologia da Vida Cotidiana, de 1901, Freud descreveu os atos falhos como ações que saíam diferentemente daqueles que o sujeito pretendia conscientemente, o que evidenciava uma formação de compromisso a) para com seus desejos reprimidos no consciente que se figuram em atos de esquecimento ou assemelhados. b) entre a intenção inconsciente e o que está reprimido no consciente c) de base consciente para com seus desejos sexuais deslocados no pré-inconsciente.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

inconsciente. e) que resultava na ocorrência de mecanismos de defesa que surgem à medida que lapsos ocorrem de forma espontânea. 13. (FCC) A descoberta de Freud acerca da resistência dos pacientes levou-o a formular o princípio fundamental da repressão, descrita como o processo a) de expulsão ou exclusão de qualquer ideia, lembrança e desejo inaceitáveis da consciência, deixando os, no entanto, operar no inconsciente. b) que ocorre sempre que o paciente apresenta no processo terapêutico, sintomas de histeria e fuga, deixando o id dominar sua capacidade de realizar conexões positivas; c) de bloqueio ou recusa em revelar lembranças dolorosas durante uma sessão livre de associação; d) que libera o inconsciente para levar ao consciente conteúdos ainda não acessados, que em sessões de associações livres tornam-se fundamentais para a elaboração de insights. e) de bloqueio em identificar situações que podem gerar desconforto racional, revelando a incapacidade do paciente em resolver problemas enfrentados em seu cotidiano e que podem revelar psicopatologias leves. 14. (UEL PR) Leia o texto a seguir. As leis morais juntamente com seus princípios não só se distinguem essencialmente, em todo o conhecimento prático, de tudo o mais onde haja um elemento empírico qualquer, mas toda a Filosofia moral repousa inteiramente sobre a sua parte pura e, aplicada ao homem, não toma emprestado o mínimo que seja ao conhecimento do mesmo (Antropologia). KANT, I. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Trad. de Guido A. de Almeida. São Paulo: Discurso Editorial, 2009. p.73.

Com base no texto e na questão da liberdade e autonomia em Immanuel Kant, assinale a alternativa correta. a) A fonte das ações morais pode ser encontrada através da análise psicológica da consciência moral, na qual se pesquisa mais o que o homem é, do que o que ele deveria ser. b) O elemento determinante do caráter moral de uma ação está na inclinação da qual se origina, sendo as inclinações serenas moralmente mais perfeitas do que as passionais. c) O sentimento é o elemento determinante para a ação moral, e a razão, por sua vez, somente pode dar uma direção à presente inclinação, na medida em que fornece o meio para alcançar o que é desejado. d) O ponto de partida dos juízos morais encontra-se nos “propulsores” humanos naturais, os quais se direcionam ao bem próprio e ao bem do outro. e) O princípio supremo da moralidade deve assentar-se na razão prática pura, e as leis morais devem ser independentes de qualquer condição subjetiva da natureza humana.

Q.02. a) Resposta esperada: Kant afirma a existência de uma oposição entre agir por inclinação e por dever. A inclinação está fundada na liberdade do mundo sensível e é a dependência da faculdade de apetições das sensações. Quando agimos por inclinação, visamos apenas ao resultado imediato de nossas ações, sem nos preocuparmos se tais ações são ou não as melhores possíveis, no que se refere à conduta ética. Na situação apresentada, a atitude do comerciante é contrária ao dever, sendo portanto imoral, uma vez que o mesmo não visa nada além de suas inclinações. b) Resposta esperada: Kant distingue a ação que tem verdadeiro valor moral, à qual ele denomina ‘ação por dever’ da ação que, mesmo sendo correta do ponto de vista externo, tem como fim o interesse. À essa segunda ele denomina ‘ação conforme o dever’, ou seja, não basta fazer o que é correto. No caso em questão, o comerciante devolveu o dinheiro ao freguês. No entanto, foi movido por interesse meramente pessoal e não simplesmente pelo dever. c) Resposta esperada: Nos dois casos, a regra que poderia ter sido seguida era aquilo que Kant denominava de “imperativo categórico” - caracterizado por uma disposição para agir por dever e não por inclinação: seria agir em conformidade com o dever. Para o filósofo, esse imperativo aparece na seguinte formulação: “Age somente segundo uma máxima (lei) tal que possas, ao mesmo tempo, querer que ela se torne lei universal”. Procedendo dessa maneira, o comerciante não estaria colocando seu interesse particular em primeiro plano, mas, sim, submetendo sua ação ao crivo de uma necessidade maior - a de que uma ação, para ser correta do ponto de vista ético, deve poder ser universalizada. Q. 03. Resposta esperada: Na teoria marxista, o materialismo histórico pretende a explicação da história das sociedades humanas, em todas as épocas, através dos fatos materiais, essencialmente econômicos e técnicos. A sociedade é comparada a um edifício no qual as fundações - a infraestrutura seriam representadas pelas forças econômicas, enquanto o edifício em si - a superestrutura, representaria as ideias, costumes, instituições (políticas, religiosas, jurídicas etc.). As relações sociais são inteiramente interligadas às forças produtivas. Adquirindo novas forças produtivas, os homens modificam seu modo de produção, a maneira de ganhar a vida, modificando todas as relações sociais. Q. 04. Resposta esperada: Segundo Ludwig Feuerbach, a concepção lógica da dialética hegeliana estaria “de cabeça para baixo”, uma vez que apresenta o homem como um atributo do pensamento, ao invés do pensamento como um atributo do homem. Feuerbach sustentava o entendimento hegeliano da história enquanto progressão dialética, porém desconsiderando a dimensão “espiritual” da filosofia idealista. O “Espírito do Mundo” não é um sujeito ou essência, antes uma mera abstração do idealismo. a origem da realidade social não reside nas ideias, na consciência que os homens têm dela, mas sim na ação concreta (material) dos homens, portanto, no trabalho humano. A existência material precede qualquer pensamento; inexiste possibilidade de pensamento sem existência concreta. A partir dessa reorientação/crítica, Marx irá inverter em definitivo a dialética hegeliana, uma vez que- inspirado em Feuerbach- coloca a materialidade (e não as ideias) na gênese do movimento histórico que constitui o mundo. Q. 05. a) Resposta esperada: Para Nietzsche, a cultura helênica foi marcada pelo equilíbrio entre o dionisíaco (força vital e do instinto) e o apolíneo (racionalidade). O espírito dionisíaco se traduz na imagem da força instintiva e da saúde. Está na embriaguez criativa e na paixão sensual, símbolo de uma humanidade em harmonia com a natureza. b) Resposta esperada: A moral do senhor é definida como aquela que é afirmação da potência, que impulsiona para a vida, a criatividade que leva à superação do próprio homem. Nessa moral, os mais fortes devem dominar os mais fracos e isso não é visto como algo imoral. São exemplos desse tipo de moral a Grécia no período homérico e os povos nórdicos, antes da dominação cristã. O trecho que define essa moral é: “a força vital manifesta-se como saúde do corpo e da alma, como força da imaginação criadora. Por isso, os fortes desconhecem a angústia, o medo, o remorso, a humildade, a inveja”. c) Resposta esperada: A moral do escravo é definida como a moral dos ressentidos que, fingindo um desprendimento ascético de todas as coisas do mundo, tratam de enfraquecer a potência. Para a moral do escravo, o mais forte vai sendo enfraquecido, pois os instintos vitais (saúde, criatividade, força) são dominados e submetidos pelos valores da moral cristã e da razão. A filosofia socrático-platônica e o cristianismo são os principais propagadores dessa moral. O trecho que a exemplifica é: “A moral dos fracos, porém, é atitude preconceituosa e covarde dos que temem a saúde e a vida, invejam os fortes e procuram, pela mortificação do corpo e pelo sacrifício do espírito, vingar-se da força vital”. Q. 06. a) Resposta esperada: Sim. A “moral do escravo” é um dos conceitos-chave do pensamento nietzschiano. É caracterizada pelo “ódio dos impotentes”. b) Resposta esperada: “O cristianismo, por sua vez, esmagou e alquebrou completamente o homem e o mergulhou como que em um profundo lamaçal”. c) Resposta esperada: O cristianismo, para Nietzsche, nega o valor vida. Nesse sentido, nega igualmente tudo o que a ela se relaciona (saúde, criatividade, força). O objetivo de Nietzsche é revalorizar o equilíbrio entre as forças instintivas e vitais do homem que foram subjugadas pela filosofia socrático-platônica e pelas religiões. Q. 07. Resposta esperada: Segundo Karl Popper, a psicanálise é uma pseudociência. Para o pensador, toda ciência, para ser aceita como tal, precisa de uma contraprova que a colocasse em xeque, para aí sim, após sua superação, ser validada como ciência. Não seria o caso da psicanálise. Na pretensão de tudo explicar, encaixando a experiência em modelos fechados e ao mesmo tempo não verificáveis empiricamente, ela não poderia ser aceita como ciência, de fato. Faltaria, portanto, uma “contraprova” à psicanálise.

115

FRENTE A  Ex ercícios de Aprof undamento

d) entre a intenção consciente e o que está reprimido no

Q.01. Resposta esperada: O uso público da razão, de acordo com Kant, implica em liberdade e autonomia. Para o filósofo, a menoridade seria a incapacidade de fazer uso do próprio entendimento sem a direção de outro indivíduo. Há, portanto, uma oposição entre a menoridade e o uso público da razão. Para Kant o homem é o próprio culpado pela sua menoridade, e os motivos pelos quais freqüentemente o homem não se coloca no processo de saída da menoridade (esclarecimento) são a preguiça e a covardia. Para sair da menoridade Kant afirma ser necessário considera o “uso público da razão” - que é aquele que qualquer homem deve fazer diante do grande público.


FRENTE

A

Autor: Jeg.Work (2014).


Fonte: Wikimedia Commons

FILOSOFIA Por falar nisso O campo filosófico contemporâneo, mais precisamente do século XX, foi marcado por importantes acontecimentos e teorias. Dentre eles, o surgimento da Escola de Frankfurt, na Alemanha, em 1923. Os estudos dos filósofos frankfurtianos são conhecidos como Teoria Crítica, cuja abordagem teórica se contrapõe à Teoria Tradicional. Sob essa temática, surge o conceito de Indústria Cultural, em que um sistema político e econômico tem como objetivo produzir bens de cultura, tais como: livros, filmes, músicas populares, programas de televisão e outros. Nesse tempo, surge também os conceitos de teoria social e razão comunicativa, encabeçados por Jürgen Habermas. A teoria social consiste em uma estrutura analítica aplicada para estudar e interpretar os fenômenos sociais. Por sua vez, a razão comunicativa diz respeito à razão a ser efetivada socialmente, no processo de interação dialógica dos indivíduos envolvidos em uma mesma situação, adquirindo mais rigor. Destaca-se, ainda, a ideia do caminho da servidão, desenvolvida por Friedrich Hayek. A tese central do filósofo é que todos os modos de coletivismo (Nazismo, Socialismo etc.) conduzem, inevitavelmente, à tirania e à supressão da liberdade. Essa premissa pode ser exemplificada pelo o que acontecia no Nazismo alemão e no Socialismo soviético. Em relação à pós-modernidade, esse conceito é um dos mais contestáveis quanto ao uso no campo da filosofia contemporânea. Nesse sentido, a filosofia pós-moderna diz respeito, portanto, a uma nova e complexa tendência de pensamento não totalizante, pós-século XIX. Nas próximas aulas, estudaremos os seguintes temas

A13 A14 A15 A16

A Escola de Frankfurt: a razão instrumental e a crítica ao capitalismo..118 Jürgen Habermas: teoria social e razão comunicativa ......................127 Friedrich Hayek: o caminho da servidão ...........................................135 Pós-modernidade: um conceito também líquido ................................ 142


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A13

ASSUNTOS ABORDADOS n A Escola de Frankfurt: a razão ins-

trumental e a crítica ao capitalismo n Walter Benjamin e a crítica da arte n Max Horkheimer e Theodor Adorno: a Teoria Crítica e o conceito de Indústria Cultural

A ESCOLA DE FRANKFURT: A RAZÃO INSTRUMENTAL E A CRÍTICA AO CAPITALISMO O século XX marca- do ponto de vista da história da filosofia- a emergência de uma série de correntes/escolas notadamente influenciadas pelas transformações/rupturas intelectuais ocorridas no período oitocentista. Com isso, o historicismo fincou suas raízes em sobreposição ao positivismo francês no campo das humanidades. Na mesma proporção e influência, os pensadores que se destacaram nesse intercurso passam a ser apropriados (desdobrados ou ressignificados) por diversas correntes intelectuais nas décadas que se seguiram. Dessa maneira, Freud, Nietzsche e Marx serviram de mote intelectual para variadas concepções filosófica, seja para afirmá-los ou transcendê-los - jamais para negar sua importância na história das ideias. Assim como Kant e Hegel operam pontos de inflexão (e reflexão) para a filosofia do século XIX, os herdeiros do historicismo tornam-se capitais para as ideias do século XX. Em suma, a filosofia contemporânea passa, necessariamente, pelas contribuições de Marx-Nietzsche-Freud, tal qual eles se viram tributários de Kant-Hegel. É justamente, nesse ínterim, que surge na Alemanha do entreguerras uma das instituições mais sólidas, intelectualmente, do século XX: a chamada Escola de Frankfurt (Frankfurter Schule). Congregando uma amálgama de influências, sobretudo da tríade intelectual de transição do oitocentos - especialmente do(s) historicismo(s) alemão - a escola se afirmou como uma vertente da filosofia social, particularmente associada ao Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) da Universidade de Frankfurt, na Alemanha - instituição fundada por Felix Weil, em 3 de fevereiro de 1923, com o suporte de professores universitários e apoio financeiro de seu pai. O termo Escola de Frankfurt surgiu de modo informal para descrever os pensadores afiliados ao Instituto para Pesquisa Social. Comportando, ao longo de sua história, diversos membros com matrizes e filiações intelectuais diversas, a Escola de Frankfurt caracterizou-se pela abordagem de um conjunto de temas e preocupações similares que serviram de fio condutor. Em linhas gerais, havia o rechaço da tradição (da sociologia) positivista aliada a uma necessidade de expandir o alcance teórico do materialismo marxista. Em tese, afirmava-se que o marxismo tradicional não havia dado conta de abordar detidamente diversos pontos da existência e vida em sociedade. O que não significava uma limitação, em si. Antes, o marxismo demandaria - para essa ampliação temática e metodológica- uma associação a outras áreas e campos epistemológicos. Eis a razão de muitos de seus afiliados estudarem autores como Kant, Hegel, Weber, Freud e Luckács, além do próprio Marx. O objetivo era preencher as percebidas omissões do marxismo tradicional no entendimento mais profundo acerca das condições que permitiam as mudanças sociais e o estabelecimento das instituições racionais. O contexto histórico que permitiu o surgimento e as problematizações trazidas pelos (primeiros) teóricos de Frankfurt estava em ebulição. Os destaques são para as transformações pelas quais passava o capitalismo naquele momento, transitando de um modelo empresarial de pequena escala para um monopolista e imperialista; para os crescentes movimentos socialistas e a emergência do estado de bem-estar social europeu; para as ocorrências da Revolução Russa e, posteriormente, do Nazi-fascismo, acarretando a ascensão dos totalitarismos: de um lado, o comunismo stalinista e do outro, o III Reich. Todo esse contexto clamava reflexões urgentes, de modo que era impossível dissociar a produção intelectual de um pensamento que visava questionar os limites da modernidade.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

No campo intelectual, além das releituras da obra de Kant e Hegel na retomada dos pressupostos do criticismo e da dialética, o pensamento de figuras com Weber e Freud foram pontuais para a formação (e aspiração) filosófica da Escola de Frankfurt. Além de uma releitura de Marx, como aludido. Do primeiro, importava o uso do método hermenêutico das ciências sociais - a forma como operou a análise histórica comparativa do racionalismo ocidental e do desenvolvimento do capitalismo (sobretudo a confluência da religião nesse processo); a definição de Estado Moderno e as análises das formas de dominação; a racionalidade secular científica na cultura. Do segundo, destacam-se as críticas freudianas à estrutura repressora que funda a civilização e desenvolve a neurose da vida cotidiana; a descoberta e os usos da “chave do inconsciente” e das pulsões; a análise das bases psíquicas do comportamento irracional e do autoritarismo. De Marx, propriamente, persiste a crítica à ideologia burguesa e ao trabalho alienado (e a sua exploração em diferentes modos de produção), além da validação do método materialista para compreender a formação das estruturas econômicas da sociedade. Não há, necessariamente, um ímpeto revolucionário nos teóricos de Frankfurt, mas uma necessidade de compreender a dinâmica social e transformá-la na medida de seu entendimento acerca dos processos que a circunscrevem. Embora se conceba uma tradição filosófica associada à Escola de Frankfurt- sobretudo a partir da obra de filósofos, sociólogos e psicanalistas como Max Horkheimer, Herbert Marcuse, Theodor Adorno, Erich Fromm - os membros do Instituto para Pesquisa Social nem sempre formaram uma série de projetos complementares ou relacionados. Distribuído em duas grandes gerações, comportando pensadores como Friedrich Pollock e Jürgen Habermas, o Instituto recepcionou, temporariamente, diversos associados que muito contribuíram para as bases temáticas e enquanto influências teóricas para os trabalhos que se seguiram. Destaque para Siegfried Kracauer, Karl August Wittfogel, Alfred Sohn-Rethel, Ernst Bloch e, sobretudo, Walter Benjamin. Fonte: Wikimedia Commons

Walter Benjamim figura como uma das personalidades filosóficas mais instigantes e trágicas do século XX. A despeito de uma biografia que demanda reverência e sensibilidade, a obra de Benjamin fala por si, traduzindo os anseios mais interdisciplinares e temáticos da Escola de Frankfurt, notadamente, a análise crítica dos processos artísticos em sua interface com a influência do mundo/economia capitalista e suas formas de recepção na cultura contemporânea. Walter Benedix Schönflies Benjamin nasceu em 15 de julho de 1892, em Berlim. Proveniente de uma família de comerciantes judeus, participou em sua mocidade do Movimento da Juventude Livre Alemã, de inspiração socialista, colaborando como editor da revista do movimento. Após a passagem pelas Universidades Albert-Ludwig de Friburg, em Brisgóvia (1910) e Berlim (1913) onde estudou Filosofia, concluiu seu doutorado, em 1919, com a tese de doutoramento intitulada A Crítica de Arte no Romantismo Alemão. Não obstante sua obra ter sido recomendada para a publicação de sua posterior tese de livre-docência, não atingiu o mesmo grau de prestígio. Com o título Origem do Drama Barroco Alemão, o texto foi rejeitado pelo Departamento de Estética da Universidade de Frankfurt, cerrando as portas para sua inserção na carreira acadêmica, uma vez que sua aprovação lhe garantiria o acesso à docência do referido departamento. Ainda assim, Benjamim foi um filósofo bastante produtivo. Suas obras perpassam tanto o marxismo quanto os estudos sobre estética e a mística judaica. É notório a influência de autores variados como Marx, Georg Lukács e Nietzsche até Bertold Brecht e Gerson Gerard Scholen. Durante a década de 1920, Benjamim destacou-se por suas publicações de resenhas e traduções, sobretudo de crítica literária sobre a obra

Figura 01 - Retrato de Walter Benjamin. Autoria desconhecida (1928).

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A13  A Escola de Frankfurt: a razão instrumental e a crítica ao capitalismo

Walter Benjamin e a crítica da arte


Filosofia

A13  A Escola de Frankfurt: a razão instrumental e a crítica ao capitalismo

de Charles Baudelaire e Marcel Proust - dos quais traduziu para o alemão Quadros Parisienses e Em Busca do Tempo Perdido, respectivamente. Nessa mesma época, conheceu Theodor Adorno e Siegfried Kracauer, passando a colaborar em diversos jornais e revistas, entre elas a revista do Instituto para Pesquisa Social. Por conta da ascensão do nazismo, refugiou-se na Itália entre 1934 e 1935. Durante esse conturbado período, suas relações com os membros do Instituto adquirem tensões que o impediram de ser aceito como integrante da entidade. Não obstante essa celeuma, Benjamin foi posteriormente reconhecido como um grande inspirador da Teoria Crítica - o enquadre teórico-conceitual fundamental da Escola de Frankfurt. Entre ensaios, livros e traduções, a produção intelectual de Benjamin foi extensa. De suas principais obras, destacam-se: A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica (1936) e Teses Sobre o Conceito de História (1940). Esta obra marca um sensível período da biografia de Benjamin. Escrita durante sua tentativa de fuga da França (onde estava exilado) para a Espanha, visando escapar do nazismo, a obra é composta de 18 teses em formato de aforismos. Em linhas gerais, Benjamin faz uma série de críticas às concepções históricas defendidas pelo positivismo, pelo historicismo e pela social-democracia europeia. Ao empreender uma crítica à modernidade capitalista, propõe uma compreensão da história do ponto de vista dos “vencidos”. Assim, a noção de progresso irresistível da história [concepção positivista] regulada por leis científicas a reger todo processo deveria ser rejeitada. O progresso - ao contrário do que pensava seus entusiastas modernos - poderia levar a civilização à tragédia, à catástrofe e ao terror. Para Benjamin, a história seria algo em aberto ao novo, despertando para a possibilidade de construção de futuros diferentes pela ação, no presente, dos vencidos. O futuro seria uma incógnita, não o resultado da evolução histórica e do progresso econômico e científico. No apêndice desse ensaio, Benjamin (1987, p.232) profere uma das sentenças mais representativas acerca do historicismo e do papel do historiador em sua relação com passado-presente: O historicismo se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios. O historiador consciente disso renuncia a desfiar entre os dedos os acontecimentos, como as contas de um rosário. Ele capta a configuração, em que sua própria época entrou em contato com uma época anterior, perfeitamente determinada. Com isso, ele funda um conceito do presente como um “agora” no qual se infiltraram estilhaços do messiânico. 120

A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica foi considerada a primeira grande teoria materialista da arte. É, nesse ensaio, que aparece o conceito de Aura- aquilo que designa os elementos únicos de uma obra de arte original, enquanto objetos individualizados e únicos. Para Benjamin, a era moderna-contemporânea havia destruído a aura das obras de arte. Com o progresso das técnicas de reprodução, sobretudo do cinema, a Aura, dissolvendo-se nas várias reproduções do original, destituiria a obra de arte de seu status de raridade. Segundo o filósofo, a partir do momento que a obra de arte saiu de seu âmbito aristocrático ou religioso, sua dissolução adquiriu dimensões sociais. Se, em um primeiro tempo, ela estava “a salvo” por ser tomada como algo para poucos e um objeto de culto, agora sua massificação acelera sua dissolução na mesma medida em que amplia seu acesso. Essas dimensões sociais de dissolução seriam resultantes das transformações técnicas da sociedade e das modificações da percepção estética. O cinema seria a manifestação mais sensível dessa consequência. Se, no teatro, a Aura liga-se, indissoluvelmente, à Aura do ator que o representa (tal como essa aura é sentida pelo público), o mesmo não acontece no cinema, em que a aura dos intérpretes desaparece com a substituição do público pelo aparelho. Na medida em que o ator se torna acessório da cena, não é raro que os próprios acessórios desempenhem o papel de atores. Embora Benjamin exponha sua análise a esse processo de desencantamento da cultura, ele vê de forma otimista os usos que poderiam servir o cinema como expressão estética do pensamento materialista. Em suma, para o filósofo, após as técnicas de reprodução das obras de arte terem provocado a queda da aura - liquidando elemento tradicional da herança cultural, teriam tido também a força de possibilitar um outro relacionamento das massas com a arte, dotando-as de um instrumento eficaz de renovação das estruturas sociais. Segundo Marilena Chauí (2017, p.308): No ensaio sobre a destruição da Aura, Walter Benjamin assumia uma posição otimista, pois imaginava que a reprodução das obras de arte (pelo livro, pelas artes gráficas, pela fotografia, pelo rádio e pelo cinema) permitiria à maioria das pessoas o acesso às criações que, até então, apenas uns poucos podiam conhecer e fruir. Benjamin esperava que houvesse a democratização da cultura e das artes.

Apesar de Benjamin esboçar seu otimismo frente à possibilidade de democratização da cultura e das artes, havia a existência de um elemento que poderia servir de obstáculo a esse propósito: o capitalismo. Ao transformar a arte em consumo, a arte que outrora havia se libertado do jugo das funções e finalidades religiosas teve sua autonomia convertida em mercadoria.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Fonte: Wikimedia Commons

Max Horkheimer e Theodor Adorno: a Teoria Crítica e o conceito de Indústria Cultural

Figura 02 - Fotografia de Max Horkheimer e Theodor Adorno (em primeiro plano) e Jürgen Habermas (em segundo plano, à direita). Autor: Jeremy J. Shapiro (1964).

A despeito de ser uma tradição plural e de muitos pensadores, a chamada Escola de Frankfurt esteve associada, principalmente, à figura de dois de seus principais membros: Max Horkheimer e Theodor Adorno. A abordagem acerca do famigerado conceito de Indústria Cultural também remete aos referidos filósofos.

SAIBA MAIS Max Horkheimer foi um filósofo alemão de ascendência judia, nascido em Stuttgart, capital do Estado de Baden-Württemberg, na Alemanha. Após o fim da Primeira Guerra Mundial - da qual participou - retomou os estudos abandonados ainda em 1911, para se especializar em Filosofia e Psicologia, nas cidades de Munique, Friburgo e Frankfurt. Em 1922, defendeu sua tese de doutorado sobre o pensamento kantiano acerca da antinomia do juízo teleológico. Em 1926, começou a trabalhar na Universidade de Frankfurt. Por intermédio do filósofo Friedrich Pollock, associou-se ao Instituto para Pesquisa Social, tornando-se diretor em 1931, após suceder o historiador austríaco Carl Grünberg. Horkheimer faleceu em 7 de julho de 1973, na cidade alemã de Nuremberg.

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Embora especialista no pensamento de Kant, o filósofo Horkheimer interessava-se principalmente pelo trabalho do filósofo alemão Arthur Schopenhauer. Seu flerte com o marxismo e com a obra de Georg Luckács deu-se apenas no final dos anos 1930. Somente após a emergência do nazismo é que Max Horkheimer aproximou-se de uma perspectiva crítica de base marxista. Nesse sentido, destaca-se o ensaio-manifesto Teoria Tradicional e Teoria Crítica (1937). Em 1933, após o fechamento, pelos nazistas, do Instituto para Pesquisas Sociais, Horkheimer foi obrigado a abandonar a Alemanha, passando pela Suíça e chegando à Universidade de Columbia, em Nova York, nos EUA. Ali, instalou o Instituto e deu seguimento à sua produção intelectual. No início da década de 1940, escreveu junto com Theodor Adorno o clássico Dialética do Esclarecimento, além de coordenar um grupo de estudos sobre o antissemitismo europeu, publicando diversos artigos sobre o tema. Em 1949, retornou à Alemanha, passando a trabalhar como professor de filosofia na Universidade de Frankfurt, reabrindo o Instituto um ano depois em seu lugar de origem. Entre os anos de 1951 e 1953, Horkheimer foi reitor da Universidade de Frankfurt. Nesse período, publicou as obras Crítica da Razão Instrumental e Teoria Tradicional e Teoria Crítica - uma compilação de vários de seus artigos escritos nas últimas décadas. Nesses textos, é possível perceber seu distanciamento em relação ao marxismo e uma espécie de recuperação do pensamento de Schopenhauer e de suas relações com o judaísmo. Em 1959, ocupando a posição de professor emérito, mudou-se para Lugano, na Suíça, onde continuou seu trabalho filosófico. O pensamento de Horkheimer é, seguramente, um dos mais importantes da filosofia contemporânea. Suas formulações, sobretudo aquelas acerca da razão instrumental e da indústria cultural, como aludido, junto com as teorias de Theodor Adorno e Herbert Marcuse, compõem o núcleo fundamental daquilo que se conhece como Escola de Frankfurt. 121


Filosofia

Horkheimer afirma-se como um pensador de influência marxista não ortodoxa. Por essa razão, é evidente, em sua filosofia, uma tentativa de ofertar um novo enquadre para a epistemologia marxista. De acordo com o frankfurtiano, a teoria marxista tradicional se caracterizava por dois vetores que demandavam uma “crítica transversal”. Em uma direção, o marxismo não se pretendia uma visão concludente da totalidade e em outra, se ocupa com o desenvolvimento concreto do pensamento. Por essas razões - e em uma abordagem crítica - Horkheimer afirma que as categorias marxistas não podem ser entendidas como conceito definitivos, mas antes como indicações para investigações, cujos resultados retroajam sobre elas mesmas.

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SAIBA MAIS Theodor Ludwig WiesengrundAdorno nasceu em 11 de setembro de 1903, em Frankfurt. Ele foi filósofo, sociólogo, musicólogo e compositor. Após estudar no círculo familiar (e particular) música e composição, entrou para a Universidade de Frankfurt, a fim de cursar Filosofia. Em 1924, graduou-se com a monografia intitulada A transcendência do objeto e do noemático na fenomenologia de Husserl, orientado pelo professor Hans Cornelius. Ainda na graduação, conhece Max Horkheimer e Walter Benjamin. Durante uma década- do início de sua graduação à conclusão de seu doutoramento em 1931 - escreveu cerca de cem artigos sobre crítica e estética musical. Com o fim da Segunda Guerra, Adorno trabalhou arduamente para o retorno do Instituto para Pesquisa Social a Frankfurt, tornando-se diretor-adjunto e co-diretor, em 1955. Com a aposentadoria de Horkheimer, Adorno tornou-se o novo diretor. Após travar uma série de contendas com filósofos como Georg Luckács, Hebert Marcuse e diversos conservadores da Escola de Leipzig, Adorno faleceu em Visp, no território suíço, em 1969.

122

Há uma crítica importante em Horkheimer em relação ao modo de se fazer ciência e que remonta ao sistema dedutivo cartesiano e ao papel do cientista/especialista. Para o filósofo, o trabalho do especialista realizava-se desvinculado dos demais. Alheio, portanto, à conexão global com os setores produtivos. Dessa forma, nasce uma aparência ideológica acerca de uma autonomia dos processos de trabalho. O modo de pensar cientificista contentava-se apenas com a organização da experiência. Não havia uma vinculação ou (pre)ocupação com gênese social dos problemas, das situações reais em que a ciência é usada e dos escopos para os quais é usada. Paradoxalmente, a ciência tradicional na tentativa de se mostrar rigorosa, objetivamente um alcance prático de aplicabilidade, acabaria por se mostrar mais distante e estranha à própria realidade que pretende explicar. Eis o motivo se constituir uma teoria crítica do conhecimento: aquela que oferta relevância social à ciência, favorecendo uma reflexão autônoma. A teoria crítica pretende ultrapassar tanto o subjetivismo quanto o objetivismo presente nas teorias tradicionais, sobretudo da perspectiva positivista. Segundo Horkheimer, o primeiro caso aparecia na forma como os positivistas buscavam conferir preponderância explícita ao método, desprezando os dados em favor de uma estrutura anterior que os enquadraria em uma teoria geral. O segundo caso, revelava-se no próprio peso que se atribuíam aos “dados concretos”, desprezando outras dinâmicas da realidade social. A teoria crítica, diferentemente, pretendia superar essas dimensões da teoria tradicional (seja ela positivista ou marxista), visando descobrir o conteúdo cognoscível da práxis histórica. Para tanto, os fatos sensíveis - vistos pelos positivistas como possuidores de um valor irredutível - seriam para Horkheimer “(…) pré-formados socialmente de dois modos: pelo caráter histórico de objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão que percebe”. Por sua vez, Theodor Adorno foi o filósofo que melhor relacionou a perspectiva dialética (da tradição hegeliana à apropriação marxista) e a psicanálise. Uma de suas principais obras - escrita em colaboração com Horkheimer - Dialética do Esclarecimento é uma crítica à chamada razão instrumental. Como o título sugere, trata-se de uma abordagem sobre o Iluminismo, em uma interpretação negativa sobre aquilo que resultou da civilização técnica e da lógica cultural do sistema capitalista: a indústria cultural - fruto de uma sociedade de mercado que não persegue outro fim que não o do progresso técnico. O conceito de Indústria Cultural é fundamental dentro da Teoria Crítica. O termo, criado originalmente por Adorno, designava a exploração programada e sistemática dos bens culturais produzidos com a única finalidade do lucro. A Indústria Cultural trazia consigo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno. A obra de arte, por exemplo, produzida e consumida segundo os critérios da sociedade capitalista se rebaixaria ao nível de mercadoria, perdendo sua potencialidade de crítica e contestação. A inspiração (e superação) para tal conceituação adveio das reflexões empreendidas por Walter Benjamin. Segundo Marilena Chauí (2016, p.308):


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

De acordo com Adorno, Benjamim - em que pese a grande influência em seu pensamento- não foi capaz, com suas teses, de trazer à luz o antagonismo que reside no próprio interior do conceito de “técnica”. Não se trata, como na visão de Benjamim, como algo que deve ser concebido de uma forma absoluta. Ao contrário, ela também possui uma historicidade. Partindo da premissa de que a lógica capitalista e industrial objetiva uma produção em série e homogênea, a técnica - vista como reprodução- passou a sacrificar a distinção que antes havia entre o caráter da própria obra de arte e do sistema social. Assim, a técnica passou a exercer, de acordo com Adorno, um imenso poder sobre a sociedade. E isso ocorreu, em grande parte, em virtude das circunstâncias que favoreceram tal poder de serem engendradas pelo poder dos economicamente mais fortes sobre a própria sociedade. Dessa forma, a racionalidade da técnica se identificou com a racionalidade do próprio domínio econômico. Por isso, segundo Adorno, o rádio e o cinema não deveriam ser tomados como arte. São, antes, instrumentos de um mero negócio. E enquanto negócios, seus fins comerciais são realizados por meio de sistemática e programada exploração de bens considerados culturais. O conceito de Indústria Cultural ainda serviu para substituir o de cultura de massa. Na obra Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno acusam esse termo de ser inapropriado para a crítica que pretendiam. Inclusive, tratava-se de questionar os usos que os detentores dos veículos de comunicação de massa faziam desse conceito. De acordo com os filósofos, havia ainda um engodo que sugeriria que existia uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. O que não era verdade. A Indústria Cultural aspirava à integração vertical de seus consumidores, não somente condicionando seus produtos aos desejos da massa, mas determinando, inclusive, a especificidade desse desejo - por consequência, o próprio consumo. Ela traz em seu bojo todos os elementos característicos do mundo industrial moderno, exercendo um papel específico: o de portadora da ideologia dominante - fonte de sentido a todo o sistema. Os homens tornam-se vistos apenas

enquanto categoria de consumidores ou empregados, tendo sua dimensão humana reduzida em seu conjunto [assim como cada um de seus elementos] às condições que representam seus interesses. Ao criar “necessidades” ao consumidor, a Indústria Cultural organiza-se para que ele compreenda sua condição [de mero consumidor], se reconhecendo como tão somente um objeto daquela indústria. Desse modo, instaura-se uma forma de dominação natural e ideológica. Nos termos de Adorno, a Indústria Cultural impedia “(…) a formação de indivíduos autônomos, independentes, capazes de julgar e de decidir conscientemente”. Uma das marcas da crítica presente entre os frankfurtianos - da qual a categoria da Indústria Cultural é uma delas - é seguramente a contraposição ao otimismo iluminista da modernidade. A emergência do capitalismo teria contribuído para artificialização das relações humanas (e, destes, com a natureza), convertendo a premissa do progresso em uma constituição do anti-iluminismo. Em outras palavras, a promessa do Iluminismo em libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magia e do mito por meio da razão - atingida através da ciência e da tecnologia - viu seu desiderato corrompido pelas novas relações estabelecidas para sociedade capitalista e industrial. Ao invés de libertar o homem do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica. Este progresso transformou-se em um poderoso instrumento utilizado pela Indústria Cultural para conter o desenvolvimento da consciência das massas. A problemática da Indústria Cultural- e seu tratamento teórico- apresentava também a interface que os frankfurtianos fizeram com a psicanálise. Trabalhando a noção de um “desejo que não se supre jamais”- uma importante premissa psicanalítica - a Indústria Cultural gerava uma relação perversa, um “comércio fraudulento”, em que os consumidores seriam continuamente condicionados a consumirem algo que não se cumpria em sua “promessa”. O erotismo no cinema seria um exemplo claro desses usos. Ao contrário das verdadeiras obras de arte, o erotismo representado no cinema não tinha como objetivo sublimar o instinto sexual, por exemplo, mas antes o reprimiria e o sufocaria ainda mais. Ao expor sempre como novo o objeto de desejo, a indústria não faz mais que excitar o prazer preliminar não sublimado, conduzindo o consumidor a um hábito da privação. Assim, prometer e não cumprir, ou seja, oferecer e privar, são um único e mesmo ato da indústria cultural. Segundo Adorno, a erotização expressa no cinema produzido pela Indústria Cultural ao aludir à excitação, gera uma advertência precisa de que não se deve, jamais, chegar ao seu desiderato. Eis o seu trunfo. Tal advertência evidencia como a indústria cultural administra o mundo social, a esfera dos desejos e afetos, condicionando-os e lucrando a partir deles. 123

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Apesar de seu otimismo, Walter Benjamin considerou a existência de um obstáculo à democratização das artes: o capitalismo, que as transforma em mercadorias para o consumo. Esse aspecto do processo só seria examinado por dois de seus colegas da Teoria Crítica: Adorno (1903-1969) e Horkheimer (18951973). De fato, a partir da Revolução Industrial, no século XIX, e prosseguindo no que se denomina agora sociedade pós-industrial, as artes foram submetidas a uma nova servidão: às regras do mercado capitalista e à ideologia da indústria cultural. (…) Assim, perdida a aura, a arte não se democratizou, mas se massificou para o consumo rápido no mercado da moda e nos meios de comunicação de massa. Baseada na ideia e na prática do consumo de “produtos cultural”, fabricados em série, transformou-se em coisa leve, entretenimento e diversão para as horas de lazer.


Filosofia Bibliografia BENJAMIN, Walter Benjamin. Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. Prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. São Paulo: Brasiliense, 1987. CHAUÍ, Marilena. Iniciação à Filosofia. 3 edição. São Paulo: Editora Ática, 2017. GGERSHAUS, Rolf. A Escola de Frankfurt: história, desenvolvimento teórico, significação política. Difel, 2002.

#DicaCine Filosofi Sinopse: O Show de Truman é um filme norte-americano estrelado por Jim Carrey. Retratando um programa televisivo, semelhante a um reallity show, a trama narra a vida de Truman Burbank, um homem que não sabe que está sendo monitorado diariamente pelas emissoras do mundo inteiro. Seu american way of life é uma mercadoria, até que começa a suspeitar de tudo o que ocorre ao seu redor, embarcando em uma busca para descobrir a verdade sobre sua vida. É um filme que permite um debate sobre temas estruturantes das ciências humanas e, mais notadamente, daqueles ligados à Escola de Frankfurt, permitindo discutir a influência dos meios de comunicação de massa; sociedade de vigilância; sociedade de espetáculo; indústria cultural; os processos de coisificação e alienação do ser humano; crítica à sociedade de consumo e manipulação do real etc. Ficha Técnica: Título: O Show de Truman (The Truman Show) Direção: Peter Weir Produção: Scott Rudin, Andrew Niccol, Edward S. Feldman e Adam Schroeder Roteiro: Andrew Niccol Gênero: Drama Idioma: Inglês Ano: 1998 País: Estados Unidos Duração: 103 minutos

Fonte: Wikimedia Commons

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SAIBA MAIS

Figura 03 - Sede atual do Instituto para Pesquisa Social.

124

O Instituto para Pesquisa Social (Institut für Sozialforschung) é um centro de pesquisa que integra um conjunto de pesquisadores no campo das humanidades (sociólogos, filósofos, historiadores, psicanalistas), criado em 1923, ligado à Universidade de Frankfurt. Costumeiramente, seus membros estão associados ao título de intelectuais da Escola de Frankfurt. Fundado por Félix Weil, a partir de uma doação financeira proveniente de sua família, o Instituto teve como primeiro diretor, o filósofo Kurt Albert Gerlach. Posteriormente ao falecimento de Gerlach, o Instituto passou a ser administrado pelo historiador marxista, Carl Grünberg. A propósito, a influência marxista é marcante. O próprio fundador havia sido discípulo de Karl Korsch. Após o também falecimento de Grünberg, assume a direção, em 1930, o filósofo Max Horkheimer. A partir desse período, o Instituto adquire sua identidade e atinge uma de suas eras mais profícuas. Com a crescente influência dos nazistas (e a presença de judeus e marxistas no Instituto), os diretores se viram na necessidade de mudar a sede para fora da Alemanha. Uma filial foi estabelecida em Genebra, Suíça. Em 1933 - com a ascensão de Hitler ao poder - o Instituto se muda em definitivo para os Países Baixos e, posteriormente, em 1934, para Nova York. Ali se associou à Universidade de Colúmbia, tendo seu periódico Revista para Pesquisa Social (Zeitschrift für Sozialforschung) renomeado para Estudos em Filosofia e Ciência Social (Studies in Philosophy and Social Science). Após o término da guerra, o Instituto retorna a Frankfurt, em 1951, sob a direção de Friedrich Pollock.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias 01. Resposta esperada: O termo Escola de Frankfurt surgiu de modo informal para descrever os pensadores afiliados ao Instituto para pesquisa Social.

05. Resposta esperada: O conceito de Indústria Cultural ainda serviu para substituir o de Cultura de Massa. Na obra Dialética do Esclarecimento, Horkheimer e Adorno acusam esse termo de ser inapropriado para a crítica que pretendiam. Inclusive, tratava-se de questionar os usos que os detentores dos veículos de comunicação de massa faziam desse conceito. De acordo com os filósofos, havia ainda um engodo que sugeriria que existia uma cultura surgindo espontaneamente das próprias massas. O que não era verdade.

Exercícios de Fixação 01. O que foi a Escola de Frankfurt?

04. Em linhas gerais, defina o conceito de Indústria Cultural.

02. Como o filósofo Walter Benjamim define a História?

05. Por qual razão os frankfurtianos preferiram o termo “Indústria Cultural” ao de “Cultura de Massa”?

03. Defina o conceito de Teoria Crítica?

02. Resposta esperada: Para Benjamin, a história seria algo em aberto ao novo, despertando para a possibilidade de construção de futuros diferentes pela ação, no presente, dos vencidos. O futuro seria uma incógnita, não o resultado da evolução histórica e do progresso econômico e científico.

03. Resposta esperada: Em seu aspecto geral, pode-se afirmar que a Teoria Crítica está baseada em uma interpretação ou abordagem materialista - de caráter marxista e multidisciplinar (porque agrega contribuições de várias ciências: sociologia, filosofia, psicologia social e psicanálise) - da sociedade industrial e dos fenômenos sociais contemporâneos.

Exercícios C om p l em en t ares 03. (UEL PR) Sobre a crítica frankfurtiana à concepção posi-

e freudianos como o capital exerce poder no indivíduo e so-

tivista de ciência e técnica, é correto afirmar que a racio-

ciedade. Neste contexto é verdadeiro afirmar que

nalidade técnica

a) há uma desesperança em virtude da alienação da cons-

I.

ciência coletiva e revolucionária do proletário bem como assimilação das ideologias capitalistas.

de seus próprios meios. II.

e da natureza.

consciência educativa das pessoas, em relação ao capital, III.

aprimora a ação do ser humano sobre a natureza e resgata o sentido da destinação humana.

IV.

incorpora a reflexão sobre o significado e sobre os fins

c) há uma desconsideração da influência da indústria cultural como impossibilidade de massificar informação. d) há uma retomada do conceito de alienação como fonte

constitui um saber instrumental cujo critério de verdade é o seu valor operativo na dominação do homem

b) há uma esperança de modificação do real em virtude da e da possibilidade de crescimento pela arte.

dissocia meios e fins e redunda na adoração fetichista

da ciência no contexto social.

legítima de formação do ser humano, independente do

Assinale a alternativa correta.

capitalismo.

a) Somente as afirmativas I e II são corretas.

e) há uma consideração do conceito de ideologia como algo apenas positivo e algo que não pode servir de instrumento em relação ao capitalismo 02. Um dos conceitos fundamentais da Escola de Frankfurt é a Indústria Cultural. Nessa perspectiva é verdadeiro informar que aquele ramo do capitalismo

b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. 04. (UEL PR) “O que os homens querem aprender da

a) esta pretende desenvolver uma visualização histórica do

natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre os homens. Fora isso, nada conta. [...]

capitalismo bem como tornar a cultura de cada povo vais

O que importa não é aquela satisfação que os homens

valorizada.

chamam de verdade, o que importa é a operation, o pro-

b) esta pretende criar uma formalização de comportamen-

cedimento eficaz. [...] A partir de agora, a matéria deverá

tos, massificar pessoas, além de estabelecer uma cultura

finalmente ser dominada, sem apelo a forças ilusórias

única do consumo.

que a governem ou que nela habitem, sem apelo a pro-

c) esta pretende desenvolver uma comparação entre o da-

priedades ocultas. O que não se ajusta às medidas da cal-

sein hegeliano e a angústia sartriana colocada na obra “O

culabilidade e da utilidade é suspeito para o iluminismo

ser e o nada”.

[...] O Iluminismo se relaciona com as coisas assim como

d) esta pretende estabelecer uma análise das questões entre ato e potência, do arcabouço aristotélico visando entender a mudança. e) esta pretende desenvolver uma análise sobre o ceticismo, epicurismo e estoicismo para compreender o homem fora dos impérios. 04. Resposta esperada: O conceito de Indústria Cultural é fundamental dentro da Teoria Crítica. O termo, criado originalmente por Adorno, designava a exploração programada e sistemática dos bens culturais produzidos com a única finalidade do lucro.

o ditador se relaciona com os homens. Ele os conhece, na medida em que os pode manipular. O homem de ciência conhece as coisas, na medida em que as pode produzir.” (ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Conceito de Iluminismo. Trad. Zeljko Loparic e Andréa M. A . C. Loparic. 2. ed. São Paulo: Victor Civita, 1983. p. 90-93.)

125

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01. A Escola de Frankfurt analisa com os instrumentos marxistas


Filosofia

Com base no texto e nos conhecimentos sobre a racionalida-

O milho foi escolhido como bola da vez ao seu baixo preço no

de instrumental em Adorno e Horkheimer, é correto afirmar:

mercado e também porque os EUA produzem mais da metade

a) A razão iluminista proporcionou ao homem a saída da

do milho distribuído no mundo.

menoridade da qual ele era culpado e permitiu o pleno uso da razão, dispensando a necessidade de tutores para guiar as suas ações. b) O procedimento eficaz, aplicado segundo as regras da calculabilidade e da utilidade, está desvinculado da esfera das relações humanas, pois sua lógica se restringe aos objetos da natureza.

(Adaptado: BURGOS, P. Show do milhão: milho na comida agora vira combustível. Superinteressante. Edição 247, 15 dez. 2007, p.33.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre o desenvolvimento do capitalismo e a indústria cultural, considere as afirmativas. I.

c) A racionalidade instrumental gera de forma equânime con-

neização como formas de reprodução técnica criadas a

forto e bem estar para as pessoas na esfera privada e confere um maior grau de liberdade na esfera social. d) A visão dos autores sobre a racionalidade instrumental guar-

II.

lução industrial. III.

do pela razão instrumental. 05. (UEL PR) Leia o texto a seguir. Os homens sempre tiveram de escolher entre submeter-se à natureza ou submeter a natureza ao eu. (ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos. Trad. Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985. p.43.)

Com base no texto, é correto afirmar que a análise de Adorno e Horkheimer estabeleceu a ideia de que o homem I. interage com a natureza de maneira pacífica, assimilando a de forma idílica.

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II.

age com astúcia diante dos fenômenos naturais, ao forjar uma relação de instrumentalidade com a natureza. III. esclarecido e com pleno domínio da natureza promove a sua autoconsciência. IV. apreende a natureza visando controlá-la, o que resulta na submissão dela. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e II são corretas. b) Somente as afirmativas II e IV são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afirmativas I, III e IV são corretas. 06. (UEL PR) “Se você é o que você come, e consome comida industrializada, você é milho”, escreveu Michael Pollan no livro O Dilema do Onívoro, lançado este ano no Brasil. Ele estima que 25% da comida industrializada nos EUA contenha milho de alguma forma: do refrigerante, passando pelo Ketchup, até as batatas fritas de uma importante cadeia de fast food – isso se não contarmos vacas e galinhas que são alimentadas quase exclusivamente com o grão. 126

partir da revolução industrial. A abertura comercial dos portos das colônias americanas resultou no cercamento dos campos, facilitando o comércio pelo acúmulo de capitais e, em consequência, a revo-

da um reconhecimento positivo para setores específicos da alta tecnologia, sobretudo aqueles vinculados à informática. e) Contrariando a tese do projeto iluminista que opõe mito e iluminismo, os autores entendem que há uma dialética entre essas duas dimensões que resulta no domínio perpetra-

O capitalismo contemporâneo tornou a globalização um fenômeno que intensificou a padronização e a homoge-

IV.

A crítica filosófica à instrumentalização cultural constata que o predomínio da racionalidade técnica permitiu o resgate do potencial emancipatório da razão sonhado pelo projeto iluminista. Com o avanço tecnológico, a racionalidade técnica penetra todos os aspectos da vida cotidiana, subjugando o homem a um processo de instrumentalização cultural e

homogenização de comportamentos. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e II são corretas. b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. 07. Uma marca da desconfiança da filosofia para com o otimismo cientificista foi o aparecimento da noção de razão instrumental, formulada pelos teóricos da Escola de Frankfurt. Sobre razão instrumental é possível afirmar: a) Refere-se aos instrumentos usados pela razão para encontrar as explicações mágicas do mundo. b) Trata-se do exercício da racionalidade científica, que tem por empresa o domínio da natureza para fins lucrativos e coloca a técnica e a ciência em função do capital. c) Corresponde à maneira através da qual os filósofos Adorno, Horkheimer e Marcuse descreveram a racionalidade ocidental como instrumentalização da emoção. d) Defende as ideias de progresso técnico e neutralidade científica como elementos que resguardam a positividade da ciência. e) Os filósofos da Escola de Frankfurt afirmam que a razão instrumental reflete sobre as contradições e os conflitos políticos e sociais, fato que fez com que eles ficassem conhecidos como os filósofos da Teoria Crítica.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A14

JÜRGEN HABERMAS: TEORIA SOCIAL E RAZÃO COMUNICATIVA

ASSUNTOS ABORDADOS n Jürgen Habermas: teoria social

No decorrer da Segunda Guerra Mundial, o Instituto Para Pesquisa Social situava-se em Nova York. Durante esse período, os estudos estiveram centrados na compreensão do regime nazista (e suas implicações para o mundo social e da cultura). Nesse intercurso, destaca-se a contribuição dada junto ao Departamento de Serviços Estratégicos pelo filósofo Hebert Marcuse. Com o fim da Guerra, o Instituto retorna para Frankfurt, como vimos na aula anterior, começando a formar uma nova geração de pensadores sociais, com destaque para Karl Otto Apel e Jürgen Habermas: trata-se da Segunda Geração da Escola de Frankfurt.

e razão comunicativa

n A transição do agir estratégico para o agir comunicativo: a ética habermasiana

SAIBA MAIS Nascido em Düsseldorf, na Alemanha, em 18 de junho de 1929, Jürgen Habermas é não somente vivo, como um dos pensadores mais proeminentes das últimas gerações da Escola de Frankfurt. Licenciado pela Universidade de Bonn, com especialidade no pensamento do filósofo Schelling (1775-1854), atuou como pesquisador no Instituto Max Plank. Posteriormente, de 1956 a 1959, foi assistente de Theodor Adorno no Instituto para Pesquisa Social, passando a integrá-lo após a publicação de sua Tese de Doutorado: Mudança Estrutural da Esfera Pública, em 1962. Foi, a partir dos anos 1960, que ele passou a integrar uma série de institutos, com destaque para a New School for Social Research de Nova York e a Universidade Johann Wolfgang von Goethe, de Frankfurt, onde permaneceu até se aposentar, em 1994.

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Figura 01 - Jürgen Habermas durante discurso na Escola de Filosofia de Munich. Autor: Wolfram Huke (2008).

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Filosofia

Para compreendermos a dimensão do pensamento habermasiano, é necessário traçarmos um panorama dos prognósticos marxistas no século XX. A obra basilar da Escola de Frankfurt (A Dialética do Esclarecimento, 1947) já havia traçado um diagnóstico sombrio, que a mudança estrutural do capitalismo havia adquirido. Em outras palavras, a “profecia marxista” não se cumprira: a revolução não veio a galope como um processo natural face à destruição interna do capital. Este capital foi incorporado pelo Estado convertendo-se - em linguagem frankfurtiana – em um “Capitalismo Administrado”. Contornando as crises geradas pela intervenção do Estado, mas valendo-se desse mesmo Estado para sua reconfiguração e permanência, o capitalismo se tornou um sistema econômico estável dentro da gerência estatal. Com tudo isso, as proposições da Teoria Crítica precisariam ser revistas, já que o componente marxista (e seus prognósticos) alinhavam sua estrutura intelectual. É, nesse ínterim, que a figura de Habermas aparece como o filósofo a redefinir os papéis da própria Teoria Crítica, indo na contramão do que havia sido proposto na Dialética do Esclarecimento. De modo objetivo, Habermas entendia que uma teoria crítica da sociedade não poderia repousar tão somente nos termos de uma crítica da economia política. Era preciso ir além, inclusive superando o pessimismo de Adorno e Horkheimer, expressos em Dialética. Embora reconheça a base da forte descrença que pairou sobre o mundo intelectual após a emergência dos totalitarismos, reconhecendo também que o capitalismo se reorientou em uma lógica própria ao se imiscuir com o Estado (neutralizando a previsão marxista de seu colapso interno), Habermas afirma que ainda seria possível uma emancipação dentro desse cenário. Contudo, seria necessário repensar a própria

ideia de emancipação da sociedade como pretendia a Teoria Crítica. A “solução” seria enquadrar a dimensão da emancipação nas possibilidades de participação do Estado Democrático de Direito. Habermas se ocupará, durante boa parte de sua trajetória intelectual, com a investigação da dinâmica desse Estado Democrático de Direito - sobretudo a partir da década de 1990. Para tanto, fez-se necessário uma reflexão sobre o conceito de racionalidade instrumental. Embora a problemática já tenha sido esboçada com propriedade em Dialética do Esclarecimento, o filósofo propõe um desdobramento distinto. Em linhas gerais, Adorno e Horkheimer defendiam a tese de que o resultado da ratio iluminista fora a instrumentalização da razão, subjugando-a à técnica. Os regimes totalitários teriam sido a tônica e o exemplo desse tipo de subordinação da dominação sobre a emancipação, da manipulação da cultura e da informação em benefício de ideologias genocidas. Habermas, ainda que reconheça essa dimensão, propõe o desenvolvimento de outro tipo de racionalidade: a comunicativa - orientada para o entendimento e para a emancipação social. Em outras palavras, tratar-se-ia de substituir o racionalismo instrumental pelo racionalismo comunicativo que é expresso por meio do discurso. A obra de Habermas é vasta e esses temas aparecem entrecruzados. Em Crise de Legitimação do Capitalismo Tardio e Mudanças Estruturais da Esfera Pública, analisa os limites dos sistemas de legitimação do capitalismo avançado, postulando notória crítica à opinião pública burguesa, que afirma ser influenciada pela mídia. No entanto, defendeu a importância dessa mesma mídia para a participação crítica dos cidadãos nas democracias modernas.

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Karl-Otto Apel nasceu em 15 de março de 1922, em Düsseldorf, na Alemanha. Licenciou-se em Filosofia na Universidade de Bonn, doutorando-se em Mogúncia, em 1960. O filósofo atuou profissionalmente nas Universidades Johann Wolfgang Goethe, Kiel e Saarbrücken. Após a morte de Theodor Adorno no fim dos anos 1960, Apel tornou-se um dos teóricos mais influentes da Escola de Frankfurt. Ele se destacou pela crítica - típica dos frankfurtianos - ao cientificismo positivista. Além disso, elaborou importantes trabalhos sobre ética comunicativa. Sua produção intelectual incorporou tanto elementos da filosofia analítica como do pragmatismo e, claro, da herança da Teoria Crítica. Suas principais obras em língua portuguesa são: n Dissolução da ética do Discurso In: MOREIRA, Luiz (org.). Com Habermas, contra Habermas: direito, discurso e democracia. São Paulo: Landy Editora, 2004, p. 201-321. n Transformação da Filosofia: n Vol.1: Filosofia analítica, semiótica, hermenêutica. São Paulo: Editora Loyola, 2005. n Vol. 2: O a priori da Comunidade de Comunicação. São Paulo: Editora Loyola, 2000. n Estudos de Moral Moderna. Porto Alegre: Editora Vozes, 1994. 284 p. n Ética e Responsabilidade: o problema da passagem para a moral pós-convencional. Lisboa: Editora Instituto Piaget, 2013.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Na referida obra, Habermas desenvolve uma teoria explicativa da sociedade contemporânea. Para discorrer sobre as inter-relações sistêmicas e os processos de socialização advindas da própria socialização, o filósofo emprega o termo razão comunicativa e (seu desdobramento) ação comunicativa - uma atividade discursiva livre, racional e crítica, enquanto alternativa à razão instrumental problematizada pelos demais frankfurtianos. Ao pretender a recuperação do conteúdo emancipatório do projeto moderno, o filósofo explica que a teoria da ação comunicativa vai além do processo de interpretação em que o conhecimento cultural fica exposto ao teste do mundo. Ocorre é que esse tipo de ação comunicativa significa, ao mesmo tempo, processos de interação social e socialização. É por meio dessa interação social e socialização, que as pessoas envolvidas confirmam e renovam suas identidades e seu pertencimento a determinados grupos sociais. Ao dissertar sobre a Teoria da Modernidade (parte integrante da Teoria do Agir Comunicativo), Habermas conceitua duas esferas que coexistem na sociedade: o sistema e o mundo de vida. A primeira refere-se à “reprodução material” da sociedade orientada para uma finalidade (“lógica instrumental”) a partir da ação do poder político (“relações hierárquicas”) e da economia (“intercambiação”). A segunda, o “mundo de vida”, diz respeito à esfera da linguagem (“reprodução simbólica”), das redes de significados que se referem aos fatos objetivos, às normas sociais e seus conteúdos subjetivos. De acordo com Habermas, o mundo de vida é aquele marcado por processos comunicativos mediados pela linguagem e solidariedade, contrastando com os sistemas funcionalizados. Trata-se de um domínio social em que prevalecem ações comunicativas, tendo em vista o entendimento entre os diversos atores do processo. Quanto maior e mais complexa fosse a sociedade, maior seria a possibilidade de racionalização a que se veria obrigado o mundo da vida, sublinha Habermas. Em linhas gerais, o filósofo sustenta que a história das sociedades modernas seria a história de um processo de intensa racionalização do mundo da vida de sociedades tradicionais. Um dos mais célebres diagnósticos de Habermas diz respeito à “colonização do mundo da vida pelo sistema”, marcado pela crescente industrialização desencadeada

em meados da (e pela) modernidade e, sobretudo, pelo surgimento do Direito Positivo que passou a reservar o debate normativo aos técnicos e especialistas. Não obstante, Habermas afirma que a partir dos anos 1990, ocorreu uma mudança na sua perspectiva sobre o direito, considerando-o como um importante instrumento de mediação entre o mundo de vida e o sistema. É preciso entender que Habermas não reduz a ação comunicativa a mero diálogo. Trata-se de uma teoria social que se contrapõe à ação estratégica regida pela lógica da dominação - marcada pelo não assentimento ou dissentimento. A ação comunicativa ocorre na coordenação de dois ou mais atores, justamente, via consenso em dadas definições tácitas de situações. Habermas pretende aplicar sua teoria discursiva à Filosofia do Direito. Seu uso - em tese - ocorre em prol de uma integração social e, por consequência, da cidadania e democracia. Assim, ela seria capaz de colocar a possibilidade de resolução de conflitos sociais a partir da dimensão do consenso. Portanto, o filósofo almeja colocar fim à arbitrariedade e à coerção nas questões que circundam a sociedade ao propor uma participação ativa e igualitária dos cidadãos nas situações de litígios.

A transição do agir estratégico para o agir comunicativo: a ética habermasiana O agir comunicativo distingue-se, pois, do estratégico, uma vez que a coordenação bem sucedida da ação não está apoiada na racionalidade teleológica dos planos individuais de ação, mas na força racionalmente motivadora de atos de entendimento, portanto numa racionalidade que se manifesta nas condições requeridas para um acordo obtido comunicativamente. (HABERMAS, 1990, P. 71)

Habermas estabelece a distinção entre dois tipos de ação: a estratégica e a comunicativa. A primeira é pautada por uma forma de individualismo ético em que os indivíduos perseguem seus objetivos individuais, organizando estratégias pautadas nas consequências de seus atos. Para atingir seus interesses, vale o artifício para fazer valer sua vontade sobre os outros indivíduos. Em qualquer eventual cooperação, o indivíduo só se interessa pelos seus ganhos pessoais. A segunda forma de ação trata-se de uma progressão da ação estratégica, em que a orientação deixou de ser exclusivamente individual, passando a se denominar como orientação para o entendimento mútuo. Nessa esfera, os agentes buscam harmonizar seus interesses e planos de ação, por meio de um processo de discussão, objetivando o consenso. Embora ambas orientações sejam mediadas pela racionalidade humana, na ação estratégica a finalidade do ato não se abre para a 129

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Ao longo de suas obras, Habermas dialoga com diversos pensadores, destacando-se Claus Offe, John Austin e Noam Chomsky. É perceptível seu alcance epistemológico quando transversa com o pragmatismo linguístico e com a tradição da filosofia analítica anglo-saxônica (Linguistic Turn). Desse profícuo cenário de diálogos e influências, o filósofo escreverá sua obra-prima A teoria do agir comunicativo - em que empresta o cenário para seu conceito de agir comunicativo.


Filosofia

escuta do outro, enquanto no agir comunicativo há um espaço permeado pelo diálogo, no qual se concebem em conjunto sobre quais devem ser os melhores objetivos a serem buscados por um grupo social. Habermas entende que o agir comunicativo é um importante facilitador da coordenação das ações, servindo de base para a defesa da democracia, criticando a repressão, a censura e outros expedientes autoritários que não propiciam o diálogo dentro da sociedade. Recorrendo à teoria darwinista, Habermas afirma que a racionalidade comunicativa é uma faculdade proveniente de um processo de adaptação e aprendizagem. Quanto mais se desenvolve esse tipo de racionalidade, maior se torna a capacidade de compreender realidades mais complexas, evitando “regressões metafísicas” que levam a sociedade a aceitar respostas e fundamentos autoritários para a organização social. Para Habermas, a ação comunicativa possui efeitos normativos. Em outras palavras, há um caráter ético de necessária investigação embutida na comunicação. Trata-se então de desenvolver aquilo que ficou conhecido como Ética do Discurso - um campo de caráter universalista, deontológico e formalista que visava a uma teoria que levasse a discussões sobre o caráter político-democrático enquanto elemento de controle social nas sociedades do capitalismo tardio. A partir disso, levava à elaboração de uma análise política da democracia e do Estado de direito, com a formulação da teoria da democracia deliberativa. Para Habermas, os princípios éticos não deveriam ter conteúdos absolutos, mas tão somente servirem de nortes para garantirem a participação dos cidadãos nas decisões públicas, por meio de discussões em que se avaliassem os conteúdos normativos demandados naturalmente pelo mundo da vida. Segundo José Renato Polli (2013, p. 31)

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Hebert Marcuse nasceu em Berlim- local em que estudou Filosofia antes de migrar para Freiburg e dedicar-se também à literatura alemã contemporânea e à economia política. Durante os anos de 1917 e 1918, foi membro do Partido Social-Democrata Alemão. Em 1922, defendeu sua tese O Romance de Arte alemão, em que fundiu duas de suas principais inspirações: o pré-marxismo na obra de Lukács e o idealismo alemão de Hegel. Em 1928, regressou a Freiburg e passou a estudar com Martin Heidegger - filósofo que, anos antes, havia mergulhado em seu entendimento a partir da obra Ser e Tempo. Dada a sua origem judia, Marcuse exilou-se em virtude da ascensão nazista em 1933. Em seu último trabalho ainda na Alemanha, escreveu acerca da obra Filosofia do Fracasso, de Karl Jaspers. Por influência de Leo Lowenthal e de Kurt Riezler, Herbert Marcuse foi admitido no Instituto de Pesquisas Sociais – que, neste momento, estava exilado em Genebra, Suíça. Em 1934, emigrou para os Estados Unidos da América, colaborando diretamente com Theodor Adorno e Max Horkheimer. Em 1950, quando o Instituto retornou à Alemanha, Marcuse permaneceu nos EUA, ocupando cargos acadêmicos em diversas universidades, como em San Diego, em 1965. Lecionou, pesquisou e ministrou palestras até o ano de sua morte (1979). Suas principais obras (editadas em língua portuguesa) foram: n Razão e revolução. Editora Paz e terra: Rio de Janeiro, 1953. n Eros e Civilização. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1955 n Marxismo Soviético. Editora Saga: São Paulo, 1958) n Ideologia da Sociedade Industrial. Editora Zahar, Rio de Janeiro, 1964. n O fim da Utopia, Editora Civilização brasileira: RJ, 1967 n Psicoanálises y política. Ediciones Península: Barcelona, 1968 n Idéias sobre uma Teoria Crítica da Sociedade. Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1969. n Contrarrevolução e revolta. Editora Zahar, RJ, 1973) n Cultura e Psicanálise. Editora Paz e Terra, 1997)

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Figura 02 - Herbert Marcuse (Newton, Massachusetts, 1955). Autor: Harold Marcuse.

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SAIBA MAIS


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

A Ética do Discurso fundamenta-se na Teoria da Ação Comunicativa, que sugere uma fundamentação racional-intersubjetiva da escolha sobre valores, numa razão comunicativa entre sujeitos que cooperam na busca da verdade. Supõe normas racionalmente validáveis. O método dessa perspectiva ética é o da comunicação intersubjetiva, num sistema participativo que conduz aos consensos em torno de normas e princípios para a ação. Visa a garantir a igualdade de condições entre os sujeitos (discurso autêntico), não apenas em nível da comunicação, mas na própria condição de vida. Os dissensos e dificuldades da comunicação, segundo Habermas, podem ser resolvidos através de processos democráticos de comunicação

De acordo com José Rauber (1999), a ética do discurso possui uma linguagem argumentativa pautada em um critério procedimentalista, isto é, visa a uma fundamentação racional de normas morais, das quais sua validade é determinada pelo consenso alcançado entre sujeitos capazes de linguagem e ação. O objetivo da ética habermasiana centra-se nas inter(ações) entre os indivíduos que objetivam o entendimento. A Ética do Discurso parte do princípio de que a linguagem é a ferramenta mediadora das relações intersubjetivas, presente em qualquer meio de comunicação humana. Nessa comunicação, há um jogo linguístico que obedece a regras, fazendo-se necessário um mútuo entendimento (tanto das regras quanto das consequências acerca das palavras e sentidos lançados nesse “jogo”). Segundo Diego Carlo Zanella (2012, p.134), são: (…) regras semânticas constitutivas do discurso [...] decisivas para o significado, e, desse modo, também são decisivas para o procedimento de verificação e para o consenso. Ou seja, trata-se aqui de regras que possuem um caráter eminentemente pragmático.

Sinteticamente, a Ética da Razão Comunicativa se baseia em três regras básicas: 1) Regra da Inclusão − “Todo e qualquer agente discursivo é capaz de agir e falar dentro de uma cadeia ou espaços de discursos”:

3) Regra da Comunicação Livre de Violência e Coação − “Nenhum agente pode ser impedido − por forças externas ou internas ao discurso − de fazer uso de seus direitos assegurados plenamente pelas regras anteriores”. Há dois pressupostos gerais para o fundamento da ética do discurso. O primeiro ancora-se nas noções de “pretensão de validade”. Segundo Jürgen Habermas, tais pretensões devem ter um sentido cognitivo e devem ser tratadas como pretensões de verdade. O segundo, apoia-se na ideia de que a fundamentação de normas e ordens exige a realização de um discurso efetivo, ou seja, só é efetiva quando produzida por uma interação entre os sujeitos.

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2) Regra da Participação − “Todo e qualquer agente de um discurso é livre para problematizar qualquer afirmação, introduzindo novas afirmações ou exprimindo seus desejos, necessidades e convicções”;

Assim, temos em Habermas, além das “pretensões de validade” que se afirmam nas três regras básicas expostas, aquilo que ele nomeia como “princípio do discurso”, amarrando o escopo das diretrizes prescritas para a ética: um discurso só será válido se considerado que a argumentação foi feita de forma racional e não coercitiva. E isso é assegurado quando é garantido procedimentalmente que todos os atores discursivos tenham tido chances iguais para expressar suas ideias, opiniões e sentimentos sem que tenham sofrido qualquer tipo de constrangimento. Segundo Habermas (2003, p. 215) Todo aquele que se envolve numa prática de argumentação tem que pressupor pragmaticamente que, em princípio, todos os possíveis afetados poderiam participar, na condição de livres e iguais, de uma busca cooperativa da verdade, na qual a única coerção admitida é a do melhor argumento.

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Filosofia 01. Resposta esperada: A obra traçou um diagnóstico sombrio, que a mudança estrutural do capitalismo havia adquirido. Em outras palavras, a “profecia marxista” não se cumprira: a revolução não veio a galope como um processo natural face à destruição interna do capital. Este capital foi incorporado pelo Estado convertendo - em linguagem frankfurtiana – em um “Capitalismo Administrado”. 02. Resposta esperada: Embora reconheça a base da forte descrença que pairou sobre o mundo intelectual após a emergência dos totalitarismos, reconhecendo também que o capitalismo se reorientou em uma lógica própria ao se imiscuir com o Estado (neutralizando a previsão marxista de seu colapso interno), Habermas afirma que ainda seria possível uma emancipação dentro desse cenário. 03. Resposta esperada: O sistema se refere à “reprodução material” da sociedade orientada para uma finalidade (“lógica instrumental”) a partir da ação do poder político (“relações hierárquicas”) e da economia (“intercambiação”). O mundo de vida diz respeito à esfera da linguagem (“reprodução simbólica”), das redes de significados que se referem aos fatos objetivos, às normas sociais e seus conteúdos subjetivos. 04. Resposta esperada: A Ética do Discurso parte do princípio de que a linguagem é a ferramenta mediadora das relações intersubjetivas, presente em qualquer meio de comunicação humana. Nesta comunicação, há um jogo linguístico que obedece a regras, fazendo-se necessário um mútuo entendimento (tanto das regras quanto das consequências acerca das palavras e sentidos lançados nesse “jogo”).

Q5. Resposta esperada: A Ética do Discurso trouxe contribuições importantes para se pensar o mundo contemporâneo e as relações que nele se estabelecem, justamente por concebê-lo em sua dinâmica de partilhamento intersubjetivo, trazendo implicações na realidade social e política, especialmente.

A Ética do Discurso trouxe contribuições importantes para se pensar o mundo contemporâneo e as relações que nele se estabelecem, justamente por concebê-lo em sua dinâmica de partilhamento intersubjetivo, trazendo implicações na realidade social e política, especialmente. Nesse cenário teorizado por Habermas, todos os indivíduos devem ser vistos como capazes de falar e agir e como membros de uma comunidade linguística em um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente. Dessa forma, cada membro da sociedade deve assumir o compromisso com a participação, na prática cotidiana, desse mundo da vida. Bibliografia HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. ______. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Tradução de Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. POLLI, José Renato. Habermas: agir comunicativo e ética do discurso. Jundiaí, SP: Editora In House, 2013. RAUBER, Jaime José. O problema da universalização em ética. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. ZANELLA, Diego Carlos. A ética comunicativo-discursiva de Jürgen Habermas. Thaumazein, Santa Maria, ano V, n, 10, pp. 131-149, dez./2012.

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#DicaCine Filosofi Sinopse: Roberto é um veterano da Guerra das Malvinas. Sua vida paralisou há 20 anos devido a um duro golpe do destino e desde então vive recluso em sua casa, quase sem nenhum contato com o mundo, até que um estranho evento o desperta e o traz de volta à vida. Essa comédia é a história do encontro de Roberto e um chinês chamado Jun, que está perdido na cidade de Buenos Aires, na Argentina, em busca do único familiar que tem vivo, um tio que emigrou para o país. Roberto e Jun se encontram no momento em que Jun é jogado do interior de um táxi, na rua, depois de ter sido assaltado pelo motorista. Jun cai junto aos pés de Roberto e, a partir desse momento, começa uma forçada e estranha convivência entre ambos, pois Roberto não fala chinês e Jun não fala espanhol. Roberto tenta deixar Jun em uma delegacia e depois na embaixada da China, mas ninguém quer recebê-lo. Apesar de Roberto não poder conviver com ninguém porque é um ermitão cheio de manias obsessivas, decide levá-lo para sua casa, pois não tem coragem de deixá-lo abandonado na rua. Começa, portanto, a convivência entre os dois, mas Roberto tenta tudo o que está ao seu alcance para tentar se livrar de Jun. A convivência traz uma série de complicações para Roberto, o que gera situações de muito humor. Mas o que Roberto ignora é que ele e Jun estão unidos por um estranho destino desde antes de se conhecerem e, ao descobri-lo, ambos modificam definitivamente suas vidas. Ficha técnica Título: Um conto chinês (Un cuento chino) Direção: Sebastián Borensztein Roteiro: Sebastián Borensztein Gênero: Comédia Ano: 2011 Idioma: Espanhol e Chinês

Exercícios de Fixação 01. Qual o diagnóstico traçado na obra A Dialética do Esclarecimento (1947) acerca das mudanças do capitalismo? 02. O que difere Habermas do pessimismo dos frankfurtianos de primeira geração? 03. Ao dissertar sobre a Teoria da Modernidade (parte integrante da Teoria do Agir Comunicativo), Habermas conceitua 132

duas esferas que coexistem na sociedade: o sistema e o mundo de vida. Explique-as. 04. Qual é a função da linguagem na Ética do Discurso? 05. Qual a relevância da Ética do Discurso para a contemporaneidade?


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Exercícios C om p l em en t ares

(Adaptado de: HABERMAS, J. O caos da esfera pública. Folha de São Paulo, 13 ago. 2006, Caderno Mais!, p.4-5.)

A partir dos conhecimentos sobre a ação comunicativa em Habermas, considere as afirmativas a seguir. I. A manipulação das opiniões impede o consenso ao usar os interlocutores como meios e desconsiderar o ser humano como fim em si mesmo. II. A validade do que é decidido consensualmente assenta-se na negociação em que os interlocutores se instrumentalizam reciprocamente em prol de interesses particulares. III. Como regra do discurso que busca o entendimento, devem-se excluir os interlocutores que, de algum modo, são afetados pela norma em questão. IV. O projeto emancipatório dos indivíduos é construído a partir do diálogo e da argumentação que prima pelo entendimento mútuo. Assinale a alternativa correta. a) Somente as afirmativas I e II são corretas. b) Somente as afirmativas I e IV são corretas. c) Somente as afirmativas III e IV são corretas. d) Somente as afirmativas I, II e III são corretas. e) Somente as afirmativas II, III e IV são corretas. 02. (UEG GO) “Uma moral racional se posiciona criticamente em relação a todas as orientações da ação, sejam elas naturais, autoevidentes, institucionalizadas ou ancoradas em motivos através de padrões de socialização. No momento em que uma alternativa de ação e seu pano de fundo normativo são expostos ao olhar crítico dessa moral, entra em cena a problematização. A moral da razão é especializada em questões de justiça e aborda em princípio tudo à luz forte e restrita da universalidade.” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. v. I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 149.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre a moral em Habermas, é correto afirmar: a) A formação racional de normas de ação ocorre independentemente da efetivação de discursos e da autonomia pública. b) O discurso moral se estende a todas as normas de ações passíveis de serem justificadas sob o ponto de vista da razão.

c) A validade universal das normas pauta-se no conteúdo dos valores, costumes e tradições praticados no interior das comunidades locais. d) A positivação da lei contida nos códigos, mesmo sem o consentimento da participação popular, garante a solução moral de conflitos de ação. e) Os parâmetros de justiça para a avaliação crítica de normas pautam-se no princípio do direito divino. 03. (UEL PR) Elaborada nos anos de 1980, em um contexto de preocupações com o meio ambiente e o risco nuclear, a Ética do Discurso buscou reorientar as teorias deontológicas que a antecederam. Um exemplo está contido no texto a seguir. De maior gravidade são as consequências que um conceito restrito de moral comporta para as questões da ética do meio ambiente. O modelo antropocêntrico parece trazer uma espécie de cegueira às teorias do tipo kantiano, no que diz respeito às questões da responsabilidade moral do homem pelo seu meio ambiente. (HABERMAS, Jürgen. Comentários à Ética do Discurso. Trad. de Gilda Lopes Encarnação. Lisboa: Instituto Piaget, 1999, p.212.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre a Ética do Discurso, é correto afirmar que a ética a) abrange as ações isoladas das pessoas visando adequar-se às mudanças climáticas e às catástrofes naturais. b) corresponde à maneira como o homem deseja construir e realizar plenamente a sua existência no planeta. c) compreende a atitude conservacionista que o sistema econômico adota em relação ao ambiente. d) implica a instrumentalização dos recursos tecnológicos em benefício da redução da poluição. e) refere-se à atitude de retorno do homem à vida natural, observando as leis da natureza e sua regularidade. 04. (UEM PR) Jürgen Habermas (1929) pertenceu inicialmente à escola de Frankfurt, também conhecida como Teoria Crítica, antes de fazer seu próprio caminho de investigação filosófica. Sobre o pensamento de Jürgen Habermas, assinale o que for correto. a) Ao afastar-se da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas abandona, ao mesmo tempo, a teoria crítica da sociedade e a crítica da razão instrumental. b) Ao contrário de Max Horkheimer, Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, Jürgen Habermas continua fiel ao materialismo histórico, ou seja, à ortodoxia marxista.

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A14  Jürgen Habermas: teoria social e razão comunicativa

01. (UEL PR) Leia o texto a seguir. A utilização da Internet ampliou e fragmentou, simultaneamente, os nexos de comunicação. Isto impacta no modo como o diálogo é construído entre os indivíduos numa sociedade democrática.


Filosofia

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c) A relação posta pela Filosofia positivista entre o objeto da investigação científica e o sujeito que investiga é, para Jürgen Habermas, o caminho a ser adotado por uma racionalidade que deseja a emancipação humana. d) A racionalidade comunicativa, contida na Teoria da ação comunicativa de Jürgen Habermas, elabora-se na interação intersubjetiva, mediatizada pela linguagem de sujeitos que desejam alcançar, por meio do entendimento, um consenso autêntico. 05. (UEL PR) Leia o texto a seguir. Habermas distingue entre racionalidade instrumental e racionalidade comunicativa. A racionalidade comunicativa ocorre quando os seres humanos recorrem à linguagem com o intuito de alcançar o entendimento não coagido sobre algo, por exemplo, decidir sobre a maneira correta de agir (ação moral). A racionalidade instrumental, por sua vez, ocorre quando os seres humanos utilizam as coisas do mundo, ou até mesmo outras pessoas, como meio para se alcançar um fim (raciocínio meio e fim). Com base no texto e nos conhecimentos sobre a teoria da ação comunicativa de Habermas, é correto afirmar: a) Contar uma mentira para outra pessoa buscando obter algo que desejamos e que sabemos que não receberíamos se disséssemos a verdade é um exemplo de racionalidade comunicativa. b) Realizar um debate entre os alunos de turma da faculdade buscando decidir democraticamente a melhor maneira de arrecadar fundos para o baile de formatura é um exemplo de racionalidade instrumental. c) Um adolescente que diz para seu pai que vai dormir na casa de um amigo, mas, na verdade, vai para uma festa com amigos, é um exemplo de racionalidade comunicativa. d) Alguém que decide economizar dinheiro durante vários anos a fim de fazer uma viagem para os Estados Unidos da América é um exemplo de racionalidade instrumental. e) Um grupo de amigos que se reúne para decidir democraticamente o que irão fazer com o dinheiro que ganharam em um bolão da Mega Sena é um exemplo de racionalidade instrumental. 06. (UEL PR) Leia o texto a seguir. Na tradição liberal, a ênfase é posta no caráter impessoal das leis e na proteção das liberdades individuais, de tal modo que o processo democrático é compelido pelos (e está a serviço dos) direitos pessoais que garantem a cada indivíduo a liberdade de buscar sua própria realização. Na tradição republicana, a primazia é dada ao processo democrático enquanto tal, entendido como uma deliberação coletiva que conduz os cidadãos à procura do entendimento sobre o bem comum. (Adaptado de: ARAÚJO, L. B. L. Moral, direito e política. “Sobre a Teoria do Discurso de” Habermas. In: OLIVEIRA, M.; AGUIAR, O. A.; SAHD, L. F. N. de A. e S. (Orgs.). Filosofia Política Contemporânea. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 214-235.)

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Com base no texto e nos conhecimentos sobre a filosofia política na teoria do discurso, é correto afirmar que Habermas a) privilegia a ideia de Estado de direito em detrimento de uma democracia participativa. b) concede maior relevância à autonomia pública, opondo-se à autonomia privada. c) ignora tanto a autonomia privada quanto a pública, substituindo-as pela utilidade das normas morais. d) enfatiza a compreensão individualista e instrumental do papel do cidadão na lógica privada do mercado. e) concilia, na mesma base, direitos humanos e soberania popular, reconhecendo-os como distintos, porém complementares. 07. (UEL PR) Leia o texto a seguir. Em Técnica e Ciência como “ideologia”, Habermas apresenta uma reformulação do conceito weberiano de racionalização pela qual lança as bases conceptuais de sua teoria da sociedade. Neste sentido, postula a distinção irredutível entre trabalho ou agir instrumental e interação ou agir comunicativo, bem como a pertinência da conexão dialética entre essas categorias, das quais deriva a diferenciação entre o quadro institucional de uma sociedade e os subsistemas do agir racional com respeito a fins. Segundo Habermas, uma análise mais pormenorizada da primeira parte da Ideologia Alemã revela que “Marx não explicita efetivamente a conexão entre interação e trabalho, mas sob o título nada específico da práxis social reduz um ao outro, a saber, a ação comunicativa à instrumental”. (Adaptado: HABERMAS, J. Técnica e ciência como “ideologia”. Lisboa: Edições 70, 1994. p.41-42.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre o pensamento de Habermas, é correto afirmar: a) O crescimento das forças produtivas e a eficiência administrativa conduzem à organização das relações sociais baseadas na comunicação livre de quaisquer formas de dominação. b) A liberação do potencial emancipatório do desenvolvimento da técnica e da ciência depende da prevenção das disfuncionalidades sistêmicas que entravam a reprodução material da vida e suas respectivas formas interativas. c) O desenvolvimento da ciência e da técnica, enquanto forças produtivas, permite estabelecer uma nova forma de legitimação que, por sua vez, nega as estruturas da ação instrumental, assimilando-as à ação comunicativa. d) Com base na irredutibilidade entre trabalho e interação, a luta pela emancipação diz respeito tanto ao agir comunicativo, contra as restrições impostas pela dominação, quanto ao agir instrumental, contra as restrições materiais pela escassez econômica. e) A racionalização na dimensão da interação social submetida à racionalização na dimensão do trabalho na práxis social determina o caráter emancipatório do desenvolvimento das forças produtivas e do bem-estar da vida humana.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A15

FRIEDRICH HAYEK: O CAMINHO DA SERVIDÃO Como vimos anteriormente, a Escola Austríaca de Economia - embora surgida em meados do século XIX - passou a se configurar como uma corrente heterodoxa de economia a partir dos anos 1930, agregando nomes como Ludwig Von Mises, Murray Rothbard e o ganhador do Prêmio Nobel de Ciências Econômicas, Friedrich Hayek. Para muitos dos seus detratores, trata-se de uma corrente cíclica das crises do capitalismo/liberalismo clássico, se convertendo naquilo que denominam de neoliberalismo - um termo pejorativo para designar políticas, que sobrepõe o capital frente às necessidades e demandas sociais a partir da reconfiguração de políticas que somente o favorecem. Já para seus adeptos, trata-se de uma corrente que oxigenou o liberalismo, reconduzindo a dinâmica capitalista ao seu prisma e ideal originário: a defesa da liberdade advinda, sobretudo, da defesa do livre-mercado e de uma mentalidade antiestatista. É, nesse ínterim, que se destaca, sobretudo, o pensamento de Friedrich Hayek.

ASSUNTOS ABORDADOS n Friedrich Hayek: o caminho da

servidão

n O caminho da servidão

SAIBA MAIS

Fonte: Wikimedia Commons

Friedrich August Von Hayek nasceu em Viena, na Áustria, no dia 8 de maio de 1899. Economista e filósofo, destacouse como um dos principais baluartes da chamada Escola Austríaca de pensamento econômico. Além disso, foi um intelectual bastante profícuo, situando artigos no campo da epistemologia, história das ideias, psicologia, filosofia do direito e economia. Nestas últimas três áreas, concentrou seus dois doutoramentos e a área em que seu pensamento encontrou maior guarida foi: a teoria econômica (neo)liberal. Em 1974, recebeu o Prêmio Nobel em Ciências Econômicas por seu trabalho sobre a teoria da moeda e flutuações econômicas e da interdependência dos fenômenos institucionais, econômicos e sociais. Sua carreira acadêmica se consolidou na London School of Economics (LSE), além da Universidade de Chicago e de Freiburg. Embora crítico de instituições políticas, em 1984 tornou-se conselheiro da Primeira Ministra inglesa, Margaret Thatcher, além de integrar - por indicação da Rainha Elizabeth II - a Order of the Companions of Honour. Hayek foi ainda responsável pela fundação da Mont Pèlerim Society - uma associação, junto a outros pensadores de relevo (tais como Michael Polanyi, Ludwig von Mises, Bertrand de Jouvenel, Wilhelm Röpke, Milton Friedman, Frank Knight, Lionel Robbins, Karl Popper) para propagar o liberalismo no pós-guerra. Figura 01 - Autorretrato de F. Hayek usada em seus artigos. Autor: Desconhecido.

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Filosofia

Embora conhecido a partir de suas contribuições à teoria econômica, Hayek destacou-se pela crítica feita ao positivismo metodológico. Segundo o filósofo, o positivismo representava um cientificismo danoso às ciências sociais, principalmente à economia. Em uma obra publicada na década de 1950, The Counter-Revolution of Science, o autor expôs os riscos da teoria aplicada ao escopo das ciências sociais, bem como as implicações políticas de um tipo de “racionalismo construtivista” - que associado a esse positivismo tinha como meta moldar a sociedade a partir de princípios ideológicos estanques. Continuamente, Hayek emprega o termo “cientificismo” para descrever o programa positivista que objetiva emular o sistema epistemológico/metodológico das ciências naturais às ciências sociais. De acordo com o filósofo, o cientificismo restringia a ciência ao uso de variáveis agregadas sujeitas à mensuração objetiva. A crítica recai, ainda, ao historicismo (que para Hayek também seria uma forma de cientificismo) em sua premissa básica de que havia possibilidades de se derivar leis a partir do acúmulo de casos observados historicamente. De forma inusitada, o filósofo austríaco reduz ao bojo do que chama de cientificismo, também, a doutrina objetivista - para a qual haveria a necessidade de se rejeitar variáveis que dependam da percepção subjetiva dos agentes, não verificadas intersubjetivamente (BARBIERI, 2014).

é acatado pela massa dominada, acreditando-se que algo é feito com base em uma ideia científica e em um modelo que é pensado sempre para o “bem comum”. Na contramão, Hayek propõe um modelo distinto de se lidar com a ciência, opondo-se ao cientificismo marcado pelas filosofias de Augusto Comte, Claude-Henry de Rouvroy e Conde de Saint Simon - todas elas convertidas em engenharias sociais. Segundo Barbieri (Idem, p. 624-5): A metodologia defendida por Hayek, por sua vez, atualiza a tradição clássica, modificando a filosofia da ciência popperiana para lidar com fenômenos complexos. Estes últimos identificados pelo número mínimo de variáveis necessárias para uma explicação aceitável do objeto estudado: embora possamos estabelecer relações precisas entre poucas grandezas de um fenômeno simples, os fenômenos complexos, como aqueles estudados pela Economia, são sempre influenciados por um sem número de variáveis. Conforme aumenta o grau de complexidade do fenômeno estudado, menos aplicáveis se tornam os preceitos do cientificismo.

O caminho da servidão

Registra-se, também, que Hayek tinha uma profunda preocupação com as consequências de ordem ética e política dos postulados cientificistas. Não se tratava apenas de uma disputa epistemológica, mas também de um constante alerta para os desdobramentos de uma dada “ideologia científica”. É notório a exploração que o filósofo faz da relação entre o tipo de racionalismo que ignora as limitações do conhecimento humano e o advento de ideologias totalitárias. Para ele, nessas ideologias, há um uso da “ciência provada” como posse de um único discurso político, desprezando o conhecimento fragmentando dos indivíduos, convocando a engenharia social a planejar uma estrutura de sociedade baseada em suas pretensões supostamente racionais. E isso 136

Fonte: Wikimedia Commons

A15  Friedrich Hayek: o caminho da servidão

Em suma, para Hayek, as únicas teorias que demonstraram sucesso explanatório - contrastando com a escassez de resultados do cientificismo - derivaram de uma espécie de subjetivismo metodológico. Segundo esse modelo, a explicação para os fenômenos sociais demandava simplificações abstratas, segundo as quais seriam possíveis deduzir teoremas, tornando-se subjetivistas na medida em que incorporavam como variáveis as dimensões como “expectativa”, “planos”, “preferências” etc. Dessa forma, ao se considerar a complexidade e o subjetivismo das experiências do individualismo metodológico, o cientista social estaria livre da tentação de querer obter o controle (do) social, alargando sua percepção sobre a formação de ordens espontâneas.

Figura 02 - Capa da primeira edição de The Road to Serfdom (O Caminho da Servidão). Autor: Routledge Press (1944).


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Hayek demonstra preocupação com as similaridades entre a Inglaterra de seu tempo e a Alemanha de poucas décadas antes da ascensão de Hitler. Na perspectiva do filósofo, a estrutura ontológica do Nazismo está longe de um espectro de extrema-direita ou mesmo de uma economia genuinamente capitalista. Para ele, o Nazismo foi resultante de um sentimento antiburguês, que propiciou o crescimento de ideias socializantes e políticas de planificação econômica. Segundo Hayek, o Nazismo não teria sido uma reação capitalista ao Socialismo. Ao contrário, era a própria afirmação do Socialismo em detrimento do real Capitalismo: aquele que dispensa qualquer forma de regulação social e econômica advinda do poder centralizador e interventor do Estado. O totalitarismo alemão seria o prenúncio do que a Inglaterra - ainda que tardia - poderia se tornar caso mantivessem tais tendências estatizantes (socialistas) e opositoras (no plano das ideais) ao modo capitalista (de produção) e liberal (de concepção política e social). Em sua obra O Caminho da Servidão - escrita no contexto da Segunda Grande Guerra e publicada em 1944 - Friedrich Hayek divide sua tese central em dois pontos: 1) o socialismo é incompatível com a liberdade individual e com regimes democráticos. Sua existência precede ou sucede uma sociedade centralizada e autoritária; 2) qualquer adoção de medidas antiliberais, seja no campo da economia ou da política, desencadeia um efeito social de perda da liberdade, conduzindo a sociedade aos extremos do totalitarismo- marcado pela planificação em todos os níveis. A crítica de Hayek aos modelos estatizantes - tipificados genericamente de “socialistas” - encontra respaldo em seu antigo mestre, Ludwig Von Mises. Em especial, sua obra em 1922, Socialism: An Economic and Sociological Analysis (Socialismo: uma análise econômica e sociológica), fruto de um artigo do mesmo autor, publicado dois anos antes: Economic Calculation in the Socialist Commonwealth (O cálculo econômico sob o socialismo). O argumento de Mises (feito na forma de um questionamento) era simples, contudo, de densa problematização: como uma economia de planejamento centralizado saberia justamente planejar uma economia racional e de maneira eficiente, uma vez que a propriedade privada dos meios de produção seria abolida, a competitividade anulada e os preços monetários gerados por um mercado não-existente? A resposta era

óbvia: isso não seria possível. Logo, o socialismo projetava, antes, um “caos planejado”, que levaria não somente a um colapso econômico, mas também (e até por consequência disso) a uma insolvência e diluição das instituições sociais e da própria liberdade. Por essa razão, a utopia socialista não passaria de um caminho para a estagnação social, da irracionalidade econômica e, principalmente, da tirania política. É precisamente a partir dessas premissas, que Hayek articulará a tese central de O Caminho da Servidão. Dando sequência ao aporte teórico de Mises, o objetivo dessa obra era servir como um alerta - a sua época - para os “socialistas democráticos” do partido trabalhista inglês, assim como para os conservadores que apoiavam medidas “socializantes”. Havia um perigo claro para Hayek: as políticas de cunho socialista levaram, inexoravelmente, qualquer sociedade a adotar (e ser servil a) um Estado autoritário. Hayek defende a tese de que socialismo e democracia são incompatíveis. Logo, qualquer programa de governo que busca jungir esses dois sistemas é insustentável (ou levianamente intencionado a confundir seus partidários acerca de dois modelos antagônicos em essência). Em uma proposta de implementação de políticas de planejamento - como é caro ao socialismo - um parlamento democrático atuaria na contramão da necessidade de se operar diretrizes muito específicas de planificação. Em outras palavras, uma estrutura democrática, marcada pela pluralidade, se mostraria extremamente “vagarosa” em seus processos decisórios. Dessa forma, um governo assume que a existência de uma instância parlamentar é contraprodutiva para a implementação das medidas de planejamento. Para dirimir esse entrave, criam-se órgãos compostos por especialistas que estejam acima do processo democrático decisório. O que antes marcava o jogo democrático e funda o Estado de Direito (o princípio da isonomia) é aniquilado em nome da necessidade de se impor um planejamento econômico. Ponderação e pluralidade são vistos como comportamentos e princípios que emperram a eficiência do modelo centralizado de Estado. A respeito dessa incompatibilidade entre a planificação e o Estado de Direito, Victor Yamasaki Bernardo (2014, p.710) expõe: (…) O Estado de Direito se baseia na igualdade de todos os cidadãos perante a lei e na capacidade de os indivíduos preverem a ação do Estado mediante essas leis. A planificação exige que o Estado aja de forma que não possa ser prevista por todos os indivíduos afetados por suas medidas e que haja aqueles que vão decidir que ações vão ser tomadas e como tais ações afetarão a terceiros. Assim, não há mais a impessoalidade das normas nem a igualdade garantida pela lei em Estados de orientação constitucional liberal. A sociedade planificada necessariamente deve dividir entre dirigentes e dirigidos, demandando uma hierarquia rígida. 137

A15  Friedrich Hayek : o caminho da servidão

Poucos foram os autores que ousaram pensar o fenômeno da ascensão do nazifacismo na Europa em dupla acepção: temporal e comparativa. Em outras palavras, escrevendo sobre o III Reich em sua plena ocorrência e se permitindo comparar seu modus operandi com outras experiências políticas, a funcionar como um “alerta” para as gerações seguintes. É nesse intercurso que se destaca a obra O Caminho da servidão (1944), do pensador Friedrich Hayek (1899-1992).


Filosofia

Assim como Mises, Hayek compreende que uma estrutura de planificação econômica não somente afeta a regularidade e a prosperidade econômica, como sua implementação comporta matizes de natureza antiética. Em outras palavras, em uma sociedade em que todos os esforços no campo produtivo estão direcionados para fins determinados de forma vertical, o valor da “livre-decisão” é corrompido. Esse valor seria pautado pela escolha e ação que os indivíduos fazem a partir de regras morais gerais que condicionam seu existir. Seus gostos, predileções, vocações etc. estariam diluídos no corpo de uma sociedade planificada que decide o que esse indivíduo deve consumir ou produzir. Em última instância, as características coletivistas das medidas socialistas acarretam, necessariamente, na dissolução do sujeito enquanto indivíduo portador de desejos, vontades, e que suas ações sejam orientadas por valores gerais (religiosos, tradicionais etc.). Segundo Bernardo (Idem, p. 711) (…) O modelo produtivo e a moralidade da sociedade planificada exigem ampla aceitação dos membros da sociedade. Isso faz com que todo o questionamento seja visto como um empecilho e até como uma forma de traição, levando o Estado a criar uma nova moral que justifique todos os seus atos. Essa nova moral não pode se basear em princípios racionais, já que as escolhas feitas pelos dirigentes serão arbitrárias, por isso são criados mitos baseados em antigos preconceitos e falsas teorias. A livre discussão e o dissenso são menosprezados. O próprio conceito de “verdade” é distorcido, passando de algo que deve ser apreendido pela livre consciência individual para algo ditado pela autoridade e em que é preciso crer em nome do bem da comunidade, podendo ser alterado conforme a conveniência.

Hayek ainda empreende um interessante exame acerca dos mecanismos que as políticas totalitárias se valem para impor seu domínio: a linguagem seria um dos principais. Não raro, conforme afirma Hayek, os regimes totalitários promoviam uma distorção no significado de determinados conceitos para justificar seus atos, como por exemplo, as palavras “direito” e “liberdade”. A partir do momento que se distancia de seus significados originais, tais palavras criam um fosso de compreensão entre os indivíduos, já que não há uma linguagem que permita um espaço de consenso. Em suma, a democracia é posta em suspenso em definitivo, já que a comunicação é obliterada e os indivíduos tornam-se incapazes de se compreenderem, já que a própria realidade foi alterada pela manipulação da linguagem. De acordo com Hayek (2010, p.177) Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam tanta confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo, tão característicos do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a mudança de sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes. Nesse contexto, a palavra mais deturpada é, evidentemente, “liberdade”, um termo tão usado nos Estados totalitários como em qualquer outro lugar. Pode-se mesmo dizer que, sempre que a liberdade que conhecemos foi aniquilada, isso se fez em nome de uma nova liberdade prometida ao povo. Tal constatação deve ajudar-nos a nos precaver contra as promessas de novas liberdades em troca das antigas. Mesmo entre nós, existem “planejadores da liberdade” que prometem uma “liberdade coletiva” cuja natureza é possível inferir do fato de os seus defensores acharem necessário assegurar-nos de que, “naturalmente, o advento da liberdade planejada não significa que todas [sic] as formas mais antigas de liberdade devam ser abolidas”.

A15  Friedrich Hayek: o caminho da servidão

Um interessante estudo que ajuda a desdobrar essa intuição hayekeana foi a obra do alemão Victor Klemperer: LTI: a linguagem no Terceiro Reich (2009). Klemperer viveu os horrores do holocausto na cidade de Desdren, na Alemanha até o fim da guerra, dada sua condição judia. A partir de seus diários e obras, elaborou uma análise linguística sobre os mecanismos de dominação discursiva do III Reich (lat.: LTI - Lingua Tertii Imperii). De acordo com o autor, a decadência do país sob o domínio nazista pode ser interpretada pela forma como a língua alemã foi moldada para mergulhar no subjugo hitlerista. Termos como füher, reich, “império” e “líder” passaram a figurar como expressões de subserviência a uma idealizada estrutura de controle. A linguagem, como um todo, configurou-se, em algum sentido, vazia e sem concretude com os valores mais nobres do povo alemão. A pobreza espiritual e moral dos germânicos estava grafada na forma como sua língua foi apropriada e distorcida. Figura 03 - Retrato de Victor Klemperer. Autora: Eva Kemlein (1952).

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Fonte: Wikimedia Commons

SAIBA MAIS


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Como toda obra que causa enorme impacto teórico, O Caminho da Servidão vem, ao longo das décadas, sofrendo inúmeras críticas, sobretudo em suas bases empíricas. Argumenta-se que a tese central do texto (a de que a adoção de medidas socialistas levaria a um Estado autoritário) não se concretizou. Durante décadas após a Segunda Guerra Mundial, o programa de governo do Partido Trabalhista vigorou na Grã-Bretanha, sem que necessariamente houvesse a diluição de direitos políticos e liberdades individuais. A própria Inglaterra dos anos 1950 e 1960 demonstrou sua não condução a modelos ditatoriais ou para a criação de aparatos totalitários. Logo, o determinismo hayekeano não se sustentaria ao afirmar que a implementação de medidas socialistas leva, inexoravelmente, à redução de liberdades sociais e políticas. Dessa maneira, a crítica de Hayek sustenta-se apenas no sentido de demonstrar - como Mises já houvera feito - que uma economia (ainda que minimamente) planificada pode levar ao decaimento da situação socioeconômica de uma nação. O exemplo disso ocorreu com a própria Inglaterra, que na década de 1980- sob os auspícios da primeira-ministra, Margareth Tactcher (do Partido Conversador Inglês) - passou a imprimir uma série de reformas liberais no governo. Em síntese, a obra de Hayek é tomada em sentido crítico como uma importante contribuição para se pensar os limites do sistema democrático em conjugação com medidas socialistas. Além disso, representa um

alerta para as possíveis contingências de um Estado centralizado que, por suas ações, pode levar (ainda que não necessariamente) a um modelo de sociedade limitada em suas liberdades e subserviente aos desmandos totalitários. Bibliografia BARBIERI, Fábio. A economia falibilista de Hayek. In: MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia. ISSN: 2318-0811. Volume II, número 2 (Edição 4) Julho-Dezembro 2014. BERNARDO, Victor Yamasaki. O Caminho da Servidão (resenha). In: MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia. ISSN: 2318-0811. Volume II, número 2 (Edição 4) julho-dezembro 2014. HAYEK, Friedrich A. The Counter-Revolution of Science. Indianápolis: Liberty Press, 1979 (1952). ______. O Caminho da Servidão. Tradução de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises: 2010. KLEMPERER, Victor. LTI: a linguagem no Terceiro Reich. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009. MISES, Ludwig Von. Economic Calculation in the Socialist Commonwealth. Auburn, Alabama: Ludwig von Mises Institute: 1990 (1920). ______. Socialism: An Economic and Sociological Analysis. Indianápolis: Liberty Fund, 1981 (1922).

#DicaCine Filosofi

A15  Friedrich Hayek : o caminho da servidão

Sinopse: 1984 (do original, Nineteen Eighty-Four) é um filme britânico de gêneros ficção científica e drama, produzido exatamente (e simbolicamente) no referido ano. Trata-se de uma adaptação do famoso livro 1984, escrito por George Orwell em 1949. A trama se passa após uma guerra atômica, quando o mundo havia sido dividido em três Estados. Londres seria a capital da Oceania, dominada por um partido que tem total controle sobre todos os cidadãos. O protagonista, Winston Smith, era um simples funcionário do partido, que se apaixona por Júlia, justamente em uma sociedade na qual as emoções eram consideradas ilegais. Durante todo o enredo, ambos tentam escapar dos tentáculos do “Grande Irmão” (Big Brother). Nessa distopia escrita por Orwell, todas as pessoas estariam sob constante vigilância das autoridades, principalmente por “teletelas”, sendo constantemente lembradas pela frase propaganda do Estado: “o Grande Irmão zela por ti” ou “o Grande Irmão está te observando” (do original “Big Brother is watching you”). Ficha técnica: Título: 1984 Direção: Michael Radford Roteiro: Jonathan Gems/ Michael Radford Gênero: Ficção Científica/ Drama Idioma: Inglês 139


Filosofia 01. Resposta esperada: A Escola Austríaca de Econo- 02. Resposta esperada: Trata-se de uma corrente cíclica das crises do capitalismo/liberalismo clássico, convertendo-se naquilo mia - que agregou nomes como Ludwig Von Mises, que denominam de neoliberalismo - um termo pejorativo para designar políticas, que sobrepõe o capital frente às necessidaMurray Rothbard e o ganhador do Prêmio Nobel de des e demandas sociais a partir da reconfiguração de políticas que somente o favorecem. Ciências Econômicas, Friedrich Hayek.

Exercícios de Fixação 01. O pensamento de Friedrich Hayek está associado a uma importante corrente econômica, que ganha relevância, sobretudo no século XX. Qual é essa corrente e quais outros pensadores se destacam?

03. Contrapondo as críticas à Escola Austríaca, de que forma seus adeptos a concebem?

02. Por qual título as teorias liberais heterodoxas são conhecidas por seus detratores? Qual a visão geral dessas críticas?

05. Segundo Hayek, qual seria um dos instrumentos mais eficazes para a implementação e o controle totalitário?

03. Resposta esperada: Para seus adeptos, trata-se de uma corrente que oxigenou o liberalismo, reconduzindo a dinâmica capitalista ao seu prisma e ideal originário: a defesa da liberdade advinda, sobretudo, da defesa do livre-mercado e de uma mentalidade antiestatista.

04. Qual o risco que Hayek previa para a Inglaterra de seu tempo?

05. Resposta esperada: Para ele a linguagem seria um dos principais. Não raro, conforme afirma Hayek, os regimes totalitários promoviam uma distorção no significado de determinados conceitos para justificar seus atos.

Exercícios C om p l em en t ares 01. Friedrich Hayek é identificado com qual escola de teoria econômica? a) Escola de Chicago b) Escola Austríaca c) Escola Nova d) Escola de Frankfurt 02. Destacam-se os seguintes pensadores da Escola Austríaca de Economia: a) Menger, Rothbard, Hayek e Mises. b) Keynes, Hayek, Mises e Rothbard. c) Marx, Engels, Hayek e Mises. d) Marx, Hayek, Churchil e Keynes. 03. Para determinados críticos, a Escola Austríaca é identificada com qual corrente teórico-econômica? a) Neomarxismo b) Keynesianismo c) Liberalismo clássico d) Neoliberalismo 04. Leia o texto a seguir: A15  Friedrich Hayek: o caminho da servidão

Todos os sistemas socialistas, inclusive aquele de Karl Marx e seus apoiadores ortodoxos, partem da suposição de que,

construir uma economia socialista tendo por base apenas o Imperativo Categórico. O quão suave é a intenção deles em proceder desta maneira foi bem explicitado por Kautsky quando ele diz, “Se o socialismo é uma necessidade social, então é a natureza humana, e não o socialismo, quem deve se reajustar às necessidades caso os dois venham a colidir.” Isso nada mais é do que uma absoluta quimera. (Von MISES, Ludwig. O Cálculo econômico sob o socialismo. São Paulo: Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2012. p. 43.) Sobre a crítica de L. Von Mises ao socialismo, pode-se afirmar que a) parte de uma concordância com Marx, mas acaba criticando os discípulos deste. b) ancora-se no argumento de que um dos erros do socialismo é ignorar o confronto latente entre indivíduo e coletividade. c) enumera argumentos que não dizem respeito à economia. d) defende o coletivismo em detrimento do indivíduo. e) não tem nenhum vínculo com o liberalismo clássico dos séculos XVIII e XIX. 05. Um dos argumentos liberais contra o Socialismo defende que esse sistema sempre acabou demonstrando ineficiência econômica e totalitarismo político. Esse argumento tem implícita a defesa do valor central do liberalismo, que é

em uma sociedade socialista, um conflito entre os interess-

a) a propriedade socializada (soviet).

es do indivíduo e do coletivo jamais poderá surgir. Todos irão

b) a liberdade individual.

agir com total interesse em dar o seu melhor, pois ele partic-

c) a justiça social.

ipa da produção de toda a atividade econômica. A óbvia ob-

d) a expropriação da propriedade privada

jeção de que o indivíduo está muito pouco preocupado em

e) o desarmamento da população civil.

determinar se ele próprio é diligente e entusiástico, e que é da maior importância para ele que todos os outros o sejam,

06. Leia o texto a seguir

é algo completamente ignorado por eles. Quando muito,

Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam tanta

é insuficientemente abordado. Eles acreditam que podem

confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo,

04. Resposta esperada: Hayek previa que o totalitarismo alemão seria o prenúncio do que a Inglaterra - ainda que tardia - poderia se tornar, caso mantivessem tais tendências estatizantes (socialistas) e opositoras (no plano das ideais) ao modo capitalista (de produção) e liberal (de concepção política e social).

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

tão característicos do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a mudança de sentido das

a) A planificação gera impacto sobre a regularidade e a prosperidade econômica

palavras que expressam os ideais dos novos regimes. Nesse

b) Sua implementação comporta matizes de natureza antiética.

contexto, a palavra mais deturpada é, evidentemente, “liber-

c) Numa sociedade em que todos os esforços no campo pro-

dade”, um termo tão usado nos Estados totalitários como em

dutivo estão direcionados para fins determinados de forma

qualquer outro lugar.

vertical, o valor da “livre-decisão” é corrompido. (HAYEK, F. O Caminho da Servidão. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises: 2010, p.117)

De acordo a leitura acima, quais das premissas abaixo são condizentes com a teorização de Hayek? I-

A linguagem é um dos principais os mecanismos que (a) políticas totalitárias se valem para impor seu domínio

II -

III -

tam necessariamente o reforço da noção de sujeito enquanto indivíduo portador de desejos, vontades. 09. Hayek defende a tese de que socialismo e democracia são incompatíveis. A esse respeito, é INCORRETO afirmar:

Os regimes totalitários promoviam uma distorção no

a) qualquer programa de governo que busca jungir estes dois

significado de determinados conceitos para justificar

sistemas é insustentável (ou levianamente intencionado a

seus atos.

confundir seus partidários acerca de dois modelos antagô-

O socialismo é a única forma que pode garantir a justiça social por meio de uma revolução da cultura

IV -

d) As características coletivistas das medidas socialistas acarre-

nicos em essência). b) Numa proposta de implementação de políticas de planeja-

Liberdade é um conceito relativo que pertence aos signi-

mento - como é caro ao socialismo - um parlamento demo-

ficados que os processos políticos a impõe.

crático atuaria na contramão da necessidade de se operar diretrizes muito específicas de planificação. c) Para dirimir resolver a questão deve-se criar órgãos compos-

b) Alternativas II e III

tos por especialistas que estejam acima do processo demo-

c) Alternativas II e IV

crático decisório.

d) Alternativas IV e I 07. Hayek propõe um modelo distinto de se lidar com a ciência, opondo-se ao cientificismo marcado pelas filosofias de Augusto Comte, Claude-Henry de Rouvroy e Conde de Saint Simon - to-

d) Ponderação e pluralidade são vistos como comportamentos e princípios que emperram a eficiência do modelo centralizado de Estado. 10. Na obra O Caminho da servidão (1944), Friedrich Hayek (1899-

das elas convertidas em engenharias sociais. Assinale a alterna-

1992) demonstra preocupação com as similaridades entre a In-

tiva INCORRETA acerca dos postulados de seu método:

glaterra de seu tempo e a Alemanha de poucas décadas antes

a) A metodologia defendida por Hayek atualiza a tradição clássica, modificando a filosofia da ciência popperiana para lidar com fenômenos complexos. b) Fenômenos complexos são aqueles identificados pelo número mínimo de variáveis necessárias para uma explicação aceitável do objeto estudado.

da ascensão de Hitler. Assinale a alternativa INCORRETA que diz respeito à formulação de Hayek sobre o tema. a) De acordo com Hayek, a estrutura ontológica do nazismo está associada ao pensamento de extrema-direita ou mesmo de uma economia genuinamente capitalista. b) O nazismo foi resultante de um sentimento antiburguês que

c) embora possamos estabelecer relações precisas entre pou-

propiciou o crescimento de ideias socializantes e políticas de

cas grandezas de um fenômeno simples, os fenômenos com-

planificação econômica, não sendo uma reação capitalista

plexos, como aqueles estudados pela Economia, são sempre influenciados por um sem número de variáveis.

ao socialismo. c) O nazismo foi a própria afirmação deste em detrimento do

d) Quanto mais se aumenta o grau de complexidade do fenô-

real capitalismo: aquele que dispensa qualquer forma de re-

meno estudado, mais aplicáveis se tornam os preceitos do

gulação social e econômica advinda do poder centralizador

cientificismo. 08. Mises e Hayek empreendem uma crítica similar às estruturas de planificação econômica. Assinale a alternativa INCORRETA de acordo com a formulação teórica desses economistas acerca da implementação do regime de planificação:

e interventor do Estado. d) O totalitarismo alemão seria o prenúncio do que a Inglaterra - ainda que tardia - poderia se tornar caso mantivessem tais tendências estatizantes (socialistas) e opositoras (no plano das ideais) ao modo capitalista (de produção) e liberal (de concepção política e social).

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A15  Friedrich Hayek : o caminho da servidão

a) Alternativas I e II


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A16

ASSUNTOS ABORDADOS n Pós-modernidade: um conceito

também líquido

PÓS-MODERNIDADE: UM CONCEITO TAMBÉM LÍQUIDO Seguramente, o conceito de pós-modernidade é um dos termos mais controversos quanto ao seu uso/significado no campo da filosofia contemporânea. Não raro, é usado como característica de um tipo de pensamento não totalizante e cronologicamente pós-século XIX, ou ora tomado em sentido pejorativo para designar uma tipologia de comportamento social e intelectual sem referências sólidas ou bases epistemológicas seguras. Tomaremos sua dupla acepção para efeito de apresentação conceitual. Do ponto de vista cronológico, a maioria dos historiadores considera que a Idade Moderna se findou com a instauração da Revolução Francesa. De lá para cá, convencionou-se chamar de Era Contemporânea para designar nosso atual tempo histórico. Ainda que existam interpretações que localizam outros eventos limites para marcar o fim da era moderna (ou mesmo para sustentá-la até os dias atuais enquanto modelo de pensamento e sociedade ainda presentificada), a transição para o século XX é pontual para definir esses contornos temporais.

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O oitocentos seria, portanto, um século de importante transição. É nele que duas grandes correntes epistemológicas se afirmam e influem sobre o modo de fazer ciência (sobretudo social): o positivismo e o marxismo. Ambas, com propostas totalizantes de se conceber o progresso, a civilização, o papel da razão e da história, surgidas da esteira do esclarecimento iluminista, do criticismo kantiano e do idealismo hegeliano - cada qual em proporções ou apropriações exclusivas.

Figura 01 - Ceci n’est pas une pipe. Autor: René Magritte (1828-1829).

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Ao final desse século, começa a emergir um conjunto de perspectivas filosóficas (e metapsicológicas) a estabelecer uma crítica a esses modos totalizantes, bem como a toda modernidade. Destacam-se os pensamentos de Friedrich Nietzche e Sigmund Freud. A crítica de Nietzche ao “deus da modernidade” e o decentramento que Freud opera da noção de “ego rationale” frente à dimensão (e domínio) do insconsciente ajudam a colocar em suspenso a autoridade da razão e do sujeito moderno. No decorrer do século XX - e em especial a partir dos anos 1950/1960 - teremos um conjunto de diversos pensadores a não se fiarem nos postulados filosóficos da modernidade, rechaçando os modelos totalizantes das matrizes marxistas e positivistas. Ancorados nas contribuições de Freud e Nietzche [e nas releituras e dissidências dos frankfurtianos] surgiu uma amálgama de pensadores intitulados de pós-modernos, destacando-se Jean-Francois Lyotard (1924-1988), Jaques Derrida (1930-2004), Gilles Deleuze (1925-1995), Gilles Lipovetski (1944) e Zigmunt Bauman (1925-2017). Esses são os filósofos da pós-modernidade, cronologicamente.

Em seu conjunto, diversos desses filósofos procuraram denunciar a precariedade de se buscar um sentido ou centro explicativo que pudesse abarcar toda a realidade. Ainda que críticos, também, da sociedade contemporânea, entendem que ela revelou - do ponto de vista filosófico e epistemológico - um panorama profícuo para o entendimento do(s) mundo(s) e realidade(s): a noção de que há visões fragmentárias, pontuais, sobre as quais os homens constroem e reconstroem seus significados. Tal mudança de orientação filosófica, mais do que expressar o fim do pensamento filosófico da modernidade (e ela em si), não pode ser entendida como um esvaziamento da filosofia ou perda completa de sentido. Ao contrário, ao admitir a polissemia de diversos conceitos e de que a razão não é inteiramente suficiente para abarcar todo o real (e nem a salvação ou parâmetro de “evolução” para uma sociedade), o que os filósofos pós-modernos fazem é lançar um olhar mais acurado sobre a própria realidade. Segundo Gilles Deleuze (2010, p.11-12),

Figura 02 - Fotografia de Jean-Francois Lyotard. Autor: Bracha L. Ettinger.

Jean-Francois Lyotard nasceu em Versalhes, na França, em 10 de agosto de 1924. O pensador foi um dos filósofos mais importantes do que se convencionou chamar de filosofia pós-moderna. Após passar por várias aspirações - que variaram desde a vida monástica à pintura, passando pela crítica literária e pela História - Lyotard graduou-se em Filosofia na Universidade de Paris (Sorbonne), obtendo seu doutoramento duas décadas depois (1950). Sua tese de doutorado- orientada por Mikel Dufrene- resultou na obra de 1971, intitulada Discours, Figure. Sua vida acadêmica profissional teve início em 1950, quando passou a lecionar no Lyceu Constantine, na Argélia. Em 1952, regressou à França, dando aulas na Escola Militar La Flèche, até 1959. Em parceria com Claude Lefort e Cornélius Castoríardis, tornou-se membro da Socialisme ou Barbarie - uma organização fundada em 1949, vinculada ao pensamento de extrema esquerda e crítica do estalinismo. Após romper com os marxistas do Socialisme, colaborou para a fundação da organização Pouvoir Ouvrier. A partir de 1966, rompeu em definitivo com os postulados e a militância marxista, voltando-se ao estudo e à escrita filosófica. Durante os acontecimentos de maio de 1968, participou das atividades do Mouvement du 22 mars. Em 1970, passou a ensinar filosofia no Centre Universitaire de Vincennes (Paris VIII) e, posteriormente, no Departamento de Filosofia da mesma Universidade. Em 1975, foi nomeado professor e mais tarde professeur émérite. Nessa universidade, ainda, entre 1970 e 1982, tornou-se responsável por uma equipe de investigação sobre a teoria e a prática do cinema experimental. A partir de 1974, passou a ser convidado como visiting professor em diversas universidades americanas. Lyotard faleceu em Paris, no dia 21 de abril de 1998. Sua obra é vasta, do ponto de vista temático, envolvendo assuntos como teoria do conhecimento, memória, comunicação, estética, música, cinema e política. Sua principal obra A condição humana na pós-modernidade (1979) é um marco filosófico ao tratar das formas e consequências do capitalismo contemporâneo para além de uma abordagem marxista. Nesse trabalho, ele investiga os fatores que propiciaram a transformação das formas de obtenção (e legitimação) dos saberes e, principalmente, como isso se deu pela mediação da disseminação tecnológica. Destacam-se, ainda, outros trabalhos, como O pós-moderno (1988), O pós-moderno explicado às crianças (1993) e Discourse, figure (2011).

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Filosofia

Os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes criados e não seriam nada sem a assinatura. Nietzsche determinou a tarefa da filosofia quando escreveu: ‘os filósofos não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhes são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los.

A tarefa da filosofia seria principalmente contrapor às grandes narrativas metafísicas e idealistas, operando um processo de construção de novos conceitos, sendo que esses conceitos são necessários para a compreensão de problemas filosóficos de cada área do conhecimento. Pautando-se nos problemas que se descortinariam aos olhos do filósofo, ele teria condições de lançar luzes sobre incertezas que pairam. Ao rejeitar os grandes sistemas que perfizeram o modo de pensar ocidental, a filosofia deveria ser capaz de fugir da tentação em se ancorar em parâmetros únicos, valores eternos e absolutos a condicionar a atividade (conceitual) filosófica.

Em linhas gerais, é possível elencar um conjunto de ideias que são recusadas pela dita filosofia pós-moderna. E, dessa forma, desenhar no que se sustenta grande parte das teorias desenvolvidas por esses filósofos. De modo central, considera-se: 1) infundada (e em certa medida, ilusória) a pretensão da razão humana a tudo abarcar, constituindo-se, antes, enquanto um instrumento de dominação; 2) que os critérios de julgamento de um conhecimento está atrelado às noções de eficácia e utilidade e não mais de “verdade/falsidade”; 3) a rejeição da distinção cartesiana entre sujeito/objeto, admitindo que tanto as ciências quanto as filosofias tratam de construções subjetivas de seus objetos; 4) a negação de uma noção de história universal contínua, recusando o papel de processos revolucionários como efetivos ou necessários para a mudança da sociedade e da política. Considerando-se as influências do pensamento nietzcheano e da psicanálise freudiana, rejeita-se a ideia de que o homem é um ser guiado predominantemente pela razão, sendo dotado de livre vontade. Antes, o concebe enquanto um ente desejante, pulsional e passional, movido por forças inconscientes e instintivas, na mesma medida em que constrói uma ordem social que coloca freio em seus impulsos, desejos e paixões.

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Figura 03 - Fotografia de Gilles Deleuze. Autor: desconhecido.

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Gilles Deleuze nasceu em Paris, no dia 18 de janeiro de 1925. Nos anos 40, cursou filosofia na Sorbonne. Após a conclusão da graduação, em 1948, passou a se dedicar à história da Filosofia, lecionando na mesma instituição entre 1957 e 1960. Durante os anos de 1964 a 1969, foi professor na Universidade de Lyon. Nesse intercurso, apresentou sua tese de doutoramento intitulada Diferença e Repetição (Différence et répétition) - em que critica o conhecimento via representação mental e a ciência advinda dessa forma clássica lógica e representativa. Em 1987, passou a lecionar na Universidade de Vincennes. Dos diversos cursos dados nessa instituição, muitos foram transcritos e estão disponibilizados gratuitamente. Deleuze foi um importante filósofo francês a refletir e produzir sobre variados assuntos. Sua atividade filosófica se estendia desde a crítica literária, até às artes visuais, ao cinema, à psicanálise etc. Ele estabeleceu uma relação bastante produtiva com o também filósofo e militante político Félix Guattari. Em geral, a obra de Deleuze pode ser dividida em dois grupos; 1) a parte de hermêutica/ exegese de filósofos modernos, tais como Spinoza, Leibniz, Hume, Kant, Nietzsche, Bergson, Foucault; 2) a exploração de temas filosóficos ecléticos centrados na produção de conceitos como diferença, sentido, evento, rizoma etc. Seguramente, suas principais influências filosóficas são percebidas na recorrência a autores como Nietzsche, Henri Bergson e Spinoza. Suas principais obras são: n Nietzsche e a Filosofia (1962); n A Filosofia Crítica de Kant (1963); n Proust e os Signos (1964); n O Bergsonismo (1966); n Spinoza e o problema da Expressão (1968); n Diferença e Repetição (1968); n Lógica do Sentido (1969); n Francis Bacon: Lógica da Sensação (1981); n Conversações (1990); n Crítica e Clínica (1993). Gilles Deleuze faleceu no dia 4 de novembro de 1995, em Paris.


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Há em comum nos diversos filósofos pós-modernos uma profunda denúncia- antecipada a bem da verdade pelos frankfurtianos - do fracasso do projeto moderno do Iluminismo. Ao contrário do que se prometia, o ideal do aufklärung e do progresso capitalista, o desenvolvimento econômico e o avanço da razão técnico-científica não trouxeram a emancipação e a felicidade almejada ao ser humano. Nem mesmo o marxismo e sua projeção de uma filosofia totalizante e capaz de explicar (e ofertar as soluções adequadas) havia se tornado convincente teoricamente. Aquela história linear, previsível ou invariavelmente dialética deixa de fazer parte do léxico filosófico enquanto categoria fundamental para se pensar os processos humanos. Em última instância, a civilização europeia não se confirmou como o modelo de uma sociedade em que o sentido da história se perfez, para decepção dos partidários das diversas correntes filosóficas da modernidade. A esse respeito, G. Váttimo (1990, p.10-11) afirma: A modernidade deixa de existir quando - por múltiplas razões - desaparece a possibilidade de seguir falando da história como entidade unitária (…) Não existe uma história única, existem imagens do passado propostas desde diversos pontos de vista,

e é ilusório pensar que exista um ponto de vista supremo, compreensivo, capaz de unificar todos os demais (…) Filósofos do Iluminismo, Hegel, Marx, positivistas, historicistas de todo o tipo pensavam mais ou menos todos eles do mesmo modo que o sentido da história era a realização da civilização, isto é, da forma do homem europeu moderno.

Dos diversos filósofos que irão postular sobre esse possível fim de uma filosofia da história (aos moldes modernos), destaca-se o pensamento de Jean-Francois Lyotard. De acordo com o filósofo francês (2011, p.26), denomina-se de ‘pós-moderna’ a “(…) incredulidade em relação aos metarrelatos”. Esse desuso metanarrativo é, segundo Lyotard, fruto da crise da filosofia metafísica e dos sistemas totalizantes de explicação do real. A validade pragmática, isto é, aquela dotada pelo uso, função e utilidade torna-se o critério por excelência de um conjunto de narrativas que decentraram os outrora atores da história, “(…) os grandes heróis, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objetivo. Ela se dispersa em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos etc. Cada um veiculando consigo validades pragmáticas”.

Figura 04 - Fotografia de Zigmunt Bauman (9 de setembro de 2013). Autor: Forumlitfes.

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Zygmunt Bauman nasceu de uma família de judeus poloneses, em 19 de novembro de 1925. Após a invasão e anexação da Polônia por forças alemãs e soviéticas, sua família foi transferida para a União Soviética em 1939. Atuando na Grande Guerra como instrutor político junto ao Primeiro Exército Polonês, Bauman se aliou ao Partido Operário Unificado Polaco nas décadas que sucederam a grande conflagração mundial. Sua presença no partido comunista da Polônia foi intensificada entre os anos de 1945 e 1953, lutando contra ucranianos nacionalistas insurgentes e os remanescentes do Armia Krajowa, a principal organização da resistência da Polônia à ocupação do país durante a Segunda Guerra Mundial. No período em que esteve atrelado ao regime comunista - que anos depois refuga sua identificação ideológica - Bauman estudou Sociologia na Academia de Política e Ciências Sociais de Varsóvia. Em 1954, tornou-se professor assistente na Universidade de Varsóvia, onde permaneceu até 1968. Embora mantivesse sua ligação com a ortodoxia marxista, tornou-se um crítico ao governo comunista da Polônia. Desde então, passou a trabalhar em uma concepção denominada de “marxismo humanista”. Após os eventos de março de 1968 na Polônia, Bauman- que anteriormente havia se desfiliado do Partido Operário Unificado - foi expurgado por conta de sua ascendência judia, sendo demitido da Universidade. Inicialmente lecionando na Universidade de Tel Aviv, a partir de 1971, ingressou na Universidade de Leeds, na cadeira de Sociologia. Bauman faleceu em 9 de janeiro de 2017. Principais Obras: n 1993: Ética pós-moderna (Postmodern Ethics. Cambridge, MA: Basil Blackwell); n 1997: O Mal-Estar da Pós-Modernidade (Postmodernity and its discontents. New York: New York University Press.); n 2000: Modernidade Líquida (Liquid Modernity. Cambridge: Polity; n 2001: A sociedade individualizada (The Individualized Society); n 2003: Amor Líquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Humanos (Liquid Love: On the Frailty of Human Bonds. Cambridge: Polity); n 2006: Tempos líquidos (Liquid Times: Living in an Age of Uncertainty. Cambridge: Polity); n 2010: Capitalismo Parasitário e Outros Temas Contemporâneos; n 2011: 44 cartas do mundo líquido moderno; n 2011: A ética é possível num mundo de consumidores?; n 2012: Ensaios sobre o conceito de cultura; n 2015: Desafios do mundo moderno.

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Por metanarrativas deve-se entender todo processo histórico que é compreendido como um modelo teleológico, isto é, orientado para um fim que o justifica: o apocalipse, a revolução etc. No caso das metanarrativas modernas, elas se configuram por se atrelarem a uma noção de progresso: em todas elas o fim último é a emancipação da humanidade. Ao longo da história moderna, diversas se constituíram, com destaque para o discurso filosófico do Iluminismo, o idealismo dialético hegeliano e, de modo mais contundente e influente, o marxismo. Para o Iluminismo, havia a ideia de que o progresso gerado pelo desenvolvimento da ciência e da razão seriam capazes de construir uma sociedade igualitária e justa, comportando um homem feliz e emancipado. No idealismo de Hegel, a história humana seria a manifestação progressiva do “Espírito Absoluto”. Os acontecimentos, sejam eles bons ou ruins, seriam mera expressão dessa “marcha inexorável do espírito”. Já para o marxismo, na esteira de um hegelianismo de esquerda, a luta de classes levaria a humanidade a um estágio de consciência que permitiria a libertação das amarras que prendem o homem a um processo de exploração material e humana.

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Para Lyotard, todos os sistemas metanarrativos perderam seu vigor. O século XX, sobretudo a segunda metade, formou esse sintoma. Além das promessas falhas pela experiência real, nenhuma delas foi capaz de se sustentar após o desenvolvimento do capitalismo tardio - que imprimiu novas formas relacionais e situações não comportadas nos processos dialéticos, por exemplo. Com esse descrédito enquanto expressões explicativas totalizantes, tais modelos foram cedendo espaço para novas concepções de narrativas. Assim, pequenas narrativas se afirmam para além de qualquer tentativa de querer se legitimar uma verdade unívoca e uma moral absoluta, subordinando ou estabelecendo consensos totalizantes. Não há, portanto, unidade histórica e social: há um universo fragmentado, multifacetado, onde os sujeitos se (re)constroem. Ao concebermos a Pós-modernidade como um sintoma característico de nossa era contemporânea [algo pensado em seu sentido pejorativo] certamente vem à tona o pensamento de Zygmunt Bauman- intelectual polonês responsável pela popularização do termo “pós-moderno”. Embora dado caráter flutuante do conceito tenha optado em suas últimas obras pela expressão “modernidade líquida” para designar a sociedade atual. A tese central de Bauman a percorrer diversas de suas obras parte da noção de que a contemporaneidade é caracterizada pela liquidez nas relações, marcadas por uma extrema efemeridade. Seus principais estudos se assentam na compreensão de como se formam as identidades no contexto de uma sociedade mediada pelas múltiplas formas de consumo engendradas pelo capitalismo contemporâneo. 146

De acordo com o filósofo, a identidade é algo que nunca está plenamente concluída, se alterando ao longo do tempo e das circunstâncias: ela é uma invenção precária. E essa característica moldável de nossa identidade se associa à ideia de que não somos seres isolados, mas antes aquilo que se (re)inventa na sua relação com o mundo, com as coisas e com as pessoas. Há um processo de intercambiação entre sujeitos que se influenciam e se apropriam daquilo que está à sua volta, atribuindo significados para sua existência. Segundo Bauman (2005, p.21-2), (…) A ‘identidade’ só nos é revelada como algo a ser inventado, e não descoberto; como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais - mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta.

Já para o desdobramento da análise dessas identidades na sociedade contemporânea, destaca-se a obra Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria (2008). Nesse trabalho, há um interessante trato acerca da sociedade de consumo, das características dos indivíduos que nela habitam (e se reconstroem), suas subjetividades e desejos de se destacarem perante os demais, sobretudo ao estarem inseridos na lógica de consumo. Bauman afirma que esse mesmo consumo em sua expressão excessiva é a marca da sociedade pós-moderna e que substituiu o mero ato de comprar enquanto elemento de sobrevivência, para se tornar a centralidade na vida dos sujeitos contemporâneos. As vidas humanas, de acordo com o pensador, são transformadas em mercadorias. Há uma relação dupla de “tornar-se um produto” e buscar (se) consumir nesse processo. Por meio da publicidade e da mídia em geral, os indivíduos são condicionados a desejar as coisas em um nível que confluem consumo com satisfação existencial. O estilo de vida consumista - uma forma de vício- torna-se um caminho “vendido” para a felicidade. De acordo com Bauman (Idem, p.28), (…) Num mundo em que uma novidade tentadora corre atrás da outra a uma velocidade de tirar o fôlego, num mundo de incessantes novos começos, viajar esperançoso parece mais seguro e muito mais encantador do que a perspectiva da chegada: a alegria está toda nas compras (…). Uma escapada para fazer compras não precisa ser uma excursão muito planejada - pode ser fragmentada numa série de agradáveis momentos de excitação, profusamente borrifados sobre todas as outras atividades existenciais, acrescentando cores brilhantes aos recantos mais sombrios ou monótonos.


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Um dos pontos mais sensíveis destacados nessa obra diz respeito à promoção da novidade e ao rebaixamento da rotina, operando uma espécie de “renovação” que de tempos em tempos a sociedade necessita para se acomodar ao novo, até que o novo fique totalmente obsoleto e seja superado por uma nova versão melhorada. Dessa forma, a sociedade fica “vacinada” contra o tédio de não ter o que consumir no momento certo, já que o próprio tédio é temido pela sociedade de consumo. E para essa sociedade não se aperceber no tédio, ela é estimulada a consumir mais e mais. Quanto mais ela assim opera, uma espécie de “aura de sucesso” a recobre, fazendo com que sempre busque essa pretensa “felicidade”, ainda que como prêmio ilusório. Dessa maneira, os indivíduos (e a sociedade como um todo) sentem-se saciados e não-entediados - até o próximo (planejado) lançamento da indústria. Outra questão que merece o destaque nas reflexões baumianas é o debate acerca do binômio liberdade/segurança. Segundo o pensador em A sociedade individualizada (2001), tanto a liberdade sem segurança quanto a segurança sem liberdade causam o mesmo grau de sofrimento às pessoas. É necessário a existência de ambas, sem a promessa de que elas não nos causarão infelicidades. A alternativa de isolamento social como um mecanismo de conforto e segurança não nos dá a garantia precisa de que estaríamos a salvo da infelicidade. Ao contrário disso, a suposta segurança (material proporcionada pelo isolamento) nos conduz a uma limitação de ações e experiências para com os desejos humanos: o sintoma é a não-satisfação, por consequência, o sofrimento. A esse respeito, Freud - a quem frequentemente se embasa o pensamento baumaniano - é assertivo em O mal-estar na civilização (1997, p. 16 e 72): (…) Contra o sofrimento que pode advir dos relacionamentos humanos, a defesa mais imediata é o isolamento voluntário, o manter-se à distância das outras pessoas. (…) O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.” Bauman afirma em O mal-estar da pós-modernidade (1997) que o signo de nossa era nasce sob o império de desejo pela liberdade, e não pelo repúdio da opressão. Em nome dela, aceitamos ser oprimidos, por mais paradoxal que isso possa parecer. A situação se agrava - emergindo justamente esse contrassenso - quando em nome da segurança e do conforto material (simbolizada nos “muros dos condomínios”) a vida em comunidade é soterrada ao nos privar justamente de uma ânsia humana por liberdade.

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Todo esse jogo de escolhas e privações residiria em uma cultura do medo. E ele seria imprescindível para a manutenção de toda ordem social. Vale ressaltar, da ordem capitalista. Bauman entende que o medo humano não é algo que busca sua eliminação, uma vez que “(…) grande parte do capital comercial pode - e é - acumulado a partir da insegurança e do medo” - como assevera em sua obra Tempos Líquidos (2007, p.18). O medo é - para a indústria do consumo - um “recurso renovável”, sem fim. E é, nesse contexto, que emergem perigosos discursos. Na incumbência de resolver os problemas advindos (e/ou fabricados) de uma sociedade do medo, surgem poderes estabelecidos que se outorgam o direito de criar medidas de exceção contra qualquer ameaça. Esta ameaça também é possivelmente fabricada. O Estado moderno opera sob o signo de “administrador do medo”, possuindo a prerrogativa da violência e demais medidas excessivas para fazer valer a ordem e aplacar a insegurança da população. Em um mecanismo perverso evoca o Leviatã hobbesiano, legitimando suas “guerras preventivas” como forma de conter os avanços do caos ou de qualquer força política convertida em ameaça à própria soberania desse Estado. Não raro, sociedades tirânicas operam com signos irracionais e supersticiosos na “criação” desses “inimigos internos e externos”, fazendo com que seja contido, de antemão, qualquer ímpeto de revolução ou reivindicação de uma dada parcela da sociedade que se sinta abusada por esse poder autoritário. 147


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Bibliografia BAUMAN, Zigmunt. O mal-estar na pós-modernidade. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. ______. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. ______. Tempos líquidos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. ______. Vida para consumo: A transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008 DELEUZE, Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? 3ª ed. Rio de Janeiro: Editora 34, 2010. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1997 LYOTARD, Jean-Francois. A condição pós-moderna. 14ª edição. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. VÁTTIMO, G. Posmodernidad: una sociedad transparente? In: VÁTTIMO, G. Et al. En torno de la posmodernidad. Barcelona: Anthropos, 1990

#DicaCine Filosofi Sinopse: Ex- Machina é um filme de ficção científica e suspense sobre um androide com inteligência artificial. A trama é estrelada por Domhnall Gleeson, Alicia Vikander e Oscar Isaac. O filme venceu o Oscar de Melhores Efeitos Visuais e também foi indicado para o Oscar de Melhor Roteiro Original em 2016. Na trama, Caleb Smith é um programador que trabalha no Bluebook - o motor de busca mais usado no mundo. Ele é escolhido para visitar a casa do excêntrico CEO da empresa, Nathan Bateman, um gênio que mora e trabalha isolado em uma casa nas montanhas. A única pessoa que mora com ele é Kyoko, uma governanta que não entende a língua dele. Nathan revela que está trabalhando em projeto secreto e que Caleb foi recrutado para aplicar o Teste de Turing a uma robô humanoide dotada de inteligência artificial chamada “Ava”.

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Ficha técnica Título: Ex Machina Direção: Alex Garland Produção: Alan Macdonald / Allon Reich Roteiro: Alex Garland Gênero: Drama/ Ficção Científica/ Suspense Ano: 2015 Idioma: Inglês Q01. Resposta esperada: Não raro, é usado como característica de um tipo de pensamento não totalizante e cronologicamente pós-século XIX, ou ora tomado em sentido pejorativo para designar uma tipologia de comportamento social e intelectual sem referências sólidas ou bases epistemológicas seguras.

Q02. Resposta esperada: Friedrich Nietzche e Sigmund Freud. A crítica de Nietzche ao “deus da modernidade” e o de-centramento que Freud opera da noção de “ego rationale” frente à dimensão (e domínio) do inconsciente ajudam a colocar em suspenso a autoridade da razão e do sujeito moderno.

Q03. Resposta esperada: A obra é um marco filosófico ao tratar das formas e consequências do capitalismo contemporâneo para além de uma abordagem marxista. Investiga, nesse trabalho, os fatores que propiciaram a transformação das formas de obtenção (e legitimação) dos saberes e, principalmente, como isso se deu pela mediação da disseminação tecnológica.

Exercícios de Fixação 01. De modo geral, quais são as duas acepções tomadas para o conceito de “pós-moderno”? 02. No campo da história das ideias, quais são os dois principais intelectuais que contribuem para as reflexões e críticas do chamado pensamento pós-moderno?

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Q04. Resposta esperada: Bauman parte da noção de que a contemporaneidade é caracterizada pela liquidez nas relações, marcadas por uma extrema efemeridade. Seus principais estudos se assentam na compreensão de como se formam as identidades no contexto de uma sociedade mediada pelas múltiplas formas de consumo engendradas pelo capitalismo contemporâneo.

03. Do que trata a obra A condição humana na pós-modernidade (1979), do filósofo francês Francois Lyotard? 04. Qual a tese central que percorre boa parte das obras de Zigmunt Bauman? 05. De que forma Bauman trata da problemática da “identidade”? Q05. Resposta esperada: De acordo com Bauman, a identidade é algo que nunca está plenamente concluído, alterando-se ao longo do tempo e das circunstâncias: ela é uma invenção precária. E essa característica moldável de nossa identidade se associa à ideia de que não somos seres isolados, mas antes aquilo que se (re)inventa na sua relação com o mundo, com as coisas e com as pessoas. Há um processo de intercambiação entre sujeitos que se influenciam e se apropriam daquilo que está à sua volta, atribuindo significados para sua existência


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Exercícios C om p l em en t ares

a) um conceito tautológico ao de contemporaneidade, podendo ser utilizado com o mesmo significado cronológico; b) uma condição humana pós-capitalista que se afirma em sociedades distópicas pré-socialistas; c) uma categoria conceitual circunscrita aos eventos pós-segunda guerra mundial, que ajudaram a reconfigurar o mundo e sua visão intelectual sobre ele; d) Uma forma de definir o modo de pensamento crítico à modernidade, ao mesmo tempo que tipifica uma condição de comportamento contemporâneo. 02. Entre os filósofos abaixo, quais deles integram os chamados filósofos (da) pós-modernidade? a) Freud, Nietsche, Kant e Sartre; b) Lyotard, Deleuze, Lipovetski, Bauman c) Descartes, Hume, Locke, Rousseau d) Marx, Comte, Weber, Hegel. 03. É considerada uma obra basilar da literatura filosófica pós-moderna: a) O mal-estar na pós-modernidade (Z. Bauman) b) Totem e Tabu (S. Freud) c) Humano, Demasiado Humano (F. Nietzsche) d) O Capital (K. Marx) 04. “Diz-se que a modernidade corresponde à sociedade industrial (aquela em que o poder econômico e político pertence às grandes indústrias e em que se explora o trabalho produtivo), enquanto a pós-modernidade corresponde à sociedade pós-industrial (aquela em que o poder econômico e político pertence ao capital financeiro e ao setor de serviço das redes de informação e automação)”. CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2005, p. 54.

Com base nessa afirmação, que contextualiza a passagem da modernidade à pós-modernidade, assinale o que for correto. I.

É notório, na pós-modernidade, o contexto filosófico de crítica ao racionalismo e abertura a novos campos de experiência válidos, como as vivências corporais, artísticas e linguísticas;

II.

Ao contrário da modernidade, a pós-modernidade fundamentou o conhecimento através da subjetividade e suas leis racionais, tanto no domínio teórico (produção do conhecimento) quanto no domínio prático (mandamentos da ação);

III.

IV.

V.

A sociedade pós-moderna, ao criticar o etnocentrismo das culturas europeias, deixa de lado o debate epistemológico em nome das teses para a filosofia da história, bem como reconhece o sentido descontínuo da história e a crise dos ideais revolucionários utópicos de emancipação humana; A filosofia moderna, ao estabelecer um consenso na questão da fundamentação do conhecimento, não reproduz o debate, incessante na pós-modernidade, em torno da natureza humana; A sociedade pós-moderna procura estabelecer princípios a partir dos quais a ciência e a Filosofia podem, através do bom-senso, adquirir resultados universais e andar de mãos dadas, como acontece no positivismo de Auguste Comte.

As afirmativas corretas são apenas: a) I, II e III b) I e II c) I e III d) III, IV e V e) IV e V 05. […] o pós-modernismo ameaça encarnar hoje estilos de vida e de filosofia nos quais viceja uma ideia tida como arqui-sinistra: o niilismo, o nada, o vazio, a ausência de valores e de sentido para a vida. Mortos Deus e os grandes ideais do passado, o homem moderno valorizou a Arte, a História, o desenvolvimento, a Consciência Social para se salvar. Dando adeus a essas ilusões, o homem pós-moderno já sabe que não existe Céu nem sentido para a História, e assim se entrega ao presente e ao prazer, ao consumo e ao individualismo. [...]. (SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo. Razão e emoção. São Paulo: Hucitec, 1996)

Com base na análise do texto e nos conhecimentos sobre o pós-modernismo, pode-se afirmar: I. A concepção da supremacia divina no destino do homem, originária da Idade Média, predominou entre os pensadores modernos e permanece entre os pósmodernos; II. As raízes da filosofia pós-moderna têm suas origens na filosofia oriental, transplantada para a Europa, no período entre-guerras; III. A chamada pós-modernidade ou período técnico-científico-informacional caracteriza o espaço geográfico como meio de difusão generalizada, do global para o local;

149

A16  Pó s-modernidade: um conceito também líq uido

01. Do que se trata a pós-modernidade?


Filosofia

IV.

Os valores a que se refere o texto abrangem concepções de caráter ético, moral, cultural e estético, dentre outros, que fundamentam as relações entre os homens, nas sociedades industriais; V. O pós-modernismo, associado ao consumo e ao individualismo, reforça os conteúdos e os princípios do mundo capitalista contemporâneo. As afirmativas corretas são apenas: a) I, II e III b) I e II c) III e IV d) III, IV e V e) IV e V 06. “O filme Blade Runner é uma parábola de ficção científica em que temas pós-modernos situados num contexto de acumulação flexível (...) são explorados com todo o poder de imaginação que o cinema pode mobilizar. O conflito ocorre entre pessoas que vivem em escalas de tempo distintas e que, como resultado, veem e vivem o mundo de maneira bem diferente.” (HARVEY, David. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola, 1999)

A16  Pós-modernidade: um conceito também líquido

Sobre a pós-modernidade, é correto afirmar: a) Pós-modernidade se refere às condições socioeconômicas e culturais do capitalismo pós-industrial, que acentuam o individualismo, o consumismo e promovem a compressão do espaço e do tempo. b) Enquanto movimento estético, o termo denota um compromisso de resgate do pensamento iluminista e de princípios funcionais rígidos sobre o uso do tempo. c) Pós-modernidade se refere à era da produção fordista, que aumentou a velocidade da produção das mercadorias, graças à implantação da linha de montagem, produção em série e do consumo de massa. d) A pós-modernidade chega ao Brasil no esteio da política de industrialização baseada na substituição de importações, redirecionando a concepção tradicional do sistema produtivo e do uso do tempo. e) O movimento que dá início à pós-modernidade se apoia na defesa dos princípios tayloristas de produção, baseados no planejamento e divisão flexível do trabalho. 07. (UFG - SEDUC) “Pós-modernidade”, “alta-modernidade”, “modernização reflexiva”, “modernidade líquida” são algumas categorias utilizadas, no âmbito das ciências sociais, como referência ao processo intenso de mudanças sociais, políticas, culturais e estéticas que começou a espalhar-se mundialmente a partir da segunda metade do século XX. Em termos intelectuais, esse conjunto de mudanças significou a) a consolidação e supremacia do Estado-Nação como organização capaz de conduzir ou estancar o fluxo de mudanças econômicas. 150

b) o surgimento de novas agendas sociais e políticas, caracterizadas por preocupações ecológicas e pela fragmentação dos movimentos sociais. c) a reafirmação dos princípios iluministas de que a ciência, por meio da razão instrumental, seria capaz de construir as bases de um novo modelo social. d) a continuidade de um modelo trabalhista industrial pautado na rotina, na obediência à hierarquia e na alta produtividade industrial. 08. “(…) há certos momentos na história da humanidade em que alterações significativas provocam o que chamamos ruptura de paradigma. Ou seja, os parâmetros que orientam a compreensão do mundo e de nós mesmos deixam de valer em decorrência do imbricamento de inúmeros fatores. E, enquanto não se elabora uma nova ‘visão de mundo’, vive-se um período confuso de indefinição e de perplexidade, decorrente da crise dos valores até então aceitos.” (ARANHA, M. L. de Arruda e MARTINS, M. H. Pires. Temas de Filosofia. 2. ed. São Paulo: Moderna, 1998, p. 46)

Com base nessa afirmação, assinale o que for correto I. A modernidade, como o conjunto de ideias e de valores que norteou o pensamento e a ação humanos desde o final do século XVIII, é essencialmente caracterizada pelo racionalismo, isto é, uma firme crença no poder da razão para conhecer e transformar a realidade; II. A derrota fragorosa da razão moderna resultou em um colapso intelectual que deixou sem paradigmas as ciências, a filosofia e as artes. Por isso, as religiões em franca expansão na atualidade encontram, no pós-modernismo, uma fonte de inspiração duradoura; III. Chama-se pós-moderno o modo de pensar que se delineia a partir da segunda metade do século XX, caracterizado pelo afastamento e crítica às ideias da modernidade, denunciando como presunçosas e ilegítimas muitas das pretensões da razão no conhecimento e na prática; IV. O Iluminismo, movimento intelectual ocorrido no século XVIII, manifesta, de maneira especial, os ideais da modernidade, fomentando as aspirações de liberdade e progresso harmonizados pela razão “iluminada”; V. Os avanços tecnológicos influenciam decisivamente a visão de mundo no tempo pós-moderno. A automação, a microeletrônica, a informática alteraram o mundo do trabalho e as relações intersubjetivas. O mercado requer profissionais versáteis; a sociedade, indivíduos informados, críticos e solidários. As afirmativas corretas são apenas: a) I, II e III b) II, III e IV c) I, III, IV e V d) III e IV e) II, IV e V


FRENTE

A

Q01. Resposta esperada: No livro, A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica - tomada como a primeira grande teoria materialista da arte - Benjamin se vale do conceito de Aura. Em síntese, é aquilo que designa os elementos únicos de uma obra de arte original, enquanto objetos individualizados e únicos. Para o filósofo, a era moderna teria dissolvido a Aura, isto é, libertado as artes das funções e finalidades religiosas ou elitistas.

FILOSOFIA

Q02. Resposta esperada: Contrariando a tese do projeto iluminista que opõe mito e Iluminismo, os autores entendem que há uma dialética entre essas duas dimensões que resulta no domínio perpetrado pela razão instrumental. Em outras palavras, a promessa do Iluminismo em libertar os homens do medo, tornando-os senhores e liberando o mundo da magia e do mito através da razão - atingida por meio da ciência e da tecnologia - viu o seu desiderato corrompido pelas novas relações estabelecidas para sociedade capitalista e industrial. Ao invés de libertar o homem do medo mágico, o homem tornou-se vítima de novo engodo: o progresso da dominação técnica.

Exercícios de A p rof u n dam en t o 01. De acordo com o filósofo Walter Benjamin, a “aura” seria “(…) uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Não obstante, aponta para a dissolução desta na era moderna. O que Benjamin entendia, exatamente, por Q05. Resposta esperada: A tese central da obra de Hayek é dividida “dissolução da Aura”? nos seguintes pontos: 1) o socialismo é incompatível com a liberdade individual e com regimes democráticos; 2) a adoção de medidas antiliberais desencadeia um efeito social de perda da liberdade, conduzindo a sociedade aos extremos do totalitarismo.

02. (UEL PR) “O que os homens querem aprender da natureza é como aplicá-la para dominar completamente sobre ela e sobre os homens. Fora isso, nada conta. [...] O que importa não é aquela satisfação que os homens chamam de verdade, o que importa é a operation, o procedimento eficaz. [...] A partir de agora, a matéria deverá finalmente ser dominada, sem apelo a forças ilusórias que a governem ou que nela habitem, sem apelo a propriedades ocultas. O que não se ajusta às medidas da calculabilidade e da utilidade é suspeito para o iluminismo [...] O iluminismo se relaciona com as coisas assim como o ditador se relaciona com os homens. Ele os conhece, na medida em que os pode manipular. O homem de ciência conhece as coisas, na medida em que as pode produzir.” (ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Conceito de Iluminismo. Trad. Zeljko Loparic e Andréa M. A . C. Loparic. 2. ed. São Paulo: Victor Civita, 1983. p. 90-93.)

Com base no texto, de que forma os frankfurtianos criticaram a questão da razão instrumental? 03. Tendo como referência o agir instrumental e o agir comunicativo, cite exemplos do cotidiano - no âmbito das relações sociais - que possam ser relacionados às proposições de Habermas. Q03. Resposta esperada: Resposta livre. No entanto, espera-se que o aluno identifique e distinga os conceitos pressupostos por Habermas, citando fatos e situações em que os tipos de “ação” aparecem.

04. Leia a citação a seguir acerca das “regras do agir discursivo”:

(…) regras semânticas constitutivas do discurso [...] decisivas para o significado, e, desse modo, também são decisivas para o procedimento de verificação e para o consenso. Ou seja, trata-se aqui de regras que possuem um caráter eminentemente pragmático. (ZANELLA, Diego Carlos. A ética comunicativo-discursiva de Jürgen Habermas. Thaumazein, Santa Maria, ano V, n, 10, pp. 131-149, dez./2012. 2012, p.134) Sinteticamente, a Ética da Razão Comunicativa se baseia em três regras básicas. Exponha. 05. A tese central contida na obra O Caminho da Servidão, de F. Hayek, pode ser dividida em dois pontos. Explique. 06. Leia o fragmento a seguir e responda ao que se pede: Q06. Resposta esperada: Não raro, conforme afirma Hayek, os regimes totalitários promoviam uma distorção no significado de determinados conceitos para justificar seus atos, como por exemplo, as palavras “direito” e “liberdade”. A partir do momento que se distancia de seus significados originais, tais palavras criam um fosso de compreensão entre os indivíduos, já que não há uma linguagem que permita um espaço de consenso. Em suma, a democracia é posta em suspenso em definitivo, já que a comunicação é obliterada, e os indivíduos se tornam incapazes de se compreenderem, já que a própria realidade foi alterada pela manipulação da linguagem.

Q04. Resposta esperada: 1) Regra da Inclusão - “Todo e qualquer agente discursivo é capaz de agir e falar dentro de uma cadeia ou espaços de discursos”; 2) Regra da Participação - “Todo e qualquer agente de um discurso é livre para problematizar qualquer afirmação, introduzindo novas afirmações ou exprimindo seus desejos, necessidades e convicções”; 3) Regra da Comunicação Livre de Violência e Coação - “Nenhum agente pode ser impedido - por forças externas ou internas ao discurso de fazer uso de seus direitos assegurados plenamente pelas regras anteriores”.

Poucos aspectos dos regimes totalitários despertam tanta confusão no observador superficial e são, ao mesmo tempo, tão característicos do clima intelectual desses sistemas, como a completa perversão da linguagem, a mudança de sentido das palavras que expressam os ideais dos novos regimes. (HAYEK, F. O Caminho da Servidão. Tradução de Anna Maria Capovilla, José Ítalo Stelle e Liane de Morais Ribeiro. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises: 2010.)

Em O caminho da servidão (2010), há um interessante exame acerca dos mecanismos que as políticas totalitárias se valem para impor seu domínio. A linguagem seria um dos principais. De que forma opera esse diagnóstico na obra hayekeana?

07. A modernidade é o que é – uma obsessiva marcha adiante – não porque queira mais, mas porque nunca consegue o bastante; não porque se torne mais ambiciosa e aventureira, mas porque suas aventuras são mais amargas e suas ambições frustradas. A marcha deve seguir adiante porque qualquer ponto de chegada não passa de uma estação temporária. Nenhum lugar é privilegiado, nenhum melhor do que outro, como também a partir de nenhum lugar o horizonte é mais próximo do que de qualquer outro. É por isso que a agitação e perturbação são vividas como uma marcha em frente. (BAUMAN, Modernidade e Ambivalência. Tradução Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 18).

O que há de comum nos diversos filósofos pós-modernos, do ponto de vista da crítica à modernidade? 08. A modernidade deixa de existir quando - por múltiplas razões desaparece a possibilidade de seguir falando da história como entidade unitária (…) Não existe uma história única, existem imagens do passado propostas desde diversos pontos de vista, e é ilusório pensar que exista um ponto de vista supremo, compreensivo, capaz de unificar todos os demais (…) Filósofos do Iluminismo, Hegel, Marx, positivistas, historicistas de todo o tipo pensavam mais ou menos todos eles do mesmo modo que o sentido da história era a realização da civilização, isto é, da forma do homem europeu moderno. (VÁTTIMO, G. Posmodernidad: una sociedad transparente? In: VÁTTIMO, G. Et al. En torno de la posmodernidad. Barcelona: Anthropos, 1990)

A partir da citação de Váttimo, o que de fato se findou com a modernidade e abriu o campo para se pensar em uma pós-modernidade (filosófica e estrutural)? Q08. Resposta esperada: A história linear, previsível ou invariavelmente dialética deixou de fazer parte do léxico filosófico enquanto categoria fundamental para se pensar os processos humanos. Em última instância, a civilização europeia não se confirmou como o modelo de uma sociedade em que o sentido da história se perfez, para decepção dos partidários das diversas correntes filosóficas da modernidade, abrindo espaço para novas compreensões acerca da realidade e da própria história. Q07. Resposta esperada: Há em comum nos diversos filósofos pós-modernos uma profunda denúncia - antecipada a bem da verdade pelos frankfurtianos - do fracasso do projeto moderno do Iluminismo. Ao contrário do que se prometia o ideal do aufklärung e do progresso capitalista, o desenvolvimento econômico e o avanço da razão técnico-científica não trouxeram a emancipação e a felicidade almejada ao ser humano.

151


FRENTE

A A morte de Sócrates. Autor: Jacques-Louis David (1748-1825)


Fonte: Wikimedia Commons

FILOSOFIA Por falar nisso A Ética e a Política, mais do que seus usos corriqueiros enquanto adjetivos, trata-se de dois dos principais campos de investigação filosófica. Não raro, estão associados quando compreendidos como desdobramentos de um ou d’outro. Tal qual nos dizeres de aristotélicos, seriam a Ética e a Política áreas a lidarem com o bem-estar humano, seja em sua esfera particular ou coletiva. Durante toda a Antiguidade clássica, discutiram-se os limites e as possibilidades de uma sociedade justa e ideal (Platão), bem como as formas de governo que poderiam melhor fazer o homem atingir sua realização (Aristóteles). No decorrer do período medieval, tais questões não estarão dispensadas, embora atreladas aos limites e contornos da fé cristã. Na Era Moderna (e idade contemporânea), tanto a Ética quanto a Política incorporam em suas especulações a complexidade que se tornou a vida humana e sua organização social, carente de um conjunto de reflexões mais amplas para se pensar a condição do homem sobre a Terra. Nas próximas aulas, estudaremos os seguintes temas

A17 A18 A19 A20

Da República platônica a Civitate Dei de Agostinho...............................154 A ética teleológica de Aristóteles ......................................................164 Hannah Arendt: do sentido da política à banalidade do mal ...........171 O Existencialismo: de Søren Kierkegaard a Jean-Paul Sartre............... 180


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A17

ASSUNTOS ABORDADOS n Da República platônica a Civitate

Dei de Agostinho

n A Cidade de Deus em Agostinho de Hipona

DA REPÚBLICA PLATÔNICA A CIVITATE DEI DE AGOSTINHO A Grécia Clássica representou um período de intenso período de desenvolvimento na história do povo helênico. Não somente marcou o apogeu militar e econômico das cidades de Esparta e Atenas, como legou ao mundo um complexo sistema de pensamento e expressão cultural. Por volta do século V a.C, ver-se-á na Grécia o florescimento das artes, do teatro, da música/pintura/escultura, e, claro, da filosofia. É desse período a emergência dos pensadores da tradição socrática (Sócrates, Platão e Aristóteles) e do movimento sofístico (Protágoras, Zenão e Górgias). O que foi produzido em termos intelectuais nesse período reverberou no nosso mundo ocidental, forjando a noção de civilização (eurocêntrica) que conhecemos. Em que pese uma justiça tardia feita ao pensamento sofístico, a tradição que se consolidou ao período clássico foi, certamente, a socrática - também conhecida como essencialista. Dando um passo à frente das preocupações de ordem cosmológicas dos primeiros filósofos, essa tradição foi marcada por conceber o homem como objeto e referência para o conhecimento. Daí a alcunha de “período antropológico”: outro nome pelo qual se intitulou essa fase da filosofia grega. Ética, Política, Estética, etc., além de objetos, tornaram-se campos próprios de investigação filosófica. Embora as obras de Sócrates, Platão e Aristóteles tenham dado sequência às especulações de ordem cosmológica, destacam-se em suas filosofias os sistemas que criaram, orbitando em temas caros à existência humana.

Fonte: Wikimedia Commons

Figura 01 - A Academia de Platão em Atenas Msaico em Pompeia, ca. século I

154

Nesse ínterim, cabe uma digressão sobre o filósofo Platão. Embora em seu mestre e predecessor as questões antropológicas já buscassem um fio condutor entre os campos filosóficos que se constituíam, é com o pensador ateniense Platão que a um primeiro grande sistema é constituído. Sua principal obra, A República, marca a interconexão magistral entre Ética, Estética, Política e Teoria do Conhecimento. O texto de A República - originalmente chamado de Politeia (Πολιτεία) - obedece a um estilo característico da escrita platônica: o uso de diálogos, como peças de um roteiro ambientado, visando apresentar a construção de suas ideias ao melhor estilo dos elencos- o método socrático. Há um personagem central, Sócrates, sempre a debater com seus interlocutores-rivais, os Sofistas. O uso de alegorias (mitos, no sentido de meras narrativas fabulares) é de importância seminal: neles, Platão, apresenta suas principais teorias em formas literária, parabólicas ou metafóricas, dependendo do propósito. Destacam as alegorias de Er, da Caverna e do Anel de Giges.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Gyges foi o primeiro grande bárbaro que os helênicos estabeleceram contato. Acredita-se que ele reinou a Líbia pela casa de Mermenadae, por volta do século VII. a.C. Diversas histórias se contam a seu respeito, sobretudo a lenda que narra a sua ascensão ao poder. Não raro, seus feitos foram materializados em líricas gregas, e sua figura é mencionada na metáfora desenvolvida por Platão, no livro II de A República (359b-360b). Fragmento da passagem 359d-360b de A República, de Platão. (…) Agora, que aqueles que a praticam agem pela impossibilidade de cometerem a injustiça é o que compreenderemos bem se fizermos a seguinte suposição. Concedamos ao justo e ao injusto a permissão de fazerem o que querem; sigamo-los e observemos até onde o desejo leva a um e a outro. Apanharemos o justo em flagrante delito de buscar o mesmo objetivo que o injusto, impelido pela necessidade de prevalecer sobre os outros: é isso que a natureza toda procura como um bem, mas que, por lei e por força, é reduzido ao respeito da igualdade. A permissão a que me refiro seria especialmente significativa se eles recebessem o poder que teve outrora, segundo se conta, o antepassado de Giges, o Lídio. Este homem era pastor a serviço do rei que naquela época governava a Lídia. Cedo dia, durante uma violenta tempestade acompanhada de um terremoto, o solo fendeuse e formou-se um precipício perto do lugar onde o seu rebanho pastava. Figura 02 - Manuscrito do século III a.C, contendo fragmentos da Tomado de assombro, desceu ao fundo do abismo e, entre outras maravilhas República, de Platão. que a lenda enumera, viu um cavalo de bronze oco, cheio de pequenas aberturas; debruçando-se para o interior, viu um cadáver que parecia maior do que o de um homem e que tinha na mão um anel de ouro, de que se apoderou; depois partiu sem levar mais nada. Com esse anel no dedo, foi assistir à assembléia habitual dos pastores, que se realizava todos os meses, para informar ao rei o estado dos seus rebanhos. Tendo ocupado o seu lugar no meio dos outros, virou sem querer o engaste do anel para o interior da mão; imediatamente se tomou invisível aos seus vizinhos, que falaram dele como se não se encontrasse ali. Assustado, apalpou novamente o anel, virou o engaste para fora e tomou-se visível. Tendo-se apercebido disso, repetiu a experiência, para ver se o anel tinha realmente esse poder; reproduziu-se o mesmo prodígio: virando o engaste para dentro, tomava-se invisível; para fora, visível. Assim que teve a certeza, conseguiu juntar-se aos mensageiros que iriam ter com o rei. Chegando ao palácio, seduziu a rainha, conspirou com ela a morte do rei, matou-o e obteve assim o poder. Se existissem dois anéis desta natureza e o justo recebesse um, o injusto outro, é provável que nenhum fosse de caráter tão firme para perseverar na justiça e para ter a coragem de não se apoderar dos bens de outrem, sendo que poderia tirar sem receio o que quisesse da ágora, introduzir-se nas casas para se unir a quem lhe agradasse, matar uns, romper os grilhôes a outros e fazer o que lhe aprouvesse, tornando-se igual a um deus entre os homens. Agindo assim, nada o diferenciaria do mau: ambos tenderiam para o mesmo fim. E citar- se-ia isso como uma grande prova de que ninguém é justo por vontade própria, mas por obrigação, não sendo a justiça um bem individual, visto que aquele que se julga capaz de cometer a injustiça comete-a. Com efeito, todo homem pensa que a injustiça é individualmente mais proveitosa que a justiça, e pensa isto com razão, segundo os partidários desta doutrina. Pois, se alguém recebesse a permissão de que falei e jamais quisesse cometer a injustiça nem tocar no bem de outrem, pareceria o mais infeliz dos homens e o mais insensato àqueles que soubessem da sua conduta; em presença uns dos outros, elogiá-lo- iam, mas para se enganarem mutuamente e por causa do medo de se tomarem vítimas da injustiça. Eis o que eu tinha a dizer sobre este assunto.

O uso da Alegoria de Giges é sintomático, e serve para ilustrar a preocupação do filósofo com questões morais. Nessa alegoria, o personagem- um pastor chamado Giges- encontra por acaso um cadáver no interior de uma caverna, portando um anel. Ao colocá-lo em seu próprio dedo, descobre que havia se tornado invisível. Não podendo ser monitorado por ninguém, passa a praticar os atos mais abomináveis: seduz a rainha, mata o rei, etc. Platão pretende com essa fabulação levantar uma questão moral: algum homem seria capaz de resistir à tentação se soubesse que seus atos não seriam testemunhados? Como se observa, Platão tinha um forte interesse em questões axiológicas, isto é, valorativas. Por isso a Ética - compreendida como a investigação racional acerca do agir moral - é fundamental em seu sistema filosófico. Não obstante, a reflexão platônica só faz sentido a partir da conjugação com os outros campos de investigação. Em outras palavras, investigar os valores é, também, uma condição que perpassa a teoria do conhecimento, a política e até a estética. 155

A17  Da R epública platônica a Civitate Dei de Agostinho

SAIBA MAIS


Filosofia

Tomamos como exemplo a perspectiva ética sobre o seu “dualismo”. Neste, Platão opera uma distinção e sobreposição entre corpo e alma. No corpo, residiriam as sensações, desejos e paixões. Para que o homem não se desvie de seu caminho para o bem, deveria “transcender”, superar a materialidade para alcançar esse bem. E isso só seria possível em conjugação com o uso da razão, posto que “alcançar o bem” corresponde a “compreender bem”. O homem virtuoso (Areté) é aquele que, por meio da educação (Paideia), desenvolve sua racionalidade, condicionando o seu agir a partir dela.

A17  Da República platônica a Civitate Dei de Agostinho

Um importante ponto a ser tratado diz respeito à conjugação que Platão faz entre a Ética e a Política. Em suma, ambas lidam com questões valorativas - como bem atestará Aristóteles, seguramente influenciado por seu mestre, Platão. Conceitos como coragem, justiça, bem, igualdade, certeza e verdade não são meros substantivos; antes, são objetos de reflexão tanto sobre a vida singular quanto à vida plural. Para Platão, isso se explica porque os seres humanos e a Pólis possuem a mesma estrutura- que lhes é dada pela natureza. Em outras palavras, pensar sobre as ações humanas em caráter individual é se valer dos mesmos critérios para se conceber as mesmas em caráter social. A Cidade, nada mais seria do que o aglomerado de indivíduos (cidadãos) que singularmente se apresentam na pluralidade de suas subjetividades. Como afirmava o poeta grego Tucídides “a pólis não são os muros de Atenas, mas os atenienses…”. No livro I e II da obra A República vemos Platão construindo um diálogo que tem por objetivo a discussão sobre o conceito de Justiça. Percebe-se que o tratamento dado supera mesmo as abordagens de ordem ética e política, recobrando interesses/premissas intelectuais de bases epistemológica, metafísicas, psicológicas, etc. A finalidade dessa discussão proposta é a de se conceber o conceito do que seria, ao final, uma cidade verdadeiramente justa. Platão a nomeia de Kallipólis (Καλλιπόλεως - “cidade bela”, em tradução aproximada). Como parte da metodologia socrática (elencos), Platão procura “desconstruir” os diversos argumentos sobre o conceito de justiça, bem como a estrutura dos modelos de governança sugeridos para sua efetivação. Ao fim, elege a Sofocracia (σοφοκρατία) - o regime do “Rei-Filósofo” - como o único adequado à efetivação de uma Kallipólis. Para avaliar os diversos regimes e propor o (único) adequado, Platão desenvolve um paralelo entre o ser humano e a cidade. A partir de uma proposição metafísica, o filósofo grego elenca três faculdades distintas para a alma humana. Ou melhor, aventa a existência de três tipos de alma caracterizadas por seus princípios de atividade, a saber, a apetitiva, irascível e racional. Em caráter simbólico e valorativo, 156

almas de bronze, prata e ouro, respectivamente. O uso do corpo humano como figura de expressão e representação da cidade é emblemático. Para Platão, as almas de bronze, destacadas por sua concupiscência e desejos situavam-se nas entranhas ou baixo-ventre. Seriam seres voltados ao prazer, os apetites do corpo e atividades necessárias à sobrevivência. Na cidade justa, essas pessoas deveriam se situar na classe econômica dos proprietários de terra, artesãos e comerciantes, responsáveis por garantires a sobrevivência material da cidade; Aqueles de alma irascível ou colérica situavam-se, figurativamente, na região da caixa toráxica: responsável por defender o corpo das agressões do meio ambiente e dos demais seres humanos, reagindo à dor como mecanismo de defesa. Por consequência, esse tipo de alma deveria se localizar na classe militar dos guerreiros, responsáveis pela defesa da cidade; Por fim, os indivíduos de alma de ouro (racionais ou intelectuais) situavam-se na cabeça, centro de controle e conhecimento. Decorre-se que deveriam pertencer a classe dos magistrados e governantes de uma cidade. O mais capacitado entre eles ocuparia o cargo de uma espécie de monarquia não-hereditária, o Rei-Filósofo. E uma síntese, de acordo com Estevão & Lopes (2012, p.26): A descrição do modelo de Cidade justa estende-se por vários livros de A República, determinando quais são as funções necessárias para a vida (para a melhor forma de vida) da Cidade: as funções dos que trabalham para mantê-la, dos que a devem proteger e dos que a devem dirigir. Isso posto, seria justa a Cidade na qual cada um concorre segundo suas aptidões naturais para sua harmonia, ou seja, aqueles cuja principal virtude fosse a temperança trabalhariam, os que mostrassem, sobretudo a virtude da coragem seriam os guardiões da Cidade, e aqueles com a mais acentuada virtude da sabedoria a governariam.

De que forma Platão concebe a justiça, então, como valor de ordem singular (aplicável ao homem em si) e plural (quando aplicável em caráter social), concomitantemente? A resposta perpassa a ideia de que é impossível que uma cidade seja justa se suas partes agem injustamente. Ou que haja injustiças singulares que não possam afetar a harmonia do todo. Por isso a necessidade de se educar os cidadãos, sobretudo aqueles que se desvelarão como governantes. O homem justo é o homem virtuoso - aquele que faz o domínio racional agir sobre a cólera e o desejo. Fato é que nem todos serão capazes de se mostrarem como tal, por essa razão uma cidade justa é aquela que consegue impor a hierarquia necessária para sua manutenção. Ela deve ser, portanto, governada pelos filósofos, protegida pelos guerreiros e mantidas pelos produtores.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

A Sofocracia platônica é uma crítica contundente à Democracia do “século de Péricles”. Vejamos. Quando Platão estabelece uma classificação qualitativa dos tipos de almas, há uma decorrência quantitativa que não pode ser ignorada: há mais indivíduos de almas, supostamente, de bronze do que de ouro. Assim sendo, a maioria das pessoas seriam incapazes de fazer o uso da razão para gerir uma cidade justa, visto serem almas instintivas, passionais, etc. A crítica platônica reside nessa constatação: o “povo comum” (que seria maioria numérica) deteria o poder legislativo e executivo, ignorando - por “força d’alma”- a necessária prudência, temperança a que reclama a administração pública. Essa maioria não estaria apta a governar por ser mais fortes nela os interesses imediatos, as paixões, etc. Democracia, por força de sua própria constituição, expressa uma forma problemática, limítrofe entre a injustiça e os desejos irracionais da massa. Seu funcionamento permite, entre outras aberrações, na apropriação (indevida) do poder por parte daqueles que não possuem aptidão intelectual alguma. Os modos de governança, que passariam desde as questões de guerra até a educação, estariam adstritos a esse contingente desmesurado e não apto. Ao cabo do Livro VI de A República, Platão expressa por meio de uma Eikasia (εἰκασία) o que seria um regime democrático: uma nau desgovernada, na qual seus tripulantes – marinheiros ignorantes – tomando o posto que deveria ser do piloto, conduzem o navio para mares inavegáveis, posto que não detêm nenhum tipo de perícia e agem movidos por suas paixões imediatas por explorações.

Fonte: Wikimedia Commons

A Cidade de Deus em Agostinho de Hipona. Durante a Idade Média, a visão teocêntrica do mundo fez os valores religiosos passassem a incorpora concepções éticas. Dessa forma, critérios de certo e errado, bem e mal se vinculavam à lógica da fé cristã, pautada numa concepção de vida

Figura 03 - O Saque de Roma pelos Visigodos. Autor: Évariste Vital Luminais (1821-1896)

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O posicionamento crítico de Platão em relação à Democracia ateniense decorreu ainda do processo que culminou a morte de Sócrates. De jovem entusiasmado com a cultura política democrática, Platão se torna avesso ao sistema por força de sua filosofia. Fato é que o julgamento e a consequente condenação de seu mestre levaram seus discípulos (e ele mesmo) a uma conflituosa relação filosófica com a Pólis, pautada na incredulidade que essa - dentro de um regime democrático - poderia, de fato, garantir a permanência e até mesmo a existência da atividade filosófica no seu seio. Pouco a pouco, se observa a tradição filosófica socrático-platônica apartada da vida política, se dirigindo para uma prática intelectual de caráter individual e contemplativa. Isso já era um sintoma, a bem da verdade, encontrado em boa parte dos cidadãos da outrora gloriosa Atenas democrática. No período helenístico (séc. III e II a.C), veremos uma reorientação hierárquica das atividades humanas. Após as turbulências política pelas quais a Grécia, como um todo, passou por decorrência das conquistas macedônicas, o interesse filosófico que se centrava na Pólis (enquanto universo político) se desviou para questões de ordem estritamente éticas. Essa nova hierarquização das atividades humanas (de uma Vita Activa para uma Vita Contemplativa) encontrou vigor e sustentação na doutrina cristã, nos séculos vindouros. A mensagem cristã por si já indicava um necessário desapego às coisas terrenas, e um voltar-se às coisas sublimes, notadamente ao seio de Deus. Era necessário uma nova organização da Civitas para além do que se concebia como Império (e quem deveria ascendê-lo) ou como cidadania (participação do homem na esfera pública). O pensamento platônico encontra sua guarida definitiva no seio da filosofia da cristandade: a sofocracia encontrará sua ressignificação na Civitate Dei agostiniana.


Filosofia

após a morte que condicionava o comportamento moral do sujeito temente a Deus. A seu turno, o pensamento clássico encontrou um desenvolvimento e amadurecimento tão grandes que já não era mais possível ignorá-lo. No entanto, - dada a essa nova lógica - foi necessária uma nova sistematização, elaborada a partir dos problemas do intercurso entre problemas pensados pela filosofia pagã conjugados com os propostos pelo cristianismo nascente. Assim, a chamada filosofia da cristandade se ocupou da assimilação das novas experiências no contexto da filosofia clássica. Seu o principal desafio foi o de harmonizar a fé e a razão, tanto para ofertar uma base racional ao cristianismo, sobretudo para o processo de conversão dos patrícios remanescentes e para afirmar a superioridade da revelação divina frente aos arbítrios da razão humana.

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Seguramente, a Patrística - nome alusivo aos “Padres ou Pais da Igreja” - foi o movimento que mais corpo deu a essa articulação entre a filosofia clássica e a teologia cristã, secundado pela Escolástica. Dessa tradição, destaca-se o filósofo Aurelius Augustinus Hipponensis (Santo Agostinho). Oriundo da cidade de Targaste (atual Argélia), Agostinho incorporou as influências da filosofia neoplatônica na busca pela conciliação entre fé e razão. A Patrística, expressada em Agostinho, introduziu uma série de temas até então novos para a própria filosofia helênica. Bebendo da fonte platônica ressignificou (cristianizou) o seu pensamento, transpondo suas categorias e reflexões para pensar temáticas fundamentais à fé cristã: a criação do mundo, o pecado original, a trindade, encarnação-morte-ressureição de Deus, a origem do mal e o papel político da igreja nascente (e do próprio cristão). Sobre esses dois últimos tópicos, importa compreender as problemáticas (e soluções trazidas) especialmente por Santo Agostinho - o “filósofo que os romanos jamais tiveram”, nos dizeres de Hannah Arendt (2000, p.216). A começar pelo “problema do mal”- seguramente um dos temas mais fundamentais dentro do cristianismo primevo. Na obra O Livre-arbítrio (1995), Agostinho apresenta uma difícil questão a ser resolvida: de onde provém o mal? Se Deus é o autor de todas as coisas do mundo, ele não seria, também, o autor do mal? A resposta a que chega o filósofo é instigante: o mal deve ser concebido como privação, natureza do pecado. Assim como as trevas são a ausência da luz, o mal nada mais seria do que a privação de Deus. Não haveria substância para ele, portanto. Ele expressa, nada mais do que uma resultante da liberdade de escolha dos homens que desejam se afastar, se privar da luz divina. Estaria, portanto, no livre-arbítrio humano a possibilidade da escolha do mal, mas ele não seria em si mesmo a causa do mal. Posto isso, torna-se impres158

cindível compreender o papel desempenhado pela vontade nas ações humanas- o que implicaria numa responsabilidade dos homens pelos seus atos. A vontade em Agostinho é uma força que determina a vida. Não se trata de uma função do intelecto, como postulava os gregos. Dessa forma, a liberdade não é uma faculdade da razão, mas antes da própria vontade. Assim, o indivíduo peca porque usa de sua liberdade de escolha para satisfazer uma vontade má, ainda que saiba ser essa uma atitude pecaminosa. Por essa razão, o filósofo de Hipona argumentará que o homem não pode ser autônomo em sua vida moral, deliberando livremente sobre sua conduta. Daí a importância de uma mediação dada pela compreensão e vivência das verdades reveladas. É importante salientar que a noção de liberdade evocada, advinda de uma suposta vontade de ser livre [ou com própria existência de uma vontade autônoma] não possui similaridade como a antiguidade clássica concebia a experiência da liberdade. A faculdade da escolha tratava-se de uma retórica sob o nome de liberum arbitrium. Não de um se posicionar existencialmente no âmbito da pólis ou da civitas. Sob os auspícios da aceitação de uma teleologia estabelecida, o que resta ao homem são dois caminhos bem desenhados: um que leva ao martírio eterno e ou encaminha a alma ao seio da divindade (CARVALHO, 2009). A consequência dessa mentalidade materializada na filosofia agostiniana representará uma atitude muito expressiva do cristão medieval: a apolítia. A herança platônica conjugada ao cristianismo levou os primeiros cristãos a uma postura de vida meramente contemplativa. Qualquer interferência na vida (social) do cristão era mediada pela Igreja - a instituição que cristianizou o Império Romano. De modo singular, diferente dos gregos e romanos, o cristão não se imiscuía nos assuntos relativos à sua própria governança. O entendimento de “cidadania” é soterrado no início da era medieval, sob o argumento que o homem deveria ocupar-se inteiramente de sua salvação enquanto aguarda a escatologia derradeira. Prevaleceu, portanto, uma compreensão da política como algo pejorativamente mundano, indigna de um “homem santo”. No lugar de sua atuação na pólis, o homem medievo era representado pela Igreja - que enquanto instituição poderia exercer sua influência sobre o espaço público. A possível articulação entre a experiência política greco-romana, a filosofia platônica e a teologia cristã empreendida por Agostinho foi aquilo capaz de gerar as condições teóricas para que a Igreja assumisse um papel político. Segundo Hannah Arendt (p.177), ao Agostinho se abstrair da


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realidade histórica conformada pela queda do Império Romano, “(…) tornou realidade, no curso da história, a transformação do caráter consciente e radicalmente antipolítico do cristianismo, de modo a se tornar possível um tipo de política cristã”. Isso, contudo, significou antes adaptar o próprio cristianismo ao platonismo (e vice-versa) para dar uma nova orientação à vida do cristão. Em outras palavras, quando Agostinho assimilou a concepção de que a verdade, como conhecimento eterno, deveria ser buscada intelectualmente no “mundo das ideias”, postulou que o “caminho da interioridade” se fazia como o único instrumento legítimo para a busca da verdade. Esse caminho da interioridade sugere uma Vita Contemplativa. Se há um caminho que permite o autoconhecimento e o consequente religare, esse é o da interioridade. E se o mundo almejado é sobrenatural, nada melhor do que se afastar do mundo natural (physis) e se voltar para uma vida que nos lança a este ao seio de Deus (representação cristã do “mundo das ideias”). Não obstante, afastar-se da physis equivale a se afastar da esfera que o regula: o mundo político. Ter uma atitude contemplativa é, portanto, voltar-se de costas para uma vida pública. Restava à Igreja o papel político de conduzir o mundo comum e a vida humana. Ela, por ser instituição e não pessoa! Com a queda e a pilhagem de Roma, consequentemente, com a destruição da cidade, era comum a ideia generalizada de descrença quanto à eternidade ou sequer durabilidade das instituições políticas do mundo. Isso, de certa forma, reafirmou a ideia que o artifício humano é incapaz de gerar coisas eternamente duradouras. A queda de Roma, longe de representar um problema para a Igreja, antes foi uma reafirmação da glória de Deus e, mais ainda, foi uma situação que permitiu à Igreja outorgar a autoridade necessária para que essa cidade desfragmentada pudesse continuar exercendo sua função política. Nesse ínterim que a Igreja emergiu conferindo – por meio de uma prerrogativa espiritual (a de ser a representação institucional de Deus na Terra) - a autoridade ao governo restante. Agostinho novamente contribui para justificar esse novo papel da igreja. De acordo com o filósofo, a sentença cristã dai a César o que é de César e a Deus o que é Deus não representaria mais uma cisão ou a negação das instituições mundanas, mas antes uma divisão de papel, sem que ambas estejam posicionadas em bases conflitantes ou autoexcludentes.

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Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho instaura um espaço transcendente, justificando a atuação da igreja no mundo profano, apresentando uma visão de história enquanto construção do reino de Deus na Terra. Essa mesma história não se apresenta como uma falsi circulari como acreditavam os antigos, isto é, que a história é cíclica - todos os eventos numa dada civilização tenderiam, naturalmente, a se repetir a partir da tríade “desenvolvimento/apogeu/declínio”. Diferente disso, Agostinho substitui a noção de “circularidade temporal pela compreensão de uma linearidade histórica. Tomando a bíblia como texto referencial, pontua o início dessa linearidade com o episódio mítico da expulsão de Adão e Eva do paraíso, culminando com a parúsia de Cristo e, por fim, o apocalipse: o evento de ruptura que marca o fim da “Cidade dos Homens” e o advento da “Cidade de Deus” - uma realidade social sem pecado. Nesse intercurso, cabe ao cristão, por meio de suas escolhas e ações na Terra, ser “promovido” ao mais além, seja ao paraíso dos justos ou ao inferno dos transviados, sendo que no dia do juízo não poderá voltar atrás em suas escolhas, ou consertar fatos, ou agirem diferente perante episódios pretéritos, visto que as circunstâncias não retomam o seu ciclo de ocorrência. De acordo com Carvalho (2009, p.106), interpretando o pensamento agostiniano:

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Filosofia

Não caminhamos para trás, sonhando com o Éden perdido, mas para frente, experienciando um tempo dotado de sentido, com formas, pleno, um presente contínuo, o tempo da graça divina. A história não é encontro sem significado, mas o tempo da salvação. A obrigação do homem, portanto, é alcançá-la, e o papel da Igreja, a de realizá-la. Viver o tempo é viver a vida e a sabedoria consiste em vivê-la devidamente. É verdade que o sentido da história não nos é comunicado imediatamente: o que se desvela diante de nossos olhos não nos pertence, é graça, e por isso o sentido da história não é visível. História é desafio; neste tempo preciso, nesta esfera conflitante de prós e de contras, neste espaço de incertezas é que se dá a salvação, a graça, a proposta de Deus e a nossa resposta pela construção da cidade. É assim que a história cheia de debilidades, de fraquezas, de misérias de cada indivíduo e de cada geração se transforma no Reino de amor e de paz que Deus quer para o seu povo. O caráter espiritual da Civitate Dei é central no pensamento agostiniano. Não se trata aqui, contudo, de uma teologia para gerir teocraticamente a sociedade. A cidade terrestre possui a sua autonomia, esta pode ser, tanto a oposição a Deus quanto o lugar onde se coloca em prática uma ordem de coisas segundo a vontade do próprio Deus.

Ancorada na perspectiva agostiniana, a Igreja exerceu durante boa parte da Idade Média, uma sensível influência sobre o “poder material”, resguardando de qualquer ação que pudesse desvirtuá-la de seu caminho de condutora de vidas humanas rumo ao seio Divino. O poder material (temporal ou mundano) torna-se, nesse intercurso, subserviente ao poder transcendental da Igreja. Na mesma medida, a Igreja também se torna dependente do poder dos príncipes. Em outras palavras, a Igreja ofertava a autoridade espiritual (e a influência social) que o governo necessitava para seu domínio, ao mesmo passo que ofertava as condições materiais e militares de sobrevivência da própria Igreja. Em suma, a Igreja deixou de ser uma mera instituição de crenças nascentes, para ser uma instituição claramente romana. O império sobrevivente, ao seu turno, uma instituição estritamente cristã. O apolitismo evocado se reporta à ação do fiel/servo nesse contexto, não como uma negação per si da atividade política, mas antes como característica de sua despreocupação em ter de se envolver nos assuntos públicos. Afinal, agora havia uma instituição que mediava esse processo, cabendo a ele uma vida meramente voltada para a interioridade e a atenção para com sua salvação.

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Fonte: Wikimedia Commons

SAIBA MAIS Agostinho, em Retratamentos (Retractationes) faz uma breve descrição do conteúdo de Cidade de Deus: (…) este grande empreendimento foi finalmente concluído em vinte e dois livros. Destes, os cinco primeiros refutam aqueles que defendem que a adoração politeísta é necessária a fim de garantir a prosperidade mundial, e que todas estas calamidades avassaladoras caíram sobre nós em consequência da sua proibição. Nos seguintes cinco livros, dirijo-me àqueles que admitem que tais calamidades aconteceram em todos os tempos, e que sempre haverão de acontecer, à raça humana, e que elas se repetem constantemente em formas mais ou menos desastrosas, variando somente no cenário, nas ocasiões e nas pessoas a quem elas atingem, mas, apesar de admitirem isto, defendem que a adoração dos deuses é vantajosa para a vida que há de vir. Mas para que ninguém possa ter ocasião de dizer que, embora eu tenha refutado as doutrinas de outros homens, me tinha esquecido de estabelecer as minhas próprias, dedico a este assunto a segunda parte deste trabalho, que compreende doze livros, apesar de não ter escrúpulos, quando a ocasião se propiciava, para avançar as minhas próprias opiniões nos primeiros dez livros, ou para demolir os argumentos dos meus adversários nos últimos doze. Destes doze livros, os quatro primeiros contêm um relato da origem dessas duas cidades — a cidade de Deus e a cidade do mundo. Os quatro seguintes tratam da sua história ou progresso; os últimos quatro, dos seus destinos merecidos. Figura 04 - Edição italiana de 1453 da obra Civitate Dei, de Agostinho de Hipona.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias Q01. Resposta esperada: O texto de A República obedece a um estilo característico da escrita platônica: o uso de diálogos, como peças de um roteiro ambientado, visando apresentar a construção de suas ideias ao melhor estilo dos elencos - o método socrático. Há um personagem central, Sócrates, sempre a debater com seus interlocutores-rivais, os Sofistas. O uso de alegorias (mitos, no sentido de meras narrativas fabulares) é de importância seminal: neles, Platão, apresenta suas principais teorias em formas literária, parabólicas ou metafóricas, dependendo do propósito.

Bibliografia

Q02. Resposta esperada: A Ética - compreendida como a investigação racional acerca do agir moral - é fundamental no sistema filosófico platônico. Porém, a reflexão platônica só faz sentido a partir da conjugação com os outros campos de investigação. Em outras palavras, investigar os valores é, também, uma condição que perpassa a teoria do conhecimento, a política e até a estética.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. 11ª ed. São Paulo: Paulus, 1984. ______. O Livre-arbítrio. Tradução e notas de Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus, 1995. ______. Cidade de Deus. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. ARENDT, Hannah. A Vida do Espírito. Tradução de Antonio Abranches. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000 ______. O que é política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. CARVALHO, Diego A. M. O conceito de ação no pensamento filosófico e político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. Goiânia: PPGF/UFG, 2009. ESTEVÃO, J.C; LOPES, M.S. Platão e Aristóteles: o nascimento da filosofia política. In: FRATESCHI, Y; MELO, R; RAMOS, F. Manual de Filosofia Política. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. PLATÃO. República. 2. ed. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Edufpa, 1988. REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 1997.

#DicaCine Filosofi Sinopse Em 430 d.C. na cidade sitiada de Hipona, o Bispo de setenta anos de idade Augustine diz a Jovinus, um capitão dos guardas romanos, a história de como sua mãe cristã, Monica, o salvou. Nascido na cidade norte africana de Tagasta, Augustine estudou na Cartécea, se tornando um exímio, mas dissoluto orador. Após se converter ao Maniqueísmo, uma religião sem culpa, ele foi chamado para a corte imperial em Milão para servir como um oponente contra o Bispo cristão Ambrósio. Mas quando a imperatriz Justina envia guardas imperiais para limpar uma basílica onde a própria mãe de Augustine estava cultuando, ele se volta novamente para o cristianismo. De volta a Hipona, Augustine encoraja o sítio Romano a negociar com o Rei Vândalo Genseric, mas eles orgulhosamente se recusam. Nesse ponto, ele também, pensando em uma oportunidade de escapar em um barco enviado pelo Papa para resgatá-lo, ele prefere ficar ao lado de seu povo.

Exercícios de Fixação 01. O livro A República é constituído por agregar o sistema filosófico platônico. Há características que tornam a obra inigualável em termos filosóficos e estilísticos. Disserte a respeito. 02. Qual a relação da Ética com outros campos filosóficos no sistema platônico? 03. O que é o homem justo para Platão? Quem seria (e por que) aquele que melhor representaria esse ideal? Q03. Resposta esperada: O homem justo é o homem virtuoso - aquele que faz o domínio racional agir sobre a cólera e o desejo. Fato é que nem todos serão capazes de se mostrarem como tal. Por essa razão, uma cidade justa é aquela que consegue impor a hierarquia necessária para sua manutenção. Ela deve ser, portanto, governada pelos filósofos, protegida pelos guerreiros e mantida pelos produtores.

04. Na obra O Livre-arbítrio (1995), Agostinho apresenta uma difícil questão a ser resolvida: “de onde provém o mal? Se Deus é o autor de todas as coisas do mundo, ele não seria, também, o autor do mal?”. De que forma o filósofo cristão resolve as questões? 05. Em sua obra A Cidade de Deus, Agostinho afirma a importância (e justificação) para a atuação da Igreja no mundo. Como isso se desdobra no pensamento agostiniano? Q05. Respostas esperada: A igreja (poder espiritual) deveria exercer influência sobre o Império (poder material), resguardando-se de qualquer ação que pudesse desvirtuá-la de seu caminho de condutora de vidas humanas rumo ao seio divino. O poder material deve ser subserviente ao poder transcendental da Igreja. Na mesma medida, a Igreja também se torna dependente do poder dos príncipes. Em outras palavras, a Igreja ofertava a autoridade espiritual (e a influência social) que o governo necessitava para seu domínio, ao mesmo passo que ofertava as condições materiais e militares de sobrevivência da própria Igreja.

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Ficha técnica Título: Santo Agostinho - A Queda do Império Romano (Sant’Agostino) Ano: 2010 Q04. Resposta esperada: Segundo Agostinho, o mal deve ser concebido como Direção: Christian Duguay privação, natureza do pecado, e não como “criação de Deus”. Assim como as trevas são a ausência da luz, o mal nada mais seria do que a privação de Deus. Gênero: Drama Não haveria substância para ele, portanto. Ele expressa, nada mais do que Nacionalidade: Itália, Alemanha uma resultante da liberdade de escolha dos homens que desejam se afastar, se privar da luz divina. Estaria, portanto, no livre-arbítrio humano a possibilidade Duração: 200 minutos da escolha do mal, mas ele não seria em si mesmo a causa do mal.


e de , na outtrês m ser uma alhos sua

Filosofia

Exercícios C om p l em en t ares

d.C.,

01. (UENP) Platão foi um dos filósofos que mais influenciaram a cultura ocidental. Para ele, a filosofia tem um fim prático e é capaz de resolver os grandes problemas da vida. Considera a alma humana prisioneira do corpo, vivendo como se fosse um peregrino em busca do caminho de casa. Para tanto, deveria transpor os limites do corpo e contemplar o inteligível. Assinale a alternativa correta. a) A teoria das ideias não pode ser considerada uma chave de leitura aplicável a todo pensamento platônico. b) Como Sócrates, Platão desenvolveu uma ética racionalista que desconsiderava a vontade como elemento fundamental entre os motivadores da ação. Ele acreditava que o conhecimento do bem era suficiente para motivar a conduta de acordo com essa ideia (agir bem). c) Platão propõe um modelo de organização política da sociedade que pode ser considerado estamental e antidemocrático. Para ele, o governo não deveria se pautar pelo princípio da maioria. As almas têm natureza diversa, de acordo com sua composição, isso faz com que os homens devam ser distribuídos de acordo com essa natureza, divididos em grupos encarregados do governo, do controle e do abastecimento da polis.

ação

d) Platão chamava o conhecimento da verdade de doxa e o contrapõe a uma outra forma de conhecimento (inferior) denominada episteme. e) Para Platão, a essência das coisas é dada a partir da análise de suas causas material e final.

I.

Platão propõe a organização ideal do Estado segundo sua compreensão ontológica e ética do mundo e da vida. II. Para Platão o Estado deve garantir a harmonia para que todos os cidadãos possam purificar sua alma e chegar à sabedoria, que é o caminho do retorno ao mundo das essências, ao mundo divino. III. À semelhança da alma humana, Platão organizou o estado em duas classes - dos artesões e dos filósofos. IV. Para que reine a paz e a harmonia no Estado, segundo Platão, cada classe deve realizar o seu papel, todas agindo em vista do mesmo fim: o bem e a justiça. Com base nos enunciados, assinale a alternativa correta. a) Apenas III está correto. b) Apenas II e IV estão corretos. c) Apenas IV está correto. d) Apenas I, II e IV estão corretos. e) Todos estão corretos. 04. (UEL PR) A República de Platão consiste na busca racional de uma cidade ideal. Sua intenção é pensar a política para além do horizonte da decadência da Cidade-Estado no século de Péricles. O esquema a seguir mostra como se organizam as classes, segundo essa proposta. Com base na obra de Platão e no esquema, atribua V (verdadeiro) ou F (falso) às afirmativas a seguir. Classe econômica

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02. (IMA) Considerando a filosofia de Platão sobre política é INCORRETO afirmar: a) Os filósofos são aqueles homens que podem governara pólis com justiça. b) Assim como os seres humanos são dotados de corpo e alma, também a pólis possui duas classes sociais: os governantes e o povo. c) Conceito de política e de justiça é interdependente quando se fala da pólis. d) Assim como os seres humanos que guiam suas vidas pela razão (pensamento e vontade) são considerados justos e virtuosos; a pólis que é governada (guiada) racionalmente pelos filósofos é considerada uma cidade justa. e) Assim como os seres humanos são dotados de três princípios de atividade (alma concupiscente, alma irascível e alma racional), também a pólis possui três classes sociais (a econômica, a militar e a magistratura). 03. (UNEMAT) Considerando o núcleo da reflexão filosófica de Platão, leia os enunciados.

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Proprietários de terra, artesãos e comerciantes Garantem a sobrevivência material da sociedade

Classe militar

Guerreiros Responsáveis pela defesa da cidade

Classe dos magistrados

Sábios, Legisladores Garantem o governo da cidade sob as leis

Legenda – Esquema de organização social na República de Platão.

( ) As três imagens do Bem na cidade justa de Platão, o Anel de Giges, a Imagem da Linha e a da Caverna, correspondem, respectivamente, à organização das três classes da República. ( ) Na cidade imaginária de Platão, em todas as classes se contestam a família nuclear e a propriedade privada, fatores indispensáveis à constituição de uma comunidade ideal.


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05. (IFSP) “– Mas escuta, a ver se eu digo bem. O princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça. Ora nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para qual a sua natureza é mais adequada.” (PLATÃO. A República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. 7 ed. Lisboa: Calouste-Gulbenkian, 2001, p. 185.)

Com base no texto e nos conhecimentos sobre a concepção platônica de justiça, na cidade ideal, assinale a alternativa correta. a) Para Platão, a cidade ideal é a cidade justa, ou seja, a que respeita o princípio de igualdade natural entre todos os seres humanos, concedendo a todos os indivíduos os mesmos direitos perante a lei. b) Platão defende que a democracia é fundamento essencial para a justiça, uma vez que permite a todos os cidadãos o exercício direto do poder. c) Na cidade ideal platônica, a justiça é o resultado natural das ações de cada indivíduo na perseguição de seus interesses pessoais, desde que esses interesses também contribuam para o bem comum. d) Para Platão, a formação de uma cidade justa só é possível se cada cidadão executar, da melhor maneira possível, a sua função própria, ou seja, se cada um fizer bem aquilo que lhe compete, segundo suas aptidões. e) Platão acredita que a cidade só é justa se cada membro do organismo social tiver condições de perseguir seus ideais, exercendo funções que promovam sua ascensão econômica e social. 06. Considerando as reflexões de Santo Agostinho sobre o livre-arbítrio, assinale a alternativa CORRETA: a) Ser livre é deliberar com autonomia, respeitando as leis humanas que são a expressão fiel das leis divinas. b) Ser livre é um ato de fé, a razão não desempenha papel fundamental no exercício do livre-arbítrio.

c) A vontade não governa o homem e a fé é suficiente para assegurar o livre-arbítrio. d) O livre-arbítrio deve orientar-se segundo a razão divina, ou seja, de acordo com os preceitos da lei eterna, o que não se faz sem que o homem mergulhe em si mesmo para se conhecer. e) Ser livre independe da iluminação divina e o intelecto humano é suficiente para se autodeterminar. 07. Sobre Santo Agostinho, é CORRETO afirmar: I.

II.

III.

IV.

V.

A originalidade do pensamento de Agostinho de Hipona fora bastante festejada a partir da Idade Moderna, haja vista sua grande contribuição à Reforma e na instituição do cogito cartesiano, e ainda na intuição da teoria da evolução e pré-concepção do que viria a ser o existencialismo do Século XX. Na “Cidade de Deus”, Agostinho discorre sobre a cidade dos homens, marcada pela corrupção do gênero humano; e a cidade de Deus, representada pela aliança com o povo hebreu. Na Cidade de Deus, Agostinho firma um contraponto às acusações de que a decadência e iminente queda de Roma, em 476 d.C. estariam associadas à adesão oficial do império ao monoteísmo cristão, a partir de Constantino. A assertiva “crer para compreender” explicita a relação de dependência defendida por Agostinho entre Filosofia e Teologia, colocando aquela como tributária desta. Para Agostinho, o conhecimento pode referir-se a coisas que não são provenientes dos sentidos, mas que, iluminadas pelo Deus cristão, podem ser percebidas pela mente humana.

a) Somente II e III são verdadeiras. b) Somente I, II e V são verdadeiras. c) Somente II, III, IV e V são verdadeiras. d) Somente II e V são verdadeiras. e) Nenhuma alternativa é verdadeira. 08. (SEDUCE CE) Se os nossos adversários que admitem a existência de uma natureza não criada por Deus quisessem refletir sobre estas considerações tão claras e certas, deixariam de proferir tantas blasfêmias, como a de atribuir ao sumo mal tantos bens, e a Deus, tantos males. (AGOSTINHO, A. A natureza do bem. Rio de Janeiro: Sétimo Selo, 2005, p. 15)

A partir do assunto abordado no texto acima e considerando o pensamento agostiniano a esse respeito, assinale a opção incorreta. a) É razoável e racional sustentar que os grandes bens provêm de um princípio, e os pequenos bens, de outro. b) Se todas as coisas que Deus criou só podem ser boas, o pecado consiste em usar mal o bem. c) Nenhuma natureza é má na condição de natureza. A natureza não é má senão enquanto diminui nela o bem. d) Ao contrário dos maniqueus, Agostinho afirma que Deus é também criador do corpo. 163

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( ) Na cidade platônica, é dever do filósofo supri-la materialmente com bens duráveis e alimentos, bem como ser responsável pela sua defesa. ( ) O conceito de justiça na cidade platônica estende-se do plano político à tripartição da alma, o que significa que há justiça na República mesmo havendo classes e diferenças entre elas. ( ) O filósofo, pertencente à classe dos magistrados, é aquele cuja tarefa consiste em apresentar a ideia do Bem e ordenar os diferentes elementos das classes, produzindo a sua harmonia. Assinale a alternativa que contém, de cima para baixo, a sequência correta. a) V – V – F – F – F b) V – F – V – V – F c) F – V – V – F – V d) F – V – F – V – F e) F – F – F – V – V


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A18

ASSUNTOS ABORDADOS n A ética teleológica de Aristóteles n A Ética Telelógica de Aristóteles: o caminho (do meio termo) para a felicidade. n A Política de Aristóteles: a pólis enquanto expressão para a realização humana.

A ÉTICA TELEOLÓGICA DE ARISTÓTELES Durante a Antiguidade clássica predominou um conjunto de doutrinas denominadas em seu conjunto de “Essencialistas”. Em síntese, tratou-se de teorias que defendiam a existência de uma dada natureza [essência] humana, e que esta poderia ser investigada racionalmente e aperfeiçoada em si mesma. Inicialmente, as doutrinas essencialistas surgiram decorrentes do debate pré-socrático entre “realidade” e a “aparência” e, posteriormente, entre os filósofos da tradição socrática com os sofistas, no tocante a relação entre “episteme” (saber) e “doxa” (opinião). Nesse intercurso, predominou-se a concepção de que o conhecimento sobre a realidade demandava uma compreensão sobre sua essência: o conhecimento verdadeiro seria aquele que se apreende a essência daquilo que é investigado. Sendo ela eterna, imutável, possui uma identidade que permite ser conhecida. Nessa esteira argumentativa, destaca-se a posição do eleata pré-socrático, Parmênides, que afirmava que o caminho da verdade era aquele que se contrapunha à opinião, dirigindo-se para o que seria permanente e eterno nas coisas. E tais só poderiam ser acessíveis pelo pensamento - uma vez que este, diferente dos sentidos, não era algo material e, portanto, mutável.

Fonte: Wikimeida Commons

Figura 01 - Die Schule des Aristoteles. Autor: Gustav Adolph Spangenberg, 1828-1891.

Ampliando a discussão para um campo axiológico, isto é, dos valores, o filósofo ateniense Sócrates buscava uma investigação acerca da psiquê (Ψυχή) - o elemento de distinção entre os homens e animais; a sede da consciência mediante a qual sua compreensão nos permitiria a derivação de valores subjacentes à natureza humana. Compreender a essência dos valores que devem reger a vida humana é, em si, compreender a própria natureza humana (e vice-versa). Trata-se de uma antropologia metafísica de consequências éticas ou de uma ética (enquanto reflexão sobre o agir humano) que nos permite a compreensão própria do que é o homem [antropológica] em sua natureza. Não raro, Sócrates recusava em seus diálogos debates que não se centravam em questões como a justiça, o bem, o belo, etc., sobretudo quando estes não se apegam antes à forma do que à essência de tais conceitos. De acordo com o filósofo - diferente dos sofistas- a definição de qualquer conceito não pode estar sujeita a conveniências de linguagem ou contextos: sendo elas aquilo que se refere à essência das coisas, é, portanto, imutável e atemporal.

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Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

A questão acerca da essência humana atravessa a dimensão de uma teoria do conhecimento e se aloja, primordialmente, nas discussões de natureza moral - como se observa nos três principais filósofos clássicos. De acordo com Chauí (2016, p.321 “(..) as questões socráticas inauguram a ética como parte da filosofia porque definem o ponto no qual os valores e obrigações morais podem ser estabelecidos: a consciência do agente ético ou moral”. Para Sócrates, só se seria um sujeito moral aquele que soubesse o que faz, conhecendo as causas e fins de sua ação; logo, o significado de suas intenções e atitudes. Platão, a seu turno, amplia as formulações de Parmênides e Sócrates, introduzindo a noção de “mundo das ideias” e “mundo sensível”. Em seu sistema, a essência das coisas visíveis, materiais, estaria na realidade inteligível, só podendo ser alcançada pelo desenvolvimento do intelecto. Apenas neste mundo inteligível, composto por essências, poderia o homem explicar o mundo sensível, dos sentidos- este constituído de simulacros imperfeitos das essências inteligíveis. Se Sócrates afirmava que o ser humano deveria orientar-se racionalmente na busca da verdade objetivando o aprimoramento de sua alma, Platão dá um passo à frente ao vincular o procedimento ético à contemplação de um além-físico, o mundo inteligível. O dualismo platônico operava, ainda, a distinção (e sobreposição) entre corpo e alma. No corpo, residiriam as sensações, paixões e desejos, responsáveis por desviarem o homem do caminho para o bem. A solução seria a transcendência dessa materialidade por meio da perfeita compreensão. “Alcançar este bem” relaciona-se com a capacidade de “compreender bem”.

Aristóteles rompe com o sistema platônico (por consequência, socrático), embora assim, como seus mestres, tenha procurado desenvolver um racionalismo ético. Dessa forma, o filósofo de Estagira se configura também como um essencialista, na medida em que admite que a finalidade da investigação científica é a busca pela causalidade da substância das coisas: em outras palavras, a sua própria essência, sem, contudo, cair no dualismo platônico. Interessava a ele o que compreendia como “homem concreto”. Sua compreensão levaria o homem a atingir seu fim último: a felicidade (eudaimonia - εὐδαιμονία). Em síntese, a areté (virtude, ἀρετή) seria para Aristóteles a permanente disposição de caráter para querer o bem - algo supõe a coragem de assumir os valores escolhidos, enfrentando os obstáculos que dificultariam sua ação. No campo antropológico, Aristóteles irá se destacar por procurar uma resposta concreta acerca das questões: o que é o homem? Qual a finalidade de sua existência? As respostas para essas questões perpassam as dimensões da Ética e da Política, mas também da Ontologia e da Metafísica, na medida em que interrogam sobre a essência do ser (humano). Embora haja essa importância atribuída a Sócrates e a Platão, é apenas com Aristóteles que encontraremos as distinções entre o saber teorético (contemplativo) e o saber prático. Isso é fundamental, pois para o filósofo macedônico, conhecimento e qualidade moral não são, necessariamente, instâncias conjugadas. Isso não significa que não era importante conhecer o que são - em essência - os valores morais.

SAIBA MAIS

n Lições de Física n Ética a Nicômano

n Analíticos

n Ética a Eudemo

n Tópicos

n Política

n Elencos Sofísticos

n Retórica

n Metafísica

n Poética

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n Sobre a Interpretação n Categorias

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Aristóteles foi um filósofo grego do Período clássico. Nascido em Estagira, na Macedônia, em 384 a.C,. Faleceu em 322 a.C, em Atenas - cidade em que passou parte significativa de sua vida e consolidação de sua filosofia. Foi discípulo de Platão na Academia - da qual foi expulso pelos demais discípulos após a morte de seu mestre. Foi também preceptor de Alexandre, o Grande. Após a ascensão alexandrina ao trono, Aristóteles retorna a Atenas e funda o Liceu. Seus discípulos eram conhecidos como peripatéticos (περιπατητικός - itinerante; aqueles que caminham no entorno) dado ao hábito de Aristóteles ensinar enquanto caminhava nos arredores da cidade, sempre a pé. Aristóteles é, sem dúvida, um dos filósofos mais influentes de todos os tempos. Praticamente toda área do conhecimento deve uma hipótese inicial ao pensador grego. Entre diversas de suas contribuições, Aristóteles foi o fundador da lógica formal, de um pioneiro estudo de zoologia, além de ter lançado as bases da Ciência Política e do trato da Ética enquanto campo de investigação. Suas principais obras foram:

Figura 02 - Aristóteles. Autor: Francesco Hayez (1811)

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Filosofia

Ao contrário, é fundamental conhecer-lhes a definição até para evitar enganos acerca do que seja justo/injusto, corajoso/covarde etc. O que Aristóteles propõe é que embora seja necessário conhecermos o que são as virtudes, o seu mero conhecimento não nos torna virtuosos. Por essa razão, ele distingue as formas de conhecimento possíveis, afirmando que a introjeção dos valores depende, fundamentalmente, do saber prático instrumentalizado na práxis. Segundo Chauí (Idem, p. 322)”

um objetivo que é igual para todos os seres, denominado substancialmente de “bem comum”; e este seria tautológico à felicidade. Viver bem equivaleria a viver feliz. Considerando que o homem é um zoon politikon [ζῷον πολῑτῐκό], isto é, um ser inclinado à vida social [que se realiza no âmbito da Pólis], a felicidade individual não poderia ser concebida sem a felicidade coletiva. Daí a conexão entre ambas. Segundo Pansarelli (2009. p.14):

(…) O saber teorético é o conhecimento dos seres e fatos que existem e agem independente de nós e sem nossa interferência, ou seja, é o conhecimento de seres e fatos naturais e divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como consequência de nossa ação e, portanto, depende de nós. O saber prático pode ser de dois tipos: técnica ou práxis. (…) Na práxis (…) o agente, ação e a finalidade do agir são inseparáveis, pois o agente, o que ele faz e a finalidade de sua ação são o mesmo. Assim, por exemplo, dizer a verdade é uma virtude do agente, inseparável de sua fala verdadeira (uma fala verdadeira é o ser do próprio falante que diz) e de sua finalidade, que é proferir uma verdade. Não podemos distinguir o falante, a fala e o conteúdo falado.

[...] razão, ética e política são elementos inseparáveis, constitutivos do homem em Aristóteles. Por um lado, a característica de ser racional o conduz à vida política. A vida política, por sua vez, norteará o bem viver ou o viver ético deste homem, que terá como expressão mais própria desta boa vida a própria vida racional. Conclui-se, assim, um círculo virtuoso que para existir não pode prescindir de nenhum destes três elementos que lhe são constitutivos.

Passamos ao trato de cada uma dessas instâncias da práxis mormente seus campos de ação. Aristóteles escreve uma fundamental obra intitulada Ética a Nicômaco. Acredita-se que essa obra tenha sido dedicada a seu filho e aluno, Nicômaco. Tratado com o uma obra de um Aristóteles com seu sistema filosófico já formado e constituído, crê-se que fora escrita no contexto da fundação do Liceu, em 335 a.C. a 323 a.C. Supõese que a obra resulte de um compilado de suas aulas, “publicadas” posteriormente, por seus discípulos. Somada aos outros dois tratados sobre Ética, essa obra é considerada a mais lida e uma das mais importantes de Aristóteles.

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Figura 03 - Aristóteles ensinando Alexandre, o Grande. Autor: Charles Laplante (1837-1903)

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Aristóteles afirmava que a Ética e a Política seriam formas de saberes decorrentes da práxis. A esse propósito, inclusive, o filósofo afirma ser a Ética um ramo da Política, já que a primeira trata do bem-estar individual, enquanto a segunda trataria do bem comum. Ambas, daquilo que se refere valorativamente a atuação do homem no mundo. Embora se distingam, segundo o filósofo tanto uma como a outra são mediadas por uma questão comum: a saber, a finalidade da existência humana, seja em caráter isolado ou coletivo. E para Aristóteles, essa seria a felicidade. Todo o conhecimento, dizia o pensador de Estagira, se dirige para

A Ética Telelógica de Aristóteles: o caminho (do meio termo) para a felicidade.


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[...] ao início daquela que é, provavelmente, sua mais importante obra dedicada à filosofia prática, “Ética a Nicômaco”, Aristóteles afirma que o objeto de todo “procedimento prático e toda a decisão” visam a um certo bem40. Ou bem comum????? Tal bem seria o “bem supremo” do homem, isto é, seu “fim derradeiro”, aquele em torno do qual todos os demais, por assim dizer, “orbitariam”. Tal fim, como Aristóteles no decorrer da obra esclarecerá, será a eudaimonia (felicidade)

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Mas como atingi-la? Seria a virtude a característica daquele que conseguiu trilhar um caminho que o conduziu a essa felicidade? Orientado por essas questões, Aristóteles evoca a necessidade primeira de se distinguir entre tipos de virtudes, promovendo um escalonamento entre elas. A razão, por obviedade na filosofia clássica, segue como o instrumento mediador para que o homem atinja suas finalidades. De acordo com o filósofo, haveria duas modalidades de virtudes: a intelectual e a moral. A primeira, possível de ser adquirida pelo mero aprendizado. A segunda, mais difícil – e à qual Aristóteles mais se detém em sua obra - é a virtude moral. Como tal, só possível ser adquirida arduamente através da prática, do hábito: fruto de um esforço conjugado entre a razão e a repetição. Toda virtude, pontua, é boa quando controlada no seu excesso e na sua falta: agir virtuosamente é encontrar o justo-meio entre dois extremos.

A “prudência” [φρόνησις - phrónesis] - também chamada de “sabedoria prática” - seria a condição para todas as outras virtudes (e ao mesmo tempo presente em todas elas). O indivíduo prudente é aquele que bem julga todas as situações, avaliando qual atitude melhor realizará a finalidade ética, realizando o que é bom para si e para os outros. A chamada “doutrina da mediania” (μεσότης - mesotês) é capital para o pensamento aristotélico. No livro II de Ética a Nicômaco, o filósofo deixa evidente que a virtude não se trata exatamente de um conceito que possa ser concebido isolado de seus vícios (extremos/opostos). Dito de outra forma, a virtude é aquele comportamento que se mostra ao meio termo entre sua completa falta ou excesso. Por exemplo, a coragem seria o justo-meio entre a covardia (vício por falta) e a temeridade (vício por excesso); a calma, aquilo que está entre a apatia e a irascibilidade; a moderação, entre a insensibilidade e a intemperança; a modéstia, entre a imprudência e o acanhamento; etc.

A Política de Aristóteles: a pólis enquanto expressão para a realização humana. Toda cidade [pólis], portanto, existe naturalmente, da mesma forma que as primeiras comunidades; aquela é o estágio final destas, pois a natureza de uma coisa é seu estágio final. (...) Estas considerações deixam claro que a cidade é uma criação natural, e que o homem é por natureza um animal social, e um homem que por natureza, e não por mero acidente, não fizesse parte de cidade alguma, seria desprezível ou estaria acima da humanidade.” (ARISTÓTELES, 1997. p. 15.)

Figura 04 - Acrópole de Atenas. Autor: Christophe Meneboeuf (2011)

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Conceitualmente, o filósofo grego situa a Ética no campo das ciências práticas, que pressupõe o uso de três elementos fundamentais: 1) o uso correto da razão; 2) a boa conduta (eupraxia); a felicidade (eudaimonia). Trata-se de uma atividade, portanto, de consequências teleológica, isto é, orientada para um fim. Como já afirmamos, essa finalidade é o bem comum, traduzido pela felicidade. Segundo C. Ferraz (2014, p.45)

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Filosofia

Consta na biografia de Aristóteles um inusitado fato: ter sido o preceptor de Alexandre, o Grande. De acordo com seus biógrafos, a célebre obra Política teria nascido enquanto resultado de três obras, sendo duas delas (hoje perdidas) compostas especialmente para Alexandre: Os colonos e Sobre a monarquia. A terceira, enquanto desdobramento reflexivo de Ética a Nicômaco. Embora haja um questionamento acerca de sua composição [acredita-se que se trata de dois tratados diferentes que foram misturados, devido à variação de estilo evidente entre os primeiros três livros], não há dúvidas, porém, quanto à autenticidade de sua autoria. E, indubitavelmente, trata-se de uma das obras mais importantes de teoria política de nosso ocidente. Não raro, associa-se como o primeiro tratado de Ciência Política da história, uma vez que o trabalho realizado por Aristóteles transcende a mera abordagem filosófica, valendo-se inclusive da análise documental (jurídica) de cada pólis e a visita in loco a mais 108 cidades gregas para a composição de suas reflexões. Trata-se de uma obra composta por oito livros. Em cada um deles, o filósofo grego se ocupa de analisar as condições de vida e existência sobre a Pólis; sua razão de ser e das formas de governo adequadas para a satisfação da maioria que habita sua circunscrição. Subtematicamente, Aristóteles aborda questões como escravidão, família, riqueza, educação, além de desferir uma contundente crítica ao sistema filosófico platônico. No trato das formas de governo, Aristóteles faz uma distinção entre eles, presente no livro III (Cap.9). Há dois tipos: 1) aquele que se refere à forma pela qual o governante age em relação ao interesse privado ou comum: trata-se de um critério qualitativo; 2) aquele que diz respeito ao número de pessoas que ocupam o poder: um critério quantitativo, portanto. Assim, haveria basicamente três formas de governos classificadas pelas suas intenções e composições. Aristóteles dá o nome de “formas puras” e “formas impuras (ou degeneradas)”. As primeiras se referem aos governos que se ocupam de atender o bem comum de seus cidadãos. Seriam a Monarquia (governo de um só), a Aristocracia (governo dos melhores); Politeia (governo da maioria). A partir do momento que os tipos de governo deixam de atender ao bem comum e convergem a política aos seus interesses privados, passamos a ter as formas degeneradas equivalentes estruturalmente às anteriores (porém, não qualitativamente, por obviedade). Seriam as segundas formas. A Monarquia se degenera em uma Tirania; a aristocracia numa Oligarquia; a Politeia numa Democracia. No texto aristotélico, a palavra Democracia aparece como degeneração para a Politeia. No entanto, a depender da tradução, a primeira aparece enquanto forma pura, sendo sua degeneração a chamada Demagogia.

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Como abordado anteriormente, Ética e Política estão intrinsecamente relacionadas ao pensamento aristotélico. A primeira trataria dos valores individuais. A segunda, dos valores sociais. Em seu sistema político, a Ética estaria subordinada à própria Política (ou do ponto de vista das ciências aristotélicas, um ramo próprio da Política). Isto posto, pois o fim último da organização comunitária é a formação ética de seus cidadãos e o conjunto dos meios necessários para esse objetivo. O “Estado” tratar-se-ia de um organismo moral decorrente da somatória de vontades e atividades morais individuais. Dessa forma, o Estado é superior ao indivíduo, assim como o bem comum é superior ao bem particular (uma subjetivação da eudaimonia). A função do Estado seria a de conjugar os elementos indispensáveis para a efetuação da satisfação das necessidades humanas, já que uma vez o homem sendo um zoon polítikon, demanda dessa vida em coletividade para realizar a sua perfectibilidade, seu propósito existencial que é a felicidade. 168


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Ainda que a finalidade seja a mesma para um homem isoladamente e para uma cidade, a finalidade da cidade parece de qualquer modo algo maior e mais completo, seja para a atingirmos, seja para a perseguirmos; embora seja desejável atingir a finalidade apenas para um único homem, é mais nobilitante e mais divino atingi-Ia para uma nação ou para as cidades. (ARISTÓTELES. 1996. p.119)

É inestimável o legado deixado pelos filósofos clássicos, sobretudo, no campo da Ética e da Política para a constituição do pensamento ocidental. Não raro, a maioria das discussões empreendidas nos sistemas de pensamento subsequentes, devem à tríade Sócrates-Platão-Aristóteles as bases para suas reflexões. De modo sintético, podemos enumerar três grandes princípios que apareceram nas teorias medievais e modernas sobre ética e política (seja para refutá-las ou aprofundá-las): 1) todos os seres humanos aspiram ao bem e à felicidade, compreendendo que só podem atingi-las através de uma vida virtuosa; 2) A virtude é uma condição adquirida. Ninguém nasce necessariamente virtuoso. Ela consiste, fundamentalmente, num desenvolvimento de uma consciência voltada para o bem com uma conduta mediada pela razão; 3) A conduta ética é determinada pela autoconsciência da ação. O sujeito ético é aquele que controla seus instintos e paixões, não se submetendo ao acaso ou à vontade de terceiros: é aquele que obedece (eticamente) apenas à sua consciência e livre vontade. Bibliografia ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Nova Cultural, 1996. ______. Política. 3. ed. Trad. de Mário da Gama Kuri. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1997. CHAUÍ, Marilena. Iniciação à filosofia. São Paulo: Editora Ática, 2016. FERRAZ, Carlos Adriano. Elementos de ética. Pelotas: NEPFil, 2014. PANSARELLI, Daniel. Para uma história da relação ética-política. Revista Múltiplas Leituras, v.2, n.2, p. 9-24, jul. /dez. 2009.

#DicaCine Filosofi

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Sinopse The Pursuit of Happyness (À Procura da Felicidade) é um filme estadunidense de 2006, do gênero drama, dirigido por Gabriele Muccino e com roteiro baseado em uma história real. Chris Gardner é um pai de família que enfrenta muitas dificuldades financeiras, vendendo aparelhos médicos que ninguém quer comprar por serem muito caros. Gardner torna-se obstinado pela sobrevivência e sustento de sua família. Ele consegue uma vaga de estagiário numa importante corretora de ações, mas não recebe remuneração pelos serviços prestados, porém, persiste, pois acredita que poderá ser futuramente contratado. A mulher o abandona e ele é obrigado a tomar conta sozinho do filho de apenas cinco anos de idade. Em meio a todos os problemas, eles são despejados do apartamento onde vivem por falta de pagamento e têm de dormir em estações de metrô, banheiros públicos e albergues. Ficha técnica: Título: À procura da felicidade (The Pursuit of happyness) Direção: Gabriele Muccino Produção: Todd Black / Jason Blumenthal/ James Lassiter /Will Smith /Steve Tisch /Teddy Zee Roteiro: Steve Conrad Obra baseada: The Pursuit of happyness, de Chris Garner Gênero: Drama biográfico Idioma: Inglês Ano: 2007

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assi-

que modo om o ar na tece e de

Filosofia Q01. Resposta esperada: As questões socráticas inauguram a ética como parte da filosofia porque definem o ponto no qual os valores e obrigações morais podem ser estabelecidos: a consciência do agente ético ou moral.

Q02. Resposta esperada: De acordo com Sócrates, só se seria um sujeito moral aquele que soubesse o que faz, conhecendo as causas e fins de sua ação; logo, o significado de suas intenções e atitudes.

Q05. Resposta esperada: 1) Virtude intelectual - que se adquire pelo aprendizado; 2) Virtude moral - que se adquire pela prática, do hábito. Toda virtude é boa quando controlada no seu excesso e na sua falta; agir virtuosamente é encontrar o justo-meio entre dois extremos.

Exercícios de Fixação

istoia é

01. Qual a importância das questões socráticas para o surgimento do campo da Ética?

04. De que forma Aristóteles separa as dimensões do saber teorético e do saber prático?

02. Para Sócrates, o que seria um sujeito moral?

05. Aristóteles postula sobre a existência de dois tipos de virtude. Explique.

03. Ao se distinguir de Platão, o que está em questão para a ética aristotélica?

Q03. Resposta esperada: Interessava a Aristóteles o que compreendia como “homem concreto”. Sua compreensão levaria o homem a atingir seu fim último: a felicidade (eudaimonia). Em síntese, a areté (virtude) seria para Aristóteles a permanente disposição de caráter para querer o bem - algo supõe a coragem de assumir os valores escolhidos, enfrentando os obstáculos que dificultariam sua ação.

Exercícios C om p l em en t ares 01. (UEL PR) “Desde suas origens entre os filósofos da antiga Grécia, a Ética é um tipo de saber normativo, isto é, um saber que pretende orientar as ações dos seres humanos”.

a) é uma qualidade racional que leva à verdade no tocante às ações relacionadas aos bens humanos. b) é uma virtude moral que leva ao meio termo entre duas formas de deficiência moral. c) é impossível ser uma virtude intelectual porque não é conhecimento científico nem arte. d) é a virtude intelectual que permite contemplar a idéia de bem e aplicá-la às situações humanas.

Fonte: CORTINA, A.; MARTÍNEZ, E. Ética. Tradução de Silvana Cobucci Leite. São Paulo: Edições Loyola, 2000, p. 9.

Com base no texto e na compreensão da ética aristotélica, é correto afirmar que a ética: a) Orienta-se pelo procedimento formal de regras universalizáveis, como meio de verificar a correção ética das normas de ação. b) Adota a situação ideal de fala como condição para a fixação de princípios éticos básicos, a partir da negociação discursiva de regras a serem seguidas pelos envolvidos. c) Pauta-se pela teleologia, indicando que o bem supremo do homem consiste em atividades que lhe sejam peculiares, buscando a sua realização de maneira excelente. d) Contempla o hedonismo, indicando que o bem supremo a ser alcançado pelo homem reside na felicidade e esta consiste na realização plena dos prazeres. e) Baseada no emotivismo, busca justificar a atitude ou o juízo ético mediante o recurso dos próprios sentimentos dos agentes, de forma a influir nas demais pessoas.

04. (UEL PR) “E justiça é aquilo em virtude do qual se diz que o homem justo pratica, por escolha própria, o que é justo, e que distribui, seja entre si mesmo e um outro, seja entre dois outros, não de maneira a dar mais do que convém a si mesmo e menos ao seu próximo (e inversamente no relativo ao que não convém), mas de maneira a dar o que é igual de acordo com a proporção; e da mesma forma quando se trata de distribuir entre duas outras pessoas”. Fonte: ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p. 89.

De acordo com o texto e os conhecimentos sobre a justiça em Aristóteles, é correto afirmar: a) É possível que um homem aja injustamente sem ser injusto. b) A justiça é uma virtude que não pode ser considerada um meio-termo. c) A justiça corretiva deve ser feita de acordo com o mérito. d) Os partidários da democracia identificam o mérito com a excelência moral . e) Os partidários da aristocracia identificam o mérito com a riqueza.

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02. Sobre a política NÃO corresponde ao pensamento de Aristóteles: a) O homem é um animal político por natureza porque é da natureza humana buscar a vida em comunidade. b) A família e a aldeia (famílias e clãs) são as duas formas comunitárias existentes, cronologicamente anterior à comunidade política. c) Cada forma política tem uma causa própria para sua corrupção, exceto a democracia porque possui o controle dos cidadãos. d) A comunidade política é o fim a que tendem a comunidade familiar e a comunidade de aldeia. e) O Estado ideal é um regime misto que combina o que há de melhor na aristocracia e na república.

05. Em sua obra Política, Aristóteles afirma que:

03. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, acerca da phronesis, que pode ser traduzida como prudência ou discernimento, afirma que:

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Q04. Resposta esperada: O saber teorético é o conhecimento dos seres e fatos que existem e agem independente de nós e sem nossa interferência, ou seja, é o conhecimento de seres e fatos naturais e Divinos. O saber prático é o conhecimento daquilo que só existe como consequência de nossa ação e, portanto, depende de nós. Saber prático pode ser de dois tipos: técnica ou práxis.

a) os governantes da pólis, cuja finalidade é o bem comum, devem ser virtuosos porque refletem a virtude dos cidadãos. b) a linguagem permite ao homem exprimir em comum as noções de bem e mal, justo e injusto. c) a comunidade política é anterior às famílias e aldeias, do ponto de vista ontológico, mas, do ponto de vista lógico e cronológico, é posterior. d) a aristocracia é a melhor forma de governo por permitir que os melhores homens conduzam a cidade.


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A19

HANNAH ARENDT: DO SENTIDO DA POLÍTICA À BANALIDADE DO MAL O século XX marca, dentre outras aberturas no campo intelectual, para a emergência de filósofas de capital importância para o exercício do pensar. Nomes como Simone Weil, Edith Stein, Mari Zambrano, Simone de Bevouir, Rosa Luxemburgo e Hannah Arendt figuram entre as personalidades filosóficas mais proeminentes e profícuas para a história das ideias. Um destaque especial vai para Hannah Arendt - filósofa teuto-americana de origem judaica. Nascida em Linden, subúrbio de Hanover (Alemanha) em 14 de outubro de 1906, Johanna Arendt fez graduação e doutorado nas Universidades de Marburg e Heidelberg, respectivamente. Nesta última, defendeu sua tese intitulada O conceito de amor em Santo Agostinho, sob a orientação do filósofo Karl Jaspers. Sua obra intelectual se divide numa profunda crítica dentro da história da filosofia, dialogando com autores como Sócrates, Platão, Aristóteles, Maquiavel, Montesquieu, Immanuel Kant, Nietzsche e Martin Heidegger, ao mesmo tempo que contribui com um pensamento original nos campos da Ética e da Política. Dada a perseguição hitlerista aos judeus, sobretudo a partir de 1933, Hannah Arendt decide emigrar da Alemanha. Sua breve prisão e, posteriormente, após perder sua nacionalidade em 1937, fez com que ela se mudasse para diversos lugares na Europa, para pôr fim emigrar para os EUA - onde obtém sua nacionalidade americana em 1951. Durante grande parte de sua vida, trabalhou como editora, jornalista e professora universitária, publicando importantes obras sobretudo no campo da teoria política. Suas publicações de maior destaque foram: A condição humana; A Vida do Espírito; Entre o passado e o futuro; Crises da República; Origens do Totalitarismo; O que é política; Sobre a violência; Eichmman em Jerusalém.

ASSUNTOS ABORDADOS n Hannah Arendt: do sentido da

política à banalidade do mal

n A Condição Humana e sua proposição antropológica n As Origens do Totalitarismo e o ocaso da política n O caso Eichmann e a banalidade do mal

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Do ponto de vista intelectual, o traço do pensamento arendtiano é percebido pelo não se esgueirar na fileira do liberal-conservadorismo, muito menos do discurso totalizante do marxismo. Para ela, o exercício intelectual não se difere – em essência – do significado da própria política: é, portanto, exercício de liberdade que se encerra em si mesmo evocando a pluralidade constituinte de seu ser. Não raro, expressa-se dizendo que lançar o olhar para o passado-presente acarreta a necessidade de operarmos o esforço de sua compressão, não necessariamente de julgamento. O primeiro, um ímpeto do “pensar de forma alargada”, o segundo, muitas vezes, de uma mera tentativa de dar respostas e soluções reparadoras.

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Filosofia

Não se alinhando, portanto, a nenhum dos extremos espectros ideológicos dominantes, Hannah Arendt passou uma vida envolta de polêmicas de toda ordem no campo das ideias, ao passo que constitui um pensamento independente e crítico, principalmente em relação a grupos com os quais compartilhava certas ideias: o sinonismo e a esquerda não marxista. Arendt faleceu em Nova York, no dia 4 de dezembro de 1975, aos 69 anos.

Fonte: Wikimedia Commons

SAIBA MAIS

Figura 01 - Delegados do primeiro congresso sionista realizado na Suíça em 1897.

O sionismo é um movimento político de origem hebraica que defende o direito à “autodeterminação do povo judeu”, além da existência de um Estado nacional judaico que possa ser soberano em seu território, localizado historicamente onde houvera existido o Eretz Israel (Reino de Israel). O sionismo propõe a erradicação da diáspora hebraica, defendendo a manutenção da identidade judaica, opondo-se a mecanismos de assimilação cultural dos judeus mormente sua interação com a sociedade dos países que habitam/viviam. Surgido no final do século XIX, o sionismo é frequentemente associado a uma forma de nacionalismo. Para muitos de seus críticos, o movimento em sua tentativa de revitalização nacional se expressa como uma instituição colonialista e racista. A seu turno, os próprios sionistas afirmam ser essas críticas mais um sintoma do antissemitismo incrustado nos não judeus.

A Condição Humana e sua proposição antropológica O ano de 1958 marca um período de nova esperança para a humanidade. O lançamento da Sputnik 1 (o primeiro satélite artificial soviético) já expressava o sintoma de se buscar “libertar o homem da prisão da terrestre”. Esse período foi marcado, dentre outros eventos, pelas consequências da não tão distante Segunda Grande Guerra, assim como pela já temerária “Guerra Fria” e sua corrida armamentista. É precisamente nesse contexto de transformações que surge a obra A Condição Humana, da filósofa de origem judia, Hannah Arendt.

A19  Hannah Arendt: do sentido da política à banalidade do mal

Fonte: Wikimedia Commons

Em suas palavras, Arendt pretende nesse texto seminal uma reconsideração da “condição humana à luz de nossas mais novas experiências e nossos mais recentes temores”. Não se trata, contudo de uma obra que almeja ofertar soluções unilaterais para os dramas (políticos) humanos, nem mesmo uma busca saudosista por uma experiência política helênica, como se esta fosse capaz de transportar para o presente um ideal acabado de vida pública. A condição humana trata-se de um exercício histórico e filosófico que pretende lançar indagações acima de proposições, hipóteses para além de tratados. A própria questão que orienta o início de sua obra já dá a tônica de sua proposta: o que estamos fazendo? A resposta não se faz de outro modo a não ser procurando investigar as condições de possibilidade das próprias disposições humanas. Assim posto, embora A Condição Humana figure como um importante texto de teoria política, destaca-se um exercício antropológico muito caro a Arendt durante o início de sua obra. Era preciso compreender a forma como o homem se faz homem na sua relação com o mundo, com o outro e consigo. Interrogar sobre a Política é uma atitude antes Ética e Antropológica: uma postura típica de suas referências aristotélicas.

Figura 02 - Primeira edição da obra A Condição Humana (The Human Condition - 1958)

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E o que Arendt entende por “condição humana” - título de sua própria obra? Há uma diferença para “natureza humana”? Por condição humana, Arendt compreende serem as condições mais gerais da existência do homem sobre a Terra: o nascimento e a morte, a natalidade (a chegada e afirmação singular) e a mortalidade (o cabo e o saldo de nossas experiências). No entanto, não se trata da mera relação biológica entre existir ou não existir. Fosse isso, não haveria distinção entre homens e animais (ou também


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Embora usualmente confundidos, é preciso distinguir “condição humana” de “natureza humana”. Por este último, é comum definirmos a partir da somatória de um conjunto de elementos essenciais a todos os seres humanos, garantindo um traço de unicidade, interconexão entre os viventes. Em outras palavras, chamamos de natureza humana a essência originária comum a todos. Já por condição humana, deve-se entender, de acordo com Arendt, um conjunto de disposições gerais condicionadas pelo homem em certo habitat. Para ilustrar a distinção, pensemos na possibilidade do homem transportar-se para outro planeta do Sistema Solar. Certamente, as condições de vida nesse novo habitat implicariam uma inversão de categorias outrora essenciais dos homens, e dependendo daquela constituição física planetária, seriam de pronto substituídas por outras necessidades, descartando, assim, a naturalização de qualquer comportamento humano pregresso. Em outras palavras, a condição física de um planeta imprimiria novas exigências para o comportamento humano, não sendo possível, portanto, dizer que haja algo que seja imutável, um comportamento natural que respondesse a todos os seres igualmente, independente do meio inserido. A condição humana, portanto, depende do meio em que se vive. Se há um traço que qualifica (e identifica) todos os seres humanos, seria tão somente a capacidade que temos de nos condicionar ao meio (e sermos condicionados por ele). Segundo Hannah Arendt, o debate sobre a questão da natureza humana estaria para além da abordagem filosófica/ antropológica: se alocava, de modo privilegiado, na ordem da teologia, tais quais as questões sobre a “natureza de Deus”, etc. De acordo com a filósofa, não haveria nada - a não ser uma “resposta divinamente revelada” - capaz de nos fazer presumir a existência objetiva (e até subjetiva) de uma natureza humana. Se pretendêssemos uma abordagem filosófica da questão, ainda assim não nos afastaríamos de formulações metafísicas para sua resolução. Como exemplo, temos a questão emergindo na Terceira Meditação Cartesiana, na qual a concepção de infinito nos faz aceitar a existência de algo indefinível para nós mesmos, dada a nossa própria limitação e finitude. Se há, por fim, alguém ou algo que possa definir a natureza ou essência humana, este só poderia ser a causa primária, não criada e infinita, ou seja, o próprio Deus. Enfim, de acordo com Carvalho (2009, p. 22),

(…) se existe uma natureza humana, ela não é uma tautologia da condição humana, e buscar uma decodificação desta natureza humana seria, portanto, uma competência da esfera teológica, e não histórica e filosófica. Por outro lado, crer que as condições humanas mais gerais determinam, condicionam o homem de forma absoluta, sendo capazes de responder ao questionamento acerca do ‘quem’ nós somos acarreta, também, um problema semelhante e de difícil solução, uma vez que este condicionamento não se dá de forma oniabrangente. Se assim o fosse, seriam, antes, categorias da natureza humana (esta sim com pretensões de essencialidade), e não da condição humana: contingente e assimiladora.

Embora as condições gerais da existência humana não impliquem uma natureza humana propriamente dita, essas mesmas disposições apontam para um conjunto de atividades peculiares a caracterizarem o homem enquanto ser relacional com o mundo que habita, transforma e (se) condiciona. Ao conjunto dessas condições que diferenciam os homens dos demais seres viventes, Hannah Arendt denominará de Vita Ativa: a somatória das atividades do trabalho (manutenção do processo biológico), da fabricação (intervenção sobre a natureza) e da ação (capacidade de engendrar coisas novas, incluindo a manifestação política sobre o mundo). Não obstante esse inicial debate antropológico, A Condição Humana é essencialmente uma obra de teoria política. Tal discussão engendrada em suas primeiras páginas tem como mote justificar a presença das condições que tornam o homem um ser humano: sua capacidade de agir sobre o mundo e lidar com as contingências da liberdade, da existência do outro (plural e igual a mim, ao mesmo tempo), da vida política em si. Afinal, o mundo é habitado pelo “nós” e não pelo “eu”. Hannah Arendt defende a política como o campo para a manifestação da liberdade. Pelo menos, a liberdade originalmente pensada na experiência helênica da pólis ou da civitas romana. Segundo Arendt (2005, p.40): “(…) o que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na pólis, é que a liberdade situa-se, exclusivamente, na esfera política”. De acordo com a filósofa, a tradição política que se instalou após o estoicismo e na ascensão do cristianismo solapou o conceito de liberdade, distorcendo seu significado ao associá-lo a duas ideias: a de arbitrium (escolha) ou de “tudo poder fazer”. Algo, portanto, vinculado ao foro íntimo e que não se manifesta no espaço público. Dessa forma, para a tradição, a liberdade não é um conceito político, mas antes uma faculdade da consciência, tão somente. Arendt caminha em outra direção ao procurar resgatar uma noção de política e liberdade associado à própria condição humana sobre a Terra. De acordo com a pensadora (2000, p.191-192): 173

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teríamos que pensar sobre uma “condição animal”). Para Arendt, os seres humanos são agentes condicionantes e condicionados na sua relação com o mundo: tudo quanto produz ou se encontra disposto para si é possível de ser integrado ao seu universo particular, tornando-se condição de sua existência. O “mundo” - conceito caro em sua obra - consiste n’algo mais do que um simples habitat natural: trata-se das coisas produzidas pelas atividades humanas.


Filosofia

(…) Ação e política, entre todas as capacidades e potencialidades da vida humana, são as únicas coisas que não poderíamos sequer conceber sem ao menos admitir a existência da liberdade, e é difícil tocar em um problema político particular sem, implícita ou explicitamente, tocar em um problema de liberdade humana. A liberdade, além disso, não é apenas um dos inúmeros problemas e fenômenos da esfera política propriamente dita, tais como a justiça, o poder ou a igualdade; a liberdade, que só raramente — em épocas de crise ou de revolução — se torna o alvo direto da ação política, é na verdade o motivo por que os homens convivem politicamente organizados. Sem ela, a vida política como tal seria destituída de significado. A raison d’être da política é a liberdade, e seu domínio de experiência é a ação.

Liberdade e Política seriam termos correlatos e interdependentes. Sem a liberdade não haveria a possibilidade de existência de uma política genuína: aquela que leva em consideração a dimensão da pluralidade constituinte de todos os homens e se apresenta como espaço para a manifestação (livre) da ação. A liberdade é a inspiradora das ações humanas em âmbito coletivo. A seu turno, sem a política, a liberdade não possuiria um palco para sua manifestação. A cisão promovida na transição para o mundo cristão e a emergência de uma modernidade autocentrada no “eu” e não no “nós” levou ao ocaso da política. A resultante: o desvelamento de regimes apolíticos e totalitários que a história (recente) testemunhou.

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As Origens do Totalitarismo e o ocaso da política

Fonte: Wikimedia Commons

Embora Arendt inicie o prólogo de A Condição Humana indagando sobre “o que estamos fazendo” em nossa contemporaneidade, sobretudo por conta dos eventos adstritos àquela época (década de 1950), é seguramente em As Origens do Totalitarismo que Arendt configurará um exame de um fenômeno inteiramente novo no curso das histórias humanas: a gênese constitutiva das experiências totalitárias. Nessa obra, Hannah Arendt realça a singularidade do totalitarismo como uma nova forma de governo embasada na organização burocrática das massas, apoiada no emprego do terror e da ideologia. Lançado em 1951 sob o título original de O Fardo de Nossos Tempos (The Burden of Our Time), Origens do Totalitarismo é seguramente um dos maiores tratados a reclamar uma séria e profunda reflexão sobre a emergência dos dois principais movimentos totalitários do século XX: o nazismo e o stalinismo. Como demonstra sua biografia, Arendt não se figurou como uma “intelectual de gabinete”: sua vida e obra expressam o testemunho da sobrevivência dos campos de extermínio e a marca do fardo antissemita que experienciou. Sua obra é o retrato do dantesco cenário que assolou a Europa em meados do século passado. Eis a singularidade que sua análise desvela. Na análise arendtiana, o Totalitarismo foi uma forma de domínio nunca antes praticada na história. Razão pela qual não pode ser confundida com ditaduras, tiranias, despotismos, etc. Ao chegar ao poder, os regimes totalitários foram capazes de solaparem as tradições sociais, políticas e legais dos países onde se instalou. A partir disso, criaram instituições novas, operando sob valores radicalmente distintos de qualquer outra experiência política anterior: subverteram a lei, criando dispositivos de domínio total nunca antes utilizados de forma conjugada e inusitada: a ideologia e o terror.

Figura 03 - Capa da edição de 1951 de As Origens do Totalitarismo.

174

Obviamente que a ideologia e o terror sempre estiveram em pauta enquanto instrumentos para favorecer o domínio em diversas épocas e regimes (a)políticos. Não obstante, a forma pela qual foram empreendidos na maquinaria totalitária foi inusitada. Quanto à ideologia em si, seu caráter “novo” residiu na conferência a si mesma da condição de uma espécie de “filosofia científica”. A fim de justificar toda e qualquer atrocidade cometida, uma espécie de “lógica cíclica” era evocada para “explicar” o curso dos acontecimentos de uma forma convincente. As ideologias, segundo Arendt (1989a, p.521), tinham uma pretensão de abarcar todo o processo histórico, “(…) os segredos do passado, as complexidades do presente, as incertezas do futuro – em virtude da lógica inerente de suas respectivas ideias”.


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O que estava em jogo não era a validade exterior de suas premissas, mas uma espécie de encaixe de uma assertiva dentro de uma lógica própria: o critério de validade se encerra em si mesmo. Subjacentes à força interna de uma “autológica”, as ideologias se salvaguardavam de qualquer questionamento ao evocarem o estatuto de cientificidade aplicado às suas teses. Herdando princípios e consequências de uma espécie de darwinismo social, a ideologia totalitária se valia da premissa pseudocientífica que a sociedade, tal qual um organismo, estava em constante “evolução”, devendo, portanto, substituir o não adaptável, o diferente, aquele que ao longo da história atravancou o progresso dos povos na lógica da história. E por mais que aparecessem elementos contrafactuais ou que simplesmente os indivíduos se pusessem a questionar a lógica imposta, logo se evocava o estatuto de autoridade [pseudo] científica de tais teses. Em última instância, cabia o artifício do terror (material e não tão somente simbólico) para silenciar vozes dissonantes. A ideologia e o terror conformam-se em instrumentos por excelência (e identificatórias) do totalitarismo. São modalidades inusitadas, novas, porque só foram possíveis dentro de uma sociedade já inebriada pela retórica do progresso técnico e científico (por consequência, social, moral e racial) e pelo ressentimento de uma guerra perdida, como no caso da experiência alemã. O cientificismo era o instrumento perfeito para anular qualquer subjetividade a transformando em massa, possibilitando pela “eliminação do outro” o perfeito transcurso da história. Como afirma Arendt, o racismo ou qualquer outro tipo de discurso eugênico obedece sempre à ideia de que existe um tipo de movimento inerente à própria ideia de raça: umas seriam não somente melhores do que as outras, como tinham o dever moral de acelerarem o desaparecimento das demais [inferiores], sob o peso de não estarem colaborando para um processo que é, por si, natural.

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Arendt sustenta ainda que os regimes totalitários são expressões de movimentos ideológicos, sem, contudo, se converterem numa tautologia. Ou seja, é impossível um regime totalitário existir sem o aparato da ideologia, muito embora uma ideologia não acarrete necessariamente na expressão final de um Estado Totalitário. E isso se explica pela própria ontologia do que seja uma ideologia: algo que não pretende abarcar a explicação sobre o real; mas antes, de dar um sentido ao que supostamente se passou e o que virá a ser. O presente (que perfaz o real), dentro do espectro ideológico, seria mero resultante de um passado já enquadrado, e momento propício para se rascunhar o futuro. Nada mais. Importa o transcurso, a continuidade, o devir da/na história, cuja natureza serve apenas para afirmar sua premissa básica de movimento. Eis o sucesso dos empreendimentos totalitários. Uma vez ancorados na ideologia, ele expressa não somente uma esfera (a)política, mas, acima de tudo, um modelo epistêmico (de organização/regulação social) de suposta explicação/compreensão da realidade – objetivamente “construída” pelo poder totalitário. Trata-se da promessa de esclarecimento de todos os acontecimentos históricos, com vistas a um futuro que justifique o presente. O mais extraordinário do instrumento ideológico nos sistemas totalitários esteve no uso feito da maquinaria propagandista. Usando de diversos expedientes publicitários, o totalitarismo não atraia seus adeptos para a essência do que defendiam (a “ideia” da “ideologia”), mas sim pelo processo lógico que dali podia ser deduzido. Ao partir de premissas aceitas axiomaticamente, operava-se numa cadeia dedutiva que afastava o sujeito da experiência real, justamente por converter toda a realidade naquilo já dado no processo de aceitação axiomática. Isto é, ao transformar em premissa axiomática o único ponto que é tomado e aceito da realidade verificada, já não há mais possibilidade de se questionar uma dada experiência, justamente por essa não possuir qualquer concepção de realidade ou mesmo experiência pregressa. Sintetizando, segundo Bethania Assy (2000, p.164) o mecanismo da ideologia totalitária pode ser compreendido a partir de três estágios: 175


Filosofia

(...) Primeiro, a pretensão de tal ideologia em prover uma explicação total, sem lacunas acerca dos acontecimentos históricos, circunscrevendo o passado, o presente e o futuro. Segundo, por consequência, tal explicação se utiliza de um processo lógico, autoexplicativo, de autogerenciamento, que prescinde da concordância adicional da experiência real, levando o indivíduo a uma ilusão da realidade aparente, o que Hannah Arendt denomina de ‘significado secreto’. Terceiro, esta ideologia não só corrobora com a destruição da atividade do pensamento, como também liberta-o da experiência.

Ao final de As Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt (1989, p. 526) aponta para o tipo de “súdito ideal” que os regimes totalitários poderiam resultar: indivíduos para os quais “(…) já não existe diferença entre fato e ficção (isto é, a realidade da experiência) e a diferença entre verdadeiro e falso (isto é, os critérios do pensamento)”. O totalitarismo através da ideologia e do terror comprimiu os homens em massas beligerantes, tornando justificáveis quaisquer ações que tivessem vista a anulação da diferença e a aniquilação de um mundo em comum. Se num espectro o terror total arruinou as relações humanas, a compulsão do pensamento ideológico afastou definitivamente o homem da realidade, eliminando as suas principais capacidades: a de sentir e pensar.

O caso Eichmann e a banalidade do mal. Não estávamos interessados aqui na maldade, que a religião e a literatura têm tentado entender, mas no mal; não estávamos interessados no pecado e nos grandes vilões, que se tornaram os heróis negativos na literatura e que, geralmente, agiam por inveja e ressentimento, mas em todos os que não são maldosos, que não têm motivos especiais e, por essa razão, são capazes de um mal infinito; ao contrário do vilão, eles nunca encontram sua mortal meianoite. (ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p.256)

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Fonte: Wikimedia Commons

Hannah Arendt inicia o capítulo intitulado “Pensamento e considerações morais”, da obra Responsabilidade e Julgamento, questionando a possível conexão entre ausência de pensamento e a “banalidade do mal”. Seu desafio intelectual era o de investigar a possível conexão entre a prática de um mal banal enquanto resultante não da suposta condição de ser “mal-em-si” ou “mal intencionalmente”, mas antes fruto da incapacidade (gerada) de pensar. A obra foi resultante da polêmica envolvendo o caso Eichmann, que a seu turno também houvera resultado na produção de um dos seus textos mais vigorosos. Contextualizando, à época do holocausto, o nazista Otto Adolf Eichmann tinha a incumbência de gerir a logística de deportações em massa de judeus para guetos e campos de concentração/extermínio nas zonas ocupadas pelos alemães no Leste Europeu. Com o fim da guerra, após fugir para a Áustria, segue em 1950 para a Argentina. Em 1960, é capturado pelo Mossad - serviço secreto de Israel e levado a julgamento. Considerado culpado por crimes de guerra, foi sentenciado a forca em 1962. O caso Eichmann recebeu intensa cobertura da imprensa de sua época, transformando-se num evento midiático, televisionado. À época, Hannah Arendt escrevia para o jornal americano The New Yorker e foi convocada a cobrir o julgamento do burocrata nazista. Após a cobertura do processo, Arendt escreveu uma série de cinco artigos para o periódico, que posteriormente se converteu na obra Eichamann em Jerusálem: um relato sobre a banalidade do mal.

Figura 04 - Adolf Eichmann no pátio da Prisão de Ayalon em Israel, 1961

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A obra foi cercada por uma áurea de polêmica, mas ao mesmo tempo de vigor intelectual a conjugar filosofia e jornalismo. A sua importância é seminal, pois foi capaz de confrontar a questão central subjacente ao processo de Eichmann: como lidar com a realidade monstruosa que foi o nazismo e como compreender os meandros da sua ação mais monstruosa: o holocausto. De acordo com o filósofo Michael Onfray (2008),


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Do ponto de vista filosófico, a obra tem uma fundamental importância em promover uma espécie de “antropologia do mal”. Exatamente por isso, o conceito capital da obra instiga a compreender as dinâmicas desse mesmo mal (e dos seus agentes causadores): a banalidade. De acordo com Arendt, o termo “banalidade do mal” aparece com um dos sintomas das “novidades” desenvolvidos pelo totalitarismo. Para além da ideologia e do terror examinados em As Origens do Totalitarismo, importava agora compreender como se formava o “tipo/súdito ideal” que se formava nas engrenagens na maquinaria nazi-totalitária. Este ser, longe da personificação de demoníaca a que se atribuem aos seres mais perversos não passava de um indivíduo diluído nas massas que absorveram a lógica imposta do mero “cumprimento do dever”. Por “Banal”, Arendt significa como algo “sem raízes”, isto é, que não radica no homem. A banalidade aparece naqueles que num dado momento abrem mão da faculdade do pensar e julgar criticamente a realidade. Já acomodados à uma realidade fabricada” (interna ou externamente) e que comporta uma gama de respostas prontas e acabadas sobre a natureza, a história, etc. Arendt é incisiva ao dizer que “não existe um Eichmann em cada um de nós”, mas sim que podemos nos transformar em um Eichmann a partir do momento em que deixamos de fazer uso de nossa condição de reflexionar, sobretudo quando nossa existência margeia a superficialidade do real. Hannah Arendt considerava Eichmann um homem comum, medíocre, distante da caricatura que a memória judaica (e seu imaginário) o havia desenhado. Não era um monstro, no sentido que se atribui a esse termo, a não ser pelo fato de sua estupidez conter algo de superlativo em si; monstruoso, portanto. O traço singular na figura de Eichmann era a sua incapacidade de julgamento, discernimento, simples operação crítica que falhava em sua estrutura cognitiva. Era o “burguês típico”, do qual Arendt de forma hiperbólica considerava o “maior criminoso do século XX” aquele cujos interesses privados estão acima de qualquer senso de coletividade ou pluralidade. Eichmann, como esse tipo de homem, tinha sua capacidade de pensar obliterada pelo cotidiano de uma vida medíocre: alguém que estava muito mais interessado em galgar de postos militares - e dos

benefícios sociais para si advindos dessa escalada - do que para as consequências morais advindas de um crime contra a humanidade. Há uma desproporcionalidade no aferimento de motivos que levam a ações irrefletidas – aí reside a definição de “banalidade”, nos termos Arendtianos. Fato é que embora Eichmann representasse esse personagem típico do século XX e que encontrou campo fértil de aparição na emergência dos regimes de exceção, ele não sintetizava todo corpo totalitário. Isso também é singular na ontologia totalitária. Obviamente que podemos conceber outros “tipos de burgueses”, desde aqueles que como Eichmann meramente operavam a burocracia sem pensar por conta própria, até aquele mais oportunista que embora engessasse em sua conduta uma obediência cega, não se viu constrangido a ter que “mudar de lado” quando devido. Havia os ideologicamente engajados, os meramente oportunistas e aqueles que eram resultantes do próprio processo ideológico, como era o caso de Eichmann. Não obstante, isso não signifique que Eichmann era um ser ingênuo quanto aos propósitos/ações do Nazismo, sendo uma “mera vítima do sistema”. Inserido na maquinaria burocrática, era evidente para ele o que estava ocorrendo e por qual razão isso se impunha. Em igual medida, não era tão somente um sujeito oportunista, embora este fosse seu traço mais significativo, aliado à sua inabilidade de juízo. Eichmann representava, assim, o “súdito ideal” do totalitarismo – aquele que se apresenta como uma engrenagem dentro da maquinaria de dominação total, na qual a virtude da obediência calava mais fundo do que a suposta condição de compreenderem esse consentimento. O caso Eichmann apresenta um sensível ponto de inflexão no campo da filosofia moral. Para além das polêmicas em torno da obra de Arendt e da necessidade de se apontar a responsabilidade de certos setores da sociedade judaica durante o holocausto, o que esteve em questão maior foi o de pensar sobre os limites e possibilidades das ações irrefletidas e suas consequências. Do ponto de vista teórico, o caso também revela uma singularidade própria, seja do conceito (novo) que se apresentou, seja do tipo de agente a ser investigado dentro de um evento também singular no curso da história: o totalitarismo. Como já afirmava ainda no prefácio de As origens do totalitarismo (1989a, p.12), o grande desafio intelectual de nossa época ao nos deparar com fenômenos singulares é o de não nos perdermos em lugares-comuns; mas, antes, procurar “compreender”. E isso, na perspectiva arendtiana, “(…) não significa negar os fatos o chocante, eliminar deles o inaudito, ou, ao explicar fenômenos, utilizar de analogias e generalidades que diminuam o impacto da realidade e o choque da experiência”. 177

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Arendt foi capaz de analisar os mecanismos que tornaram capaz a existência da monstruosidade totalitária: a servidão voluntária, o desejo de dominar, o legitimismo em política, a escolha de bode expiatório para dispensar de pensar, a paixão transformada em razão, a dinâmica coletiva e a frágil capacidade de resistência à autoridade.


Filosofia Q01. Resposta esperada: Por natureza humana deve-se entender a essência originária comum a todos. Já por condição humana, de acordo com Arendt, tratar-se-ia de um conjunto de disposições gerais condicionadas pelo homem em certo habitat. Q02. Resposta esperada: Para a filósofa, a política é o campo para a manifestação da liberdade. São termos correlatos e interdependentes. Sem a liberdade não haveria a possibilidade de existência de uma política genuína: aquela que leva em consideração a dimensão da pluralidade constituinte de todos os homens e se apresenta como espaço para a manifestação (livre) da ação. A seu turno, sem a política, a liberdade não possuiria um palco para sua manifestação. Q03. Resposta esperada: De acordo com Arendt, o totalitarismo seria como uma nova forma de governo embasada na organização burocrática das massas, apoiada no emprego do terror e da ideologia. Algo nunca antes visto na história da humanidade, resultante de um processo iniciado com a tradição política (e seu ocaso), e que teve no século XX o palco para sua emergência, seja em sua forma nazista ou stalinista. Q04. Resposta esperada: Por “Banal”, Arendt designa como algo “sem raízes”, isto é, que não radica no homem. A banalidade aparece naqueles que em um dado momento abrem mão da faculdade do pensar e julgar criticamente a realidade.

Bibliografia ARENDT, Hannah. Responsabilidade e julgamento. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. ______. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989a. ______. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. J.R. Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ______. Entre o Passado e o Futuro. 5 ed. São Paulo: Perspectiva, 2000. ______. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. ASSY, Bethania. Eichmann, Banalidade do mal e Pensamento em Hannah Arendt. In: DUARTE, André. O pensamento à sombra de ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. CARVALHO, Diego A. M. O conceito de ação no pensamento filosófico e político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. Goiânia: PPGF-UFG, 2009. ONFRAY, Michael. Le songe de Eichmann. Paris: Editora Galileé, 2008.

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#DicaCine Filosofi Sinopse Hannah Arendt é um filme de drama teuto-francês de 2012, uma obra biográfica sobre a filósofa política alemã de origem judaica, Hannah Arendt. Para Arendt, os Estados Unidos dos anos 50 foi um sonho realizado, depois de chegar lá com seu marido Heinrich como refugiados de um campo de concentração nazista na França. Nos EUA, surge a oportunidade de ela cobrir o julgamento do nazista Adolf Eichmann para a The New Yorker. Ela escreve sua avaliação sobre o caso e outros fatos desconhecidos, e a revista separa tudo em cinco artigos. Porém, aí começa o drama de sua vida, pois nos artigos mostra que nem todos que participaram dos crimes de guerra eram verdadeiros monstros. Segundo ela, judeus também estavam envolvidos e ajudaram na matança dos seus iguais. A sociedade se volta contra ela e o The New Yorker, e as críticas são tão fortes que até mesmo seus amigos mais próximos se assustam. Ficha técnica Direção: Margarethe Von Trotta Produção: Heimarfilm GmbH Roteiro: Margarethe Von Trotta Gênero: Drama/ Cinebiografia Idioma: Alemão e Inglês Ano: 2012

Exercícios de Fixação 01. Qual a distinção que Hannah Arendt faz entre “condição humana” e “natureza humana”?

histórias humanas: a gênese constitutiva das experiências totalitárias. Nessa obra, Hannah Arendt realça a singularidade do totalitarismo. Qual seria?

02. Qual a associação que Hannah Arendt faz entre Política e Liberdade?

04. O que significa o termo “Banal” em Arendt?

03. Em As Origens do Totalitarismo que Arendt configurará um exame de um fenômeno inteiramente novo no curso das

05. Em termos teóricos, o que representou o caso Eichmann para o campo da teoria moral?

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Q05. Resposta esperada: O caso Eichmann apresenta um sensível ponto de inflexão no campo da filosofia moral. Para além das polêmicas em torno da obra de Arendt e da necessidade de se apontar a responsabilidade de certos setores da sociedade judaica durante o holocausto, o que esteve em questão maior foi o de pensar sobre os limites e possibilidades das ações irreflexivas e suas consequências. Do ponto de vista teórico, o caso também revela uma singularidade própria, seja do conceito (novo) que se apresentou, seja do tipo de agente a ser investigado dentro de um evento também singular no curso da história: o totalitarismo.


Ciê ncias Humanas e suas Tecnologias

Exercícios C om p l em en t ares a) o poder.

reth Von Trotta, em cartaz no Brasil, trata da filósofa, Han-

b) a administração.

nah Arendt (1906- 1975), nascida e criada numa família

c) a liberdade.

judaica abastada de Berlim e uma das intelectuais mais

d) a igualdade.

polêmicas do século XX.

e) o bem. (Revista Época, 15/07/2013)

O tema do filme Hannah Arendt é: a) a chegada do nazismo ao poder na Alemanha, em 1933, com o apoio de parte da comunidade judaica alemã; b) a formação do Movimento Sionista na Europa e sua influência na fundação de Israel; c) o exame comparativo entre a Questão Judaica e a Questão Palestina; d) a publicação de seu livro “Eichmann em Jerusalém”, obra fundamental para entender as características que fizeram da barbárie nazista algo sem paralelo na história humana; e) a publicação de sua obra As Origens do Totalitarismo, considerada até hoje a mais monumental análise filosófica e histórica dos regimes totalitários. 02. No início da obra A condição humana, Hannah Arendt opera um interessante exercício antropológico. A esse respeito, marque a alternativa que corresponde a essa proposta: a) Debater os limites entre o público e o privado no seio do cristianismo b) Operar uma distinção entre natureza humana e condição humana c) Afirmar que é da natureza humana comportamentos de coletividade d) Sugerir que é necessário retomarmos ao modelo helênico de organização política 03. (CEPERJ) De acordo com Hanna Arendt, política e liberdade são: a) antagônicas b) idênticas c) diferentes d) opostas e) paralelas 04. (SEDUC RJ) Durante o século XX, a filósofa Hannah Arendt afirmou que existe uma antiga resposta para a pergunta sobre o sentido da política tão simples e concludente, que poderia dispensar outras respostas por completo. De acordo com o que explana Hannah Arendt em O que é política? Esse sentido da política é:

05. De acordo com Hannah, tal regime exprimia - em caráter absoluto - uma negação radical das liberdades individuais. A questão filosófica que ele suscita é: como podem as pessoas consentir com a negação de sua própria liberdade, suportando e até apoiando esse tipo de regime político. Estamos falando do: a) Capitalismo b) Socialismo c) Comunismo d) Totalitarismo e) Franquismo 06. (Politec MT) De acordo com a filósofa Hannah Arendt, o totalitarismo é uma forma de governo essencialmente diferente de outras formas de opressão política conhecidas, como o despotismo, a tirania e a ditadura. Considerando as características e as expressões históricas do totalitarismo no século XX, assinale a afirmativa INCORRETA. a) O totalitarismo procura reforçar a distinção entre esfera pública e esfera privada. b) Nazismo e stalinismo são dois exemplos históricos de regimes totalitários. c) A propaganda é um meio importante para a difusão da ideologia oficial nos governos totalitários. d) terror é um princípio fundamental da ação política totalitária. 07. (UFF) O julgamento de Eichmann no Tribunal de Nuremberg, Tribunal Internacional, foi criado na cidade alemã do mesmo nome, para julgar os principais criminosos da Segunda Guerra Mundial. As querelas envolvendo as defesas e acusações dos réus foram expressas numa das obras-primas do século XX da filósofa política Hannah Arendt: Eichmann em Jerusalém. Os argumentos de Arendt são expressos no axioma: a) A singularidade do mal. b) A raridade do bem. c) A banalidade do mal. d) A excepcionalidade do bem.

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01. (ESPM) O filme Hannah Arendt, da diretora alemã Marga-


FRENTE

A

FILOSOFIA

MÓDULO A20

ASSUNTOS ABORDADOS n O Existencialismo: de Søren

Kierkegaard a Jean-Paul Sartre n O anti-hegelianismo na filosofia existencialista de Søren Kierkegaard n A existência precede a essência: o existencialismo sartreano

O EXISTENCIALISMO: DE SØREN KIERKEGAARD A JEAN-PAUL SARTRE A segunda metade do século XX reserva à história da filosofia um dos movimentos intelectuais mais expressivos, capaz de influenciar uma gama de áreas como a literatura, psicologia, artes, etc. Refletindo (sobre) o absurdo e da injustificada barbárie expressa nas duas Grandes Guerras, passando por situações cotidianas que evocam o silêncio, a solidão e a angústia, ao mesmo tempo que reclama um novo posicionar-se frente ao mundo, ao outro e a si, emerge a corrente Existencialista. Predominantemente francês, sobretudo em sua expressão literária, o existencialismo tratou-se um fértil terreno intelectual que encontrou suas matrizes ainda na transição novocentista, de nomes como Arthur Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Fiódor Dostoiévski, etc. Muito embora, também, já se encontram ecos de problemática existencial na mais longínqua produção intelectual dos primeiros filósofos até os pré-modernos. Afinal, o questionamento acerca da existência humana, o que somos e o que nos move, a consciência de si e do mundo, os limites da liberdade humana (e de sua própria existência) sempre estiveram na esteira reflexiva da história da filosofia. O existencialismo é um modo particular de filosofar: trata-se de uma forma de interpretar o mundo e a experiência humana utilizando como chave de interpretação somente aquilo que a própria existência nos fornece. O termo existencialismo é frequentemente tributado ao filósofo francês, Gabriel Marcel, em meados da década 1940. No entanto, seu uso e popularização se deu, efetivamente, com Jean-Paul Sartre, notadamente após sua conferência dada no Club Maintenant, em Paris, da qual posteriormente fora publicada como a obra O Existencialismo É um Humanismo - um livreto de fundamental importância para a divulgação do pensamento existencialista. A partir de então, o rótulo passou a designar uma relativamente longa trajetória de pensadores anteriores a Sartre e a Marcel, com destaque para Karl Jaspers, Martin Heiddeger e a base primal de influência, o filósofo dinamarquês, Søren Kierkegaard. Não se trata de uma filosofia ateia, nem muito menos teísta, conquanto encontre expressões em ambos os lados. O fio condutor que entrelaça os diversos filósofos que compõem essa corrente diz respeito ao objeto: a existência humana sobre um mundo de significados construídos.

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Figura 01 - Três estudos para o retrato de Henrietta Moraes, (1963). Autor: Francis Bacon

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O anti-hegelianismo na filosofia existencialista de Søren Kierkegaard

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Søren Aabye Kierkegaard foi um filósofo, teólogo, poeta dinamarquês, nascido em 5 de maio de 1813. É considerado o primeiro filósofo existencialista. Vindo de uma abastada família - que permitiu o custeio de sua educação acadêmica e as primeiras edições de várias de suas obras. Por forte influência de seus familiares luteranos, ingressa na Universidade de Copenhague para estudar Teologia. Posteriormente, migra para a Filosofia, na qual defende, em 1841, sua tese de doutorado intitulada O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates. O legado intelectual de Kierkegaard tem início a partir de um processo de debates e rupturas com as correntes filosóficas de sua época. Dramas pessoais e a conjuntura política da Dinamarca também foram fundamentais na gênese do existencialismo. De um cenário familiar complexo, passando por uma época de profundas transformações - fruto da grande crise política e militar por consequência das guerras napoleônicas- pelas quais seu país de origem estava passando, as indagações filosóficas do jovem Søren se intensificavam. O contexto universitário reclamava reformas liberais e toda uma geração de intelectuais dinamarqueses, incluindo Kierkegaard, são conclamados a fazerem parte de um intenso movimento literário e refletir os dramas da época.

Figura 02 - Desenho de Søren Kierkegaard. Autor: Niels Christian Kierkegaard (1806-1882).

Kierkegaard lançou as bases do existencialismo, preconizado na crença de que o pensamento filosófico se inicia com o sujeito humano - fruto de suas ações, sentimentos, desejos e a vivência de um ser humano individual, não necessariamente orientado por uma racionalidade exterior a movimentar sua existência. Para as doutrinas existencialistas, de modo geral, há a premissa fundamental de que o mundo comporta o absurdo e a falta de sentido. As filosofias acadêmicas, em sua maioria, de anterior instrumento para uma existência construtora de significados, se restringiram a uma atividade distante da vivência e da prática real dos homens. De acordo com os existencialistas, o indivíduo é o único agente capaz de dar significado a sua vida e vivê-la de modo honesto com seus impulsos e sentimentos, apesar da existência ser marcada, indelevelmente, pelas tintas dos sentimentos de absurdo, angústia e ansiedade.

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Quando residente na Alemanha, após o rompimento de um noivado, o pensador dinamarquês tem contato com as aulas do filósofo Friederik Schelling, um profundo crítico do hegelianismo. Posto isso, o filósofo empreenderá uma forte cisura com o pensando de Hegel. De acordo com Kierkegaard, aceitar a lógica hegeliana implica admitir a não existência da liberdade, posto que se a história é regida por um espírito absoluto, o homem não teria a plenitude sobre suas ações, visto que estaria condicionado a uma própria lógica da história. A suposta liberdade do homem estaria restrita à lógica da dialética racional - um sistema que a tudo rege e cujo determinismo é inexorável na vida humana. Contrário a isso, Kierkegaard afirmava que uma sistematização lógica para a existência humana era irrealizável: ela [a existência] seria sempre incompleta e em processo de evolução constante, não podendo ser prevista ou encaixada dentro de uma lógica absoluta. Para Kierkegaard, não haveria vestígios de uma existência viva e singular no sujeito que subjaz os sistemas filosóficos, incluindo boa parte do pensamento moderno (e não só o hegelianismo)(COLLINS, 1958).

O traço do pensamento kierkegaardiano é sublinhado por essas afecções. Dada a influência paterna,- para o qual insistentemente afirmava que o mundo era permeado por mentiras e injustiças- Kierkegaard retoma suas aspirações teológicas numa cruzada pessoal contra a instituição que na modernidade havia sido responsável por desorientar ainda mais o homem sobre a Terra: a igreja [teologia] luterana. Segundo o filósofo, o luteranismo- então considerada igreja oficial da Dinamarca- havia erradicado o verdadeiro cristianismo, tendo-o substituído por uma “religião do Estado”. O cristianismo só seria puro enquanto tivesse por fundamento a vontade livre, sem a qual tudo perderia o sentido. Essa vontade estaria na base de uma autêntica espiritualidade afastada de interesses mundanos. 181


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Frequentemente, Kierkegaard escrevia sob o uso de pseudônimos. Jhonnes Climacus se tornou um de seus centrais. Argumentava que o anonimato autoral era uma condição essencial para a criação de uma espécie de dialética desvinculada da autoria futura de novos textos. Durante o período que se valia dos pseudônimos, os temas de seus textos variavam desde a emancipação feminina, a liberdade de imprensa, os movimentos estudantis até produções sobre filósofos ditos clássicos, como Sócrates, Platão, Fitche e Schlegel. Além de sua obra doutoral, destacam-se Migalhas Filosóficas (1844); O Conceito de Angústia (1844); Estádios no Caminho da Vida (1845); Discursos Edificantes em Diversos Espíritos (1847); As Obras do Amor (1847); Discursos Cristãos (1848); O Desespero Humano (1849). Já em sua “fase madura”, em que Kierkegaard assume a autoria pública de seu pensamento (sem isso expressar uma cisão com suas obras anteriores, subscritas por pseudônimos). Não obstante, a tarefa de filosofia se reforça: em seus termos, corrigir as distorções de sentido pelas quais se valeu a tradição filosófica europeia. É nesse contexto que seu pensamento ganha uma projeção independente, não se valendo apenas de uma alcunha anti-hegeliana, posto que contribui com uma peculiar teoria do conhecimento. Na obra Post-scritpum Não Científico Conclusivo aos fragmentos filosóficos (1846) - que embora seja de sua segunda fase, ainda se vale da assinatura de Johannes Climacus - Kieerkgaard opera uma abordagem subjetiva do conhecimento. Em tese, afirma a necessidade de buscar nos aproximar da verdade subjetivamente sem negar a verdade objetiva. Em outras palavras, a verdade objetiva - como se sugere - existe e é concreta, porém só pode ser acessível subjetivamente. Como anteriormente afirmado, Søren Kieerkaard se notabilizou, também, pela contribuição que ofereceu a toda uma tradição de filósofos existencialistas que se seguiram. Contrariando os sistemas filosóficos de sua época, para o pensador dinamarquês, a existência humana não seria - como visto em sua crítica ao idealismo hegeliano - determinada por uma necessidade racional e teleológica. A existência concreta, real, é marcada pela contingência dos indivíduos. Existir é estar imerso num oceano de possibilidades. A fortuna, isto é, a imprevisibilidade dos atos marcaria as decisões humanas, podendo tanto ser favoráveis suas consequências, quanto desventurosas seus destinos. Essa indeterminação permanente resulta no homem um sentimento que o demarca: um ser em angústia- conceito capital para o existencialismo futuro. A angústia seria justamente a decorrência de um processo inerente ao caráter errante e indeterminado da condição humana. De acordo com o filósofo (2015, p.45):

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O conceito de angústia não é tratado quase nunca na psicologia, e, portanto, tenho de chamar a atenção sobre sua total diferença em relação ao medo e outros conceitos semelhantes que se referem a algo determinado, enquanto que a angústia é a realidade da liberdade como possibilidade antes da possibilidade. Por isso não se encontrará angústia no animal, justamente porque este, em sua naturalidade, não está determinado como espírito.

Como se depreende, não obstante o caráter aparentemente tétrico da existência, sua condição inerente de angústia se relaciona intrinsecamente à liberdade - conceito caro, e não raro positivo da experiência humana. Somente o homem é livre, portanto se angustia, ao perceber a contingência de sua própria existência no mundo.

A existência precede a essência: o existencialismo sartreano Jean-Paul Charles Aymard Sartre nasceu em 21 de junho de 1905, em Paris e faleceu em na mesma cidade em 15 de abril de 1980. Foi um filósofo, escritor e crítico francês, companheiro da também filósofa existencialista, Simone de Beauvoir. Influenciado pela obra de Henri Bergson, ingressa no curso de filosofia da École Normale Superieure. Durante seu tempo de graduação, além do pensamento de Bergson, se dedica aos estudos de Nietzsche, Kant, Descartes e Spinoza. Desenvolve seu mestrado em Filosofia, na Sorbonne, onde conhece sua futura companheira Simone de Beauvoir. Após ganhar uma bolsa para o Instituto Francês em Berlim, passa a se dedicar ao estudo da fenomenologia do filósofo Edmund Husserl e das teorias de Karl Jaspers e Martin Heidegger. Posteriormente, Sartre estuda as obras de Kierkegaard, e a partir de então elabora a sua própria concepção de existencialismo. 182


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Simone de Beauvoir nasceu 9 de janeiro de 1908, em Paris. Foi uma escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política e uma das pioneiras intelectuais do feminismo na França. Vinda de uma educação privada católica, Beauvoir ingressou no Instituto Católico de Paris para estudar Matemática, concomitante à entrada no curso de Literatura e Línguas no École de Sainte-Marie de Neuilly. Posteriormente, adentra ao curso de Filosofia na Sorbonne (Universidade de Paris). Nesse contexto, tem contato influente com os filósofos Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre. Entre 1931 e 1943 leciona em diversas instituições escolares francesas. Nos anos 1940, passa a integrar um círculo de intelectuais franceses ligados ao existencialismo. Beauvoir faleceu em Paris em 14 de abril de 1986, deixando um considerável número de romances, novelas, ensaios, autobiografias e textos densos sobre filosofia, política e questões sociais. Suas obras de maior destaque foram: n A convidada (1943) n O sangue dos outros (1945) n O segundo sexo (1949) n Os mandarins (1954) n Memórias de uma moça bem-comportada (1958) n A Força da idade (1960) n A força das coisas (1963) n A mulher desiludida (1967) n A velhice (1970)

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SAIBA MAIS

Figura 03 - Simone de Beauvoir em 1967. Autor: Moshe Milner

Sartre ficou conhecido como um “intelectual engajado”, atuando em diversos movimentos sociais na França. Foi filiado ao Partido Comunista francês e apoiou a invasão comunista na Hungria feita por Stálin. Foi criticado posteriormente por intelectuais liberais, pela atitude contraditória com os ideais de liberdade que o filósofo pregava. Sua ruptura com o marxismo radical só poderá ser percebida em suas obras futuras.

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O filósofo francês se destacou por uma vasta produção literária. Produziu dezenas de romances, contos e ensaios como forma de disseminar a doutrina existencialista. De suas peças de teatro, por exemplo, destacam-se: As Moscas (1943) - na qual fez uso da lenda grega para simbolizar o domínio alemão sobre a França na Segunda Guerra, A Idade da Razão (1945), entre outras. Sua produção o levou a ser condecorado com um Prêmio Nobel de Literatura, mas se recusou a recebê-lo. No campo filosófico, suas obras de maior destaque foram A imaginação - 1936; A transcendência do ego - 1937; Esboço de uma teoria das emoções - 1939; O imaginário - 1940; A Náusea - 1938; O Ser e o Nada - 1943; O existencialismo é um humanismo - 1946; Crítica da razão dialética - 1960. A definição mais precisa acerca do existencialismo - ainda que suas problemáticas venham sendo tratadas há muito na história da filosofia - encontra-se numa conferência intitulada O Existencialismo é um humanismo, em Paris em 1946. A palestra proferida por Jean Paul Sartre havia sido fruto de uma tentativa de Sartre responder aos questionamentos tanto marxistas quanto cristãos acerca do que se colocava enquanto filosofia existencialista (e suas consequências). Respectivamente [para marxistas e cristãos], as proposições existencialistas - sobretudo do pós-Segunda Guerra - tomavam o homem enquanto um sujeito alienado frente à possibilidade/necessidade de transformação/revolução ou mesmo na condição de um indivíduo incapaz de agir movido pelo sentimento de solidariedade. Apatia, desolação, angústia e desespero eram sintomas que levavam o homem à letargia e inação espiritual, muito mais do que serem meros objetos/categorias conceituais de investigação filosófica/existencialista. 183


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Na conferência- que posteriormente foi convertida na obra L’Existentialisme est un humanisme (1946) - Sartre começa relatando justamente as críticas proferidas por marxistas e cristãos, que acusavam o existencialismo ser uma filosofia da apatia e da falta de empatia, do desespero e da alienação: uma filosofia individualista e “burguesa”. Em termos cristãos, ainda, o existencialismo seria uma espécie de sistema “aético”, já que suprimia os valores “inscritos na eternidade”, restando mera aleatoriedade para os comportamentos: um licenciamento para crimes em nome da livre escolha existencial.

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Sartre, a seu turno, dá sequência explicando haver duas formas de existencialismo: um, cristão; outro, ateu. Entre os dois tipos de existencialismo, o único ponto de concordância seria de que a “a existência precede a essência”, ou seja, de que se é necessário partir de uma subjetividade que se constrói (não sendo dada apriori). Porém, Sartre critica o existencialismo cristão, destacando sua incoerência em relação à subjetividade. Naturalmente, pela posição biográfica de Sartre, o existencialismo ateu seria mais coerente, justamente porque era capaz de romper com toda uma cadeia de justificação metafísica, afirmando que o homem formata a sua existência somente depois de se projetar no mundo. Para Sartre, não existe um Deus criador que nos concebeu e criou a partir de uma teleologia própria e prévia. Sendo assim, o homem meramente existe, e a sua “essência” ou projeto será apenas aquilo que ele fizer de si mesmo. O homem em Sartre, portanto, nada mais é do que o seu projeto, um “ser-para-si”, aberto à possibilidade de construir ele próprio a sua existência, sem que para isso haja modelo ou essência para lhe orientar o caminho. Em suma, não há natureza humana, visto que não há Deus para concebê-la. Isso posto, o homem é simplesmente aquilo que ele faz de si mesmo, não sendo nada mais do que isso. Dessa forma, o primeiro esforço do existencialismo deveria ser o de colocar o homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade da sua existência. Para dar cabo das críticas que recebe e para fundamentar o existencialismo ateu que defende, Sartre procura centrar sua análise nos conceitos de abandono e angústia, fundamentalmente. Cada um desses conceitos possuem significados distintos para Sartre. Em uso cotidiano, todos eles indicam noções de desamparo e sofrimento. Para o filósofo francês, no entanto, embora elas possam denotar sentidos negativos, elas também têm o potencial de revelarem aspectos positivos (e otimistas) quando utilizadas n’outras conotações. O abandono, a seu turno se trata de uma metáfora inspirada no pensamento nietzscheano acerca das “mortes de Deus” e suas formas de niilismo. Como aludido, esse conceito enfatiza a sensação de perda advinda da percepção da inexistência de um Deus para justificar nossas escolhas morais: estamos sozinhos no universos, sem nenhuma fonte externa de valor objetivo. 184

Com o objetivo de destronar as críticas feitas de que Deus é uma condição sine qua non para moralidade, Sartre empreende uma teoria que associa as implicações da liberdade a um estado decorrente de angústia. No processo de autoconsciência, o homem - ao perceber a não existência de um Deus, ou um projeto (pre)determinado para sua existência se angustiaria, exatamente por agora experimentar uma verdadeira liberdade. A sentir-se como um vazio, o homem viveria a angústia da escolha. Embora Sartre rejeite a ideia de que os seres humanos tenham alguma essência, ele considera que a essência dos seres humanos é que eles são livres quando declara: “o homem é livre, o homem é a liberdade”. Ser/estar livre é uma expressão da condição humana, e que carrega consigo o forte peso de responsabilidade. “Estamos condenados a ser livres”, eis o oxímoro. Sartre afirma que: “não importam o que os outros fizeram de você. O que importa é o que você fará de ti a partir do que os outros, supostamente, o fizeram”. Isso implica admitir que embora possamos ser pré-condicionados por fatores, pessoas e crenças, o que torna inestimável o valor de nossas ações é administração que operamos das circunstâncias. Nesse sentido, somos intrinsecamente e, por que não dizer, exclusivamente responsáveis pelo nosso ser-no-mundo. Somos, portanto, livres. Não no sentido meramente arbitrário, de escolhas sem consequências, ou ações sem reações. Somos livres na medida em que temos as condições de escolhas e que não há nada que determine inexoravelmente nosso arbítrio. O reconhecimento de nossas escolhas implica o autorreconhecimento de nossa responsabilidade frente ao que somos e fazemos (a si e aos outros). Eis a implicação ética do existencialismo: o homem não é responsável unicamente por si, mas por todos os outros que o cercam. Não na perspectiva que nossa existência (e escolhas) determina, mas certamente ela condiciona tudo/todos a nossa volta. O subjetivismo- conceito frequentemente associado ao de relatividade consciencial - incorpora, em Sartre, a ideia tanto acerca da escolha do sujeito individual por si próprio, quanto a impossibilidade em que o homem se encontra de transpor os limites da subjetividade humana. É nesse sentido que repousa as palavras de Jean-Paul Sartre (1984, p.7): “(…) Ao afirmamos que homem se escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós se escolhe, mas, queremos dizer também que, escolhendo-se, ele escolhe todos os homens”. Todos os nossos atos oriundos da escolha em ser isto ou aquilo pressupõe afirmar, concomitantemente, o próprio valor daquilo que estamos escolhendo. É nesse ponto que há um interessante ponto de inflexão para o existencialismo. Quando o sujeito se dá conta de que seu arbítrio o transforma num legislador que escolhe a si e a humanidade inteira, ele já não se vê capaz de escapar da inexorável responsabilidade. Não obstante, há aqueles que refugam tal fardo/resultante, se escorando na “má-fé”. Aqueles porém que assumem a coragem de enfrentar a liberdade que lhes é imposta, faz da angústia originária um


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motor de ação, orientada pela pluralidade de possibilidades - sentida por todos que introjetaram as responsabilidades, e que quando escolhem uma opção se dão conta que ela só tem valor por ter sido escolhida. Após um conjunto de considerações, Sartre reforça a noção de ser o existencialismo uma doutrina da “não quietude”, uma vez que o que define o homem é justamente a ação. Também se ocupa em afirmar a filosofia da existência como não pessimista. Para a crítica de que ela encarceraria o homem na subjetividade, portanto numa espécie de relativismo, Sartre advoga afirmando que isso decorre de uma má interpretação: embora o existencialismo parta da subjetividade, ela não se ancora em utopias ou proposições idealista; antes, é uma experiência do real, do concreto. Ao fim do ensaio - corroborando com o título empreendido - Sartre expressa-se sobre o humanismo, buscando uma associação com o existencialismo. Para tanto, separa o humanismo em dois tipos: 1) aquele que toma o homem como meta e valor superior (proposição que ele rejeita); 2) aquele que assume que o homem está constantemente fora de si mesmo, estando projetado e perdendo-se continuamente. E é justamente isso que faz dele ser o que é. Para tanto ele persegue objetivos maiores, transcendentais. Sartre toma esse como ponto de partida, conquanto rejeitando a seu turno a dimensão metafísica que esse humanismo possa acarretar. Segundo o filósofo, não existe outro universo além do universo humano, isto é, o mundo da subjetividade. É precisamente a partir desse vínculo entre a necessidade de transcendência que parte um homem desnorteado em consonância com a noção de angústia primária e subjetividade, que Sartre admitirá a correlação entre humanismo e

existencialismo. Humanismo, porque não há outro legislador que não o próprio homem que ao se deparar com sua angústia/desamparo buscará construir os significados necessários para sua própria existência, sobre (n)o mundo. Bibliografia COLLINS, J. El pensamiento de Kieerkegaard. México: Fondo de Cultura Económica, 1958. JOLIVET, Régis. As doutrinas existencialistas: de Kierkegaard a Sartre. Porto: Tavares Martins, 1957. KIERKEGAARD, Søren. Temor e tremor. Lisboa: Guimarães, 1959. ______. Migalhas filosóficas ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. _____. Ponto de vista explicativo de minha obra como escritor. Lisboa: Edições 70, 1986. _____. O conceito de angústia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 2015. _____. Pós-escrito conclusivo não científico às Migalhas filosóficas: coletânea mímico-patético-dialética, contribuição existencial, por Johannes Climacus. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013. v. 1. MORAIVA, João da. O que é existencialismo. 11 ed. São Paulo : Brasiliense, 1982. SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1984. ______. O ser e o nada – ensaio de ontologia fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. 6 ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.

Sinópse Blade Runner é um filme americano de ficção científica produzido em 1982 sob a direção de Ridley Scoot. O roteiro, escrito por Hampton Fancher e David Peoples, é inspirado no romance de Philop K. Dick, intitulado Do Androids Dream of Electric Sheep? A trama se passa na decadente e futurista Los Angeles de 2019. A cidade é tomada pela poluição, o alto consumismo e a busca desenfreada por novas formas de colonização extraplanetária, na qual as pessoas são impulsionadas a explorarem mediante o colapso que a civilização humana se encontrava. Nesse futuro distópico, um caçador de androides recebe a missão de exterminar quatro Replicantes que haviam roubado uma espaçonave. Os Replicantes eram seres criados artificialmente para servirem a homens poderosos. Sem consciência de sua própria mortalidade, eram tratados como máquinas dispensáveis, ainda que poderosas. Continuamente esses seres questionavam a própria razão de suas existências sem ser capazes de ofertarem uma resposta satisfatória. Do ponto de vista filosófico, o filme desvela questões fundamentais da existência humana. Questionamentos sobre o que é a consciência e a vida, quais os limites da moral e da busca por um sentido para a própria existência são continuamente evocados na película. Ficha técnica título: Blade Runner Direção: Ridley Scott Roteiro: Hampton Fancher & David Peoples Gênero: Ação, Aventura e Ficção Científica Idioma: Inglês Ano: 1982 185

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#DicaCine Filosofi


ui o de a m prisure decebe el, é a. Só mo a não mas le se

Filosofia Q01. Resposta esperada: A segunda metade do século XX reserva à história da filosofia um dos movimentos intelectuais mais expressivos, capaz de influenciar uma gama de áreas como a literatura, psicologia, artes, etc. Refletindo (sobre) o absurdo e da injustificada barbárie expressa nas duas Grandes Guerras, passando por situações cotidianas que evocam o silêncio, a solidão, angústia, ao mesmo tempo que reclama um novo posicionar-se frente ao mundo, ao outro e a si, emerge a corrente Existencialista.

Q03. Resposta esperada: Sartre afirma que o homem nada mais é do que “seu projeto”, não havendo essência ou modelo para lhe orientar o caminho; está, portanto, irremediavelmente condenado a ser livre.

Exercícios de Fixação 01. Contextualize temáticamente o surgimento do Existencialismo. 02. De que forma o filósofo dinamarquês, Soren Kierkegaard, lançou as bases do existencialismo? 03. Qual a relação conceitual entre existencialismo e liberdade no pensamento de Jean-Paul Sartre?

04. De que forma pode ser interpretada a sentença sartreana: “a existência precede a essência”? 05. Por que, para Sartre, o existencialismo é uma forma de humanismo? Q04. Resposta esperada: O homem se constrói de acordo com sua própria história e não de acordo com uma essência abstrata e predeterminada.

Exercícios C om p l em en t ares 01. (UFSJ) Na obra “O existencialismo é um humanismo”, JeanPaul Sartre intenta a) desenvolver a ideia de que o existencialismo é definido pela livre escolha e valores inventados pelo sujeito a partir dos quais ele exerce a sua natureza humana essencial. b) mostrar o significado ético do existencialismo. c) criticar toda a discriminação imposta pelo cristianismo, através do discurso, à condição de ser inexorável, característica natural dos homens. d) delinear os aspectos da sensação e da imaginação humanas que só se fortalecem a partir do exercício da liberdade. 02. (UFSJ) Sobre a interferência de Jean-Paul Sartre na filosofia do século XX, é CORRETO afirmar que ele a) reconhece a importância de Diderot, Voltaire e Kant e repercute a interferência positiva destes na noção de que cada homem é um exemplo particular no universo.

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b) faz a inversão da noção essencialista ao apregoar que o Homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo e só após isso se define. Assim, não há natureza humana, pois não há Deus para concebê-la. c) inaugura uma nova ordem político-social, segundo a qual o Homem nada mais é do que um projeto que se lança numa natureza essencialmente humana. d) diz que ser ateu é mais coerente apesar de reconhecer no Homem uma virtu que o filia, definitivamente, a uma consciência a priori 03. (Ufsj ) A angústia, para Jean-Paul Sartre, é a) tudo o que a influência de Shopenhauer determina em Sartre: a certeza da morte. O Homem pode ser livre para fazer suas escolhas, mas não tem como se livrar da decrepitude e do fim.

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Q02. Resposta esperada: Preconizado na crença de que o pensamento filosófico se inicia com o sujeito humano- fruto de suas ações, sentimentos, desejos e a vivência de um ser humano individual, não necessariamente orientado por uma racionalidade exterior a movimentar sua existência.

b) a nadificação de nossos projetos e a certeza de que a relação Homem X natureza humana é circunstancial, objetiva, e pode ser superada pelo simples ato de se fazer uma escolha. c) a certificação de que toda a experiência humana é idealmente sensorial, objetivamente existencial e determinante para a vida e para a morte do Homem em si mesmo e em sua humanidade. d) consequência da responsabilidade que o Homem tem sobre aquilo que ele é, sobre a sua liberdade, sobre as escolhas que faz, tanto de si como do outro e da humanidade, por extensão. 04. (UFSJ) Sartre define o entendimento de que a existência precede a essência como: a) “a compreensão de que o inferno são os outros e de que, assim, o Homem que se alcança diretamente pelo cogito descobre também todos os outros homens”. b) “a compreensão dos conceitos de angústia, descompasso, má fé e desespero”. c) “que na verdade, para o existencialista, não existe amor essencial, senão aquele que se constrói na perspectiva da escolástica”. d) “o significado de que o Homem existe, encontra a si mesmo, surge no mundo e só posteriormente se define”. 05. (UFSJ) Para Sartre, “o Homem é livre, o Homem é liberdade”. Com relação a tal princípio, é CORRETO afirmar que o homem é: a) “a expressão de que tudo é permitido por meio da liberdade e que provém da existência de Deus”. b) “um animal político no sentido aristotélico e por isso necessita viver a liberdade política em comunidade”. c) “um ser que depende da liberdade divina e necessita que o futuro esteja inscrito no céu”. d) “condenado a ser livre, uma vez que foi lançado no mundo, é responsável por tudo que faz”. Q05. Resposta esperada: Porque entre ambos há um vínculo entre a necessidade de transcendência com a noção de angústia primária e subjetividade. Humanismo, porque não há outro legislador que não o próprio homem que ao se deparar com sua angústia/desamparo buscará construir os significados necessários para sua própria existência, sobre (n)o mundo.


FRENTE

A

FILOSOFIA

Q01. Resposta esperada: No texto 1, Platão desenvolve a tese de que a cidade seria melhor administrada pelo “Rei Filósofo”- o melhor administrador por ser aquele que possui conhecimento da “verdade” que se identifica com o Bom, o Bem e o Belo que residem no Mundo das Ideias. De acordo com Platão, esse tipo de governante seria o único capaz de guiar os habitantes da cidade na busca do melhor desenvolvimento de cada um segundo suas aptidões naturais. Não sendo esse governante guiado por interesses privados, sua virtude está em buscar a concretização do bem para todos os habitantes da cidade. No texto 2, Nicolau Maquiavel parte do pressuposto de que os homens são inclinados ao mal, devendo o príncipe sempre buscar manter o poder mediante estratégias que não possuem ligação necessária com o comportamento virtuoso. Elementos como virtú (entendida como impetuosidade, coragem) e fortuna (entendida como ventura, oportunidade), somadas a um conhecimento da moralidade dos homens, são recursos que permitem ao governante agir de modo calculado, não objetivando o desenvolvimento de uma bondade natural nos homens como acredita Platão.

Exercícios de A p rof u n dam en t o

(Platão. A República, 2000. Adaptado.)

Texto 2 Um príncipe prudente não pode e nem deve manter a palavra dada quando isso lhe é nocivo e quando aquilo que a determinou não mais exista. Fossem os homens todos bons, esse preceito seria mau. Mas, uma vez que são pérfidos e que não a manteriam a teu respeito, também não te vejas obrigado a cumpri-la para com eles. Nunca, aos príncipes, faltaram motivos para dissimular quebra da fé jurada. (Maquiavel. O Príncipe, 2000. Adaptado.)

Comente as diferenças entre os dois textos no que se refere à necessidade de virtudes pessoais para o governante de um Estado. 02. Leia o fragmento e responda o que se pede O caráter espiritual da Civitate Dei é central no pensamento agostiniano. Não se trata aqui, contudo, de uma teologia para gerir teocraticamente a sociedade. A cidade terrestre possui a sua autonomia, esta pode ser, tanto a oposição a Deus quanto o lugar onde se coloca em prática uma ordem de coisas segundo a vontade do próprio Deus. (CARVALHO, Diego A. M. O conceito de ação no pensamento filosófico e político de Hannah Arendt. Dissertação de Mestrado. Goiânia: PPGF/UFG, 2009)

Explique como se deu o papel da Igreja no tocante às questões políticas durante parte significativa da Idade Média. 03. (UFU MG) “Sendo, pois, de duas espécies a virtude, intelectual e moral, a primeira, por via de regra, gera-se e cresce graças ao ensino - por isso requer experiência e tempo; enquanto a virtude moral é adquirida em resultado do hábito, donde ter se formado o seu nome ética [êthiké] por uma pequena modificação da palavra hábito [éthos]. Por tudo isso, evidencias e também que nenhuma das virtudes morais surge em nós por natureza; Q02. Resposta esperada: Ancorada na perspectiva agostiniana, a Igreja exerceu durante boa parte da Idade Média, uma sensível influência sobre o “poder material”, resguardando de qualquer ação que pudesse desvirtuá-la de seu caminho de condutora de vidas humanas rumo ao seio Divino. O poder material (temporal ou mundano) torna-se, neste intercurso, subserviente ao poder transcendental da Igreja. Na mesma medida, a Igreja também se torna dependente do poder dos príncipes. Em outras palavras, a Igreja ofertava a autoridade espiritual (e a influência social) de que o governo necessitava para seu domínio, ao mesmo passo que ofertava as condições materiais e militares de sobrevivência da própria Igreja. Em suma, a Igreja deixou de ser uma mera instituição de crenças nascentes, para ser uma instituição claramente romana. O império sobrevivente, ao seu turno, uma instituição estritamente cristã.

com efeito, nada do que existe naturalmente pode formar um hábito contrário à sua natureza. Por exemplo, a pedra que por natureza se move para baixo não se pode imprimir o hábito de ir para cima, ainda que tentemos adestrá-la jogando-a dez mil vezes no ar; nem se pode habituar o fogo a dirigir-se para baixo, nem qualquer coisa que por natureza se comporte de certa maneira a comportar-se de outra”. (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”. p. 267)

A partir da análise do texto acima, estabeleça, em primeiro lugar, a distinção entre virtude intelectual e moral; mostre, a seguir, por que a virtude moral não surge em nós por natureza. 04. (UFPR)“[…] não é fácil determinar de que maneira, e com quem e por que motivos, e por quanto tempo devemos encolerizar-nos; às vezes nós mesmos louvamos as pessoas que cedem e as chamamos de amáveis, mas às vezes louvamos aquelas que se encolerizam e as chamamos de viris. Entretanto, as pessoas que se desviam um pouco da excelência não são censuradas, quer o façam no sentido do mais, quer o façam no sentido do menos; censuramos apenas as pessoas que se desviam consideravelmente, pois estas não passarão despercebidas. Mas não é fácil determinar racionalmente até onde e em que medida uma pessoa pode desviar-se antes de tornar-se censurável (de fato, nada que é percebido pelos sentidos é fácil de definir); tais coisas dependem de circunstâncias específicas, e a decisão depende da percepção. Isto é bastante para determinar que a situação intermediária deve ser louvada em todas as circunstâncias, mas que às vezes devemos inclinar-nos no sentido do excesso, e às vezes no sentido da falta, pois assim atingiremos mais facilmente o meio-termo e o que é certo.” (ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Livro II. São Paulo: Nova Cultural, 1996, p. 150)

Uma vez que Aristóteles antes define as virtudes como disposições de caráter e, na passagem acima, acrescenta que as virtudes situam-se num “meio- termo”, de que modo devem ser definidos os vícios? Por quê? 05. (…) o que todos os filósofos gregos tinham como certo, por mais que se opusessem à vida na pólis, é que a liberdade situa-se exclusivamente na esfera política. (ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo, posfácio de Celso Lafer. 10ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.40) Q04. Resposta esperada: Aristóteles estabelece que o princípio da ação deve ser a virtude, isto é, o comportamento deve ser conduzido pela reflexão para um fim. O fim do agir humano, segundo Aristóteles, é a felicidade e esta somente pode ser atingida quando se superou tanto o excesso quanto a falta. A ética do meio-termo proposta por este filósofo reflete-se pela excelência moral. O comportamento virtuoso sempre irá buscar o melhor fim. Assim, os extremos do comportamento moral: tanto a falta quanto o excesso, são determinados como vícios. Estes não produzem uma ação adequada, pois são baseados nos afetos, nas paixões e não na razão.

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Q03.Resposta esperada: As virtudes intelectuais são aquelas que estão mais relacionadas à atividade de contemplação do filósofo. As virtudes morais, em contrapartida, são aquelas que se referem ao hábito e que estão mais relacionadas à atividade prática. De acordo com Aristóteles, as virtudes morais não surgem em nós por natureza justamente por poderem ser modificadas pelo hábito. Se surgissem naturalmente, não necessitariam do hábito para existir nem poderiam se transformar, como é o caso do fogo que sobe e da pedra que cai.

01. (Unesp SP) Texto 1 A verdade é esta: a cidade onde os que devem mandar são os menos apressados pela busca do poder é a mais bem governada e menos sujeita a revoltas, e aquela onde os chefes revelam disposições contrárias está ela mesma numa situação contrária. Certamente, no Estado bem governado só mandarão os que são verdadeiramente ricos, não de ouro, mas dessa riqueza de que o homem tem necessidade para ser feliz: uma vida virtuosa e sábia.


Filosofia Q06. Resposta esperada: Ao chegarem no poder, os regimes totalitários foram capazes de solaparem as tradições sociais, políticas e legais dos países onde se instalou. A partir disso, criaram-se instituições novas, operando sob valores radicalmente distintos de qualquer outra experiência política anterior: subverteram a lei, criando dispositivos de domínio total nunca antes utilizados de forma conjugada e inusitada: a ideologia e o terror.

Hannah Arendt defende a política como o campo para a manifestação da liberdade. Em que momento, no curso da história, esses conceitos foram distinguidos? O que se tornou, a partir de então, o conceito de liberdade?

06. Para uma ideologia, a história não é vista à luz de uma ideia (o que significa ver a história sob forma de alguma eternidade ideal que, por si, está além do movimento histórico), mas como algo que pode ser calculado por ela. O que torna a ‘ideia’ capaz dessa nova função é a própria ‘lógica’, que é um movimento decorrente da própria ‘ideia’ e dispensa qualquer fator externo para colocá-la em atividade. (ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989a, p.521)

Na análise Arendtiana, o Totalitarismo foi uma forma de domínio nunca antes praticada na história. Ao chegarem ao poder, foram capazes de implementar uma cadeia de transformações no seio da sociedade, se valendo de dois instrumentos de domínio fundamentais. Disserte a respeito. 07. (UFU MG) Jean-Paul Sartre foi um dos principais filósofos do século XX. Ele sustentou um projeto existencialista centrado na ação da pessoa, que diante do mundo se dilacera para poder realizar sua vida como projeto de autonomia da própria existência. Eis o comentário de Sartre: “O existencialismo não é tanto um ateísmo no sentido em que se esforçaria por demonstrar que Deus não existe. Ele declara, mais exatamente: mesmo que Deus existisse, nada mudaria; eis nosso ponto de vista.” SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Nova Cultural, 1987. Coleção “Os Pensadores”. p. 22.

Q08. Resposta esperada: Ambos acusavam o existencialismo de ser uma filosofia da apatia e da falta de empatia, do desespero e da alienação. Para o marxismo, uma filosofia individualista e “burguesa”. Para os cristãos, uma espécie de sistema “aético”, já que suprimia os valores “inscritos na eternidade”, restando mera aleatoriedade para os comportamentos: um licenciamento para crimes em nome da livre escolha existencial.

por minha própria transcendência, supor-se-á que as encontro

surgindo no mundo: elas vêm de Deus, da natureza, da ‘minha’ natureza, da sociedade. (…) Essas tentativas abortadas para sufocar a liberdade – elas desmoronam quando surge, de repente, a angústia diante da liberdade – mostram bastante que a liberdade coincide no fundo com o nada que está no coração do homem”. (Sartre) Com base no texto, seguem as seguintes afirmativas: I. No homem, a existência precede a essência. II. Em sua essência, o homem é um ser determinado quer seja, ou por Deus, ou pela natureza, ou pela sociedade. III. Os limites da minha liberdade são estabelecidos pelos valores religiosos, estéticos, políticos e sociais. IV. “O homem não está livre de ser livre”, pois não é possível “cessar de ser livre”. V. A liberdade humana, em suas escolhas, se orienta por valores objetivos e pré-determinados. Assinale a alternativa correta. a) Apenas II está correta. b) Apenas I e IV estão corretas. c) Apenas II e IV estão corretas. d) Apenas III e V estão corretas. e) Todas as afirmativas estão corretas. 10. (UEMG) LEIA, abaixo, o comentário que a filósofa Hannah Arendt fez sobre as ações do comandante do Reich, Adolf Karl Eichmann, acusado de crimes contra o povo judeu: “Os feitos eram monstruosos, mas o executante (...) era ordinário, comum, e nem demoníaco nem monstruoso.” (Hannah Arendt, A vida do espírito.In: Eduardo Jardim de Moraes e Newton Bignotto, Hannah Arendt: diálogos, reflexões e memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, p.138)

O que Sartre colocou em evidência com esta afirmação polêmica? 08. (UFU MG) “Gostaria de defender, aqui, o existencialismo de uma série de críticas que lhe foram feitas”, assim começa Sartre o seu opúsculo O existencialismo é um humanismo. Quais foram as principais críticas dirigidas ao existencialismo sartreano?

Assinale a alternativa em que o fator cultural presente nas

09. (Unioeste) “Só pelo fato de que tenho consciência dos mo-

soas comuns, afetadas principalmente pela falta de ali-

FRENTE A  Exercícios de Aprofundamento

tivos que solicitam minha ação, esses motivos já são objetos

tórico acima mencionado: a) A execução de atos criminosos com requintes de crueldade, ordenada pelas autoridades, foi praticada por pesmento e de emprego.

transcendentes para minha consciência, estão fora; em vão

b) A banalidade na execução de crimes contra a humanidade

buscaria agarrar-me a eles, escapo disto por minha existência

se deve à burocratização do genocídio, implementada pela

mesma. Estou condenado a existir para sempre além de minha

cúpula nazista, para liberar as pessoas de preocupações com

essência, além dos móveis e dos motivos de meu ato: estou

a moral comum e com as leis.

condenado a ser livre. Isto significa que não se poderia encon-

c) A participação da juventude hitlerista no processo de

trar para a minha liberdade outros limites senão ela mesma,

construção do nacionalismo reforçou o senso político de

ou, se se prefere, não somos livres de cessar de ser livres. (…)

oposição aos regimes socialistas autoritários.

O sentido profundo do determinismo é o de estabelecer em

d) A experiência nazista é um exemplo de fortalecimento da

nós uma continuidade sem falha da existência em si. (…) Mas

sociedade pelo Estado, criador de símbolos e valores culturais, que reforçam os princípios autoritários de governo.

em vez de ver transcendências postas e mantidas no seu ser 188

ações comentadas explica CORRETAMENTE o fenômeno his-

Q05. Resposta esperada: De acordo com a filósofa, a tradição política que se instalou após o estoicismo e na ascensão do cristianismo solapou o conceito de liberdade, distorcendo seu significado ao associá-lo a duas ideias: a de arbitrium (escolha) ou de “tudo poder fazer”. Algo, portanto, vinculado ao foro íntimo e que não se manifesta no espaço público. Dessa forma, para a tradição, a liberdade não é um conceito político, mas antes uma faculdade da consciência, tão somente. A cisão promovida na transição para o mundo cristão e a emergência de uma modernidade autocentrada no “eu” e não no “nós” levou ao ocaso da política. A resultante: o desvelamento de regimes apolíticos e totalitários que a história (recente) testemunhou.

Q07. Resposta esperada: Para Sartre, o existencialismo ateísta seria mais coerente do que o existencialismo cristão. Ele seria o único capaz de lidar com a questão da liberdade em sua constituição plena: aquela que reclama responsabilidade do agente que opera no mundo e não atribui causa a nenhum outra circunstância ou agente externo, Deus. Para o existencialismo proposto por Sartre, ainda que a existência de Deus fosse real, em nada afetaria a condição de que cabe o homem ser o agente único responsável pelas suas próprias escolhas.


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