Do mar ao infinito

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2 | Pedro Santiago | Dizzi Akibah

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Capivari-SP – 2014–


4 | Pedro Santiago | Dizzi Akibah © 2014 Pedro Santiago

Os direitos autorais deste livro são de exclusividade do autor que destinará toda a renda em benefício da assistência social a crianças carentes da cidade de Salvador e da Ilha de Itaparica-BA. A Editora EME mantém o Centro Espírita “Mensagem de Esperança”, colabora na manutenção da Comunidade Psicossomática Nova Consciência (clínica masculina para tratamento da dependência química), e patrocina, junto com outras empresas, a Central de Educação e Atendimento da Criança (Casa da Criança), em Capivari-SP.

1ª edição – maio/2014 – 5.000 exemplares | André Stenico | Rafael Suzuki Gatti Revisão | Sônia Rodrigues Cervantes Capa

DIAGRAMAÇÃO

Ficha catalográfica elaborada na editora

Akibah, Dizzi. (Espírito) Do mar ao infinito / pelo espírito Dizzi Akibah, [psicografado por] Pedro Santiago – 1ª ed. maio. 2014 – Capivari, SP : Editora EME.

310 p.

ISBN 978-85-66805-33-8

1. Romance mediúnico. 2. Lei do perdão. 3. Existências passadas. 4. Adoção. Resgate coletivo. I. TÍTULO CDD 133.9


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Sumário Palavras do autor espiritual........................................................................ 7 Capítulo 1 – Socorro imprevisto............................................................ 9 Capítulo 2 – Impiedosa perseguição................................................... 43 Capítulo 3 – Novas investidas............................................................. 53 Capítulo 4 – Situação tormentosa........................................................ 69 Capítulo 5 – Surpresas aversas............................................................ 79 Capítulo 6 – Semeando e colhendo................................................... 107 Capítulo 7 – Circunstância inesperada............................................. 115 Capítulo 8 – Restaurando a paz......................................................... 125 Capítulo 9 – Surpreendentes revelações.......................................... 133 Capítulo 10 – Aplainando os caminhos.............................................. 139 Capítulo 11 – Um raro exemplo........................................................... 149 Capítulo 12 – Buscando a pacificação................................................. 163 Capítulo 13 – Desafios oportunos....................................................... 183 Capítulo 14 – E o sonho se tornou real............................................... 199 Capítulo 15 – A verdade que faltava.................................................. 211 Capítulo 16 – O resgate......................................................................... 235 Capítulo 17 – Perdão e reconciliação.................................................. 253 Capítulo 18 – Revelações emotivas..................................................... 279 Capítulo 19 – Rumo ao infinito............................................................ 291


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Palavras do autor espiritual

particulares como a família, o acúmulo de bens materiais e o poder, como expressão de destaque na sociedade em que se movimentam, os que assim se comportam acabam vivendo em constante alerta, a exemplo do guerreiro no campo de batalha. Quan‑ do não se encontram na luta em defesa dos seus próprios interesses, estão sempre na defensiva, emocionalmente armados para o revide, que nem sempre ocorre mas, ainda assim, prosseguem semeando a desconfiança, a intriga e a desunião, sem jamais cogitarem a possibi‑ lidade do perdão que, como antídoto do ódio, reconcilia, harmoniza e pacifica. Mergulhados na desconfiança, cultivam a frieza e a indife‑ rença que se alastra em detrimento da fraternidade, passo inicial para a prática da caridade, meio eficiente no combate ao egoísmo, que é o fomentador das desuniões e das injustificáveis injustiças que geram a revolta – entrave do estabelecimento da paz. São eles, na sua maioria, espíritos que, embora devidamente pre‑ parados no plano espiritual para o seu renascimento, ao pisarem no Centrados em interesses


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palco do mundo, durante o despertar no período infantil, não tenham contado com as desejadas orientações. Tão logo recobram os sentidos pela maturidade do corpo físico, até o elo que já tenham estabelecido com o bem poderá ser rompido, permitindo-se o contágio de costu‑ mes e tradições reprováveis pelo bom-senso moral, embora os recla‑ mes da consciência, onde se encontram circunscritas as leis imutáveis, do Criador. Não intencionamos afirmar, com esse comentário, que seja muito fácil para o reencarnante agir no mundo sem se deixar contagiar por ele, principalmente, quando na fase infantil não haja recebido orienta‑ ções morais, particularmente as baseadas nas lições luminosas de Je‑ sus, mas sobretudo, reafirmar as prováveis dificuldades que o espírito encontra para o cumprimento do que fora traçado no seu programa reencarnatório e, por isso, relembrar aos pais, que devem aceitar como deveres intransferíveis, a educação e a orientação dos espíritos que chegam na condição de filhos, confiantes no amparo e na desejável orientação para seu desenvolvimento moral e espiritual, o que a maio‑ ria vem em busca. Essas situações e tantas outras geradas pelo perdão, pela renúncia, pela prática da caridade e pela sincera bondade são encontradas, como provas inequívocas do funcionamento das leis da reencarnação, de causa e efeito e, sobretudo, da justiça divina, nas páginas desse roman‑ ce, que passamos alegremente, queridos leitores, às suas mãos, agrade‑ cendo a Jesus por mais uma oportunidade de trabalho e formulando, a todos, votos de paz, harmonia íntima, alegria e boa leitura. Salvador, 13/7/2013. Dizzi Akibah


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Capítulo 1

Socorro imprevisto Ante o sofrimento, não desespere! Mesmo por caminhos ásperos, tudo flui para o bem. Dizzi Akibah

últimas recomendações dos instrutores espirituais so‑ bre a sua reencarnação, para o que vinha se preparando, há muito tem‑ po, na colônia espiritual onde era filiado: – Embora se encontre devidamente preparado para cumprimento da tarefa, embora se trate de uma escolha espontânea, não se encon‑ tra livre de desafios e dificuldades que, certamente, encontrarás em virtude da situação moral e condição psíquica destes nossos irmãos, principalmente os que foram retirados diretamente das regiões umbra‑ linas para o processo reencarnatório e, por isso mesmo, não será, ini‑ cialmente, estabelecida qualquer afinidade, entre você e eles, já que as intenções são antagônicas. Entretanto, contarás com apoio necessário de uma eficiente instrutora dessa estância espiritual, a quem tratamos de “Servidora Leal de Jesus”, que estará cumprindo tarefas no plano material durante alguns anos. Contudo, a sua ajuda só poderá ser le‑ vada ao efeito almejado se contar com a sua sensibilidade mediúnica, que aflorará já no período da adolescência. David ouvia as


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David ouvia atentamente as orientações que, embora úteis, não deixavam de afligir a sua mente, por entender que, no palco no mundo, as atuações não são baseadas, apenas, na arte da imitação, mas sobretudo, na própria realidade íntima. Ele sabia que para gal‑ gar o êxito desejado, precisava, antes, compreender a cada um dos espíritos encarnados ou desencarnados, ser paciente, tolerante e pôr sempre à frente das suas ações o amor ao próximo, já que, do grupo conflituoso, ele era o único que se encontrava em melhores condi‑ ções morais e psicológicas, pois na existência anterior, por volta da segunda metade do século XIX, na Inglaterra, havia vivido sérios conflitos junto a esses mesmos espíritos, sem, contudo, se deixar contagiar pela negatividade. O seu posicionamento fora de com‑ preensão, cooperação e tentativa de pacificação, embora não tenha logrado o êxito desejado. – Consideramos de bom proveito – continuou o instrutor na sua ex‑ planação –, deixá-lo ciente das situações diversificadas destes irmãos com quem deverá conviver direta ou indiretamente: alguns deles, afe‑ tados pela vaidade e pelo orgulho, embora o meio educativo lhes exija uma existência simples e sem os ilusórios destaques sociais, poderão fazer uso da desonestidade como meio para satisfazer o orgulho de que ainda são portadores. Outros, porém, que esbanjaram os bens ma‑ teriais que lhes foram confiados, deverão enfrentar dificuldades para a sobrevivência e, durante o processo de reeducação moral, não conse‑ guirão além da satisfação do estritamente necessário. Contudo, a per‑ manência nessa situação poderá ser abreviada, a depender da paciên‑ cia, da compreensão e do esforço empreendido, ou ampliada, caso se deixem arrastar pela revolta e inconformação. “Cito como exemplo Anny e Brigid, que serão por você reencontra‑ das, vivendo em situações adversas em relação à existência anterior. Anne viverá, durante período que poderá ser curto ou longo, a depen‑ der dela mesma, sem direito à posse de bens materiais, oportunidade de se reeducar, aprendendo a valorizar os bens que são colocados ao


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dispor para o equilíbrio da vida, na matéria densa. Brigid, no entanto, terá que experimentar as mesmas dificuldades, mas ainda na infância os rumos serão mudados. Depois de uma pausa intencional para reflexão, o instrutor voltou a falar: – Mary Catherine e Dikson, que malbarataram, conforme você sabe, a reencarnação passada, já se encontram reencarnados há qua‑ se três décadas, convivendo conjugalmente num lar, onde receberão como filhos alguns dentre os que, por eles, foram abandonados. De‑ sencarnados e já a postos, esperando a melhor oportunidade, se encon‑ tram Charles, que se juntou a Emilly e alguns que foram filhos, tanto de um quanto de outro, desorientados pelo sentimento de vingança, serão, para você, um campo de ação, do qual não deverá recuar se quiser, realmente, dar proveito positivo à sua reencarnação como nos tem demonstrado. Aproveitando uma pausa feita pelo instrutor, David, apesar de evi‑ tar as lembranças dos acontecimentos dolorosos, revia os fatos, minu‑ ciosamente, como haviam ocorrido e pensou: de que maneira haverei de conhecê-los, já que eu mesmo viverei com outro nome e um corpo físico diferente? Qual será o meu papel diante dela, minha irmã do passado e daquele que a ajudou a deslizar no abismo moral? Daquelas com quem convivi na condição de esposo, pai... E a mentora de quem receberei o apoio necessário, como a identificarei? Percebendo os pensamentos do seu tutelado, o instrutor asseverou: – Apesar de situações dificultosas, não lhe faltará ajuda nos momen‑ tos necessários. Lembro-lhe que, além da mentora, citada há pouco, que atuará pela sua mediunidade conforme a programação elaborada, Bernard, que já se encontra reencarnado, será para você um importan‑ te apoio. Também ao seu lado estará Adrian, que, com uma importante bagagem moral e espiritual, retornou recentemente à Terra, levando no seu programa reencarnatório como principal tarefa a caridade. Se você não falhar nos seus propósitos, será ele um importante aliado


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num determinado momento da sua existência. Na verdade, você não os identificará pelos nomes atuais, contudo, pela sensibilidade mediú­ nica, quando ante a presença dos que deverão permear o seu cami‑ nho, pressentirá sem dificuldade se se trata daqueles que caminharão contigo paralelamente, colaborando nas tarefas redentoras ou se diz respeito aos que serão o seu campo de ação libertadora. Fez nova pausa e concluiu: – Confie naqueles que te apoiarão, contudo, coloque diante das suas ações a luz emanada do amor do mestre de todos nós, que será como um farol a iluminar os seus caminhos no mundo. Ame! Sobre‑ tudo, ame a todos sem distinção. Externe esse amor pela palavra que orienta, pelo gesto atencioso que alegra, pela esperança que conforta, pela paciência que exemplifica, pela caridade que acalenta, pela alegria que levanta o ânimo e, enfim, pela união que estabelece a força para viver e superar as dificuldades. Vá, querido irmão! Confie, sobretudo, em Deus, mas não se esque‑ ça de confiar, também, em você mesmo! Afinal, mesmo quando temos certeza da ajuda constante do alto, a tarefa depende sempre da nos‑ sa ação. David retirou-se do local, já acompanhado por alguns espíritos de‑ signados para ajudá-lo no processo da reencarnação, que ocorreria em breve, na pequena cidade de Antonina, no estado do Paraná. Trinta e dois anos depois o frescor das águas que, dispersas em ondas, tocavam a areia branca da praia, cujo ruído poderia ser com‑ parado a notas da sinfonia harmoniosa da natureza. Sentindo o olor agradável das algas marinhas, Stevens, apesar de ali se encontrar movido pela ideia de suicídio, passou a experimentar uma agradá‑ vel sensação. A sua existência até então, era repleta de desarmonias, notadamente em relação à convivência com os seus familiares e de

Brisa suave soprava levando


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insatisfações consigo mesmo, por causa dos desacertos que causa‑ vam a descrença e a desconfiança nos outros, em si e até mesmo em Deus, o que, certamente, tornavam-no insensível às belezas ostenta‑ das pela natureza. Aquela, entretanto, não era a primeira vez que visitava o lugar, onde, em época de verão, acostumara-se a desfrutar, sem se importar com os cuidados que se deve ter para com os limites do corpo físico e as observações que se deve manter em relação ao cultivo do equilíbrio emocional, por causa do estado de amargura que lhe tirava, para isso, todo o interesse. No entanto, estava sozinho, já que era época de inver‑ no e os frequentadores do costumeiro banho de mar não encontravam atrativos a ponto de motivá-los a estarem ali. Entretanto, observado pela ótica da sensibilidade, a beleza do mar é, em si mesma, um dos maiores atrativos do planeta. Sentou-se numa pedra, de onde intencionava atirar-se nas ondas im‑ petuosas do mar, imaginando que, com a morte do corpo físico, tudo acabaria. Mas com o toque da água resfriada pela baixa temperatura banhando os seus pés a cada onda, as baixas vibrações produzidas pela sua situação psicológica negativa foram esvaindo-se aos poucos, pro‑ porcionando-lhe repentina melhora. Surpreendido com a nova situação íntima, ao constatar que se encontrava realmente só no local, fixou o olhar nas irrequietas ondas do mar e estabeleceu o seguinte diálogo: – Ó ondas! Se não desfruto da simpatia e nem da tolerância dos mais próximos; se não encontro respostas para as minhas indagações; se ainda estou vivo por simples medo de findar a existência, intenção que me trouxe aqui; se não encontro respostas para os meus desatinos e desesperos íntimos, o que me tira a vontade de viver, que me resta então, se não, já que banham carinhosamente os meus pés, ensejando a paz que nunca antes registrei, pedir que me deixem ser seu amigo! Permitam que este ser sem direção e rumo certos sinta por vocês ami‑ zade e gratidão, já que não tem conseguido por qualquer outra criatura humana a não ser a sua mãe.


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Parou por alguns instantes e em seguida prosseguiu imprimindo um tom suave na voz: – Ó ondas! Pela natural singeleza com que vêm a mim, revelem-me algo que possa me convencer da existência de Deus! E se for Ele uma verdade, clamem aos céus por mim, pois eu não sei... Não consegui‑ ria ser ouvido, porque a minha voz, o vento leva sem rumo certo e os meus pensamentos desencontrados não galgariam êxito se dirigidos a uma divindade, pois não despertariam interesse, já que partem de um ser abjeto... Eu mesmo! Parou de falar, ao sentir que lágrimas quentes banhavam as faces. Instantes depois, completou: – Absorvam as minhas lágrimas, pois são elas neste momento o que tenho a oferecer. Mesmo de olhos cerrados, as lágrimas desciam gota a gota, confun‑ dindo-se com a imensidão do mar. Após momentos nesse estado ínti‑ mo, ainda de olhos fechados, percebeu um foco de luz se deslocando nas ondas. Imaginando fosse o reflexo de uma estrela, abriu os olhos e, olhando para o alto, constatou que não se tratava do reflexo de qualquer estrela, pois o sol ainda lançava raios luminosos. Temeroso, ao dirigir novamente o olhar para o mar percebeu que o foco de luz, à proporção que se aproximava dele, tomava a forma humana. Assustado, tentou evadir-se, contudo, as pernas trêmulas não suportando o peso do corpo fê-lo sentar-se novamente onde antes se encontrava. Pôs as mãos nos olhos, tapando-os, mas ainda assim viu a entidade espiritual belíssima se aproximar e com voz suave e bastante agradável dizer-lhe: – Admiras-te de ver uma tênue luz transformar-se em forma hu‑ mana e não crês que haja um Criador de todas as coisas, de todos os seres, inclusive de ti mesmo? Contemplas a beleza do mar com o bailar constante das ondas, mas não consegues buscar, por vias do amor, a condição de apreciar beleza ainda maior, como uma voz materna que, amorosamente, transforma palavras em cântico de amor para saluta‑ res conselhos? Por que afastar a beleza destacável da manifestação de


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amizade dos que tentam de ti se aproximar, já que Deus fala e a sua voz ecoa num coração de mãe, num sorriso de criança, num abraço ou aperto de mão, na ação da caridade, no perdão que reconcilia, na vida em movimento, na beleza da flor e no canto das aves? Em tudo Deus revela o Seu amor! Depois de pequena pausa prosseguiu: – Fala incessantemente pela tua consciência, na qual estão circuns‑ critas as leis eternas e imutáveis. Fez novamente uma pausa e voltou a falar: – Tudo que precisas já se encontra em ti mesmo, que foi criado para a eternidade. Desperta e segue em frente! Ama, e tudo o mais te virá como efeito de causa. Não tema! Eu estarei doravante contigo, pois muitos nos aguardam para o consolo das suas dores morais e Jesus confia em nós. Encorajado e sentindo um bem-estar que ainda não havia registra‑ do naquela existência, apesar de imaginar que se encontrava diante de um fantasma,1 do que tinha muito medo quando criança, pensou, mas antes de perguntar, a entidade espiritual que, por enquanto, a chama‑ remos de Espírito do Mar, respondeu: – Sou apenas um dos mais ínfimos dentre os servidores do mestre de todos nós – falou, dando a entender que estava encerrado o diálogo, mas percebendo que o seu interlocutor demonstrava-se bastante sur‑ preendido com o que ouvia, explicou: – Há vida e trabalho redentor na crosta da Terra, sob ela, acima dela e da superfície às profundezas dos oceanos, sem falar no Univer‑ so, vibrando por inteiro, nas ondas do amor do Criador. Ao dizer isso, a entidade espiritual foi tomando a mesma forma do foco de luz visto antes por Stevens e, aos poucos, foi se afastando e ganhando a imensidão do mar. Acompanhando-a, dezenas de pontos

1 Expressão popular referente a espíritos desencarnados.


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de luz que davam ideia de um cortejo a deslizar suavemente sobre as ondas irrequietas do mar. Ao ver de perto aquela entidade espiritual, mesmo sem haver com‑ preendido o fenômeno, Stevens, bastante impressionado, disse para si mesmo: – Não sei o que significa! Contudo, tenho certeza de que se trata de um ser vivo e que a sua fisionomia não me é estranha. Estava certo o seu pensamento, pois se tratava da mentora espiri­ tual a qual o instrutor se referira, conforme narrado anteriormente. Até aquele momento, na presente existência, Stevens ainda não ha‑ via despertado, mesmo em forma de intuição, sobre qualquer vestígio a respeito da vida espiritual. Contudo, ao deixar o local, estava con‑ victo de que as imagens que se delinearam bem aos seus olhos, eram, sim, uma prova de que a vida prosseguia após a morte do corpo físico. Depois de ter caminhado por mais ou menos meia hora, sentindo o frescor da água nos pés, percebeu vindo em sua direção um homem aparentemente de meia-idade, mas de barba e cabelos longos, já em‑ branquecidos, contrastando com a pele avermelhada, provavelmente efeito das longas exposições aos raios solares. – Boa tarde! – cumprimentou-o alegremente, como fazem os que já cultivam uma amizade e, estendendo a mão, continuou falando: – Bem-vindo a este recanto que nos inspira recolhimento e paz. – Sim... É mesmo! – respondeu Stevens, reticencioso e sem muito ânimo, pois naquele momento preferiria continuar a sós com os seus pensamentos. Mas, ainda assim, perguntou: – O senhor deve gostar muito daqui, não é mesmo? – perguntou por causa da baixa temperatura que os termômetros assinalavam na‑ quele dia, excepcionalmente na praia. – Diria que é tudo para mim! O mar e os seus mistérios, ainda não completamente sondados. O jovem gostando do que ouvia, travou o diálogo a seguir: – A que mistérios o senhor se refere?


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– A tudo que ainda não conhecemos, pois quando desvendamos, deixa de ser visto como algo misterioso. – O senhor costuma vir aqui, até mesmo durante o inverno? – Estou sempre aqui, porque moro bem ali – apontou com a mão. – Esse local é muito desolado, excepcionalmente nessa época de frio. – Não há obstáculos para quem se deixa conduzir pelas rédeas do amor. Sou amante das águas e o mar é a minha vida, pois principal‑ mente nele é que me inspiro a ponto de sentir a presença do Criador. Bastante surpreendido com o que ouvia daquele homem, a quem não atribuiria qualquer indício de cultura, por causa da simplicidade da roupa com a qual se vestia, como fazem os que ainda tentam julgar pela aparência, continuou o diálogo: – O senhor acha, mesmo, que há algo além de nós? – Assim como visualizamos a imaginária linha do horizonte, sem que exista materialmente; como sentimos o ar que respiramos, mas que não pegamos com as mãos, dentre outros, podemos sentir Deus, desde a nossa intimidade, gerando pensamentos, despertando senti‑ mentos... Criando e nutrindo a vida e conservando-a em equilíbrio por meio de leis eternas; o movimento dos astros e a interligação dos mun‑ dos pela sinfonia universal do seu amor. Não foi o homem quem criou o mar, essa incomparável beleza que contemplamos e, sobretudo, a vida que nele é mantida. Se não foi o homem, pergunto jovem, quem, se não Deus? O pescador silenciou dando ensejo ao entendimento do jovem vi‑ sitante, mas este, sem ainda ter alcançado o sentido real do que ouvia, ficou a pensar: – Ora, se isso fosse possível, não seria assim a minha vida, sem perspectivas de melhora das minhas reais necessidades íntimas, sem encontrar o caminho para tentar mudar a mim mesmo. Sem falar no mundo, que pede socorro para não se degenerar de vez, assim como o processo a que me deixei arrastar até sentir a vida assim como estou. Depois desse pensamento, vendo o pescador mirando, admiravel‑


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mente, os reflexos das primeiras estrelas, no vai e vem das ondas, Ste‑ vens interrompeu-o: – Por que, então, esse suposto Deus é incapaz de amainar, por exemplo, o sofrimento, às vezes sem trégua, em tanta gente que sequer imagina o porquê? O pescador respondeu com um sorriso característico de um íntimo em paz: – Somos livres para agir, contudo, respondemos pelo resultado das nossas ações. Tudo começa pelo pensamento, no qual surge a vontade e esta, alimentada, toma feição de desejo que, bom ou ruim, acabamos por satisfazê-lo. É justamente aí onde estamos semeando livremente. Mas a colheita obrigatória nos mostra que, quando estamos vivendo em paz, alegres e positivamente satisfeitos, provavelmente plantamos o bem. Da mesma forma, quando o viver não é satisfatório por causa do sofrimento, podemos afirmar com segurança que a semente não foi bem selecionada e acabou produzindo a dor, a tristeza... O sofrimen‑ to, em geral. Para ser mais claro, como todo efeito origina-se de uma causa, resulta o bem ou o mal, a depender da qualidade moral da ação. Stevens, embora relutasse, começou a compreender que as suas desilusões e a revolta que portava no íntimo poderiam ser efeitos. Mas onde estariam as causas? – Perguntou e logo o pescador assim se expressou: – Se você não as identifica e tem certeza de que não ocorreram na atual existência, é possível que pela necessidade da reencarnação es‑ tejam esquecidas. Mas na verdade, se há efeitos que lhe agradam ou desagradam, eles são seus, pois significam colheita do que foi semeado pela sua própria vontade. Depois de pequena pausa, o diálogo prosseguiu: – Se erro, então – falou o jovem – é possível que a causa seja a falta de conhecimento. Ora, se sou ignorante de determinadas coisas ou si‑ tuações, como ser castigado por algo que ainda não sabia fazer melhor? – Não se trata de castigo, e sim de reparo. É, sem dúvida, um sábio


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mecanismo de educação ou reeducação. Mesmo porque, não nos falta a necessária ajuda, já que Deus estabeleceu todos os recursos para o nosso crescimento em Suas leis imutáveis, as quais se encontram circunscritas na consciência, medidora dos nossos atos. Sem esquecermos de que às vezes a ajuda esperada nos chega por meio de quem nunca antes ima‑ ginamos! O canal pode ser qualquer um de nós, que vivemos ainda no corpo físico, ou muitos que já o perderam pelo fenômeno da morte. – O senhor quer me dizer que os mortos podem nos prestar serviços? – Mortos não, porque a vida é perene. E o ser, que é imortal, pros‑ segue além do túmulo portando no íntimo os resultados do que tenha feito de si mesmo. Stevens silenciou pensando no fenômeno que havia há pouco pre‑ senciado e quis saber: – Espíritos? Onde ficam eles, já que comumente não os vemos? – No mundo espiritual... Podem ser encontrados em toda parte... Aqui mesmo, em volta de nós, ouvindo a nossa conversa; sobre ou em‑ baixo das irrequietas ondas do mar, onde também há atividades ine‑ rentes ao crescimento moral, despertando cada vez mais a consciência. Percebendo que Stevens ficara pensativo, o pescador sugeriu que caminhassem um pouco e depois de percorrerem alguns metros, apon‑ tou sorrindo; – Eis ali o lar, o meu doce lar! Stevens olhou na direção apontada e não conseguiu esconder o es‑ panto, facilmente visível no semblante. Era uma casa com paredes de taipa e cobertura composta de palhas de palmeira. – O senhor não tem família?– perguntou o jovem depois de consta‑ tar que não havia ali mais ninguém além deles. – Tenho uma enorme família, pois cada ser que eu encontro é para mim um irmão. – Como consegue manter esse sorriso como se fosse feliz, sem uma companheira, filhos... Alguém para amar e dividir as emoções? – Penso que para cultivar o amor a ponto de se sentir feliz, mes‑


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mo sendo de grande importância, não é indispensável estar acom‑ panhado de parentes consanguíneos, já que o ideal é amar a todos como a nós mesmos. E quando isso nos ocorre, jamais nos sentiremos solitários. Acaso, estou só neste momento? E você não é meu paren‑ te consanguíneo! O jovem visitante, depois de refletir por alguns minutos, lamen‑ tou entristecido: – Eu, no entanto, tenho uma família e me sinto só desde a infância! Era a primeira vez que Stevens, jovem de trinta e dois anos, mas que ainda não havia realmente sentido a vida, ouvia conceitos seme‑ lhantes. A sua família composta por pessoas que faziam do interesse material o único sentido da vida, hostilizava-o pelo fato de ele, desde a infância, demonstrar que o seu pensamento não convergia com o dos demais. Sentindo-se deslocado, estranho e inseguro no próprio lar, não conseguia firmar-se em algo que lhe proporcionasse uma perspectiva de vida, quer pelo estudo, que abandonou antes de completar o curso que almejava, quer pelo trabalho junto ao pai e demais irmãos, descul‑ pando-se por achar que não se daria bem com eles, pois não haven‑ do afinidade se tornaria difícil o necessário entendimento. Sem meios para compreender o porquê de assim ser tratado, aderiu, aos poucos, ao menosprezo por si mesmo, até perder por total a autoestima. Assim é que, desesperado, deliberara dar fim à própria existência, intenção que o havia conduzido à praia. Entretanto, as ondas impetuosas do mar agitado, que poderiam tê-lo levado, trouxeram a visão espiritual em forma de socorro, provando que nunca estamos sós, mesmo quan‑ do nos deixamos arrastar pelo desespero.

considerado por ele fatal, por causa das suas intenções, havia despertado cedo, com os insultos dos irmãos e a dureza do pai, que não aceitava qualquer tipo de explicação ou simples argumento que não fosse a sua vontade. Ao chegar à sala, onde todos se encon‑

Naquele dia,


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travam para o café da manhã, percebeu na fisionomia do pai o visível desagrado ao vê-lo se aproximando. – Quero aproveitar essa oportunidade – falou Orlando autoritário – para lhe dar um ultimato: ou começa, hoje mesmo, a trabalhar conosco, ou segue o destino dos que nada querem. Chega de alimentar e dar vida boa a quem, como você, não quer nada! Estou cansado de prestar satisfação aos amigos, que insistentemente procuram explicações sobre o seu com‑ portamento! Será que não dá para perceber que os seus irmãos acatam a minha vontade? Eles terão a sua recompensa por me obedecerem e esta‑ rem comigo trabalhando! Você, já que não quer seguir a minha orientação, busque o seu próprio rumo! Cuide da sua vida, longe dos meus olhos! Stevens, sem qualquer reação, por saber desde criança dos modos brutais do pai, principalmente quando sentia sua vontade ameaçada, ouviu-o em silêncio, sob a satisfação e o riso zombeteiro dos irmãos e a conivência da mãe, já que nada dissera em sua defesa. Quando deu o primeiro passo para sair, parou ao ouvir novamente a fala do pai: – Não terminei ainda de falar! Fique sabendo que a culpa de você me trazer essa contrariedade é de Stela, que relutou em aceitar a minha orientação. Acho que eu estava adivinhando! Caso contrário, você se‑ quer estaria aqui, agora, a tirar a minha tranquilidade. Mesmo sem alcançar o real sentido do que Orlando dissera, para Stevens a revelação foi como uma condenação. Sentindo-se um intruso na família, o jovem saiu porta afora, convicto de que não valia a pena continuar vivendo.

Ali, no entanto, que a atenção do pescador lhe agradava, percebia que

era a primeira vez que alguém conversava sem censuras pelo seu modo de proceder, sem perguntar absolutamente nada em referência ao que ele pensava ou fazia. Dessa maneira, sem vontade de se afastar do pescador, as horas foram passando e quando se deu conta já era bem tarde. Mas per‑ cebendo a sua repentina inquietude, Juvenal, o pescador, disse-lhe a sorrir:


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– Se quiser pode ficar. Não é confortável para quem experimenta, pela primeira vez, a dureza de uma cama de tábuas. Para mim, no en‑ tanto, que estou acostumado, é bastante agradável! Stevens respondeu com um sorriso sem muita graça, pois estava com o íntimo afetado pela tristeza: – Se não for incômodo... Apesar da falta de conforto a que estava acostumado, Stevens, lon‑ ge dos insultos dos irmãos e das censuras constantes do severo pai, logo que ajeitou o corpo numa posição menos incomodativa adorme‑ ceu e, em sonho, assim acreditava, via o pescador como se estivesse duplicado: o corpo físico em sono profundo na cama, mas ao mesmo tempo em pé a sorrir na sua frente. Vendo-o, sentiu-se impactado! No‑ tando, o pescador falou com firmeza: – Há nessa situação um pouco de semelhança com o fenômeno da morte do corpo físico. A vida, independentemente daquele fardo ma‑ terial – falou apontando para o corpo físico de Stevens que continua‑ va em sono profundo –, prossegue, porque é imortal. Por agora, você ainda não consegue compreender esse fenômeno com clareza, porque se encontra dormindo. Não me refiro ao corpo físico, mas sim a você, espírito. Tudo tem a sua melhor hora! Essa hora não está longe – falou estendendo a mão: – Venha comigo! Ao segurar a mão do amigo, o jovem sentiu-se leve. Em vez de passos, começaram a dar saltos de vários metros. Impressionado, ao chegar à pedra onde horas antes estivera, perguntou: – Por que o meu corpo está assim tão leve? – Não imagine que é, apenas, por você estar, como eu mesmo, se‑ midesligado do corpo físico, pois só a tristeza que você dá guarida em seu íntimo seria o suficiente para sentir a sensação de peso, mesmo em corpo espiritual. O pescador soltou a mão do jovem amigo e sugeriu: – Agora tente dar o mesmo salto!


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Ele tentou, mas sequer conseguiu tirar os pés da pedra. Sem en‑ tender, dirigiu um olhar interrogativo e o pescador, a sorrir, estendeu a mão: – Segure-se aqui e tente! Stevens percebeu que estava no ar e gritou: – Socorro, me ajude, vou cair! O pescador, rindo alegremente, ao tocar os pés no chão, explicou: – Fundimos a nossa vibração e, já que sem qualquer tristeza ou con‑ trariedade, com o íntimo leve e suave, como me sinto nesse momento, pude dividir com você e você comigo. É lógico que à proporção que você se sentiu mais leve, eu me senti um pouquinho mais pesado. Deu para compreender? – Acho que... sim. Subiram no mais alto da pedra e o pescador sugeriu: – Vamos pular na água? – Não! Eu, além de não saber nadar, não estou mais com a ideia de suicídio! Juvenal riu à vontade da atitude temerosa do novo amigo e, em seguida, procurou acalmá-lo: – Experimente! Não precisa saber nadar e sim ter vontade... Querer mesmo! Venha! – falou estendendo a mão e em instantes encontravam-se nas profundezas da água fria do mar, o que é normal durante a estação de inverno na região onde se encontravam. Stevens não cabia de surpresas e admiração naquela aventura, em que se deslumbrava com as belezas da paisagem marítima e os peixes, desde os de tamanho minúsculo aos enormes, que passavam por eles descontraidamente, o que despertou a curiosidade do visitante, que apesar de amedrontado, quis saber: – Eles são assim mesmo mansos? – Não! Eles não nos enxergam! – São desprovidos de visão? – Não, Stevens! Estamos em corpo espiritual, que é composto de


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matéria mais sutil. Não são apenas eles que não conseguem nos ver. Qualquer pessoa em estado de vigília, também não, a não ser quem já desenvolveu a vidência. Nós estamos, neste momento, em relação à vida material, em outro plano. – Mas aqui não é o mar? – Não há lugar definido para se viver. Acalme-se e logo você compreenderá. Soltou a mão do jovem amigo e depois de deslizarem no líquido, cuja temperatura não lhes causava sensação de frio, o pescador inter‑ rompeu as observações de Stevens: – Pense em algo alegre ou resultado de uma boa ação, já que o bem gera o bem. – Bem... Eu acho difícil focalizar algo assim! – Não tenha pressa. Depois de alguns minutos ele disse: – Oh! Eu havia esquecido de mãe Madá. Ela é a única pessoa que até agora me traz recordações alegres. Instantes depois, vendo-o concentrado em um determinado ponto, perguntou-lhe: – O que você está vendo? – Pontos fluorescentes. O que é isso? – Vida perene. – Quem, então? – São espíritos que buscam o seu despertar, desenvolvendo des‑ de as mais simples às mais elevadas atividades, de acordo com a sua capacidade. – E isso é mesmo verdade?! – Você está vendo ou desconfia de si mesmo? O homem, ao perder a autoconfiança, não faz por merecer o crédito de outrem. Depois de uma pausa para reflexão, o diálogo continuou: – Que fazem eles, então? – quis saber o jovem. – Não há como especificar em poucas palavras, porque se trata de uma


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grande dessemelhança no nível evolutivo, consequentemente, nas ativi‑ dades, levando em conta a capacidade de cada um, como disse há pouco. Percebendo que o jovem amigo prosseguiria perguntando, ele, en‑ tão, concluiu: – Por agora, você ainda não entenderia, pois, o conhecimento pode ser comparado a uma construção: Pedra sobre pedra... Interromperam o diálogo para ouvir um cântico de rara beleza, cuja voz, cheia de doçura, exteriorizava a nobreza de um sentimento puro e cheio de vibração amorosa. Stevens aguçou a audição perispiritual e pôde ouvir um pequeno trecho da composição musical, que dizia: – Bem-vindos sejam ao eterno labor Dos que veem o trabalho Como ação do amor... Demasiadamente emocionado, o jovem visitante do mar voltou ao cor‑ po físico e acordou. Não se lembrava de todos os detalhes, contudo, jamais esqueceria a beleza daquela voz em tom feminino que acabara de ouvir. A pequena casa não se encontrava totalmente escura, porque os raios do clarão da lua penetravam por falhas do teto de palha. Assim, dirigiu o olhar em direção à cama do pescador, que também acordado perguntou-lhe: – Gostou do passeio? – Do sonho, quer dizer? – Sonho verdade! Percebendo que o jovem amigo enchê-lo-ia de perguntas, mas que não se encontrava, ainda, na condição de compreender por causa do seu estado emocional, sugeriu: – No momento oportuno, conversaremos sobre isso. Vamos aproveitar o sono, porque ao amanhecer de cada dia tenho muito o que fazer. O dia, ainda amanhecendo, Juvenal, o pescador, empurrou uma canoa até a água e seguiu para a sua costumeira pescaria. Mais tarde, já com os raios do sol aquecendo a vida, Stevens despertou ouvindo


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a voz do pescador a cantarolar alegremente. Levantou-se e ao ver a canoa repleta de peixes, perguntou admirado: – O senhor pesca todos os dias e consegue resultado como este? – Às vezes até mais do que isso. – Vende-os? – A maior parte, não. Curioso para saber como vivia aquele homem do mar em quem notara tanta sabedoria, Stevens continuou perguntando: – Que faz então com eles, já que aqui não tem condições de guar‑ dá-los? – O alimento é para saciar a fome. Guardado, nada valerá. Se esti‑ ver disposto a me ajudar, saberá logo, logo o que faço com eles. Depois de pequena pausa, completou: – Os que podem, pescam ou compram. E os que não podem pescar ou comprar? A necessidade grita mais forte, meu filho! Venha comigo a um mundo que você, certamente, não conhece! Stevens ajudou Juvenal a retirar os peixes da canoa e colocá‑ ‑los em um velho carro de madeira. Logo que concluíram, o pesca‑ dor perguntou: – Vai comigo? – Sim! E por que não? Não é apenas empurrar o carro e fazer entre‑ ga dos peixes? – A cada dia, o seu próprio labor, disse o mestre dos mestres. A lição é ampla, podendo ser entendida de variadas formas. Na minha pouca capacidade de compreensão, penso que, embora nos pareça uma repetição o que fazemos todos os dias, nunca é igual, mesmo que cumpramos os mesmos deveres, seguindo a mesma trilha. Surpresas podem ocorrer e mudar o que denominamos de rotina. Depois de fixar o olhar em direção ao jovem amigo, voltou a perguntar: – Você está disposto a me acompanhar, mesmo correndo o risco de não ser compreendido pelo meio social em que vive?


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– A essa altura dos acontecimentos e diante dos desgostos e das de‑ cepções sofridas, não tenho mais o que temer. Afinal, que é empurrar um carro cheio de peixes ante a possibilidade de um suicídio, como era ontem a minha intenção? Seguiram empurrando o carro que, pesado, rangia sobre a areia da praia. Uma hora depois entravam em uma rua, a qual Stevens conhe‑ cia, pois era onde residia. Surpreendido, porque não imaginava passar por ali, seguiu cabisbaixo, sem olhar em volta, pois lhe faltava coragem para encarar as pessoas conhecidas... Vizinhos, por exemplo. Notando, Juvenal sugeriu: – Você é um ser livre. Se quiser, é só usar a liberdade e não fazer o que sugiro, mas o que o seu íntimo pede. – Meu íntimo pede ceder ao temor, mas acho que devo me discipli‑ nar. Há liberdade sem disciplina? O pescador respondeu sorrindo: – Há libertinagem. Seguiram em frente, mas antes de dobrarem a primeira esquina, um veículo, que vinha em direção, fê-los encostar o carro rangedor junto ao meio fio da calçada, para dar passagem. Mas para surpresa, o veículo parou bem ao lado e o motorista saiu rapidamente, se diri‑ giu a Stevens e sem nada dizer esmurrou-o com tanta ferocidade, que logo ele caía com o rosto ensanguentado. O pescador segurou-o pelos braços e ajudou-o a se sentar no chão. Em seguida, voltou-se para o agressor, que já havia retornado ao veículo e disse-lhe: – Toda ação, meu filho, gera uma reação. Experimente, em vez do ódio, um pouco de amor! Talvez isso lhe torne mais alegre e confiante na vida. – Olha só – falou zombeteiro se dirigindo a uma jovem que tam‑ bém se encontrava no veículo – quem quer me dar conselho! Um po‑ bre ignorante! O pescador, calmo e seguro de si, respondeu: – Sábios verdadeiros assim são considerados porque antes apren‑ deram a respeitar e, principalmente, a amar. Quem ama, não agride.


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Quem sabe, em vez de censurar o que ainda ignora, ensina-o, princi‑ palmente, com o bom exemplo! Em seguida voltou-se para Stevens e perguntou: – Conhece-o? – Ele é meu irmão. – São, assim, desunidos? – Sim. Mas nunca antes me agrediu fisicamente. Acho que sentiu vergonha de mim, por eu estar empurrando o carro. – Odeia-o? – Agora, ainda não posso responder, porque estou sentindo dor. – Ainda quer ir comigo? – Sim. Vou de espontânea vontade, porque jamais faria algo contra o que desejo, conforme a minha família quer. – Então, por favor, teste a sua força empurrando sozinho o carro! O pescador notara, sem dificuldade, que o jovem amigo se encon‑ trava raivoso e com sentimento de vingança depois de ter sofrido a agressão. Assim é que sugeriu que ele empurrasse sozinho o carro, para dar vazão aos sentimentos negativos que se deixara acometer. Nisso, ele era mestre, pois acostumara a contrariar a sua própria von‑ tade quando achava que deveria discipliná-la. Tanto estava certo que, depois de quarenta minutos, já chegando ao destino, Stevens parou o carro, olhou para Juvenal e disse: – Acho que o esforço eliminou a contrariedade causada pelo meu irmão. – Já pode perdoá-lo? – Ainda não sei responder. Acho que preciso de mais tempo. As‑ sim conversando, deram-se conta que haviam chegado, por causa da algazarra das crianças que se aproximavam. Em poucos minutos a car‑ ga do velho carro de madeira, que custou horas de pescaria, já havia sido distribuída. Juvenal, percebendo o estado psíquico do jovem amigo, retirou-se para reunir os moradores numa rápida conversa, à guisa de orien‑


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tação, deixando-o propositadamente para que ele, por si só, per‑ cebesse o mundo da dificuldade e do sofrimento que ele havia se referido. Stevens, depois de olhar em volta, com os olhos esbugalha‑ dos, exclamou: – Nunca imaginei existir o que vejo! Eles parecem mais mortos do que vivos! Era um quadro de pobreza extrema, de tal maneira que causava, sobretudo, compaixão. Ainda paralisado, na mesma atitude de espanto, percebeu que vi‑ nha a passos lentos em sua direção uma adolescente com um vaso nas mãos. Aproximou-se e disse com inibição: – Moço, o seu rosto está sujo de sangue. Quer lavá-lo? Apesar da nossa carência, essa água é limpa e o vaso também. Ele recebeu, lavou o rosto e ela, então, estendeu novamente a mão: – Quer enxugar? Parece toalha, mas é apenas um paninho de tecido usado para fazer saco. Mas também está limpo. Depois de enxugar o rosto com o pano à guisa de toalha, Stevens dirigiu o olhar ao rosto da jovem e depois de contemplá-lo por alguns instantes, disse-lhe: – Você é linda, menina! Grato pela sua gentileza. Se eu puder ser útil... Foi interrompido: – Já foi, quando aceitou a minha pequena ajuda, pois eu imaginava que a recusaria. – Como é o seu nome? – Helenice. Sentindo-se repentinamente atraído pela jovem, disse-lhe: – Não esquecerei o seu gesto gentil e agradável. Logo que Helenice saiu, a garotada começou a se aproximar do novo visitante, dando início a uma série de perguntas: – Você me dá uma bola? Outra lhe perguntou:


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– Você me dá uma sandália? Olha como meus pés estão sujos de lama! Você pode me arranjar um caderno para eu aprender a escrever? A cada pergunta expressa pela voz da necessidade, ele dizia sim, mesmo sem imaginar como iria atender aos pedidos, pois, como vi‑ mos, havia saído da casa dos pais e não dispondo de nenhum re‑ curso, sabia que não deveria atender, apenas, os que pediam, mas a todos. As crianças alegres com a nova esperança de receberem o que haviam pedido foram saindo uma a uma. Quando Stevens imaginou que ficaria a sós para refletir o que via no momento, se aproximou uma garotinha de sete anos, mas tão raquítica que aparentava apenas cinco. Depois de permanecer alguns minutos parada em sua frente olhando-o, perguntou: – Você chora quando não come? – Acho que só quando eu era bem pequeno, porque não sabia falar. Agora não, porque eu sempre... A criança interrompeu-o: – Pois eu não sou mais pequenininha, sei falar, mas ontem eu cho‑ rei o dia todo. – Passou todo o dia sem nada comer?! – Hoje eu vou comer, porque mamãe vai cozinhar o peixe e fa‑ zer pirão. – Você tem pai? – Mamãe diz que eu tenho um pai, mas ele foi embora antes do meu nascimento. Stevens cobriu o rosto com as mãos, mas não impediu que as lágrimas rolassem rosto abaixo. Nascera e crescera num lar onde o melhor que existia na época era ostentado pelo prazer da família de demonstrar as possibilidades que desfrutava, como destaque na so‑ ciedade em que vivia. Ele, que deixava para trás todo conforto e fa‑ cilidade, por não aceitar a valorização individual, tão somente pelo que possuía, ali se encontrava diante de tantos que desejariam muito, estar no seu lar.


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A menininha ficou olhando para ele e quando percebeu que ele enxugava as lágrimas, falou: – Acho que você não comeu ainda hoje e por isso está chorando. Venha! Vou pedir a mamãe para dividir a minha comida com você. – Não é preciso, porque eu não estou com fome. Como é o seu nome? – Xandinha. – Esse é o seu apelido. Deve ter um nome verdadeiro. A criança saiu correndo. Instantes depois, voltou já falando: – Mamãe disse que o meu nome é Sandra. – Muito bem, Sandrinha... – Não! – protestou ela – me chame de Xandinha! Eu gosto. – Está bem. Eu não quero que você chore tanto assim por não ter o que comer. Prometo que vou secar as suas lágrimas provocadas pela fome! O pescador foi rápido com a habitual orientação que dava aos mo‑ radores do lugar, por entender que a necessidade fala mais alto. E os estômagos vazios reclamavam o peixe, que ainda seria cozido. Vendo­ ‑o, Stevens se aproximou cabisbaixo: – Nos conhecemos desde ontem e sequer perguntei o seu nome. – Juvenal, todo ao seu dispor. – Eu gostaria de saber se o senhor pode me ensinar a pescar. Eu preciso, urgentemente, ganhar algum dinheiro! – Tem certeza de que não deseja retornar ao seu lar? – Talvez ainda queira. Contudo, não devo! – Não se preocupe! Conforme a afirmação popular, onde um come, dois comem – falou, como sempre, sorrindo. – Pela sua expressão de bondade e generosidade, sabia que essa seria a sua atitude para comigo. No entanto, eu acabei de assumir um compromisso e desejo cumpri-lo sem falta! Percebendo que o pescador ficara curioso, mas por discrição não quis perguntar de que se tratava, falou do diálogo que tivera com a menina e concluiu:


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– Acho que o objetivo me fará perder o medo do mar e esquecer até que não sei nadar! Juvenal, experiente no mar, passou a falar do encanto das águas, mas também dos perigos constantes que enfrentam todos aqueles que se propõem a sobreviver da pescaria.

Stevens, Gildo ligou o veículo, comentando com Cecília, a namorada, no interior do carro: – Onde já se viu tanta vergonha?! – Quem é esse homem e o que ele fez para despertar em você tanto ódio, a ponto de agredi-lo de maneira tão brutal?! – Sinto-me constrangido em dizer que aquilo é meu irmão. – E você o agride de forma tão violenta? Por que isso, Gildo? – Posso tolerar esse idiota empurrando um carro para vender pei‑ xes? Isso dá a entender que somos pessoas péssimas! Nem vou comen‑ tar isso em casa para evitar que a minha mãe ou o meu pai morra de um ataque cardíaco. Instantes depois parou o carro numa rua sem movimento, pôs a mão por baixo do banco, pegou alguma coisa e falou mostrando a Cecília: – Eu estou muito nervoso. Preciso dar algumas baforadas. Ao perceber que o namorado aderira ao uso da maconha (nome popular da erva cannabis), Cecília, que pertencia a uma família conser‑ vadora dos bons costumes, sentiu-se decepcionada: – Gildo, eu quero ir para minha casa, agora! Momentos depois, ele parou o veículo e Cecília falou enquanto le‑ vantava para sair: – Foi bom enquanto durou. Eu não posso continuar com você. Para isso, eu teria, de qualquer jeito, de aderir aos seus hábitos. No entanto, eu quero algo melhor para minha vida! Gildo, raivoso, bateu com a mão fortemente no volante, disparan‑ do a buzina do carro, o que chamou a atenção do pai dela, o doutor. Depois de agredir


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Mário, médico particular da família de Orlando, que havia chegado recentemente ao lugar. Vendo o veículo sair a toda velocidade e zi‑ guezagueando pela rua afora, dirigiu um olhar cheio de interroga‑ ção à filha, e ela então narrou, sob o olhar espantado do pai, que a interrompeu: – Fez muito bem! Lamento pelos pais dele, que são por demais cui‑ dadosos com a aparência e com o conceito perante a sociedade. Quanto a você, distância! Gildo chegou a casa, com a fisionomia transtornada. Além do efeito da droga, o ódio do irmão, a quem atribuía o término do namoro com Cecília, dava-lhe uma feia aparência. Percebendo, Stela, a mãe, per‑ guntou aflita: – Você está bem, Gildo? – Não, mãe, eu não estou bem. Encontrei Stevens! – Encontrou-o? Que bom! Eu estava muito preocupada, imaginan‑ do que ele tentaria contra a vida. Onde ele se encontra? – Nem é bom a senhora saber. Fiquei tão revoltado que acabei es‑ murrando-o! Talvez, só assim, ele crie vergonha! – Gildo, você agrediu seu irmão em público?! Que falta de compos‑ tura! Não vou poder, por um bom tempo, ir ao clube. Tenho certeza de que logo, logo todo mundo ficará sabendo desse ato vergonhoso! – Ato vergonhoso é Stevens empurrando um carro velho de madei‑ ra para vender peixes pela rua. – Não me diga! Isso é ultrajante! – falou já se retirando para o quarto. A família gozava, realmente, de alto conceito pelos bens que osten‑ tava. Orlando era proprietário de uma grande casa comercial, e conhe‑ cido na cidade, como “o milionário”. O valor pessoal estava restrito ao que tinha e, assim, não primava pela qualificação inerente aos valores morais e espirituais. Não se importava com o sofrimento ou dificul‑ dades alheias, a ponto de proibir os empregados da casa, doarem, até mesmo, restos de comida aos necessitados que, de quando em vez, se aproximavam da mansão. A proibição não se prendia, simplesmente,


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aos restos de comida, que de qualquer maneira acabariam indo para o lixo, mas, sobretudo, para evitar que essas pessoas se aproximassem da casa, uma mansão de alto luxo. São atitudes provenientes de quem se deixa arrastar pela frieza de coração, tornando-se insensível e incapaz de assinalar a presença do amor. Anestesia a consciência, acreditando-se às alturas, de onde, mais tarde, terá que tombar sob o peso da própria consciência que, apesar de parecer na citada situação aparentemente insensível, não deixa de agir, chamando-o aos brios pela decepção proveniente do rebaixamen‑ to social e pela dor moral, para emergir, depois de anos ou séculos de duras lições, em exigentes processos educativos impostos pela justiça divina, quando poderia observar com interesse a indicação do mestre: Amai ao próximo como a si mesmo.

de chegar para o almoço. E não vendo a esposa, perguntou por ela a Madalena, serviçal da casa. – Há algumas horas, ela entrou para o quarto e de lá não saiu até agora. Ele se dirigiu ao aposento e, ao ver Stela na cama, deitada, pergun‑ tou surpreso: – Oh! Stela, você está doente? – Pior do que isso. Você não imagina o que está acontecendo! Fez pequena pausa para dar mais conotação ao fato e falou revelan‑ do tristeza na voz: – É Stevens! Orlando, que também imaginava que o jovem havia se suicida‑ do, pediu: – Prossiga. Seja o que for eu estou preparado para ouvir. Stela repetiu o que ouvira de Gildo, que sob a emoção desequilibra‑ da pelo ódio, acabara exagerando. E quando ela finalizou a narração, Orlando disse raivoso:

Orlando acabava


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– Pensei que ele havia dado cabo à própria vida, mas é algo bem pior! – Que desgosto! – desabafou ela. – Desgosto, Stela? Isso é uma desonra! Além dos clientes, que pen‑ sarão as pessoas do meu círculo de amizade ao tomarem conhecimento desse ultraje? Esse rapaz não deveria fazer parte de nossa família! A culpa é sua, e você sabe por que eu estou dizendo isso. Mas de qual‑ quer jeito, ele será abortado da família e da sociedade da qual faze‑ mos parte. – Que pensa fazer, Orlando? – Chamá-lo aos brios. Se não resolver, deserdá-lo-ei e o mandarei para bem longe daqui. Se não quer aderir aos nossos costumes e não obedece às minhas ordens, aqui não ficará. Quanto mais longe, melhor! – Isso não! Ele é parte da nossa família! Acho que você não entende a extensão do meu sentimento! – Stela, isso é poético! Ilusão esse amor, desde quando ele mesmo não se adapta à família. Quer ser assim, vai de vez e assunto encerrado! – Então, os sentimentos de dona Camila, sua mãe, para com você era só algo poético? O empresário calou-se. Mas se tratando de uma pessoa por demais vaidosa, seria difícil remover a ideia, porque quando ele decidia, mes‑ mo sabendo estar errado, não admitia sugestão. O orgulho encontrava­ ‑se sempre à frente das suas decisões. Agia assim com rigor, entretanto, não era um bom exemplo de pai. Na ambição de ter sempre mais, não acompanhou o crescimento dos filhos, principalmente nas fases em que eles precisavam de orientação, apoio e dedicação amorosa. Além de Stevens e Gildo, o casal tinha mais três filhos: Gino, Gilza e Geilza. Apesar de todo rigor com que tratava os filhos, em relação ao trabalho, as filhas eram, desde criancinhas, tratadas por ele com toda condescendência, sem nada exigir, nem proibir. Bastava: eu quero! – dizer uma. Dê-me! – dizer a outra, para conseguirem o que desejavam. Agora, já adultas, nada faziam, a não ser marcar presença em festas e


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passeios. Geilza, no entanto, era mais comedida. Não se sentia bem em casa, porque além da família, residiam, também, há bastante tempo, espíritos desencarnados e odientos que cobravam, a seu modo, débitos morais contraídos em existências pretéritas. Gilza, no entanto, chegava em casa a hora que queria, sem dar qualquer satisfação à família. Os dois rapazes, Gino e Gildo, para ganharem a confiança do pai e adqui‑ rir tudo que desejavam, cumpriam fielmente as suas ordens no setor do trabalho. Fora dele, mantinham um comportamento reprovável em relação aos bons costumes. Já Stevens, que desde a pré-adolescência se sentia amargurado, sem que nada lhe agradasse no próprio lar e sem saber identificar essa aversão aos familiares, culpava-os do mal-estar que sentia, o que mais tarde transformou-se em uma profunda antipatia. Sem se dar conta de que estava sendo usado como instrumento de discórdia, causada por espíritos desequilibrados e odientos, discordava de tudo e de todos, o que gerava um ambiente de desentendimento e choques emocionais, dificultando o ensejo da paz, indispensável a todo lar-escola dos espí‑ ritos que retornam pelo processo da reencarnação. Mas as causas não eram apenas essas. Remontavam às existências anteriores, conforme veremos no decorrer da história.

enquanto a família se entregava à revolta pela decisão de Stevens, ele buscava reequilíbrio emocional, experimentando viver sem conforto, mas longe da ganância pela riqueza e, principalmente, da influência dos espíritos que na casa residiam, pois vinham eles tra‑ balhando nesse sentido desde que identificaram Stevens, cuja ligação com aquela família fora, por decisão própria, tomada durante a prepa‑ ração para a presente reencarnação. Com o propósito de ajudar a menina Sandrinha, a sua pequena amiga, e prestando toda atenção às orientações de Juvenal, como faz um bom aluno, Stevens, em poucos dias já entregava o produto da sua

Assim é que,


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pesca em uma peixaria, criando as condições necessárias para manter com seriedade o amparo que havia decidido à sua tutelada. Entretanto, quando a sensibilidade é despertada no íntimo, não fica restrita. A menina, por causa do amparo que dele recebia, já se destaca‑ va das outras crianças. Isso foi percebido por ele numa manhã quando distribuía, com Juvenal, o produto da pesca àquela comunidade. Logo que chegou, a primeira pessoa a se aproximar dele foi justamente a menina, que parecia outra criança. Com aspecto saudável e bastante risonha foi correndo abraçá-lo. Atrás dela, as outras crianças, como sempre, malvestidas, tristes e de aspecto doentio. O jovem pescador recebeu aquela diferença como um impacto e perguntou-se: – Será que eu estou certo ajudando apenas essa menina? E as ou‑ tras, não são também crianças necessitadas? Seu pensamento foi interrompido quando uma garotinha se apro‑ ximou e perguntou-lhe: – Por que você não gosta de mim? – Eu gosto muito de você e de todos daqui! – respondeu surpreendido. – Você só gosta da Xandinha. Vá embora! – falou e se reti‑ rou chorando. – Que faço? – perguntou a si mesmo, enquanto se afastava do local. Parou embaixo de uma árvore e imediatamente lembrou-se de Es‑ pírito do Mar e, de repente, passou a se sentir alheio àquele ambiente onde se encontrava. Em desdobramento, viu-se na praia, sentado na mesma pedra. Do meio das ondas, surgiu a mesma entidade espiritual, que se aproximou e disse-lhe: – Ame a todos por igual. Faça o que puder, sob a orientação dos seus melhores sentimentos. Isso lhe ocorreu em fração de segundos. Embora não compreen‑ desse o fenômeno, ao retornar ao corpo físico, impressionado, afirmou para si mesmo: – Sim. Farei tudo que estiver, realmente, ao meu alcance, tentando alargar esse novo sentimento para com os mais necessitados.


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– Pensativo? – perguntou o pescador ao vê-lo, ainda, na sombra da árvore. – Sim. Acho que o senhor é, também, responsável por esse novo estado íntimo que experimento. – Também?! E quem mais além de você mesmo? – Espírito do Mar. – Oh jovem amigo! Use o livre-arbítrio, se ainda não cultivou o propósito de mudar para melhor! Se esse não é o ideal dos seus senti‑ mentos, e se por acaso não se sente capaz de ultrapassar as barreiras, siga o que, por enquanto, o seu coração – ou sentimento – pede. – O meu coração ainda pede, por assim me expressar, paz, alegria e muita ventura! Mas a razão me leva a outra realidade, que é a discipli‑ na. Falo como muitos se expressam: Por enquanto, vou levando! – Enquanto for levando, tente observar o amor. – Como posso saber se estou amando? – Quando sentir interesse pelo outro; quando for capaz de perdoar, orar pelos que lhe caluniam e usar bons sentimentos para com os su‑ postos inimigos. – O senhor é um sábio! – Oh! Não se engane, pois essas palavras não são minhas! São do maior, do melhor e mais sábio espírito que já passou por este plane‑ ta: Jesus. – Onde o senhor viu isso? – Quando chegar à casa lhe mostrarei a perfeita expressão da fonte da sabedoria. Mas, voltando ao assunto, digo ainda que saberás quan‑ do por um impulso do amor, for capaz de voltar e, sob outra ótica, rever os seus familiares e de um a um, pedir que lhe perdoem. Juvenal, antes de Stevens, mantinha encontros com Espírito do Mar por meio do desdobramento. E por isso já sabia a causa e a importân‑ cia da convivência do jovem pescador com aquela família. Stevens, no entanto, não retinha ainda condições de assimilar isso como uma ver‑ dade. Tanto que assim se expressou:


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– Não estou entendendo, seu Juvenal, pois acho que são eles que devem fazer isso! – Você ainda está se achando vítima. É mais uma boa tarefa que tem pela frente. – Acho, realmente, que ainda está longe da minha compreensão. – Digo-lhe que esse dia não está tão longe assim, como você pen‑ sa. Não sou adivinho, contudo, percebo facilmente as tendências das pessoas. Fez uma pequena pausa e voltando o olhar ao jovem ami‑ go, continuou: – Se o alpinista ao verificar a altura da montanha se sentir incapaz de escalar, dificilmente chegará ao pico. Mas sendo outra a sua im‑ pressão, poderá, pacientemente, começar por uma menor, até se sentir capaz de atingir o pico do seu ideal, assim como para construir uma casa deve-se manter a devida paciência, colocando tijolo sobre tijolo, observando atenciosamente como está fazendo, para que a construção tenha mais solidez. Do mesmo jeito, meu filho, são todas as coisas boas que adquirimos, com o objetivo de melhorar o nível de vida. Por ainda não saber nadar, no primeiro dia que foi à pesca a sua reação não foi de medo? – Senti até dor de barriga! – respondeu sorrindo. – E agora, ainda dói? – Oh, não! – Então, não olhe inicialmente para o pico da montanha. Olhe pri‑ meiro a base e tente ir até onde se sentir capaz. Persistindo, quando se der conta já estará no limiar das suas realizações, e terá construído em si mesmo um homem novo nas atitudes, novo nos sentimentos e na compreensão. Novo na amizade, no amor ao próximo e, enfim, novo na expressão da pura alegria. Parou de falar por alguns instantes e em seguida concluiu: – Siga em frente. Jesus espera por todos nós! Assim conversando, quando se deram conta já se encontravam no‑


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vamente na praia. Juvenal entrou em casa, abriu um velho baú de ma‑ deira, pegou um livro e falou estendendo a mão: – Aqui se encontram os recursos que lhe facilitarão a aquisição da coragem e do entusiasmo por toda forma do bem a ser praticado. Vendo-o curioso, o pescador quis saber: – Já viu esse livro alguma vez? – Não. Stevens fora criado e educado longe de qualquer princípio religio‑ so. Por isso mesmo, ainda se encontrava como uma lâmpada apagada a ideia de Deus na sua mente e, como também, da vida após a morte do corpo físico. Confiante nas intenções de Juvenal, ao abrir o Evangelho para começar a ler, caiu de dentro dele uma fotografia. Ele pegou-a e enquanto estendia a mão para entregá-la a Juvenal, comentou: – Que fotografia bonita! Parece que o casal estava muito feliz no momento em que ela foi feita! – Realmente estava. É pena que não perdurou! – Algum parente? Juvenal estendeu a mão e sugeriu, devolvendo a foto ao jo‑ vem amigo: – Olhe-a minuciosamente! Stevens respondeu depois de observar, por mais ou menos, cin‑ co minutos: – Não consigo identificar! Mas tenho a impressão de que pela ex‑ pressão do olhar e o sorriso, parece muito com o senhor! – Foram dias venturosos! – O senhor me disse que não é indispensável a presença de fami‑ liares para conquistar a felicidade! Mas aqui, nessa fotografia, parecia estar muito feliz! – Felicidade relativa, porque a verdadeira, só com a iluminação e a perfeição. – Por que os dias venturosos, como disse há pouco, não prossegui‑ ram até agora?


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– Ela desencarnou. – Amava-a muito? – Amo-a do mesmo jeito, pois para o amor não há distância. A pre‑ sença do ser amado é constante no íntimo. Afinal, a morte, como mui‑ tos pensam, não se configura com a realidade, pois se trata, apenas, de uma mudança. – Desculpe-me seu Juvenal, por ter penetrado nesse assunto, que é íntimo e só seu. – Se para falar sobre o amor fosse necessário pedir desculpas, Jesus, ainda agora, estaria se desculpando perante todos nós! – falou sorrin‑ do alegremente e em seguida perguntou: – Não vai ler um pouco, para ver se gosta? Depois de dez minutos de leitura, Stevens deu a sua impressão: – Em poucos dias vou ler tudo isso, porque pelo que percebi, ele é ótimo! – Não deve! Esqueceu o que falei há pouco sobre a montanha? – Se ele é fonte de bons conhecimentos, não tenho que ler para conhecer? – Ler, simplesmente, não! É preciso estudá-lo. Não aprende, real‑ mente, quem apenas memoriza sem se dar ao esforço da compreensão, da aceitação como verdade e da prática, transformando-o em páginas vivas. Creio que se você quiser realmente mudar, este livro terá que lhe acompanhar toda essa sua existência... Se aplicar esforço, pois há mui‑ tos que vivem longos anos na Terra e não conseguem pôr em prática, por completo, as luminosas lições do Divino Senhor. – Toda a minha vida?! – perguntou cheio de admiração e exclamou: – É muito difícil! – Lembre-se, jovem Stevens: Pedra sobre pedra! Essa é a ordem usada na construção sólida. Stevens fechou o livro e perguntou: – Quem é realmente o senhor? Se o pescador pudesse relembrar da existência anterior na Inglater‑


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ra, responderia: – Sou Bernard! Você me conhece! Bernard ou Juvenal, não importa o nome. Fato é que ali se encon‑ trava o mesmo espírito, que além da busca da sua própria redenção, integrava o programa reencarnatório de Stevens, que na existência an‑ terior chamara-se David. Contudo, depois de pensar por alguns ins‑ tantes, o pescador deu uma resposta lógica: – Perante Deus, ninguém melhor e nem pior do que os outros. Mas um dia desses aí pela frente, se você tiver interesse e paciência de ou‑ vir, contarei a minha história, apesar de não achá-la atraente, pois para ser interessante preciso voltar, ainda, muitas vezes a esse mundo. – Voltar, de que jeito? Percebendo a descrença expressada pelo seu interlocu‑ tor, arrematou: – A construção ainda não chegou ao ponto certo. É preciso ir mais acima, para que haja a devida compreensão. Dito isso, trataram de dormir. Afinal, antes do amanhecer de todos os dias, eles já se encontravam no labor da pesca.


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Capítulo 2

Impiedosa perseguição A meta do orgulho é o sofrimento. Dizzi Akibah

O dia, embora frio, amanheceu ensolarado, com lufadas de vento, que

balançando os galhos das árvores e movimentando flocos de nuvens, formava um quadro, que só a ação da natureza – reflexo da vibração amorosa do Criador – consegue. Cantarolando, o pescador, acompanhado por Stevens, deixava a palhoça para, mar adentro, proceder como sempre, à pescaria. Depois de horas de mar agitado por fortes ondas, retornavam, trazendo com alegria, o produto do seu labor. Stevens foi à casa buscar o carro de madeira. De volta, antes de se aproximar do local onde Juvenal o aguardava, percebeu vindo em sua direção, um grupo de homens. Momento depois, os componentes do grupo se aproximaram, rodearam-no como se quisessem intimidá-lo e um deles perguntou: – Conhece um pescador chamado Juvenal? – Que desejam do bom homem? – Responda o que eu estou perguntando, sem comentários!


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– Sim, conheço-o. Ele está lá naquela canoa – falou apontando na direção. – O mesmo homem ao se aproximar do pescador, foi logo perguntando: – Você é... – Se procuram por Juvenal Bueno Olivença – interrompeu o pesca‑ dor – sou eu mesmo. – Precisamos saber onde você reside. Prontamente, o pescador seguiu na frente e eles o acompanharam em silêncio, que só foi interrompido quando já chegavam à palhoça: – Eis aí meu lar doce lar! – falou Juvenal sorrindo, sem se preocupar com as fisionomias carrancudas dos visitantes. – Temos ordem para demolir isso aí, que você chama de lar. No en‑ tanto, por hoje, você fica apenas notificado e ciente de que em quarenta e oito horas deve deixar esse lugar. A praia é de todos e, assim sendo, ninguém deve se apropriar para morar. Assine aqui – ordenou enfático. O pescador recebeu o documento, leu, releu e, apesar de ter notado a impaciência do grupo, respondeu, conservando a mesma tranquili‑ dade de sempre, gerada pelo constante equilíbrio emocional: – Não devo assiná-lo – respondeu Juvenal, depois de ter explicado que o documento não tinha originalidade, pois não se tratava de uma ordem judicial, e sobre a condição do terreno, que pertencia à Mari‑ nha, concluiu: – Só ela, por meio de uma decisão judicial, pode me retirar desse lugar onde vivo há mais de trinta anos. – Sem justificativas e nem comentários. Eu não estou pedindo, e sim ordenando que assine isso, agora! – Já esclareci as condições legais para tal. Por isso mesmo, repito que não devo assiná-lo. Depois de proferir palavras provenientes do ódio e da prepotência, o homem ordenou: – Cassetete nele!


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– Agrediram-no com tal covardia, que o pescador acabou tombando na areia da praia, ensanguentado e com muitos hematomas pelo corpo. – Agora levante e assine o documento! – Prefiro continuar deitado, pois se eu me levantar, vocês me fa‑ rão tombar de novo. Melhor mesmo é prosseguir onde estou, pois não aprendi a concordar com injustiça. Onde campeia a falta da verdade, encontram-se os que atrapalham o estabelecimento de uma justiça in‑ corrupta e consequentemente, da paz desejável. – Cale-se e trate de assinar esse documento se ama a sua vida! – Minha vida é uma expressão de Deus. Ameaças não me intimidam, porque sei que não morrerei. Matem, se desejam o meu corpo físico, mas ainda assim eu estarei existindo. Se não assino um documento fora da lei, enquanto me encontro no corpo físico, imaginem fora dele! Enquanto isso ocorria, a maré começou a subir e o vento a soprar for‑ temente, formando ondas enormes, o que ocorria mais acentuadamente naquele local, e de repente uma delas cobriu-os rapidamente, deixando-os molhados e assustados. Um deles de nome Virgílio, mas que o apelida‑ vam de Maluquinho, porque ouvia vozes, hora ameaçando-o hora acon‑ selhando-o (médium clauriaudiente) deu alguns passos em direção da água e extasiado, passou a ouvir um cântico tipo solfejo, cuja voz revelava rara beleza. Enquanto os seus companheiros, mesmo assustados, esbrave‑ javam, ele continuava estático e imóvel, como se fosse uma estátua. – Vamos embora! – falou um deles que, em seguida, dirigindo-se a Juvenal, sentenciou: – desapareça daqui, em quarenta e oito horas! Vendo Virgílio ainda parado no mesmo lugar, gritou: – Vamos, Maluquinho! Vai ficar aí plantado na areia? Porque Virgílio não reagiu, se aproximaram e deram-lhe empur‑ rões, mas ele não reagiu à agressão e passou imediatamente a falar: – Toda ação gera reação do mesmo nível. Por acaso alguém aqui é proprietário dos mares, das águas e dos fenômenos da natureza? Se algum de vocês criou o que está em volta, seja o primeiro a reclamar a sua posse. Meus queridos irmãos, dominem a fera que mantêm dentro


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de si, para que o primitivismo não assuma pela brutalidade e feroci‑ dade o domínio das suas vidas, levando-os à violência e, consequente‑ mente, a um processo educativo rigoroso pelo sofrimento. Parou por instantes e em seguida prosseguiu: – Mirem-se na atitude pacífica desse homem, amante das águas, que agredido não reagiu com a mesma ferocidade e, apesar das dores causadas pelos ferimentos, não perdeu a sua paz, riqueza que jamais será tomada de assalto pelos ladrões ou consumida pela ferrugem, como nos indicou Jesus, o mestre de todos nós. – Enlouqueceu de vez! – falou um deles e passou a gritar: – acor‑ da, Maluquinho! Virgílio abriu os olhos e perguntou calmo: – Já vamos? É pena que vocês não pudessem ouvir o que me dei‑ xou extasiado! – Ouvir as suas maluquices? Só um maluco igual a você mesmo. Antes de sair do local, Virgílio, vendo o pescador sentado na areia, com o rosto ensanguentado, se aproximou e dando-lhe as mãos, incen‑ tivou-o: – Levante-se amigo! – e em seguida, entrou na casa, pegou uma toalha e limpou o sangue que escorria dos ferimentos causados pela agressão. Assustados com a agitação do mar, os componentes do grupo se‑ guiram, tentando se equilibrar dos tombos que recebiam, a cada onda que chegava à areia. Enquanto isso, Stevens, alheio ao que estava acontecendo, tirou os peixes da canoa, colocou-os no carro e ficou esperando a maré baixar para seguir para casa, onde se encontrava o amigo, quando se viu no‑ vamente rodeado pelos homens: – De quem são esses peixes? – perguntou o que comandava o grupo. – Fruto da nossa pescaria, senhor! – Tem licença para pescar? – Não tenho conhecimento de que isso seja necessário.


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O homem pôs a mão dentro do carro, revirou os peixes, escolheu os que queria e falou : – Este são meus. E vocês não os querem? – Senhor, esses peixes serão distribuídos com pessoas famintas, o que fazemos constantemente. Creio que o senhor não esteja necessi‑ tando, já que tem os seus próprios recursos – explicou com equilíbrio e bondade, ao perceber a tamanha insensibilidade do agressor. É possível que, se isso ocorresse antes das orientações que Stevens buscava no Evangelho, a sua reação fosse outra, idêntica à que ocorre entre pessoas que se sentem ofendidas, sem o valioso recurso do equi‑ líbrio emocional. No presente caso, a lição do perdão já começava a fazer parte integral das ações cotidianas do jovem pescador. – Não machuco essa sua boca malfalante – respondeu raivoso – para não perder a gratificação que espero receber. Do contrário... Stevens deu como resposta, o silêncio. Contudo, Virgílio, incomo‑ dado com a impertinência e desonestidade do companheiro, tentou acalmar os ânimos: – Peço que deixe o rapaz em paz com a sua pescaria. Não é para matar a fome de alguém? – De novo não, Maluquinho! Aqui quem manda é eu! Ou você se esqueceu disso? Apesar do alerta de Virgílio, ele seguiu levando os peixes, que se‑ riam distribuídos à comunidade da invasão... Uma refeição a menos para quem sentia a tortura do estômago vazio. Stevens chegou à casa e foi tomado de surpresa ao ver o amigo pes‑ cador limpando o rosto com a toalha já ensanguentada e a sua primeira reação foi pedir desculpas: – Estou certo de que isso só ocorreu por causa da minha presença aqui. Penso que deve ser ação do meu pai, que imagina poder com‑ prar a todos com o seu dinheiro, que acaba se tornando sujo em mãos ambiciosas. Vou providenciar remédio para fazer os curativos dos fe‑ rimentos. E logo que o senhor estiver bem, deixá-lo-ei. Embora doa-me


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tomar essa atitude, ela é justa e correta, pois não é certo que o senhor passe por esse tipo de vexame por minha causa. Depois de instantes em silêncio, explicou: – A minha família está se sentindo diminuída e bastante envergo‑ nhada pela minha decisão e o meu pai, por exemplo, o chefe, conforme se comporta em casa para com todos, não deixará facilmente de defen‑ der o seu orgulho por um filho que considera a vergonha e o ultraje da sociedade, onde ele se movimenta em alto pedestal. O pescador depois de ouvir, atentamente, o desabafo do jovem amigo, disse-lhe: – Lembro-me agora de uma passagem no Evangelho, em que Jesus disse a Pedro que doravante ele seria pescador de almas. Não que eu queira me comparar ao apóstolo. Mas seria difícil para mim, diante dessa colocação do mestre, deixar escapar da rede do meu coração uma alma que tento pescar para posteriormente, juntos, conquistarmos a ri‑ queza do conhecimento, da experiência pela prática, para, mais adian‑ te, estabelecermos no modo de ser a paz na consciência e com a ação do amor, buscarmos a alegria de viver. Fez uma pequena pausa, levou a toalha mais uma vez ao rosto, pois o sangue ainda fluía dos ferimentos e concluiu decidido: – Sozinho você não irá! Iremos juntos, já que a amizade que nos une já formou um forte laço, sem possibilidade, no momento, de ser desatado. Diante da lealdade e da bondade do pescador, Stevens sentiu pro‑ funda alegria ao se certificar de que não estava só. Tinha um amigo e isso lhe era muito valioso. Juvenal, mesmo com rosto inchado, com hematomas e ferimentos que lhe doíam bastante, não perdeu o seu bom humor e falou sorrindo: – Por agora, empurremos o nosso rangedor carrinho e vamos sa‑ ciar estômagos vazios que torturam a tantos quando falta o pão de cada dia. Dois dias depois, o mesmo grupo, com exceção do componente que


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se chamava Virgílio, chegou para expulsá-los, mas a casa estava vazia. Percebendo isso, um deles falou maldosamente: – Quando não vai por bem, pancada resolve. Estava enganado, uma vez que a decisão tomada pelo pescador foi proveniente da ligação de amizade que já havia cultivado para com Stevens. Horas depois, Ezequiel, o suposto líder do grupo, procurava o contratante da tarefa para dar conta do ocorrido: – Seu Orlando – disse ele garboso, com ar de vencedor – tarefa cumprida! Eles sumiram de lá. – Eles quem? – O pescador e o rapaz! Não foi esse o acerto? – Sim. Mas para onde foram? – Isso não fazia parte da tarefa que acertamos. Mas apesar disso, eu me empenhei e busquei essa informação. Mas isso vai depender do seu interesse em me gratificar pelo novo serviço. – Por causa de uma informação, você quer mais dinheiro do que isso tudo aqui?! Ezequiel, com os olhos arregalados, tomou bruscamente o dinheiro da mão de Orlando e pôs imediatamente no bolso. Estavam certas as suspeitas de Stevens em relação ao pai. – Bem – prosseguiu o diálogo – o senhor até que é um pouco generoso. Por agora, eu só sei que os peixes pescados por eles são distribuídos entre pessoas necessitadas, que residem naqueles casebres à margem da estrada. – Com aqueles miseráveis? São eles outra vergonha para a nossa cidade, porque quem chega é a primeira coisa que vê. Fique de olho nos dois e mui‑ to mais no rapaz. Quanto aos favelados, eu mesmo vou dar um jeito de tirá -los de lá, para bem longe da cidade. Acho que pobres não deveriam viver! Ezequiel sentiu-se ofendido: – Senhor, não chegue a tanto! Será que pobre não é gente?

Quando Juvenal

e Stevens chegaram ao local da distribuição do pes‑


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cado, todos, surpreendidos, queriam saber quem teria maltratado o pescador, pois não poderiam imaginar uma agressão a quem dedica‑ va, amorosamente, a sua vida aos mais necessitados. Logo que sou‑ beram, em detalhes, o que ocorrera, decidiram construir, ali mesmo, outra palhoça para os dois amigos. – Agradeço por esta gentileza, e vamos aproveitar o bom ânimo e construir, também, mesmo de taipa e teto de palha, um salão para funcionar como escola – pediu Stevens. A ideia foi vista com grande alegria. Dias depois, ouvia-se um coro cantarolando músicas folclóricas. Homens, mulheres e crianças can‑ tavam alegremente, enquanto amassavam o barro com os pés, cons‑ truindo, não apenas uma palhoça, mas, sobretudo, o sonho de dias melhores para os seus filhos. Rapidamente, o espaço já estava pronto para a finalidade desejada. Banquinhos rústicos de pedaços de troncos de árvores e uma velha mesa era o principal mobiliário. Mas, lá, as crianças poderiam entrar mesmo descalças, como andava a maioria e sem a exigência da tra‑ dicional farda usada nos colégios. Pronta a escola, Stevens e Juvenal passaram a permanecer muitas horas no mar, pois além da costumeira doação, precisavam de mais peixes para serem vendidos para a com‑ pra do material escolar, o essencialmente necessário. Empolgado com o seu projeto, Stevens perdeu totalmente o receio das perseguições e ameaças do pai e, dispensando a companhia do pescador, passou a empurrar sozinho o carro contendo peixes para entregá-los em uma peixaria, localizada bem perto da casa comercial de Orlando. Con‑ tudo, isso durou pouco, pois dias depois, ao chegar para fazer mais uma entrega, o proprietário do estabelecimento comercial foi taxativo: – Recebo os peixes, hoje, porque não pude avisar com antecedên‑ cia. Mas doravante, não mais me convém comprá-los de sua mão. Stevens percebeu que os caminhos escolhidos para traçar a sua vida estavam sendo interditados pelo seu próprio pai. Mas ao receber o pagamento das vendas que fizera, a alegria para ele fora tamanha,


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que sequer registrou em seu íntimo qualquer desapontamento. E, em vez de seguir para a comunidade carente, empurrou o carro até a li‑ vraria e lá comprou o material escolar. Uma hora depois, chegava com o sorriso de quem sai vitorioso numa importante conquista. Naquela mesma semana, a escolinha, toda enfeitada de bandeirolas feitas pelas crianças com folhas velhas de jornais, fora inaugurada. Stevens pescava pela manhã e, à tarde, lá estava ele sob o teto de palha da escolinha que, por unanimidade dos moradores, passou, mesmo contra a sua vontade, a ter o seu nome. Enquanto isso ocorria naquela comunidade, que também recebeu um nome, passando a se chamar Vilarejo Pescador Juvenal, do outro lado, o chamado “do poder”, registrava-se o seguinte diálogo: – Ó grande comerciante, a que devo essa honrosa visita? – Prefeito – falou Orlado enfático, sem se importar com os elogios do político – só mesmo um assunto de grande importância para a cida‑ de e mais diretamente à sua administração, me tiraria das ocupações que sou submetido diariamente. Fez uma pequena pausa e foi ao assunto que lhe interessava: – A nossa cidade, graças a sua eficiência – falou tecendo elogios para ser agradável – tem ganhado muitas obras, o que a vem deixando embelezada. Entretanto, há algo que precisa ser urgentemente obser‑ vado. É a sua entrada! Vendo que o prefeito não estava alcançando a sua intenção, fez no‑ vamente uma pausa e em seguida foi taxativo: – Ora, será que ainda não percebeu que aquelas choupanas, à mar‑ gem da estrada e próximas à entrada da cidade, são um péssimo cartão de visitas? – Observei e não discordo. Contudo, o município não dispõe de recursos para construir casas para aquela gente... – Casas?! Para aqueles miseráveis? – interrompeu contrariado. O prefeito, insatisfeito pelo descaso feito pelo visitante em relação ao ser humano, explicou:


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– Esses que você chama de miseráveis com tanto menosprezo, são como nós mesmos filhos de Deus, pessoas honestas e trabalhadoras, que perderam o emprego numa propriedade de plantio de café. Soube em con‑ versa com o mais idoso dentre eles, que já havia muitos anos que residiam na propriedade onde trabalhavam, até quando o proprietário morreu. O herdeiro, ao assumir, desalojou a todos, deixando-os sem atividade e ao relento. Sem destino certo e à procura de atividade para a sobrevivência, acabaram chagando aqui. Como a agricultura do município está em baixa no momento, eles acabaram na pobreza extrema em que se encontram. Que você quer que eu faça, diante de uma situação tão delicada? – Que acabe com aquilo ali, mandando-os para bem longe! Chega de vergonha! O político não concordou com a ideia, por achá-la impiedosa e bas‑ tante maldosa, o que não condizia com os seus costumes. Mas, embora sentisse vontade de chamá-lo aos brios, calou-se por lhe faltar condi‑ ções, já que durante a campanha política aceitara ajuda financeira do visitante e sentia-se preso, sem poder usar a liberdade, tanto de ação quanto de expressão. Contudo, isso não lhe forçava a fazer o que o empresário desejava. Já no Vilarejo, àquela altura, a esperança robustecia o bom ânimo dos moradores, há tanto tempo abatidos pelas dificuldades e sem pers‑ pectivas. Além das crianças que frequentavam a escolinha, os adultos, por sua vez, estavam sendo alfabetizados no turno da noite, por Juve‑ nal, sob a luz de velas e candeeiros. No sábado, o salão era usado para outros tipos de atividades: Stevens conversava com os moradores so‑ bre a importância dos mais elementares cuidados com a saúde. O pes‑ cador, por sua vez, tratava de assuntos ligados à vida, como um dom de Deus, o relacionamento em prol de uma convivência harmoniosa e, sobretudo, a finalidade da vida, para a qual, Deus nos criou.


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Capítulo 3

Novas investidas Agir com maldade é tecer a própria desventura. Dizzi Akibah

impacientemente pelo prefeito, no sentido de atender à sugestão de expulsar os moradores do Vilarejo, tratou, ele mesmo, de resolver o problema. De informação a informa‑ ção, acabou descobrindo a quem pertencia a propriedade onde se lo‑ calizava as choupanas, sem se dar conta da extensão da mesma. Dias depois, se encontrava tratando do assunto com herdeiros do antigo proprietário, quando soube que se tratava de uma grande propriedade e que o valor ultrapassava as suas expectativas. Contudo, não desistiu. Tendo isso como ponto de honra – assim erradamente imaginava –, acabou levantando um grande empréstimo bancário, em Curitiba, com altos juros, depois de dar como fiança a própria casa comercial, esforço empreendido, simplesmente, para afastar dali o jovem pescador. Orlando, depois de aguardar

Stevens estava saindo à tardinha da escola quando percebeu que He‑

lenice, a mesma adolescente que lhe oferecera água para lavar o rosto,


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depois da agressão que havia sofrido do próprio irmão, Gildo, se diri‑ gia ao local. Esperou em pé na porta, pois havia conseguido para ela, na casa de uma tia, uma atividade doméstica e desejava saber da sua adaptação nas novas tarefas. Logo que ela se aproximou, ele alegrou-se por vê-la bem-vestida e com outra presença. Ela, que antes vivia cabis‑ baixa e triste, estava com outro semblante. – Boa tarde, Stevens – cumprimentou-o com um belo sorriso e tra‑ tou logo de externar o seu sentimento de gratidão: – Vim lhe visitar, principalmente, para agradecer a oportunidade de trabalho que me foi proporcionada por você. Estou estudando e gostando tanto que penso em não parar, enquanto puder, é claro! – Oh! Nice, parabéns! Você, além de tudo que acabou de me dizer, o que me deixa muito alegre, está muito bonita! E o relacionamento com a minha tia Almerinda? – Ela é uma pessoa muito simples e bondosa! Disse-me que gostou muito de mim, e que se eu continuar com ela, vai me ajudar muito, para continuar estudando. E é isso que desejo, pois embora seja grata a Deus e a você, pela oportunidade, não pretendo permanecer toda a minha vida como empregada doméstica. Não que isso desonre quem quer que seja, pois já entendo que o trabalho dignifica o ser humano! Mas simplesmente porque pretendo ir mais além. – Muito bem, Helenice! Prossiga com firmeza, certa de que nada me deve, a não ser a sua amizade, que por sinal me faz muito bem. – Ter sua amizade – respondeu ela – é a realização de um sonho, que teve início desde o dia em que tomei coragem e lhe ofereci a água para lavar o rosto, receosa, imaginando que você não iria aceitar. – Seria algo muito desagradável recusar a sua gentileza, o que ja‑ mais faria! Helenice, de repente, mudou o tom e falou entristecida: – Apesar dessa minha satisfação em revê-lo, infelizmente, eu trago um assunto que não é nada agradável. Falou sobre a compra da propriedade por Orlando e da entrada na


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justiça, do pedido de desocupação e Stevens, surpreendido, perguntou: – Como soube disso? – Madalena que trabalha na casa dos seus pais, disse-me que ouviu numa conversa do seu Orlando com dona Stela. – Saber disso, embora desagradável e preocupante, é muito im‑ portante. Contudo, não devemos nos conduzir pela aflição, porque se passarmos por isso, mesmo que não se trate de um merecimento, é sem dúvida uma oportunidade de aprendermos a manter o equilíbrio, mesmo em situações difíceis. Falar em situação, você está melhor do mal-estar constante que sentia? – Sinto, ainda, mas com menos intensidade, desde que comecei a fazer um tratamento numa casa espírita, onde fui levada por sua tia. – Tia Almerinda, na casa espírita?! – perguntou surpreendido. – Soube, lá, que a causa é espiritual. Disseram-me que são débitos do passado, que precisam ser quitados. Bem dizem que a justiça divina não falha. Mas apesar de estar me sentindo bem melhor, ainda ouço alguém falando em outro idioma e repete sempre a mesma palavra, a qual eu não conheço. – Como é a pronúncia da palavra? – É assim:”misereibo”! (miserable, em inglês) – Você deve ter vivido em um país, cujo idioma é o inglês. Mui‑ to interessante. – Mas eu ouço, muito mais, em português. Ameaçam-me, acusam­ ‑me de coisas absurdas que eu teria feito contra eles. Contudo, já foi muito pior, porque, agora, do grupo que era formado por mais de dez, restam apenas cinco. Os outros já foram doutrinados e o meio para isso foi a minha mediunidade. No começo, eu ia à casa espírita pensando, tão somente, em meu próprio benefício. Mas, ao compreender o amplo sentido do amor ao próximo, resolvi servir a todos com dedicação e vontade firme, de acordo com as minhas possibilidades. – Sempre que puder, apareça para me falar sobre esse assunto, que muito me interessa. Estou conhecendo a doutrina espírita, teoricamen‑


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te... por meio do estudo. Mas já que só aprendemos praticando, como afirma seu Juvenal, farei isso logo que organizar as minhas atividades e sobrar tempo. Creio que isso se dará em breve! – Virei sim! E que, na próxima vez, os assuntos sejam bem mais agradáveis do que os de hoje, porque acho que você merece viver mais alegre. Sem mais palavras, foi saindo, mas Stevens, que se sentia atraído pela jovem, perguntou: – Já vai, assim sem se despedir? Com as faces coradas, ela se aproximou tímida. Mas depois de rece‑ ber dele um abraço, tão alegre ela se sentiu que seguiu a passos lentos pelo caminho, sorrindo de tudo e para todos que encontrava. Afinal, não poderia ser diferente, pois eles não estavam se identificando, mas intimamente se reconhecendo, pois se tratava de Anny, que fora espo‑ sa de David (atualmente Stevens), na Inglaterra, na existência passada, quando dilapidou os bens materiais do esposo até levá-lo à falência. Era uma mulher orgulhosa, que não se afinava com pessoas cujas pos‑ sibilidades financeiras fossem consideradas abaixo das que ela fazia questão de ostentar. A vida sofrida que experimentava na atual exis‑ tência era, apenas, um meio pelo qual vinha combatendo o orgulho e o egoísmo. Já o problema da obsessão, se tratava do efeito dos maus­ ‑tratos contra dezenas de empregados da empresa comercial do espo‑ so, que, ainda desencarnados, cobravam-lhe, odientos, as ofensas do passado. Anny, vivendo agora como Helenice, teria que buscar pelo próprio esforço os meios necessários para a sobrevivência. Mas apesar disso, poderia abreviar o prazo do resgate, já que a misericórdia divina concedeu-lhe a sensibilidade mediúnica, para com ela servir, não ape‑ nas aos inimigos espirituais, por se tratar de um dever diante da lei de causa e efeito, mas, sobretudo, a todos em nome do amor.

Logo que a jovem

visitante saiu, Juvenal se aproximou de Stevens:


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– Imaginei que a visita lhe traria satisfação. Contudo... – Sim, não há dúvida! Porém, o que eu acabei de saber... Não deixa de ser preocupante. Depois de deixar o amigo informado sobre o assunto, concluiu: – Penso que ele vai desalojar toda essa gente só por minha causa. Melhor é que eu saia daqui o mais rápido possível. – Não seria por medo, essa fuga? – Em parte sim, pois não posso imaginar a reação dos morado‑ res diante de tal conflito, que poderá não ocorrer se eu não estiver mais aqui. – Ora, Stevens! Se ele agora é o legítimo proprietário, com ou sem você aqui certamente expulsará a todos! Penso que nessas oportu‑ nidades, só a calma e a oração poderão abrir o caminho, por onde trilham a paz e a concórdia. Apesar disso, convém nada falarmos aos moradores. – Que o senhor acha de um pai que age de tal maneira? – Meu jovem amigo, dar opinião sobre o foro íntimo de alguém não deixa de ser uma maneira de prejulgá-lo! E eu lembro sempre de Jesus, que nos recomendou não julgarmos. Costumamos achar que sempre estamos certos e nos sentirmos vítimas, quando muitas vezes pende‑ mos muito mais para o algoz. – O senhor pensa assim em referência a mim? – Cada filho tem os pais que merecem e os pais, os filhos que preci‑ sam, já que a justiça divina é infalível. Há casos, porém, em que espíri‑ tos bem-intencionados se propõem, a bem do seu crescimento moral, a renascer numa família e, mesmo sem qualquer laço de afinidade, ex‑ perimentam com paciência, compreensão e amabilidade as diferenças que, se o seu objetivo não dispusesse da força do amor, certamente fracassariam na tentativa de colaborar com o desenvolvimento da paz, por meio da convivência sadia e respeitosa, em que se estabelece os laços inquebrantáveis do amor. – Tenho muito que aprender!


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– E eu também – respondeu sorrindo Juvenal e, tentando mudar de assunto, para, talvez, despertar bom ânimo no jovem amigo, voltou ao início da conversa: – E a menina como está? – Helenice? Dá para perceber que se encontra com outra aparência! – A mais importante mudança talvez você não haja percebido: É o seu estado psíquico. – Sim! Ela soube que se trata de problemas espirituais. É possível mesmo, isso? – O amor une e proporciona, dentre outros, alegria de viver. En‑ quanto o ódio liga, periodicamente, e provoca desarmonia. – Esse assunto me atrai por demais. Gostaria de conhecer, na práti‑ ca, as atividades da doutrina espírita. – Seria útil e muito importante. Mas será que você está preparado para a reação, já que cerca de oitenta por cento da população dessa cidade é católica ou adotam as reformas luteranas? Não seria você ta‑ xado novamente de ovelha negra? – perguntou, testando a personali‑ dade do jovem amigo. – Ovelha negra ou branca, tosada ou sem tosa, já não me importa mais o que acham do meu jeito de ser. Juvenal se aproximou e falou, abraçando-o satisfeito: – Enfim, você começa a se despojar das correntes convencionais para libertar a sua individualidade. Você, Stevens, é único no Uni‑ verso, pois não há outro igual. Se vivermos observando e acatando as opiniões alheias a nosso respeito, passaremos a fazer o que os outros querem e não o que é melhor para nós. Vá em frente, porque há muito a ser feito. Porém, o mais importante não é apenas realizar, mas, sobre‑ tudo, como realizar. Stevens ouvia as palavras do amigo com a avidez de quem recebe a água quando está sedento. Afinal, desde que se afastara da família, vinha deixando para trás equívocos e hábitos que não condizem com a verdade, motivado pela necessidade que sentia de buscar outros va‑


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lores, como consta no Evangelho, que os ladrões não roubam e que a ferrugem não destrói.

ensolarada, vento brando perpassando, balança‑ va suavemente a folhagem das árvores. Nesse bem-estar que a natu‑ reza faculta a quem se deixa conduzir pela sensibilidade para com o belo, Stevens se dirigia à escolinha, assoviando alegremente, para mais uma vez conviver com as crianças carentes, seus alunos e amiguinhos como os tratava. Aquela tarde poderia ser mais uma de alegria, tanto para ele, como para as crianças, não fosse uma visita inesperada: – Preciso falar urgente com você – disse Helenice que chega‑ va apressada. – Nice, seja o que for, procure se equilibrar e diga, calmamente, de que se trata. Depois de instantes pensando como começar, acabou falando sem rodeios: – É hoje! Eles, os homens da justiça, estão vindo com ordem de desocupação. Stevens dispensou os alunos e seguiu em direção da casa onde se encontrava Juvenal, o pescador, que, ao ouvir a informação de que to‑ dos seriam expulsos dali, não perdeu a calma e tratou de reequilibrar o jovem amigo: – Por enquanto, acalme impulsos que ainda não foram educa‑ dos devidamente. Em seguida, sugeriu: – Sente-se aqui – apontou um banco – e prosseguiu falando: – mu‑ demos o pensamento para algo agradável e alegre. Logo que conse‑ guirmos, elevemos os nossos sentimentos de gratidão ao Pai da vida, até que sintamos a sua vibração amorosa em torno e em nós mesmos. O silêncio em volta e o perfume das flores de uma roseira, bem na porta da simples morada, colaboravam com a intenção do pescador. Era uma terça-feira


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Stevens, embora não conseguisse meditar com a mesma profun‑ didade de Juvenal, deixou que o seu pensamento focalizasse Espíri‑ to do Mar e imediatamente teve a sensação de estar ouvindo aquela mesma voz, suave e bela. Depois de alguns minutos, abriu os olhos e vendo que Juvenal, também, já havia terminado a sua prece, fa‑ lou convicto: – Desejo experimentar essa rude ação com paciência e dignidade. Dito isso, percebeu que um veículo se aproximava, tentando com dificuldade passar pelos buracos do caminho. No mesmo instante, ouviram um forte alarido e perceberam, com grande surpresa, de que maneira a criatura humana se transforma quando os seus interesses são ameaçados. Mulheres e crianças, as mes‑ mas que há tempo recebiam, não apenas a ajuda em forma de alimento, mas, sobretudo, a palavra que orienta e desperta para o bem, estavam armadas de pedaços de pau e pedras. O veículo parou e as dezenas de moradores, começaram a gritar em coro: – Saiam daqui! Deixem-nos em paz! Os ocupantes do veículo se posicionaram em frente aos moradores e diante deles, para surpresa de Stevens, estava o seu pai, o novo pro‑ prietário do lugar, que foi logo falando: – Vocês terão que desocupar, imediatamente, esse terreno, pois eu sou o novo proprietário. Alguém atirou uma pedra em sua direção e ele, então, mudou o tom da voz: – Não adianta tentarem agressão, porque se trata de uma determi‑ nação da justiça! Parou de falar ao ver que alguém se aproximava a passos lentos. Ao perceber de quem se tratava, com a respiração ofegante tentou fa‑ lar, mas, não conseguiu, ao ver Stevens se posicionando entre ele e os moradores e estes se aquietarem na expectativa do que iria ocorrer. Stevens voltou-se para os moradores e começou a falar:


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– Meus irmãos, desejo lembrar a todos vocês a mais importante lição de justiça dada por Jesus: Quem não tem pecado, atire a primeira pedra. Que não sejam vocês os causadores de qualquer tipo de agressão contra esses homens, que aqui se encontram em cumprimento a uma determinação da justiça, sob o interesse do proprietário do lugar. Sabe‑ mos das dificuldades de quem, como vocês, vivem sem um lugar onde, em paz, possam recostar a cabeça. Entendo que todo ser humano de‑ veria dispor, pelo menos, do essencial para viver em condições de dig‑ nidade. No entanto, vamos nos resguardar na paciência e na confiança em Deus, pois a falta de sensibilidade de alguns que detêm riqueza não é motivo para deixarmos de fazer a nossa parte, pacificamente! Os moradores, de um a um, foram jogando as pedras e pedaços de pau, com que se armavam, no chão e, Stevens, então, voltou-se para o outro lado, fixou o olhar no seu pai, que inquieto abaixou a cabeça. Toda a euforia, de momentos antes, dera lugar ao silêncio, que só era interrompido pelo ruído do vento, nos galhos de uma mangueira e por um galo que, ali mesmo, cantava insistentemente. Juvenal, o pescador, vendo Stevens de olhos fechados, se aproxi‑ mou e se posicionou junto ao jovem amigo, que em instantes começou a falar: – Nada nos pertence, pois ao terminar o período da existência físi‑ ca, que é, às vezes, tão breve, deixamos o que possuímos fora de nós para outros. Conosco levamos, apenas, a bagagem resultante do bem ou do mal que tenhamos praticado. A consciência é o nosso juiz incor‑ rupto, onde se encontram circunscritas as leis do divino Criador. Fez pequena pausa e em seguida, prosseguiu: – Jesus, a uma pergunta feita sobre pagamento de impostos, res‑ pondeu: Dai a César o que é de César. Assim, não importam a nós outros as intenções para as quais foram adquiridos os chamados bens tran‑ sitórios, porque cada um responde à justiça divina pelos seus feitos. Talvez, muitos que tanta questão fazem de amontoar bens terrenos e fictícios valores, estão assim insensíveis em relação aos bens morais e


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espirituais simplesmente por não lhes ter faltado o pão na mesa farta, o calçado para proteger os pés, a comodidade, o conforto e a roupa, por onde tantas vezes ostentam o seu poder econômico. Mas não devem esquecer que, hoje, a situação pode ser favorável, mas amanhã, no en‑ tanto, pode ser outra, porque a justiça divina não falha. Parou de falar, abriu os olhos e sentiu-se bastante alegre ao ver Juvenal a sorrir, do seu lado. O velho pescador estava realmente contente com o que percebera, pois registrara todo fenômeno mediú­ nico que acabara de ocorrer, já que a fala de Stevens fora apenas a repetição do que ouvira do luminoso Espírito do Mar. Em seguida, o jovem pescador voltou-se para a direção em que se encontrava Orlando e disse: – Encontro-me entre dois lados. Logicamente, não devo continuar na neutralidade. Já que tenho de decidir, faço opção pelo lado onde tenho encontrado atenção, carinho e amizade. Fez uma pequena pausa e depois voltando-se, novamente, para os moradores, exclamou: – Estou com vocês! Arrumemos os nossos poucos pertences e já que a Terra pertence a Deus, haveremos de encontrar um local onde pes­ soas mais sensíveis à dor alheia possam nos acolher – falou e foi dei‑ xando o local. Mas ao perceber que alguém o seguia, parou e esperou. Era o seu pai que o segurou pelo braço e puxou-o bradando: – É assim que me agradece a comida que garantiu o seu crescimen‑ to até ficar adulto? A sua ingratidão será recompensada com um alto custo: No meu testamento não constará o seu nome! E, se assim deseja, vá! Mas vá para bem longe, onde não me imponha vergonha! – Eu lamento que o senhor se envergonhe de alguém que busca o tipo de vida que lhe é mais importante. Sou seu filho, mas simples‑ mente não concordar com o tipo de vida que desejava impor a mim não é motivo para deixar de respeitá-lo e cultivar o amor filial. O fato de pensarmos diferentemente não justifica o sentimento de vergonha, pois todos temos o direito ao uso do livre-arbítrio.


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Orlando controlou o impulso de agredir fisicamente o filho, por se sentir impotente diante da disposição dos moradores de defendê-lo a qualquer custo e pelo fato de estar surpreendido com o que acabara de ouvir através de Stevens, tão diferente de antes. O orgulho impulsiona‑ va-o a agir em defesa do conceito em relação ao poder que imaginava reter pelo que possuía de bens materiais. No entanto, num lapso, lhe veio o sentimento de paternidade e num paradoxo ao que vinha antes demonstrando, fixou o olhar em Stevens e sentiu vontade de abraçá‑ ‑lo, pois havia notado nele superioridade nos sentimentos. Mas isso só ocorreria se conseguisse o que desejava: levar Stevens de volta ao lar. Mas convicto de que não lograria êxito, deixou o outro lado vencer e dando-lhe as costas seguiu a passos largos em direção ao veículo. O oficial de justiça estendeu a mão mostrando algumas folhas de papel e perguntou: – Quem vai assinar esse documento? – Eu mesmo – respondeu Stevens. Assinou a ordem de desocupação, imposta pelo seu próprio pai, e juntou-se aos outros moradores para ajudá-los a remover os pou‑ cos pertences. Orlando, entretanto, em vez de se dirigir à empresa para sua cos‑ tumeira atividade, seguiu direto à residência. Já Stela, que ficara bas‑ tante esperançosa na expectativa de que o filho retornasse ao lar para acabar com toda aquela situação desagradável, ao ver o esposo entrar, perguntou desapontada: – Não conseguiu, não é mesmo? Orlando deixou-se cair numa poltrona, aparentemente desalenta‑ do, mas Stela insistiu: – Fale-me de Stevens! – Você está à procura de um filho que não mais existe, porque o que eu encontrei nada mais tem a ver conosco. É outra pessoa! – parou como se não quisesse mais tocar no assunto, mas ela insistiu, querendo saber detalhes:


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– Diferente como, Orlando? – Nunca, antes, ele falara em Deus. Agora, porém... Não só falou como disse coisas que me impressionaram e me põem a refletir. Dentre elas, “que nada nos pertence e que quando fechamos os olhos para essa existência tudo fica para outros”. E disse, ainda, que “o amanhã pode ser diferente do hoje”, o que soou como um alerta e me fez lembrar de que na ânsia de acabar com toda essa vergonha que ele vem nos submetendo, para comprar propriedade que é muito grande, mas sem qualquer benefício, eu acabei fazendo um grande empréstimo bancá‑ rio, para o que foi exigida a hipoteca da empresa. – Orlando, como você, um homem experimentado em negócios, fez isso?! – Ora, Stela! Você mesma, anda aí chorando e sem ânimo para nada! Alguma coisa teria que ser feita para mudar a situação. Reconheço que deu errado e pode trazer sérias consequências. Não temos desculpas! O que nos moveu a isso foi a vaidade demasiada, o que nos leva a pensar que Stevens é o único culpado. Ele sempre foi tratado com im‑ posições, quando o certo seria, antes, perguntarmos o que ele gostaria de fazer da vida. Essa é uma verdade que não podemos esconder!

ajudando os moradores a retirarem os seus pertences. Depois de uma hora de caminhada, já se encontrava na Co‑ lônia dos Pescadores. Ao chegar, ouviu alguém chamá-lo: Era Fran‑ cisco, responsável pela entidade representativa dos pescadores. Pai Chico, como era conhecido no lugar, por ser o mais velho, o mais expe‑ riente, se aproximou de Juvenal e abraçando-o perguntou: – Mas o que faz o bom amigo por essas bandas?! – Estou procurando um lugar para residir. – Nem precisa procurar. Sabe que aqui é o seu verdadeiro lugar, porque se não fosse o seu esforço, isso aqui não seria o que é hoje. E ter você entre nós é motivo de muita alegria. Juvenal deixou Stevens


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– Oh Chico, não chegue a tanto! Assim, eu acabo me convencendo de que já sou o que ainda está longe de mim. Eu sabia que essa seria a sua atitude. Mas não se trata apenas de mim mesmo. Há vinte famílias às quais eu e um amigo prestamos assistência. Mas agora elas se en‑ contram ao relento, precisando de um lugar para morar. Narrou o que havia acontecido em relação ao despejo e concluiu: – Minha única dúvida em vir aqui, fazer esse pedido, é a possível mudança de rotina da Colônia, já que vocês estão acostumados uns com os outros, pois todos se conhecem. – Por isso, não! O que preciso, antes de dar a minha resposta que particularmente já seria sim, é reunir os associados para saber o que eles acham. Imediatamente, Francisco saiu ao lado do visitante, de porta em porta convidando para uma reunião na sede da entidade. Onde che‑ gavam, era admirável a alegria com que Juvenal, o pescador, era rece‑ bido. Uma hora depois, a decisão, unânime, alegrou Juvenal: Poderia trazer os seus assistidos. Francisco, bastante contente, falou a sorrir: – Isso é muito bom! Há dez anos que a população daqui não au‑ menta. Quando nasce um, morre outro. Mas agora, isso vai mudar a nossa história! Satisfeito, Juvenal retornou ao Vilarejo. Ao chegar, percebeu que o desalento e muito mais a tristeza haviam tomado conta das men‑ tes. Mulheres com os seus filhinhos no colo choravam, principalmente as que haviam sido, recentemente, abandonadas pelos companheiros. Stevens, lá se encontrava consolando e tentando infundir um novo ânimo. Mas foi o retorno do pescador que trouxe para todos, uma nova esperança: Ao verem-no, vieram ao seu encontro. – Meus irmãos – disse, como sempre sorrindo – eu trago boas notí‑ cias: Temos um destino. No entanto, é preciso que cada um de vocês se conscientize de que tudo tem o seu preço. E no caso presente, o preço que teremos de pagar é o esforço pela boa convivência, o respeito e


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o sentimento de cooperação. Peço isso a todos, pois empenhei a mi‑ nha palavra por vocês nesse sentido, porque a Colônia dos Pescadores, onde passaremos a residir, vive sua rotina num clima de paz e frater‑ nidade. Que a nossa presença jamais modifique o bem-estar daqueles nossos irmãos. Ficaremos alojados na sede da Associação dos Pescado‑ res e no prédio da escola, até que as casinhas sejam construídas, inicial‑ mente, com paredes de taipa e teto de palha. Contaremos com a ajuda dos moradores do lugar, que já prepararam, a essa altura, a ferramenta para o mutirão que será realizado amanhã. Por hoje, fiquemos ainda por aqui. Amanhã, ao amanhecer do dia, rumaremos, deixando para trás esse lugar, que serviu durante os últi‑ mos oito anos de morada. Não devemos guardar mágoa e sequer sermos ingratos, mas sim agradecermos a Deus que nos abriu uma nova porta. Fez uma pequena pausa e voltou a falar: – Peço a todos que acompanhem com o pensamento em Jesus, a luz do mundo, uma prece para o novo proprietário desse lugar, que virá por meio de Stevens, pois ele, o proprietário, apesar de aparentemente insensível, tem, como nós mesmos, erros e virtudes. Os moradores se acomodaram em frente a Juvenal e Stevens, em total silêncio. Depois de alguns minutos, o jovem pescador, de olhos fechados e fronte erguida para o alto, passou a ouvir o ruído das ondas do mar e em meio a essa musicalidade da natureza, a voz de Espírito do Mar: – Senhor Jesus! Disseste um dia, que se batêssemos, a porta se abriria. Compreendendo o sentido da tua mensagem, hoje te pedimos que nos permita bater à porta do teu bondoso coração para pedir, não por nós mesmos, ou por estes irmãos considerados carentes de posses materiais, pois acabam de receber a oportunidade que, por enquanto, fazem por merecer, mas, sobretudo, por aquele que enganosamente, agindo pela vaidade, buscou juntamente com espíritos desencarnados que dividem com ele e familiares o lar, por meio de um caminho espi‑ nhoso, os meios para conseguir o seu objetivo momentâneo.


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“Conhecemos toda a história desse grupo familiar e estamos ten‑ tando despertá-lo para hábitos moralmente salutares, infundindo ini‑ cialmente na mente e no coração do nosso irmão de jornada, Stevens, o que ele necessita para cumprir o que prometeu antes do seu renas‑ cimento para essa existência. Contudo, sem o impulso do teu amor, jamais chegaremos ao final desejado. “Assim, Senhor, rogamos que nos auxilie, para que alcancemos êxi‑ to em tão árdua tarefa. Que a paz do teu amor nos abençoe e propor‑ cione a todos esses nossos irmãos, aqui presentes, esperança e alegria.” Depois da prece, era tamanha a alegria gerada pela nova perspec‑ tiva, que os moradores preferiram não mais entrar nas casinhas. Ali mesmo, ao ar livre, aproveitando a beleza do luar em plenilúnio e o frescor do ar em plena estação de primavera, forraram o chão com es‑ teiras de palha e dormiram tranquilos, dando-nos a certeza de que o amor é contagiante. No dia seguinte, ainda bem cedo, os moradores da Colônia dos Pescadores, acordaram ouvindo dezenas de vozes entoando os seguin‑ tes versos, criados por Juvenal o pescador: Pedra sobre pedra é a ordem da construção, Com amor ao trabalho e ao que faz a atenção É que se abrem caminhos, para paz e a redenção. Ao chegarem ao pequeno largo da Colônia, seus moradores já se encontravam aguardando para as boas-vindas. seus homens, de fer‑ ramenta em punho, aguardavam o momento de começar o mutirão, para a construção das palhoças que abrigariam vinte famílias, mais de setenta pessoas. Na frente de todos, se encontrava Francisco – o pai Chico que, ao ver Juvenal, foi abraçá-lo cheio de contentamento. – Esse é Stevens – falou Juvenal apresentando-o a Francisco. – E completou assim: – peixe que um dia foi atraído pela isca da amizade e fisgado voluntariamente pelo anzol do amor.


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Capítulo 4

Situação tormentosa Para degustar amarguras, sem revolta, é indispensável a fé consubstanciada na razão. Dizzi Akibah

de Orlando, era de desolação e desespero. Além dos desgostos por causa do comportamento de Stevens, o com‑ promisso assumido para a compra da propriedade deixava-os pessi‑ mistas no tocante ao prosseguimento do mesmo nível de vida, que os sustentava em destaque no meio social. Stela havia passado todo o dia no quarto, entregue ao desgosto, enquanto Orlando, naquele momento, andava para lá, para cá na sala de visita, alimentando a ideia de que Stevens era o culpado de toda a desventura que começavam a experimentar. – Não fosse você, Stela – falou chegando à porta do quarto – eu não mediria as consequências da minha reação. Não imagino como pode fazer parte na mesma família alguém tão diferente dos demais! Stela, que estava de olhos fechados, mas em vigília, respon‑ deu resoluta: – A culpa é nossa, Orlando, porque não o educamos como deveria. Enquanto você se ausentava quase todo o tempo na ânsia de acumular

O ambiente, na mansão


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riqueza, eu, incentivada por você, me deixei influenciar pelo meio social, esquecendo-me dos deveres que o lar e os filhos exigem, atribuindo a responsabilidade a empregados, que deveriam ser pagos por outras ati‑ vidades, não a de educar e orientar para a vida os nossos filhos. Só agora eu entendo que esse dever é intransferível, a não ser que se queira passar por desventuras, a exemplo da que estamos experimentando agora. “O meio social” a que eles se referiam, não diz respeito, apenas, ao local onde residiam, pois Antonina, na época, era uma cidade pacata e de pequeno porte. Mas sim, à capital do estado, onde passavam quase todos os fins de semana, hospedados nos melhores hotéis e participando de festas em clubes que eram frequentados, tão somente, pela classe rica. Enquanto os filhos ficavam entregues à empregada do lar, Madalena, como se fosse ela a única responsável por eles, o que Stela só agora reco‑ nhece. E prosseguiu: – Ora, Stela, se isso fosse conforme você afirma, não seria apenas Stevens, e sim todos. – O seu alheamento em relação à família não permite perceber o comportamento dos outros. Gildo, por exemplo, se tornou dependente... Parou de falar diante do olhar espantadíssimo do esposo, que perguntou: – Como pôde isso acontecer? – Por falta de orientação – disse desalentada e prosseguiu falando: – Gino, por causa do mau comportamento, encontra-se em uma séria situação: Está envolvido com duas namoradas e uma delas, que é me‑ nor de idade, está grávida. O pior é que se trata de uma filha de Juliano! Orlando, sentindo-se mal, deixou-se cair numa poltrona ali mesmo no quarto. Instantes depois, bradou raivoso: – Malditos filhos que Deus nos mandou! – Eu diria diferente: Malditos pais de quem eles nasceram e... O diálogo prosseguiria, não fosse a presença de Geilza, que chega‑ va cantarolando o refrão de uma música, que dizia:


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Vale mais, muito mais “ser”, Do que o mundo inteiro ter. Rico é quem sabe amar, Pobre é quem não sabe doar, E sábio é quem sabe perdoar. Orlando ficou olhando-a pela porta e Stela, que continuava deita‑ da, levantou a cabeça e ficou escutando. Geilza parou de cantarolar e chegou à porta do quarto: – Olá pai, que surpresa! São apenas vinte e uma horas e o senhor já em casa?! Imaginei que estivesse participando de mais uma das cons‑ tantes reuniões com os amigos. Voltou-se para a mãe e vendo-a com os olhos vermelhos, perguntou: – E a senhora, mãe, está doente ou andou chorando? – Geilza, é melhor que você continue cantarolando, como fazia há pouco, porque nesse momento não desejo falar, absolutamente, nada. – Mas eu sim! Quero saber onde você se encontrava! – falou raivo‑ so Orlando. – Estou realmente surpresa com o senhor, porque esta é a primeira vez que me pede satisfação sobre isso! – Eu não estou pedindo satisfação, e sim ordenando que me diga onde você se encontrava a essa hora da noite! – Felizmente, eu acabo de descobrir que o meu pai resolveu fazer, agora, o que deveria ter feito quando eu era criança. Mas respeitando a paternidade e compreendendo que cada um tem o pai que merece ou vice-versa, eu digo que me encontrava numa casa espírita, onde estou tentando aprender o que não consegui no meu lar. Apesar da contrariedade, Orlando silenciou, porque o que a filha falou sobre ele, como pai, era verdade. Em seguida, entrava no quarto um jovem de alta estatura e forte compleição. Era Gildo que, com os olhos avermelhados e a fisionomia transtornada, falou com a voz arrastada:


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– Olá mãe, oi pai, qual é o barato aí? Procurem estar numa boa! O pai, indignado, levantou-se com disposição de agredi-lo, mas Stela reagiu energicamente e conseguiu controlá-lo. Gildo, sob o efeito da droga que passara a usar, sequer levou a sério a fúria de Orlando: – Oh! Não sabia que tinha um pai tão valentão! Qual é, velho, vai tirar uma agora de lutador? Ainda bem que estou numa boa! Toma um banho e joga água fria nessa cabeça quente, ó meu coroa! As surpresas, de uma a uma, iam despertando em Orlando o ins‑ tinto de ferocidade que se encontrava em estado latente, o que o fazia perder o controle emocional. Faltavam ainda chegar Gilza e Gino. Já passava de meia noite, e Orlando, profundamente revoltado, não continha a impaciência: – Stela, onde se encontra Gilza a essa hora da noite?! – Orlando, se acalme! A verdade é que já perdemos o controle e o equilíbrio da família. Já pôde compreender por que eu pedia tanto que você voltasse para casa mais cedo? Agora, como pode perceber, é tarde demais! Já estão adultos. Não demorou e Gilza chegou acompanhada de Gildo, que cumpri‑ mentou rapidamente os pais. Gilza, no entanto, foi passando direto, mas Orlando falou quase aos gritos: – Você tem pai e mãe, Gilza? – E o senhor tem uma filha por nome Gilza? Eu sei, sim, que tenho um pai que nunca me tratou com carinho, nunca parou para conversar comigo e também nunca beijou o meu rosto, gesto que toda criança espera dos pais... Apesar de procurado insistentemente, alegava que não tinha tempo. Cresci sem o seu carinho e sem a sua amizade, pai! Por que agora me cobra atenção? Faltou palavra para responder à filha, porque não havia como ne‑ gar a verdade. Mas ainda assim, tentou: – Mesmo sob esse sentimento de revolta,peço que me responda com sinceridade: Você conhece alguém da família de Juliano?


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– Nessa cidade, quase todos se conhecem. – Não crie rodeios para me responder, pois eu só quero ter a certe‑ za se um boato que já anda de boca em boca é apenas isso, ou se trata de uma verdade, em relação a um envolvimento seu, com um filho de Juliano. – Isso é coisa íntima e eu não quero responder, por achar que o senhor não tem o direto de saber, porque, se quando eu tinha menos de dezoito anos já tomava sozinha as minhas decisões, imagine agora, que já sou maior de idade? – Eu estou perguntando por se tratar de inimigos da minha família! – Não sei se o senhor já ouviu falar nessa afirmação de Jesus: Co‑ nhece-se a árvore pelo fruto. Suponhamos que o fruto seja uma criança a nascer. Pode ser ruim uma criancinha? E se ele é bom fruto, é porque a árvore também é boa. Assim sendo, não devo considerar inimigo quem sabe amar, perdoar e tratar bem todas as pessoas, o que nem sempre se encontra em algumas famílias... Esta, por exemplo. – Então, infelizmente, é mesmo verdade seu vergonhoso comporta‑ mento! Pelo que eu entendi, você, mesmo sem se casar, vai ter um filho! – Isso é bom. Não precisei, eu mesma, comunicar ao senhor que daqui a cinco meses vai ser avô. – Isso nunca! Esse maldito filho não vai nascer. Vou mandá-la para casa da sua tia, Helena, em Curitiba, já com um médico certo para fazer o aborto. – Usarei todas as energias da minha juventude e do amor materno que já começo a sentir por essa criança contra qualquer tentativa do senhor ou de quem quer que seja! Geilza, que se encontrava à parte, se aproximou disposta a acalmar os ânimos: – Pai, o que o senhor está querendo fazer é um crime perante as leis de Deus. Deveria estar contente, tanto quanto o outro avô, conforme Gilza me falou, por chegar a isso. Muitos morrem sem ter a alegria de apertar nos braços um neto. E, em vez de hostilizar os seus filhos,


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tente recompor a sua paternidade, fazendo algo que seja um reflexo do amor, que só espera um toque para o devido despertar. Mas não como antes, abrindo a mão como se fosse uma torneira, a jorrar dinheiro e luxo. Mas sim em atitudes carinhosas e amigáveis. Apesar da dureza das nossas palavras e do destino adverso que nós optamos, duvido que não haja uma resposta amorosa, pelo menos em nome do reconhe‑ cimento pelo lar que o senhor nos proporciona. Orlando recebia naquele momento o que nunca imaginara: As rea­ ções das suas próprias ações. Intencionou procurar Gino que havia se dirigido direto ao quarto, mas sem suporte íntimo para digerir o pro‑ fundo desgosto, entregou-se de vez ao desânimo.

da mansão do empresário, onde antes eram ostentados comodidade e conforto, o tom era de tristeza e desolação, na Colônia dos Pescadores, reinava paz, esperança e alegria. Dois meses depois da expulsão do terreno de Orlando, as novas casinhas já estavam prontas e habitadas. A escolinha da Colônia dos Pescadores acabou aceitando as crianças, ex-alunos da escolinha de Stevens, mesmo sem farda. As mulheres, as crianças já crescidas e os poucos homens que viviam com as suas famílias passaram a trabalhar a terra numa grande área. A Associação dos pescadores distribuiu as sementes, que, em pouco tempo, se transformariam em alimento. Diante da agradável perspectiva, Stevens, satisfeito com o novo destino dos seus amigos, não cabia de alegria. Assim, com essa vibra‑ ção, é que, depois de várias semanas, resolveu voltar à pedra na praia, para ele um local sagrado, como se fosse um templo destinado à busca, pela oração, da integração com o todo, onde se encontra a manifesta‑ ção amorosa do Pai da criação – Deus. Sentindo profunda serenidade, sentou-se na pedra, como já lhe era habitual, pôs os pés na água, sentindo o movimento das ondulações. O gesto era o mesmo, porém, o sentido aprofundara-se. Antes, não acre‑ Enquanto no interior


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ditava na existência de Deus. Ali, naquele momento, já havia adquirido a certeza da sua existência. Na presente reencarnação, ainda não havia conhecido Jesus, mas, despertado pelas lições luminosas do Evangelho, estabelecera intimamente o seu encontro com o mestre. Depois de alguns minutos nesse estado psíquico, passou a observar os fenômenos da na‑ tureza, em sua volta e, a exemplo de Francisco de Assis, começou a falar: – Oh plantas! Somos irmãos, não somente porque me deslumbro com a beleza das suas pétalas, ou porque oxigenam o ar, indispensável à vida, mas, sobretudo, por serem vidas idealizadas por Deus. Por isso, não sinto apenas gratidão e amizade, mas, sobretudo, amor. Voltou-se para o mar e prosseguiu falando: – Oh peixes, e todo ser vivo, desde a superfície às profundezas das águas, da mesma forma sinto que os amo, pois são todos vocês cria‑ turas de Deus, por onde a alma eterna estagia de forma em forma, a caminho do infinito. Se somos todos vidas em abundância provindas do Criador, quem poderia nos separar? Parou de falar e contemplando a inquietude das águas, que sopra‑ das pelo vento formavam ondas, as quais, vinham em sua direção, lembrou-se do que lhe dissera Juvenal, sobre a influência dos espíritos sobre os fenômenos das águas e disse com profundo sentimento: – Peço que me vejam como irmão. Se não pelo merecimento, mas pela bondade íntima cultivada pela experiência de servir em nome da luz do mundo, Jesus. O seu pensamento foi interrompido por causa de uma grande onda que vinha em sua direção. Assustado, levantou-se, mas logo ela foi se dissipando, e ele impressionado viu surgir, como se emergisse da pro‑ fundeza das águas, o foco de luz, por ele identificado. Era a mesma en‑ tidade espiritual de quem ele recebia instruções, que tomava a forma humana com toda beleza e esplendor. Em instantes, parou bem em sua frente, como se estivesse de pé sobre a água e com aquela mesma voz que lhe parecia belas notas musicais, perguntou-lhe: – Para que me queres?


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Não conseguiu sonorizar o pensamento, transformando-o em pala‑ vras. Mas mesmo assim, o espírito respondeu-lhe: – Já posso confiar em ti e nas tuas novas intenções e, por isso, aqui estou com a intenção de ajudá-lo nas duras tarefas que deverás enfren‑ tar durante um longo período dessa tua atual existência. Para isso, no entanto, se faz necessário que aprendas mais, para agir melhor. A fé e a certeza na existência de Deus são fundamentais. No entanto, torna-se quase sem sentido quando se exime da prática do bem. Se para isso é necessário agir, mais ainda é saber como fazer, principalmente quan‑ do se trata de assunto pertinente à criatura humana. Teus familiares começam a viver a fase da colheita do que foi semeado sem selecionar a qualidade das sementes. Já que trazes no programa reencarnatório o propósito de ajudá-los, se aproxima a hora da ação. Se encontrares obstáculos por falta de conhecimento ou experiência, venha a mim, pois este apoio faz parte das minhas atuais tarefas. Stevens pensou na falta de tempo, porque a maior parte do dia passava no mar pescando para cumprir os compromissos assumidos diante, principalmente, das crianças carentes, mas o espírito perceben‑ do o seu pensamento, disse: – Entendo a tua preocupação em relação a esse assunto. Mas fique certo de que te darei a partir de hoje os recursos pelos quais outros caminhos surgirão, se acreditares nas minhas intenções. Depois de instantes de silêncio, sugeriu: – Escreva o que vou ditar. Stevens carregava consigo algumas folhas de papel e lápis, porque havia adquirido o hábito de anotar tudo o que ouvia de Juvenal, o pesca‑ dor, sobre a vida espiritual e também em referência ao estudo do Evan‑ gelho, de onde extraía o que desejava pôr em prática. Assim é que, rapi‑ damente, começou a anotar o que o espírito ditava e em poucos minutos tinha em mãos um belo poema. Sem compreender ainda qual seria a sua finalidade, dobrou as folhas de papel, pôs no bolso e saiu. As estre‑ las já brilhavam no infinito e, apesar do íntimo leve e tranquilo, sentiu


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um impacto ao lembrar-se da sua família, excepcionalmente dos pais. A sua impressão era que eles estariam precisando da sua ajuda. Mas ainda acreditando que eles não o aceitariam, sacudiu a cabeça como se isso afastasse o pensamento, mas não conseguindo, passou a monologar: – De que forma ajudá-los, se não me toleram? Que posso oferecer em forma de ajuda, se os seus sentimentos estão ligados somente às coisas materiais e eu não as tenho? Procurava se justificar, tentando esquecer a impressão que sentia, a qual lhe vinha carregada de angústia. Contudo, naquela noite, o pouco tempo que conseguiu dormir foi povoado de sonhos. Depois de ter mudado várias vezes a posição do corpo sobre a cama, tentando aco‑ modar-se para conciliar o sono, acabou dormindo, mas logo se deu conta que se encontrava na casa dos pais. Chegou à porta do quarto e viu a mãe enxugando com lenço lágrimas brotadas da tristeza que sentia por causa da mudança brusca na maneira de viver. Orlando, o pai, se encontrava andando de um lado para o outro do quarto, sem conseguir dormir e, junto a ele, dois espíritos dentre os que residiam, há muito tempo, na mesma casa. Em seguida, ele se dirigiu ao quarto das irmãs e, ao chegar à porta, encontrou uma entidade espiritual, com aparência feminina, que lhe disse a sorrir: – Eu adotei-as espiritualmente para ajudá-las, conforme indicação de orientadores espirituais. Apesar da opressão do ambiente, a situa‑ ção é satisfatória. Saindo dali, ele se dirigiu ao dormitório de Gildo. Mas ao chegar à porta, sentiu um forte impacto que o deixou, por instantes, atordoa­ do, mas ainda assim, quis saber o que estava acontecendo e, dando um passo à frente, assustado, viu mais de dez espíritos de fisionomias disformes gargalhando em volta da cama na qual se encontrava o cor‑ po físico de Gildo, que, em desdobramento pelo sono, fazia parte do grupo. Assim que notou a presença de Stevens, ele gritou: – Peguem essa vergonha de todos nós!


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Mas logo que o grupo foi se aproximando, Stevens deixou rapida‑ mente o local e despertou no corpo físico. Impressionado, ao terminar de fazer uma prece, percebeu que já amanhecia e Juvenal cantarolava lá fora, como fazem os pássaros ao amanhecer, saudando com alegria, o novo dia. Momentos depois, os dois amigos seguiram na direção do mar, para mais uma pescaria.


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Capítulo 5

Surpresas aversas Onde falta a disciplina, a dor aparece. Dizzi Akibah

com o livro aberto na mão, Almerinda, de tão concentrada na leitura, acabou se assustando ao ouvir o toque da campainha. Mesmo sem saber de quem se tratava, abriu a porta e foi tomada de surpresa ao perceber quem era o visitante. – Stevens, meu filho, a que posso atribuir essa sua aparência?! – À simplicidade que se encontra em toda expressão da natureza, da qual somos partes integrais, tia! – Para que isso, meu filho? – perguntou referindo-se à roupa sim‑ ples que o sobrinho usava. – Descobri, tia, que não precisamos de muito para viver e tentar a busca da verdadeira finalidade da vida e, mesmo que eu quisesse me vestir melhor, como a senhora acha, a essa altura não usaria o pouco dinheiro que apuro para comprar roupa em detrimento da necessidade de muitos com quem convivo, principalmente, crian‑ ças carentes. – Não posso discordar, por não estar inteirada do assunto. Mas os Acomodada numa poltrona,


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seus pais, principalmente Stela, estão sofrendo muito por causa dessa sua decisão. – A bem da verdade, a decisão inicial foi do meu pai, que me man‑ dou sair de casa. Não o condeno, por achar que ele agiu assim, não por maldade, mas por imaginar que a sua atitude estava certa. Hoje, sou grato a ele, que, sem nunca imaginar, me proporcionou a melhor opor‑ tunidade que eu poderia encontrar de trilhar por outros caminhos, onde se vislumbra a paz e a alegria de viver. Em relação ao que estão eles experimentando agora, tia, é porque toda mudança gera inquie‑ tude e inconformação, excepcionalmente quando estamos, há muito tempo, cultivando os mesmos hábitos e costumes. Há sempre uma boa hora para combater a vaidade, o orgulho e o egoísmo, qualidades con‑ trárias ao bom-senso e à elevação espiritual. Penso, que a depender da situação, é preciso se livrar de tudo que contribui para os descami‑ nhos, para poder traçar um novo rumo. Conquanto o reinício seja algo melhor, como vem ocorrendo comigo mesmo, o que faço previsão de acontecer, também, com toda a minha família. Compreendeu, tia? – Sim. Compreendi, mas ainda assim acho que você poderia ir à casa ver a sua mãe. – Acho que por agora, isso nada somaria de positivo, porque o de‑ sejo dela é o mesmo do meu pai, e eu não tenho condições de atendê‑ ‑los. Irei, sim, no momento em que eles estiverem mais desligados das suas paixões pelas convenções sociais e pela valorização demasiada ao dinheiro. E isso só será modificado pelo sofrimento. Curioso e também interessado a mudar o assunto, olhou para o livro, ainda aberto em cima de uma cadeira, e perguntou: – Que livro é esse? – Foi Helenice que me presenteou no dia do meu aniversário – fa‑ lou num tom comumente usado quando não se deseja tratar de um assunto, mas, mesmo assim, Stevens insistiu: – Posso dar uma olhada? – Sim, pode.


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Aquiesceu, mesmo contra a vontade. – O Evangelho segundo o Espiritismo. Venho estudando-o com bastante interesse e atenção, porque ele reúne todas as informações que necessita‑ mos para viver bem. É, enfim, um tratado de Jesus para conosco, cuja fi‑ nalidade é ajudar-nos no aprimoramento moral. A senhora não tem receio que alguém saiba da sua preferência por esse tipo de leitura? – Não, porque confio em você, fora da casa espírita, é a segunda pessoa que tem conhecimento disso. – Pode ficar tranquila, porque eu também tenho muito interesse em todo assunto que diz respeito à vida do espírito. Inclusive, aqui me encontro para pedir a Helenice que me conduza à casa que ela fre‑ quenta, porque a teoria sem a prática dos trabalhos exercidos pela casa pouco vale. Almerinda não cabia de surpresa, pois o que sabia até então do so‑ brinho, era que se tratava de uma pessoa que não tinha noções sequer da existência de Deus e, além disso, não demonstrava interesse para absolutamente nada. Tanto que, só depois de alguns minutos com o olhar fixo nele, foi que tratou de chamar Helenice. Quando eles já iam saindo, Almerinda começou a falar, segurando o braço de Stevens: – Que Deus o guie para o bem e que seja você quem acenda uma luz para clarear as mentes dos seus pais e irmãos, que não pensam ou‑ tra coisa a não ser em dinheiro. – É algo, ainda, muito distante de mim, tia Almerinda! Stevens, sem se importar com a presença da tia, pôs a mão carinho‑ samente sobre o ombro da jovem e seguiram em frente. Almerinda, no entanto, falou para si mesma: – Ainda bem que, perante Deus, todos são iguais. Alguns minutos depois, chegavam à casa espírita onde lhe era re‑ servada uma nova surpresa. Stevens sentiu alguém o abraçando por trás e, ao perceber de quem se tratava, não se conteve:


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– Geilza?! O que você está fazendo aqui? – Certamente no que você também está interessado, o que me deixa muito contente. Ainda mais, tão bem acompanhado! – Em relação a você, Geilza, não digo que aconteceu um milagre, por já entender que isso não existe da maneira que muitos pensam. Stevens assim se expressou, porque a irmã, tempos atrás, parecia pedante e muito convencida da sua beleza física, o que a tornava com aparência adotada por quem se firma na vaidade. Já na mansão, o desânimo era visível. Orlando saíra para as suas atividades na casa comercial, já bastante tarde, pois fora avisado que um gerente de banco o aguardava. Logo que chegou e percebeu que o bancário não mais se encontrava, sorriu contente, imaginando tê-lo driblado. Mas quando chegou a sua sala de trabalho, outra pessoa o aguardava: – Oh competente e brilhante advogado! Eu estava mesmo precisan‑ do falar com você a respeito de problemas muito sérios, que só mesmo a sua competência... – Se o assunto – interrompeu o advogado – se refere a um emprés‑ timo bancário, você chegou tarde demais, porque eu estou aqui para tratar desse assunto, mas... para o outro lado! – falou enfático e prosse‑ guiu explicando: – Foi vencida a terceira promissória, sem pagamento. Graças à amizade mútua, me empenhei, pedindo um pouco de cle‑ mência à gerência, por se tratar de uma pessoa que sempre foi correta em seus negócios. Entretanto, para evitar a cobrança judicial, elas terão que ser quitadas o mais rápido possível. – Não me concede nenhum prazo? – Um mês. – Eu preciso de três, porque estou na expectativa de vender a pro‑ priedade e aí, então, pagarei todo o valor do empréstimo. O advogado despediu-se levando a proposta, crente de que havia sinceridade no amigo empresário. Orlando, por sua vez, com as mãos trêmulas e o suor porejando, começou a compreender que poderia ser


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o começo de uma indesejável queda do pedestal ilusório em que vivia. E sendo isso o mais importante sentido da sua vida, não poderia ocul‑ tar tamanha aflição, pois não dispunha dos recursos necessários para o citado pagamento por se tratar de uma alta quantia, a qual ultra‑ passava as suas possibilidades. Sabia que seria muito difícil conseguir vender a propriedade, por causa do alto valor. Nervoso, mandou vir a sua sala um chefe de setor, em quem muito confiava: – Arnaldo, preciso muito da sua ajuda! Falou, em seguida, sobre a situação da empresa e concluiu: – Creio que se isso ocorrer, o que está previsto, eu me suicidarei. Não disponho de coragem para ser visto pelos amigos do meu nível social como um fracassado. Tudo isso, Arnaldo, por causa de um filho que... – Permita-me usar a sinceridade – interrompeu o chefe de setor. – Não creio que a culpa esteja ligada ao seu filho Stevens, simplesmente por conduzir a sua vida por outro rumo. O problema, seu Orlando, é que nos acostumamos a causar sofrimento, pensando em não sofrer. Sofre quem não tem na ânsia de ter; quem tem por medo de perder; o que perdeu por medo de não reaver o que tinha e o que sonha ter, mas não consegue! Somos nós mesmos os causadores do sofrimento que nos chega, um dia, batendo à porta do egoísmo e do orgulho. Acho que todos têm o direito de viver como desejam e ninguém deve forçar a sua vontade, tentando sobrepujá-la, a não ser que queira desrespeitar o livre-arbítrio, lei divina. No mais, a melhor orientação que dispomos encontra-se no Evangelho, conforme os ensinamentos de Jesus. Fez uma pequena pausa e percebendo que Orlando continuava atento ao que ele dizia, prosseguiu: – Não sei se o senhor tem conhecimento de que eu tenho dois fi‑ lhos. Um deles, o mais novo, gosta muito de estudar e se encontra na capital do estado, começando um curso de nível superior. O outro, o mais velho, no entanto, quis ser pescador e está morando na Colônia dos Pescadores, casado e vivendo condignamente. Eu me encontro, agora, muito alegre, porque minha nora está grávida e eu vou ganhar,


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por assim dizer, o meu primeiro netinho! Ele, meu filho, está vivendo satisfeito com o que faz. Eu teria vergonha dele se fosse desonesto e moralmente malcomportado. O problema, senhor, é a vaidade, quan‑ do somos, ainda, tão pequeninos diante de Deus. Fez pequena pausa e concluiu: – Peço desculpas pela minha sinceridade. – Não discordo de você, Arnaldo! No entanto, pensar nisso agora em nada me ajudaria, porque o que eu estou precisando, no momento, não é ouvir falar em lei divina... Jesus e nem Deus! Eu quero é dinheiro! Muito dinheiro! – Desculpe-me! Mas isso eu não tenho, a não ser o salário que rece‑ bo no fim do mês, que mal dá para as necessidades da minha família – falou já se retirando da sala. Desceu as escadas lentamente e foi desi‑ ludido, cuidar dos seus afazeres. Orlando, no entanto, ainda nervoso, passou a gritar o nome da copeira. A mulher chegou à sala ofegante, depois de subir os degraus da es‑ cada quase correndo para evitar mais uma das reclamações carregadas de prepotência. – Vá buscar um café bem quente. Rápido! Minutos depois, ela voltava com o café. Ele pegou de um frasco, seis comprimidos e pôs todos de vez na boca, ingerindo-os com o café, ainda quase fervendo. Surpreendida com a atitude do patrão, Eliane, embora temerosa, falou assustada: – Patrão, o senhor está querendo se suicidar? Valha-me Deus! – Não seja dramática! Você também deveria fazer o mesmo, porque isso aqui vai fechar e todo mundo vai para a rua! A copeira, aflita, desceu as escadas sem olhar onde pisava e acabou caindo e provocando uma torção no pé. Mesmo assim, ainda naquele turno, todos ficaram sabendo da notícia ruim do patrão. Apenas uma mente na negatividade é o suficiente para disseminar a preocupação, o desânimo e o pessimismo em centenas de pessoas, ou até milhares, a depender do seu grau de influência. Pode ser com‑


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parável ao contágio de um vírus que rapidamente dissemina o estado doentio numa comunidade onde as pessoas convivem sem os devidos cuidados. O vírus do desespero segue o caminho aberto pelo desânimo e pela a preocupação. A empresa mantinha mais de trinta funcionários, e todos eles re‑ tornaram ao lar, naquele dia, com a mente afetada pelo desânimo, já criando imagens de futuras dificuldades. Uma palavra pode construir o bem sem limite, quando parte de uma mente otimista. Com o mesmo poder é capaz de destruir as melhores perspectivas ou esperanças, quando provém de uma mente invigilante.

Na Colônia dos Pescadores, àquela altura dos acontecimentos, a es‑ perança passou a ser um cântico de amor ao trabalho e à autoconfiança, forças necessárias à construção do bem. Lá, a vida passou a se expressar pela a alegria da amizade, pelo respeito mútuo e pela crença em Deus, o que fortalecia a vontade firme de ultrapassar, sem temor, as maiores difi‑ culdades. Já os mentores dessa nova situação, Stevens e Juvenal, além de participarem desse mesmo estado psíquico, desfrutavam, ainda, da satis‑ fação de terem despertado em tantas mentes o bem que se encontrava em estado latente em cada uma daquelas pessoas. Embora o espírito, desde o momento da criação divina, seja perfeito, pois tem em síntese tudo que precisará para a desejada iluminação, cabe a ele mesmo o despertar das po‑ tencialidades interiores, para que possa desfrutar dessa mesma perfeição. O velho e o novo pescadores se encontravam repassando as men‑ sagens em forma de poema, ditadas por Espírito do Mar e comentando o valor doutrinário no conteúdo de cada uma delas chegaram à con‑ clusão de que estava na hora de tirá-las do armário, no qual se encon‑ travam guardadas, para serem conhecidas pelo público, objetivo do espírito que as ditou. – Mas como faremos isso, se não temos recurso para tal? – pergun‑ tou Stevens.


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Juvenal pensou e respondeu: – Enquanto ficarmos perguntando, a nós mesmos, como consegui‑ remos o que desejamos e não agirmos, não conseguiremos. As possibi‑ lidades não virão aqui nessa nossa palhoça2. Para que isso aconteça, é preciso ir à busca, mesmo que de início não se saiba onde! Quando se cultiva a vontade firme, nada fica por fazer. Com a mesma autoconfiança que haviam conseguido ajudar todas aquelas pessoas a se sentirem capazes, estavam convictos de que o pro‑ jeto daria certo. Já na mansão de Orlando, Stela, ao saber por Geilza, sobre Ste‑ vens, animou-se um pouco. Apesar de antes tê-lo como ovelha negra da família (termo popular), ela começava a compreender que o filho estava buscando algo para se firmar em um bom comportamento. Mas isso durou pouco, pois logo ao meio-dia, quando Orlando che‑ gava à casa, com aparência de uma pessoa dementada, ela assus‑ tou‑se e percebendo que enfrentaria mais um problema, deixou de lado os bons pensamentos em relação ao filho, impondo a ele a maior parcela de culpa. Stela se aproximou do esposo e perguntou aflita: – Orlando, o que é isso?! – Isso o quê, mulher? – perguntou com a voz rouca e embolando as palavras. – Eu não vou mais esperar por nenhuma justiça. Vou aplicar a minha, do meu jeito! – Que justiça, Orlando? – Não me chame por esse nome. Eu sou outra pessoa e você me conhece. Deve estar lembrada, falsa grã-fina, da traição que me levou a dar cabo a minha própria vida! Pois é. Agora é hora de ajustar contas com os traidores ladrões da paz.

2 Palhoça: tipo de moradia das mais simples, com paredes de taipa e cobertura de palha.


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– Pelo amor de Deus, pare com isso, Orlando! – gritou Ste‑ la apavorada. – Agora você está pedindo misericórdia a Deus? Você vai ter a mi‑ sericórdia que merece, junto a esse avarento desleal! – parou de falar, deu uma feia gargalhada e Orlando então, sem energia, caiu ali mesmo onde se encontrava. – Meu Deus, que faço? – mas sentiu alívio ao perceber que, coinci‑ dentemente, o filho acabava de chegar. – Oh Gildo! Graças a Deus você chegou, porque seu pai está aí desmaiado. – Qual é o barato do coroa, ô mãe? Já vai bater as botas? É uma pena não ter mais nada para deixar para gente. – Pare, Gildo! Essa não é hora de falar sobre essas coisas! Vai rápido buscar o médico! Com a mente conturbada pelo efeito da droga, Gildo desabafou: – Oh mãe, a culpa é do Stevens! Vou pegá-lo e dar uma boa surra. Vai pagar caro pela derrota do meu coroa e de todos nós. Sei onde o idiota está morando. Vou deixá-lo todo quebrado, como se faz a um animal sem importância! – Gildo, pare com isso e vai logo buscar o médico!

Era primavera. Flores multicores ornavam os campos e exalavam deli‑ cioso perfume que, espalhado pela brisa suave, causava um bem-estar indescritível. Stevens, que caminhava a passos lentos, envolvido nessa harmoniosa vibração da natureza começou a fazer uma introspecção. Sabia que até ali, a sua vida tinha sido de altos e baixos – tristeza e alegria, paz e tormento. Fazendo uma autoanálise, tentava descobrir se era nele que se encontrava o motivo das diferenças entre ele e seus familiares. Sentia necessidade de saber até onde ia a sua culpabilidade, pois estava despertando, não simplesmente para o arrependimento, mas, sobretudo, para a responsabilidade dos seus atos. Assim, chegou


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à praia e novamente se acomodou na mesma pedra. Antes de pensar em Espírito do Mar, como lhe era habitual, elevou o pensamento a Deus e começou a falar: – Agora, Senhor, que já compreendo que é o Criador de todas as coisas e de todos os seres vivos, gostaria de saber para que fui criado. Que utilidade tem uma vida como a minha, ainda desencontrada e sem rumo definido? “Nos últimos anos, tenho vivido sob as emoções do que ocorre a cada dia, como uma folha seca ao sabor do vento, sem conseguir me aprofundar num roteiro com um ponto de chegada. “Por isso, Senhor, sinto que necessito estabelecer um fio de ligação com a vossa sabedoria e o vosso amor, para saber quem sou e para que, realmente, eu estou aqui. Não obstante os esclarecimentos que tenho re‑ cebido, sinto-me, ainda, obscuro e incapaz de pôr em prática, na íntegra, os ensinamentos extraídos das luminosas lições de Jesus Cristo, conforme ele mesmo nos propôs. Ainda assim, Senhor, peço que me fortifique, para poder ajudar aqueles que me deste como pai, mãe e irmãos, pois sinto que, em vez de caridade, trata-se de um dever que se encontra sempre no meu sentido, independentemente de estar ou não com a mente ocupada. “Que a força do vosso amor, Senhor, fortifique a todos nós.” Terminada a prece, acostumado a anotar, mesmo que não fossem os poemas, tudo que ouvia de Espírito do Mar, pegou o material de es‑ crita e ficou na expectativa aguardando a presença da entidade. O tem‑ po foi passando e ainda na mesma expectativa, percebeu que a tarde dava lugar à noite, anunciada pelas primeiras estrelas que começavam a brilhar no firmamento; contudo, a entidade espiritual não aparecia como nas outras vezes. Pesaroso, pegou as folhas de papel, dobrou-as uma a uma, colocou novamente no bolso da roupa para retornar à Colônia dos Pescadores. Mas antes de se levantar, viu surgir bem próxima, uma luz brilhante e, paralelamente, passou a ouvir uma música, parecendo uma sinfonia, entretanto, bem mais bela. O foco de luz deslocava-se de acordo com


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as notas musicais, como fazem as bailarinas clássicas. Em instantes, outras luzes começaram a surgir, formando instantaneamente um balé composto por dezenas de “luzes bailarinas”, que ostentavam, apenas, a própria iluminação. Tudo isso ocorria, em poucos instantes, durante a introdução da música, pois para embelezar ainda mais o admirável espetáculo, Stevens passou a ouvir a voz belíssima de Espírito do Mar, numa interpretação tão perfeita, a ponto de confundir aquela voz com os sons dos instrumentos, por meio das notas musicais emitidas, que formavam com a mistura das cores, no plano energético, imagens vi‑ vas, cujo espetáculo, visto pela mediunidade de clarividência, o deixa‑ va alheio a tudo o mais em volta, esquecendo-se, até mesmo, de onde se encontrava. Tudo isso teve a duração apenas da música, que foi chegando ao fim e Stevens, quase em êxtase, pensou: – Meu Deus, o que é isso? Só a vossa misericórdia poderia me facul‑ tar a oportunidade de presenciar algo tão belo, que me confunde e dá a certeza de que sequer conheço a mim mesmo. Logo, os pontos luminosos iam se confundindo com o clarão da lua cheia e desaparecendo como se de repente fossem cobertos pelas ondas do mar. Stevens pegou o lápis, desdobrou as folhas de papel e pensou: – Mesmo que não acreditem em mim, devo escrever tudo que acabo de ver, porque se eu não o fizer, é possível que eu mesmo não acredite em mim. Com o lápis entre os dedos, sem ainda ter escrito qualquer palavra para dar início à descrição, percebeu que a luz em forma de estrela aparecia como de outras vezes e ficou aguardando. Instantes depois, ela, em sua frente, e com o sorriso de sempre, começou a falar: – Quando falta a confiança em si mesmo, prova-se que ainda não aprendeu, também, a confiar no próximo e nem em Deus. Quem não sabe amar a si mesmo pode amar ao próximo? E quem ainda não aprendeu a doar-se indistintamente aos seus irmãos, saberia amar a Deus sobre todas as coisas, conforme ensinamento de Jesus, a luz do


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mundo? Ora, meu querido irmão! Há pouco, de passo a passo, quando se dirigia a esse local, contemplava a beleza das flores e se deliciava com o aroma agradável que elas exalavam, perfumando o ar, o que lhe proporcionava um grande bem-estar. No entanto, não percebeu que tudo isso se trata da manifestação do amor de Deus, que nos fala no silêncio da consciência; socorre-nos por mãos amorosas de quem jamais imaginamos e nos fortalece com o estabelecimento da verdade, intuindo-nos a uma introspecção, para, corajosamente, conhecermos a nós mesmos por meio da autoanálise. “Não esqueça de que tudo que precisamos para superar dificulda‑ des já se encontra em nós mesmos. Contudo, enquanto não se conse‑ gue despertar as potencialidades que dormitam no âmago da alma, é natural que nos dirijamos a Deus o Pai da vida, embora o ideal seja nos dirigirmos a Ele em prece, somente para agradecer.” Stevens ouvia aquela voz em tom feminino, bela e suave, como mú‑ sica que penetra nos ouvidos, causando um inigualável bem-estar. A entidade espiritual fez uma pequena pausa e concluiu: – Por hoje, sugiro apenas que tente fazer da lição do perdão, uma página viva do Evangelho. Stevens retornou à Colônia dos Pescadores disposto a não mais se contrariar com opiniões diferentes das suas, que ainda com toda aprendizagem que tinha acesso não deixavam de irritá-lo. Mas logo que se aproximou da casa onde residia com Juvenal, o pescador, viu um veículo parado bem em frente à porta. Aproximou-se e quando percebeu de quem se tratava, tentou evadir-se, mas logo foi seguro pelos braços fortes do visitante que soltou a voz: – Enfim nos encontramos para ajustarmos as coisas! O jovem pescador tentava se soltar dos braços de Gildo, mas, fran‑ zino, não contava com a mesma força física do irmão, que gritou: – Pare aí, ô mano! Não vim te dar socos, como na outra vez! Estou aqui em atitude de paz, numa boa, sem tropeço, para te levar de volta para casa. O nosso coroa (o pai), tá de mal a pior por tua causa, ô mano!


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Acho que está na hora de tu reparares o mal que fez... Pelo menos, voltar para casa já é alguma coisa! Nós estamos na miséria, mano! E de quem é a culpa? O velho já está com a cuca (mente) desorientada, não falando coisa com coisa! A mãe pensa que tu voltando, ele pode reagir e encontrar uma solução. Se não fosse por isso, eu nem me lembraria de ti, que causou tanto estrago em nossas vidas! Stevens, ouvindo o que o irmão falava, acabou ficando convicto de que acabava de encontrar uma boa oportunidade de transformar a lição do perdão em página viva do Evangelho, conforme tinha ouvido horas atrás de Espírito do Mar. Contudo, a fragilidade da sua decisão transtornava-o de tal maneira, a ponto de sentir vontade de agredir fisicamente o irmão da mesma forma que havia sido agredido por ele. Somente por ouvir falar, recomendar, aconselhar... Sem buscar a necessária compreensão, e a séria decisão de levar em frente o seu pro‑ pósito de se melhorar, torna-se comparável a palavras soltas ao vento, sem a real direção. Depois desse pensamento, respondeu: – Vou pensar. – Te aquieta, mano, porque eu vim para te levar, por bem ou por mal! – suspendeu Stevens, jogou-o dentro do veículo e seguiu dispara‑ do pela buraqueira do caminho. Não tendo como escapar, o jovem pescador foi, aos poucos, se conformando com a situação. Lembrou-se da recomendação de Es‑ pírito do Mar e assustou-se com a sua própria reação. Compreendeu que não falhou tão somente para com a lição do perdão, mas, sobre‑ tudo, com a capacidade de amar, inclusive a si mesmo, uma vez que deixou-se contrariar, a ponto de sentir aversão pelo irmão. Entretan‑ to, lembrou-se de Jesus, que detido, maltratado injustamente e, em seguida, condenado à morte na cruz, dirigiu-se assim ao Pai da vida: Perdoa-os! Eles não sabem o que fazem. Ao terminar a reflexão, o jovem pescador, emocionado e com lágrimas rolando rosto abaixo, pediu, voltando à fronte ao alto:


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– Senhor Jesus, me fortaleça para que eu possa fazer o que for mais certo e benéfico para todos. O veículo parou em frente à mansão e ele, com o coração pulsando fortemente, tentou abrir a porta para sair do veículo, mas Gildo reagiu: – Não pense em fugir! Eu vou te colocar agora dentro de casa. – Não precisa. Eu não vou recuar. Antes de se dirigir à porta, Stevens olhou na direção da área ajardi‑ nada da casa, único lugar ali do qual sentia saudade, pois outrora pas‑ sava horas sentado, contemplando as abelhas e os beija-flores colhen‑ do o néctar das flores. Parou de caminhar ao ver alguém sentado em um dos bancos. Olhou direito e percebendo que se tratava de Helenice, quis se dirigir ao local, mas Gildo segurou-o fortemente: – Garantiu que não recuaria e agora quer fugir, vamos, mano! – Gildo, por favor, me solte! Eu só vou falar com a moça ali no jardim. Aproximou-se e foi logo perguntando: – Helenice, o que faz aqui? – Eu soube da situação do seu pai e vim por recomendação dos es‑ píritos, tentar ajudá-lo. No entanto, não me deixaram entrar, alegando que a casa não comporta a presença de alguém sem classificação social. – Venha comigo! Se você não entrar, eu também não entrarei. – Oh mano, vamos, antes que eu perca a paciência! – ameaçou Gildo. Stevens segurou Helenice pelo braço e quando ia se aproximando da porta, Gildo falou: – Ela não pode entrar aqui! Stela que lá de dentro da casa ouviu o vozerio, abriu a porta e ven‑ do Stevens usando uma roupa simples, perguntou contrariada: – Meu filho, o que é isso?! Ele se fez de desentendido, se aproximou e deu um beijo no rosto da mãe. A primeira vez, depois de adulto, que praticava esse gesto, valioso por ser uma expressão do amor que muito contribui para um relacionamento sadio. A presença de Stevens, apesar da contrariedade, causada pelo traje


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que ele usava, foi agradável a Stela. No entanto, colocou o braço inter‑ ditando a porta e falando autoritária se dirigindo a Helenice: – Você não pode entrar aqui, porque se trata de alguém, que além de não estar em nosso nível social, não tem nada a ver com a nossa família. – Mãe – interveio Stevens – Helenice aqui se encontra para ajudar. Não é bom menosprezar as pessoas pela simples aparência, pelo que tem ou pelo que deixou de ter. O valor da criatura humana não se encontra no que possui, e sim no que já conseguiu ser. Helenice, neste momento, tem o que dar. E o que ela traz é a expressão do bem. Stela livrou a passagem, contra a vontade, o que demonstrou ao fechar o cenho. Stevens, segurando Helenice pelo braço, foi entrando devagarzi‑ nho no quarto. Atrás deles, iam a mãe, os dois irmãos e Gilza, a que estava gestante. Orlando se debatia na cama, falando e gesticulando de modo bem diferente do seu jeito de ser. Sentado junto à cama, tentan‑ do acalmá-lo, estava o médico que prestava assistência à família. Helenice olhou em volta, fechou os olhos, fez uma prece e em se‑ guida, falou com a voz em tom suave: – Essa casa precisa de preces, de união, de pensamentos positivos e boas intenções. Nesta casa deve-se falar em Deus, e manter no coração de cada um, pelo menos, uma réstia de amor ao próximo, como Jesus nos ensinou. Fez pequena pausa e, a seguir, estendeu as mãos em direção a Or‑ lando e voltou a falar: – Meus irmãos, me dirijo a vocês que já não se encontram no corpo físico e que indevidamente residem nessa casa. Por mais que tenham sofrido, não justifica pagar o mal com o mal, porque além da verdadei‑ ra justiça ser a divina, com essa atitude vocês se nivelam, isto é, ficam na mesma situação moral. A maior conquista de uma vida é a capaci‑ dade de amar, perdoar e manter a consciência tranquila. Sem isso, a vida se torna sem alegria e sem paz. Parou por um instante de falar e disse a seguir:


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– Que vale uma vida odienta? Que ventura se consegue com a vin‑ gança? Não esqueçam que, sobre todos nós, encontra-se o poder de Deus, expresso nas Suas leis e principalmente na Sua justiça. Quando ela começou a falar, Orlando se aquietou e passou a mur‑ murar, pronunciando palavras sem que ninguém entendesse. Mas ao terminar de falar, ela começou a dar um passe e, então, Or‑ lando, que respirava ofegante, normalizou a respiração, acomodou-se na cama. A crise, como diagnosticava o médico, já havia passado. Helenice se dirigiu, novamente, aos espíritos: – Agora, chega! Mesmo que ele tenha errado contra vocês, deixem que a justiça divina julgue e corrija, educando-o moralmente, para que vocês não tenham, também, que responder pela ação de perversidade que vêm praticando. Stevens, por sua vez, fixou o pensamento no Espírito do Mar, e logo passou a ouvir a voz da entidade espiritual orientando-o e passou a repetir o que dela ouvia: – Meus irmãos, a vida é um dom de Deus, para a qual há um ob‑ jetivo do Criador, o que aos poucos pode ser despertado se a criatura humana se elevar pelo amor fraterno e pela doação, o que combate sistematicamente a vaidade que destila o seu veneno pelos malefícios do orgulho. Este, por sua vez, é alimentado pelo prazer de se destacar pelo que possui, pelo poder e não pelo que busca ser. “Ao renascer na Terra, o espírito vem em busca do seu aprimora‑ mento moral, riqueza que ninguém lhe tira. E quando fecha os olhos para o cenário do mundo, leva apenas o bem que haja praticado e não o que tem. Ninguém é feliz por, simplesmente, ter muito ou por ter pouco, porque a felicidade é o resultado do cultivo de bons hábitos e costumes positivos, principalmente os que provêm da ação do amor. E me permitam, meus irmãos, é isso que falta nesta casa para que haja equilíbrio emocional, espiritual e, sobretudo, paz. “Que Deus abençoe as boas intenções que porventura surjam na mente de cada um de vocês.”


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Quando Stevens terminou de falar, os seus familiares estavam per‑ plexos, boquiabertos. Gilza, com um lenço na mão, enxugava as lágri‑ mas da emoção que sentia ao ouvir, pela primeira vez na sua vida, ver‑ dades incontestáveis. Aproximou-se de Stevens e abraçou-o soluçando. – Calma, Gilza! Cuidado com o seu filho, que pode ser prejudicado com essa emoção. Mas ela havia percebido, naquele momento, a distância, na qual foi criada e educada, de toda a verdade que acabava de ouvir, e que nunca havia sido posta em prática na casa, e de tudo ao contrário que foi usa‑ do pelos pais como modelo para educar a ela e os irmãos. O médico, vendo que Orlando já dormia calmamente, desaponta‑ do, tentou se justificar: – Penso que a oração é sempre boa, em qualquer situação. No en‑ tanto, não deve ser usada como medicamento para enfermidades, como no presente caso, que se trata de desequilíbrio nervoso por causa de preocupações demasiadas. Ainda bem que o medicamento que ele tomou demorou, mas teve o efeito desejado. Stevens e Helenice sabiam que não era apenas isso a causa do pro‑ blema de saúde de Orlando. Mas que, por causa das preocupações e da revolta nas quais se deixou arrastar, ensejou oportunidade aos es‑ píritos, que ali já residiam há tempo, de perpetrarem a pior ação de vingança. Compreenderam que, no presente caso, nem apenas os me‑ dicamentos eram suficientes, nem tampouco o tratamento espiritual. Mas os dois em paralelo era o desejável. Stela segurou o braço de Stevens, levou-o até a sala e foi logo falando: – Tem que trocar essa roupa! Ela está escondendo a sua origem e até a beleza do seu rosto. – Mãe, a minha origem é Deus. E a verdadeira beleza é um íntimo que porta bondade, serenidade, amor e alegria. – Sim, meu filho, mas o seu quarto está aí todo arrumado e no armá‑ rio se encontram todas as roupas que você deixou quando saiu daqui.


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– Mãe, eu não vim para ficar. Aliás, eu fui sequestrado brutalmente por Gildo, que se encontra fora de si. – Será que você não percebe, filho, que essa situação foi causada pela sua ausência? – Não, mãe. Foi pela presença da vaidade, que é alimentada no dia a dia, pelo interesse de ter. Volto qualquer hora para vê-la, mas esse não é mais o meu lugar. – Que seja, meu filho. Mas por que não leva as suas roupas? – Mãe, já ouviu falar em um pescador que reside sob um teto de palha, usando roupas de rico? Seria, no mínimo, destoante. – Vamos, Helenice! – falou Stevens se dirigindo à adolescente: – Vou te deixar na casa de tia Almerinda. – Não precisa, porque eu vou para a Colônia com você.

perder tanto a empresa quanto a propriedade, Or‑ lando, a partir do momento em que foi visitado pelo advogado, passou a guardar o dinheiro referente às vendas em um cofre que mantinha às escondidas, em sua casa. Além disso, insensível, sem se importar com os empregados e respectivos familiares, passou a vender toda a mer‑ cadoria de sua loja, esvaziando-a, até fechá-la, deixando mais de trinta funcionários desempregados. O pouco de reequilíbrio adquirido que conseguiu com a ajuda de Stevens e Helenice, que poderia ter sido usado para a busca de recurso, com o objetivo de honrar o compromisso assumido com a instituição bancária, foi usado maldosamente para perpetrar o seu plano egoístico. Tanto que, ao ser notificado de que o banco havia tomado posse dos cita‑ dos bens, sequer demonstrou abatimento, porque o cofre estava abarro‑ tado de dinheiro, que seria usado, imediatamente, para iniciar outro tipo de negócio. Sua intenção era comprar barcos de pesca com equipamento moderno e montar um frigorífico. Assim, poderia distribuir peixes para as peixarias da região por preço bem inferior. Esse projeto era mais uma Ciente de que iria


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tentativa de atingir o filho Stevens, no sentido de tirá-lo da pesca e, con‑ sequentemente, se livrar do que imaginava ser para ele e toda família uma vergonha. Contudo, como todo mal tem o seu preço, antes mesmo de tomar as primeiras providências para sua tentativa, foi intimado pela justiça e obrigado a devolver toda a quantia das retiradas que passou a fazer da empresa e da mercadoria vendida, simplesmente para quitar os juros da dívida, ficando, apenas, com a casa que residia. Ainda assim, o seu orgulho não dava trégua, porque nem ele mes‑ mo se dava conta de que estava sendo instrumento nas mãos de espíri‑ tos que, vingativos, tentavam praticar justiça com as próprias mãos por causa de débitos morais contraídos e, também, para manterem Stevens longe da mansão, por saberem que ele àquela altura, em vez de hos‑ tilizar o pai, era capaz de ajudá-lo a erguer-se moralmente, conforme constava no seu programa reencarnatório, como o exemplo a seguir: – Vocês já sabem que para chegarmos ao objetivo principal não deve haver vacilo – falava Charles, o espírito que se afirmava chefe dos demais, no processo vingativo a que se locupletavam. – Porque ele agora – falava se referindo a Stevens – mesmo que seja desfechada uma agressão física ou algo mais que fira a sua reputação, não reagirá, por‑ que, dado aos ensinamentos do Evangelho, atrai espíritos iluminados, que parecem até anjos, vistos sempre ao seu lado. Não devem perder tempo com ele. – Chefe, eu tenho uma boa sugestão. Descobri que ele está gostan‑ do muito de uma menina, que vivia lá naquele lugar pobre e repug‑ nante. A gente pode interferir no pensamento dela, fazendo-a odiá-lo. Creio que ele vai ficar muito desgostoso. Aí então é hora de aproveitar e mandá-lo para bem longe daqui. – Isso não resolve! Você precisa aprender a ser mais esperto. Ela ainda é mais difícil do que ele, porque anda lá por aquela casa onde a gente não consegue chegar nem perto. A vigilância é total. – Oh, chefe! Eu não tenho medo desse pessoal. – Se você tentar vai ser como o caso de Trinco. Entrou de curioso


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para saber por que tanta gente entrava na casa (Casa Espírita) e de lá nunca mais saiu. Soube que se encontra tão enfraquecido, que já aprendeu até a perdoar – falou imaginando que o ato do perdão, em vez de uma expressão do amor, se tratasse de fragilidade e continuou dando ordens: – Você, Kiló! – Estou aqui, chefe! – Reúna todos os caras que acompanham Gildo e convençam-nos de que devem incentivá-lo a usar a droga sem parar. Ou ele morre de vez ou vai criar débitos e, não tendo como pagar, já que se encontra na pobreza, vai ter que roubar e acabar na cadeia. O outro, Gino, será traba‑ lhado por você, Kimera, já que é hábil em sensualidade. Ele já está com‑ plicado com duas e uma delas, grávida. Leve a ele mais algumas que se‑ jam bonitas e de menor idade! Se você souber trabalhar as mentes tanto dele quanto delas, não vai haver resistência. Seu destino será também a prisão. Temos que acabar de vez com essas víboras que destruíram as nossas vidas, os nossos sonhos, e a nossa paz. Agora é a vez deles. – Mas chefe – interveio um por nome Vigro – Gildo foi seu filho, por que fazer isso com ele? E as meninas, que não têm nada a ver com isso, serão prejudicadas! Não seria melhor usar Hermano, já que ele foi injustiçado? – Ora! Não mais considero Gildo como filho, porque me repudiou para renascer no lar dos traidores. As meninas, que tenho eu a ver com elas? Não são minhas filhas... Que se danem! Acho que você precisa ser mais inteligente, porque não percebe que Hermano parece até que enlouqueceu depois que botou os olhos nesse tal de Evangelho. Tanto que acabou perdoando Orlando. E, além disso, ele é muito paciente. Se fosse intolerante, até que daria para reverter. Mas do jeito que ele está, nenhum de nós consegue dobrá–lo. – Emilly! – Estou aqui – respondeu uma entidade com aparência feminina. Tratava-se da ex-esposa que havia sofrido a pérfida traição de


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Dickson (Orlando), na época dos conflitos na Inglaterra. Juntara-se a Charles pelo mesmo sentimento de vingança. – O seu trabalho é com Stela – prosseguiu dando as ordens. – Logo eu? Apesar de todo aquele orgulho, tem hora que ela faz oração lá para uns santos e fica de um jeito que ninguém consegue chegar perto. – Ora, que fragilidade. Não viveu na nobreza e era toda chique? – Ah, não foi bem assim! Isso era o que Dickson falava. Mas ele, além de ser muito mentiroso, era, também, trapaceiro! – Bem, seja lá como for procure imaginar a sua própria imagem, ricamente vestida, portando joias e fique na espreita. Logo que ela dor‑ mir e deixar o corpo, apareça e convide-a para ir ao palácio a convite da rainha da Inglaterra, pois que deseja condecorá-la. Isso vai dar cer‑ to, porque ela sonhava, como ainda deve acontecer, com ambientes ricos, ter as considerações do palácio, mas como se tratava de uma plebeia, morreu como mendiga, sem conseguir o seu sonho. Está tudo guardado nela mesma. Se você for esperta, vai acabar despertando na mente dela essas lembranças. Logo que ela for atraída, traga-a, pois faço questão que ela saiba quem sou e do que agora eu sou capaz. O espírito dirigiu o olhar a cada um dos seus comandados e concluiu: – Creio que todos vocês estão aptos às tarefas e sabem, diante de um fracasso, quais são os resultados.

de chegar da praia, onde havia escrito o último poe‑ ma ditado por Espírito do Mar, quando viu Helenice se aproximando. – Nice, você aqui, a essa hora? – Eu não trago boas notícias. Seu irmão Gildo foi detido, hoje, ten‑ tando arrombar a porta de uma casa para roubar. – Mas como isso pode ser, se ele sempre teve nas mãos tudo que queria? Stevens acabava


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– Isso, provavelmente, foi o que o prejudicou. Agora, porém, ele não tem a quem recorrer... Não sei se você já tem conhecimento de que o seu pai perdeu tudo o que tinha, até mesmo o dinheiro que guardava num cofre secreto, em casa. – Como você soube disso? – Numa conversa entre dona Almerinda e Gilza, sua irmã, que, in‑ clusive, deixou a casa onde estava se sentindo mal, e foi residir com os pais do namorado. Helenice se concentrou e, em prece, pediu orientação aos trabalha‑ dores espirituais da Casa Espírita. Em seguida, mais animada, falou segura de si: – Stevens, eu estarei do seu lado em tudo que você achar que eu posso. O jovem pescador dirigiu o olhar àquele rosto jovem e belo e fa‑ lou emocionado: – Nice, eu tenho algo muito importante para dizer, mas agora não é o melhor momento. – Eu também, Stevens, intenciono dizer algo, mas também penso que não é hora de palavras, por mais belas que sejam, mas sim de ação! No dia seguinte, Stevens foi visitar o irmão na detenção. Chegou em frente à grade da cela onde Gildo se encontrava recluso e assustou-se ao perceber, pela clarividência, que imagens com deformações assustado‑ ras movimentavam-se na sua aura, cujo tom variava do cinza ao escuro. Mesmo sem ter certeza de que se tratava de entidades espirituais ou simplesmente imagens criadas e alimentadas no plano energético por pensamentos de baixa vibração, elevou os sentimentos e direcionando-os a Jesus, o divino mestre, fez, silenciosamente, uma sentida prece. Gildo, por sua vez, vendo-o assim em silêncio, desviou o olhar e baixou a cabeça. Não tinha coragem de encarar o irmão, pois ao vê-lo ali, certamente impulsionado pela solidariedade, lembrou-se imediata‑ mente da agressão desnecessária e brutal por ele desferida e sentiu‑se pequeno diante da capacidade de perdoar, o que naquela existência


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ainda não havia experimentado. Assim, acabou permitindo que o or‑ gulho o influenciasse e reagiu abruptamente: – Não quero a sua compaixão. E, se veio para me censurar, não volte mais aqui! – Gildo, quem sou para censurá-lo? Vim trazer o apoio que qual‑ quer pessoa precisa, quando em dificuldade. – O apoio que preciso é dinheiro, o que você e ninguém mais da nossa família tem! – Eu farei o que estiver ao meu alcance. Stevens tinha consciência de que não deveria tomar o fardo de ou‑ trem e pôr nos seus próprios ombros, contudo, ajudá-lo a carregar. Mesmo assim, ao deixar o irmão procurou saber o valor necessário a ser pago em forma de multa para libertá-lo, o que o deixou convicto de que precisava pescar muito mais para adquirir a importância. Ao chegar à casa, Juvenal, que se encontrava em pé na entrada, disse-lhe sorrindo: – Não se esqueça de pôr em prática uma das mais belas lições do mestre: “Não vos preocupeis com o dia de amanhã. Não basta a cada dia o seu próprio labor?” O pescador já havia compreendido o que Jesus quis transmitir a todos nós: Aquele que ocupa sua mente com o porvir, acaba não cumprindo os deveres de cada dia por causa da aflição que impõe a si mesmo. Apesar da ajuda recebida, Stevens, com os olhos lacrimejando, abraçou o amigo pescador: – Ainda bem que o considero meu guia espiritual encarnado. Teceu alguns comentários sobre o problema do irmão, e narrou em detalhes as imagens que havia percebido na aura de Gildo e concluiu pedindo explicação ao velho pescador que, depois de permanecer me‑ ditativo por instantes, explicou: – Não é de estranhar, porque se a morte do corpo físico não mo‑ difica ninguém, nem para o bem nem para o mal, os que se deixam


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arrastar pelos vícios, ao desencarnarem, continuam sentindo a mesma necessidade que por desventura criaram e, o único interesse que pas‑ sam a alimentar, é, justamente, satisfazê-la. – De que maneira conseguem satisfazer tal necessidade, já que não mais se encontram no corpo físico? – Aproximam-se do usuário de drogas encarnado e inalam ener‑ gias características da química da qual são dependentes e acabam sen‑ tindo o mesmo efeito, como se encarnados ainda estivessem. Assim, compreendemos que todo viciado tem sempre, ao seu lado, espíritos desencarnados que compartilham da mesma viciação. – Vícios de qualquer natureza, assim como usuários do tabaco e do álcool, por exemplo? – Sim. E também do sexo desregrado, que sempre estabelece a vi‑ ciação. Cada criatura vibra na faixa que lhe corresponde. – Impressionante! Mas voltando ao caso de Gildo, teriam sido os espíritos que percebi ao seu lado os causadores da sua viciação? – Nem sempre são os espíritos desequilibrados os culpados pelos erros, desventuras e enganos que cometemos. Muitas vezes, eles são, apenas, atraídos pela nossa faixa vibratória. – Tomei a decisão de tirá-lo de lá e, por conta disso, terei que traba‑ lhar muito mais para adquirir a importância correspondente ao paga‑ mento da multa. Depois de ouvi-lo atentamente, Juvenal alertou-o: – Você está se deixando arrastar pelas emoções, a ponto de esque‑ cer a ordem da construção: “pedra sobre pedra”, cujo sentido deve ser aplicado, preferencialmente, em qualquer ação de ordem moral e espiritual. Explico: Antes de agir, devemos pensar com cuidado, para concluir se a ação do jeito que pensamos vai ser benéfica ou maléfica para si mesmo e principalmente para quem dirigimos a nos‑ sa atenção. Fez propositadamente uma pausa, para dar tempo a Stevens de assimilar e prosseguiu:


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– Sem nenhuma crítica, mas o seu irmão Gildo, que desfrutava de liberdade total, tendo com facilidade tudo o que desejava, não soube pautar em sua vida algo que lhe trouxesse dignidade. Não poderia ser diferente, diante da educação distorcida e equivocada que recebeu, principalmente de Orlando, talvez por imaginar que fazendo todas as vontades dos filhos estaria sendo um bom pai, quando na verdade um pai bom é aquele que consegue amar e com esse mesmo amor discipli‑ ná-los, para que sejam, no futuro, homens e mulheres de bem. “A pressa em tirá-lo da prisão poderá prejudicá-lo ainda mais, pois ele a essa altura, tem necessidade de conhecer limites. E, além disso, é possível que aos poucos consiga amenizar o desejo pelas substâncias químicas de que vem fazendo uso. Os espíritos viciados, que ainda se en‑ contram com ele, logo o deixarão, já que não encontram mais o que lhes interessa. Estando ele em liberdade, já que não conta mais com as benes‑ ses do pai, é possível que volte à busca de dinheiro por meio do furto. Certamente, o seu fornecedor não reside nesta cidade, pois não há outro caso semelhante por aqui. Deve conseguir a droga por correspondências, provindas até mesmo de outro país. No futuro, as autoridades deverão criar uma fiscalização para esse tipo de prática e coibi-la, antes que esse mal se torne uma mácula na integridade moral da juventude do porvir.” – É verdade. Ele, logo depois que retornou de uma viagem ideali‑ zada e patrocinada pelo meu pai a alguns países da América do Sul, passou a receber correspondências e até pequenos pacotes que escon‑ dia cuidadosamente, afirmando, apenas, que eram presentes de um amigo. Nesse caso, não devo ter pressa de tirá-lo de lá! – Tudo tem a sua boa hora para se tirar do sofrimento um bom pro‑ veito. E falar em bom proveito, aproveitemos o dia, hoje, para o descanso! Stevens aceitou, de bom grado, a sugestão, mas como já estava ha‑ bituado em todas as manhãs a se dirigir à praia, para lá seguiu. Sen‑ tou-se na mesma pedra e passou a se despojar da carga pesada das aflições que vivia naqueles dias. À proporção que acalmava o íntimo e direcionava a mente para algo agradável, sentia-se leve e envolto nas


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vibrações da natureza. E já que o mar se tornara para ele o foco da sua apreciação e admiração, passou a observar o movimento ondulatório e a mudança da cor azulada para o verde, toda vez que passava uma nuvem fazendo sombra na água. Em instantes, percebeu, com alegria, o mesmo foco de luz aos poucos se aproximando, como se deslizasse sobre as ondas. Mesmo encantado e absorvido com o que via, passou a ouvir uma música, entoada por uma voz tão bela, que o deixava ex‑ tasiado. Minutos depois, o canto em louvor à natureza, expressão do Divino Senhor do Universo, foi cessando e Espírito do Mar, já em sua frente, cumprimentou-o com um sorriso, para ele tão belo quanto a flor abrindo as suas pétalas ao toque dos primeiros raios do sol na manhã. Stevens passou a observar, minuciosamente, aquele ser com aparên‑ cia feminina, quando um detalhe lhe chamou atenção. Nas primeiras vezes, imaginava ser a claridade sobre a cabeça do espírito uma coroa composta de brilhantes, por causa da intensa luminosidade. Ali, no en‑ tanto, com a vidência bem mais apurada, percebeu que se tratava de pontos luminosos de cores variadas, que formavam a auréola em volta da cabeça (perispiritual) do espírito. O que antes lhe dava a impressão da imaginária coroa, provinha do grau de adiantamento espiritual, o qual a identificava pela capacidade de amar, indistintamente, a todos e tudo que se referia à criação da Mente Divina. Era esse amor profundo que iluminava a entidade espiritual. Em referência à música que entoa‑ va, era um modo de acalmar os ânimos e equilibrar a mente de Stevens e que fazia parte das tarefas redentoras do espírito, no sentido de ajudá‑lo a crescer moral e espiritualmente, cumprindo, da melhor forma possí‑ vel, o que havia prometido na espiritualidade, para a atual existência. Momentos depois, a observação do jovem pescador foi interrompi‑ da pelo espírito, que lhe disse sorrindo: – Ponha o amor na frente de todas as suas decisões. Não simples‑ mente dizendo que ama, mas sobretudo agindo. Enquanto a palavra materializa o pensamento, a ação pode se tornar a extensão do pró‑ prio amor.


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Ele ouviu atentamente a recomendação da entidade, contudo, se encontrava tão curioso em relação a ela que arriscou uma pergunta: – Por favor, diga-me, se for oportuno: Quem é a senhora? – Sou como você mesmo, um espírito criado por Deus para a eternidade. – Por que a senhora prefere viver no mar? – Sem entrar em pormenores, o mar é, periodicamente, o meu cam‑ po de ação, onde cumpro deveres determinados por instrutores espiri‑ tuais que se encontram bem acima das minhas simples possibilidades. – O que é o mar para a senhora? – É o laboratório da vida, aqui na Terra, criado por Jesus, como intérprete da vontade de Deus. Porque Stevens ficara pensativo, ela completou: – Foi ele mesmo quem afirmou: Antes da Terra, eu já era. Significa que ele já existia antes da criação do planeta. Espírito do Mar, como foi denominado por Stevens, para não ter que se aprofundar em conhecimentos que ele não se encontrava, ainda, preparado para a devida assimilação, concluiu assim o assunto: – Não esqueça a recomendação que lhe foi feita, pelo nosso queri‑ do irmão Juvenal: Pedra sobre pedra... A lógica da construção. Não se constrói uma parede começando de cima. Também os conhecimentos seguem essa mesma ordem. – Mas eu gostaria, ainda de saber, até quando a senhora vai viver no mar – insistiu curioso. – Não vivo no mar. Nele há sempre muito a ser feito em prol da vida, seja ela espiritual ou simplesmente material. Ele continuará sen‑ do o meu campo de ação, até quando as suas tarefas forem concluídas, pois as suas fazem parte, também, das minhas. Fez pequena pausa e disse: – O rumo de todos nós é o ilimitado! Do mar, onde começou a vida no planeta ao infinito! Esse é o nosso eterno campo de ação, pois há muita aprendizagem e experiência a serem adquiridas. Abrande o seu


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íntimo e tente eliminar inquietudes mentais geradas pela vontade, ain‑ da, indisciplinada, de querer saber tudo de vez, sem o cuidado de fil‑ trar e dosar, como faz o conta-gotas que estabelece a dosagem certa do medicamento, pois sem isso, em vez de contribuir para o reequilíbrio do corpo físico, poderia deixá-lo em situação ainda pior do que antes se encontrava. Assim, também, são as revelações que nos chegam. Fil‑ tradas pela alta espiritualidade, tendo no topo Jesus, são dosadas de acordo com a possibilidade de entendimento de cada um. Fez nova pausa e logo que notou que Stevens havia assimilado o sentido do que falara, prosseguiu: – O ato de servir assemelha-se a um livro aberto, no qual pode‑ mos adquirir com firmeza o conhecimento de nós mesmos, para em seguida compreender as situações vivenciadas por outros. Sem isso, dificulta-se o estabelecimento da paz. Contudo, se alguém o procurar solicitando ajuda, faça o que estiver ao seu alcance, mas não deixe, em nenhuma hipótese, de contribuir para o bem. Se o procuram, em vez de outro, é porque a tarefa é exclusivamente sua. Mas isso não exclui a possibilidade de receber cooperação, pois até Jesus aceitou com grati‑ dão a ajuda do Cireneu, que lhe tomou a cruz e a pôs nos ombros. Silenciou por alguns instantes e concluiu: – Firmeza nas decisões, vontade de realizar, autoconfiança e fé con‑ substanciada na razão são importantes para a necessária experiência no desenvolvimento do bem comum. Terminou de falar e a claridade que mantinha sobre a cabeça am‑ pliou-se, formando um só foco de luz e sumiu nas águas irrequietas do mar.


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Capítulo 6

Semeando e colhendo Sem sensatez, a coragem torna-se um veículo sem freio. Dizzi Akibah

deveria recuar, perdendo a oportunidade de cumprir os compromissos assumidos para com os familiares, Ste‑ vens tratou de pedir a colaboração da casa espírita, onde, àquela altu‑ ra, já atuava satisfatoriamente. Além do desejo de conhecer as causas geradoras dos desagradáveis efeitos experimentados pelos componen‑ tes da sua família e por ele mesmo, para poder harmonizar intima‑ mente o pai, pois o seu interesse maior se prendia à reconciliação. Com esse propósito e tantos outros compromissos assumidos, a sua vida tornara-se tão corrida, que parava apenas para dormir. Ainda assim, durante o repouso do corpo físico, procurava estar na presença de es‑ píritos mais experientes, com quem, aos poucos, buscava orientações necessárias para o seu aprimoramento. Assim é que, oito dias depois do pedido de colaboração dos compa‑ nheiros do ideal espírita, voltou à casa dos pais. Se na última vez que lá estivera, saíra impressionado com a difícil situação que eles viviam, dessa vez, encontrou fortes motivos para uma aflição ainda maior.

Compreendendo que não


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– Mãe, sou eu! Stela abriu a porta e chorosa apoiou a cabeça no ombro de Stevens. – Oh! filho! Ainda bem que você apareceu! Nós estamos na imi‑ nência de uma inevitável desnutrição por falta de alimento, pois não temos mais nada para vender. Até as minhas joias foram todas empe‑ nhadas – falou cortando as palavras, pois chorava copiosamente. O jovem pescador abraçou-a carinhosamente e passando a mão so‑ bre os cabelos já grisalhos da mãe, tinha a intenção de infundir-lhe pela vibração amorosa, o bom ânimo para que ela suportasse as amarguras sem revolta e sem desespero. Em seguida, vendo-a mais calma, diri‑ giu-se pelo pensamento a Jesus, pedindo forças e entendimento para seguir em frente com dignidade, confiança e fé. Ainda abraçado à mãe, passou a ouvir por meio da sensibilidade mediúnica, o ruído das on‑ das do mar que em instantes foram se distanciando, dando lugar à voz de Espírito do Mar: – Não se entristeça e tampouco se deixe influenciar por sentimen‑ tos adotados por quem, ainda, necessita experimentar a técnica de uma educação mais rigorosa para reajustar-se às leis do Divino Senhor. Em vez de chorar com ela, enxugue as lágrimas, despertando esperança e esclarecendo bondosamente. Que sua força seja o amor. Que a co‑ ragem seja a razão. Percebi o seu clamor ao mestre e, na condição de humílima serva, farei tudo que as leis divinas, do livre-arbítrio e de causa e efeito permitam. Sentindo-se apoiado, ele levou a mãe para a área ajardinada da casa. Embora não houvesse, como outrora, a beleza das flores, ainda era um recanto agradável pelo envolvimento do silêncio. – Mãe, eu desejo esclarecer algumas coisas que a senhora precisa muito saber, para amenizar o seu sofrimento, que se acentua muito mais nas perdas do que nas reais necessidades – falou carinhosamente. – Sim, meu filho, eu não consigo compreender por que perdemos tudo, a ponto de... – Mãe, às vezes, o que se considera perda, se trata, apenas, de


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um desafio para novas conquistas. Na verdade, não somos proprie‑ tários, e sim, depositários dos bens materiais, que são colocados ao nosso dispor, muitas vezes, como provação ainda maior do que a situação de pobreza. E quando os referidos bens são retidos egois‑ ticamente, por falta de desprendimento e de observação às necessi‑ dades gritantes dos que vivem na pobreza extrema, os que assim se comportam, certamente, ainda necessitam passar por esses mesmos vexames para sentirem como dói ser tratado com indiferença e frie‑ za de coração. Vendo a mãe pensativa, certamente tentando compreender o que ouvia, ele fez uma pausa, que foi interrompida com o olhar de expec‑ tativa de Stela. Ele, então, continuou: – E esses que vivem com essa carga pesada de dificuldades sofrem muito mais quando lhes negam, não apenas o pão, mas a caridade de um olhar, de um aperto de mão... A atenção funciona como bálsamo reconfortante para os corações amargurados. Assim, mãe, em vez de lamento, amargura, tristeza e inconformação, agradeça a Deus a opor‑ tunidade de um recomeço, desapegada dos bens materiais e conven‑ ções sociais, em que viceja o orgulho e o interesse. Em vez de uma perda, foi, acima de tudo, uma providência divina, já que Deus ama a todos por igual. “Agora, mãe, eu chego ao ponto que desejo. Foi com esse pensa‑ mento adotado na família, que não consegui me adaptar, desde quase menino, aos costumes do nosso lar. Se eu não aceitava intimamente, também, não poderia compartilhar, a não ser que faltasse com a minha própria sinceridade. Creia que não foi a minha saída daqui que ge‑ rou toda essa situação, mas sim o orgulho que está para o meu pai na condição de doença moral que deve ser debelada. E o remédio, já que ele ainda se encontra endurecido nas suas ideias equivocadas, é a dor. Hoje, mãe, sou Stevens liberto das amarras com que as convenções sociais elaboradas pelo interesse de ter prendem a quem ainda não compreendeu que não é, originalmente, apenas corpo físico... Maté‑


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ria... Forma perecível, mas sim espírito imortal, projeto divino saído da pureza do amor do Pai Magnânimo.” O jovem pescador, com a rede do amor, tentava atrair para a ver‑ dade, aquela a quem ele passara a dedicar todo afeto, toda dedicação e toda assistência amorosa. Cuidadoso para não ser enfadonho e perder o ensejo de despertá-la para algo melhor, parou de falar disposto a en‑ cerrar. Mas depois de alguns minutos, ela pediu que ele continuasse, porque estava lhe fazendo bem. Mas ele preferiu concluir, por saber que a conversa longa, por mais agradável que seja, pode cansar a quem ouve e concluiu assim: – A vida física é apenas uma oportunidade de crescimento espiri‑ tual nessa escola, cujos alunos somos todos nós. Aproveitar o melhor, eis o objetivo, porque nada que se encontra em volta de nós levamos quando de retorno à pátria espiritual, mas sim o bem que fazemos, não somente a nós, mas conforme a lição de Jesus, querendo para os outros, o que desejamos para nós mesmos. Dos olhos de Stela não mais fluíam as lágrimas insistentes de há pouco, mas o olhar fixo projetado no rosto do filho, de quem, sedenta, bebia da água da vida. Logo que Stevens parou de falar, ela passou a mão no rosto do fi‑ lho, onde a barba crescida dava-lhe uma aparência bem mais adulta e falou pela primeira vez, naquela existência, pela voz do amor materno: – Mesmo que o coração tivesse voz, não diria o que eu sinto nes‑ te momento, por falta de expressão. Mas pelo menos posso falar ago‑ ra, com toda convicção, que te amo como verdadeira mãe e descubro que, antes onde eu pensava haver obscuridade, era justamente onde se acendia uma luz, a qual, por meio de você, me faz, agora, compreender melhor a vida! Stevens falou, segurando carinhosamente as mãos de Stela: – Preciso muito da sua colaboração para ajudar meu pai, já que ele ainda não deseja me ver – falou o jovem pescador. – Sou sua aliada! – respondeu ela, demonstrando deliberação.


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O jovem pescador beijou o rosto de Stela e despediu-se, deixando-a mais refeita e animada. Entretanto, ele compreendia que os seus pais não necessitavam tão somente de esclarecimentos, porque o alimento está para o corpo físico como o amor para a alma. No dia seguinte, Stela, apesar do efeito positivo do que ouvira do filho, se encontrava agoniada, porque já era quase meio-dia e, sem gê‑ neros alimentícios, sequer havia preparado o almoço, quando ouviu alguns toques na porta. Ao abri-la, ficou visivelmente abismada ao ver Stevens em pé junto ao mesmo carrinho de madeira, cheio de peixes. Antes que ela dissesse alguma coisa, ele falou em bom tom: – Mãe, eis aqui o seu jovem pescador! Ela não deixou de sentir um pouco de constrangimento, todavia, procurando ocultá-lo, exclamou: – Oh, meu filho, esse trabalho é muito cansativo! Ele, então, respondeu sorrindo: – Mãe, não é o trabalho duro que amansa o burro? Stela, achando engraçado o jeito do filho, também sorriu. Mas ao ver a atitude simples e bondosa de Stevens separando os peixes que ela mais gostava, não resistiu e logo o rosto estava novamente molhado pelas lágrimas, dando vazão a novos sentimentos que despertavam ao toque carinhoso do filho. Já Orlando, por sua vez, tornara-se sem ação. Permanecia quase todo o tempo no quarto. Quando não estava deitado, se encontrava debruçado na janela, com o olhar distante, alheio a tudo em sua volta. Desde a hora que Stela entrou e foi na direção da cozinha para tra‑ tar os peixes, ele se queixava da má situação que experimentava, cul‑ pando raivosamente Stevens e só parou quando Stela chegou à porta do quarto: – Orlando, se você não quer se esforçar para compreender melhor e perdoar a você mesmo, que cometeu um sério equívoco, pelo menos, esqueça-se de Stevens e venha almoçar. – Almoçar o quê, Stela?


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– Venha! Comeu como um felino faminto e logo que terminou, comentou já com outro humor: – Não imaginava que você sabia fazer uma comida tão saborosa! – Não é que eu, realmente, saiba cozinhar. A fome, quando imagi‑ namos não ter o que comer, se torna pior e até torturante. Mas é bom nunca deixar de acreditar nas pessoas, que às vezes chegam na hora certa de prestar socorro. – Não me diga que você está por aí, a pedir comida! – falou ainda impulsionado pelo orgulho. – Não falta socorro a quem tem filhos. – Que filhos, Stela?! Gildo na prisão, por causa do mau comporta‑ mento; Gino, ingrato, abandonou a casa por causa de uma namorada; Gilza se envolveu com inimigos da família e preferiu residir lá com eles, nos deixando neste momento tão difícil. Geilza, a melhorzinha de todos, também não se encontra. Preferiu pensar nela e foi embora. Volto a perguntar: Que filho, Stela? A mulher perplexa com a atitude de Orlando que, sequer, se referiu a Stevens, reagiu: – Justamente o que você não considera como filho é, no momento, o único capaz de nos socorrer. Não que tenha alguma coisa material. Mas que possui a maior riqueza que o ser humano pode adquirir, que é a capacidade de amar, o que o torna bondoso e caridoso. Pois fique sa‑ bendo, Orlando, que foi ele quem saciou, hoje, a nossa fome e ainda me deu um pouco de dinheiro da venda dos peixes. Ele chegou, encostou aquele mesmo carro velho de madeira, que você tanto odiava, junto à porta e me entregou o que mais precisávamos no momento para matar a fome que já estava nos torturando! – Ele?! – Sim. Desde que saiu daqui, acorda todos os dias ainda de madru‑ gada e, mar adentro, busca por meio da pesca não apenas o seu próprio sustento, mas também, para muita gente, onde a desventura bate à porta.


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O impacto, causado pela informação, deixou-o com os olhos imensamente arregalados. Só depois de alguns minutos é que ele se expressou: – Não posso aceitar isso! – Pode e deve – respondeu Stela, demonstrando uma atitude bem diferente, de todo o tempo em que vivera subalterna a ele e prosse‑ guiu falando: – Acabemos de vez com essa aversão ao nosso próprio filho, que, além de bondoso, é honrado no que faz e como faz. E, além disso, se encontra sempre alegre, porque faz o que gosta, sem que ninguém for‑ ce a sua vontade. – Você também já está pensando assim? – Sim, Orlando! É melhor ser um pobre bondoso e honrado do que um rico frio e sem caráter. Daqui para frente, eu desejo ser a verdadei‑ ra Stela que, por imposições equivocadas, dormiu todo esse tempo na ilusão. Mas agora acordou! Não vou ficar segregada entre as quatro paredes desta casa por medo de encontrar aqueles que se imaginam no mesmo pedestal que pensávamos estar. Vou sair sem me importar com os olhares de censura ou de maledicência que a mim serão dirigi‑ dos, observando, talvez, a roupa desbotada e os braços sem o adorno das ricas joias. Estou bem sem elas. Quero ser, apenas, Stela, a mulher que foi transformada em esposa e mãe, mas também, numa marionete dessa sociedade repleta de insensibilidade e egoísmo. Orlando, perplexo com a mudança repentina da esposa, calou-se. Afinal, foi ele mesmo que exigiu, desde que se casou, que ela mudas‑ se, radicalmente, o jeito de viver, não para si, mas para dar satisfação aos outros.


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Capítulo 7

Circunstância inesperada Nada, por muito valor que aparente, pode ser comparado à prática do amor ao próximo. Dizzi Akibah

Juvenal, na sombra de uma árvore, quando o bom pescador apontou para o caminho: – Olha quem está chegando! – Helenice! – exclamou Stevens, satisfeito. Juvenal, discreto, saiu, como sempre sorrindo, deixando o jovem amigo à vontade. – Vim me despedir de você! – como Stevens ficou sem reação, ela prosseguiu: – Eu disse um dia, quando comecei a estudar, que não gostaria de parar até conseguir o meu ideal. Lembra? – Sim, lembro, mas não imaginei que isso ocorresse por agora! – Mas chegou a oportunidade. A esposa do filho de seu Juliano que é gerente de banco, em São Paulo, me convidou para trabalhar na sua casa, prometendo que me ajudará nesse sentido. Acho que não devo perder essa oportunidade. – Nice, eu tinha uma coisa para... – Eu também tinha... Não! Tenho uma coisa para dizer... Stevens conversava com


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Embora tímido, ele tomou a palavra: – Para dizer que... Notando a timidez que ele demonstrava, ela foi taxativa: – Eu também tenho para dizer, Stevens, que te amo muito! – É pena que só agora, nós... – Nós só não falamos um ao outro, mas sentíamos! O amor precisa de palavras? Não estamos começando, numa despedida de sentimentos interrompidos, mas num momento repleto de esperança e alegria no fu‑ turo. Futuro que desejo que seja tão belo quanto a própria vida, porque o vivo agora e viverei sempre com você e o nosso porvir espiritual. E assim, salvo Juvenal, o pescador, a quem Stevens considerava pai, ele não mais contava com a irmã Geilza, companheira de atividades na casa espírita e por último Helenice, que vinha prestando colaboração valiosa em relação aos problemas espirituais ligados à sua família. Logo que Helenice saiu, Juvenal, vendo-o triste, intencionou con‑ versar para reanimá-lo, mas recuou, compreendendo que era mais proveitoso deixá-lo com os seus próprios pensamentos. Contudo, isso não ocorreu porque antes que ele saísse do local onde se encontrava, Xandinha, como era tratada carinhosamente por todos, veio correndo em sua direção, parou de vez em sua frente e foi logo perguntando: – Por que você está triste? – Não se importe com isso não, amiguinha! Gente grande tem, às vezes, esses sentimentos. Quando você crescer, saberá. – Eu não sou ainda gente grande, mas sei por que você está assim. É porque vai sentir saudade de Nice! Não precisa ficar assim, porque ela vai voltar e eu, também, gosto de você. Não é como Nice que já é gran‑ de e quer um dia se casar. Eu ainda sou pequena e o que eu mais queria ter era um pai. Mamãe disse que tenho um, mas eu não o conheço. – Então, se você não o conhece, não sente saudade! – Mas não é por causa de saudade. Eu queria segurar a sua mão, conversar com ele, assim como eu converso com você e fico alegre. Se você se casar, vai ser um bom pai, não vai?


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– Se Deus me permitir realizar isso, Xandinha, pretendo ser. – Você já queria ser pai agora? – Agora ainda não, porque ainda não me casei. – Oh! Se você quisesse, eu ia pedir para você ser o meu pai! Stevens, emocionado, suspendeu a menina até a sua altura e disse: – Xandinha, eu já me sinto seu pai, desde o dia que prometi que você não choraria mais de fome. Lembra? – Lembro. E eu nunca mais chorei, porque você me leva a comida. – Bem, já que você quer ser minha filha, embora não tenha nascido de mim, o amor que sinto por você é realmente de pai. A partir de ago‑ ra, eu sou seu pai! Stevens sequer suspeitava que ali se encontrava Brigid, que fora sua filha na Inglaterra, na existência anterior à atual. Por causa do com‑ portamento não recomendável, exemplificado pela mãe, o que provo‑ cou muito sofrimento ao pai, não teve o direito de renascer novamente Xandinha como sua filha biológica. Mas ainda assim teria, doravante, o amparo amoroso de Stevens. Tanto que, eufórica, ela perguntou: – Posso contar à mamãe? – Pode sim. Xandinha saiu correndo, cheia de alegria, para contar para a mãe que agora tinha um pai. A mãe atual de Xandinha fora, na mesma existência a qual nos refe‑ rimos anteriormente, empregada da casa. Ambas viveram sérios desen‑ tendimentos, o que agora deveriam sanar na condição de mãe e filha. Juvenal, ao perceber a fisionomia alegre de Stevens, se aproximou já falando: – Linda essa criança! – Tão linda quanto inteligente. Ela me fez crer, agora, que realmen‑ te a vida nos traz muita surpresa! Fui levado, por ela, a ser pai antes mesmo de saber se um dia constituirei família. – Como dizer isso, diante de tanto sentimento entre você e Helenice? – Helenice, certamente, vai conseguir o seu intento. Depois de for‑


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mada, mesmo que queira, não lhe será conveniente retornar, deixando para trás oportunidades profissionais que só as cidades grandes ofere‑ cem. Fazer o quê aqui? E no mais, seus hábitos mudarão. Em alguns anos, ela estará envolvida com outro tipo de vida mais promissora. Eu, no entanto, gosto do que faço e não pretendo mudar, a não ser por cir‑ cunstâncias que exijam isso de mim. Penso que não seria justo ela se ca‑ sar com um pescador, que gosta de andar vestido em qualquer roupa, calçando um velho chinelo, como esse aqui, com as mãos calejadas e a pele tostada pelo sol e ainda mais sem a mesma instrução. Estou certo que ela veio, mesmo pensando que não, para um verdadeiro adeus. Minha vida vai ser assim, parecida com a sua! – Você não dirá isso depois que lhe contar a minha história, confor‑ me prometi. Em seguida, pôs a mão sobre o ombro do jovem amigo e falou com firmeza: – A sua história será bem diferente. Se você alcançar êxito nas ta‑ refas que assumiu, antes da sua reencarnação, conforme me relatou Espírito do Mar, a sua vida poderá até ser transformada em livro. Com o seu jeito simples de ser, Stevens não alimentava nenhuma ideia de destaque. Ouviu com atenção o que Juvenal lhe disse, mas preferiu mudar de assunto: – Por falar em livro, estive com seu Hermes na livraria e ele me in‑ formou que os poemas de Espírito do Mar serão publicados em breve. Antes do fim do ano.

dias após ter ouvido Stevens, começou a pôr em prática os seus novos planos. Parecia, realmente, outra pessoa, mas não conseguia ficar perto de Orlando, que falava quase o tempo todo. Queixas e lamentos pelo que perdeu e, apesar de estar sendo aju‑ dado por Stevens, ainda o culpava pelas suas desditas. Numa dessas oportunidades, ela se refugiou na área ajardinada, justamente onde Stela, depois dos primeiros


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havia conversado com o filho e lá permaneceu olhando o pôr do sol, cujos raios dourados, formavam nas nuvens um quadro de rara bele‑ za, que nenhum artista, por melhor que fosse conseguiria retratar. Na verdade, só mesmo o artista mais perfeito do Universo, Deus. Nesse estado de contemplação, começou a repassar o que ouvira do filho e lembrou-se de quando afirmou a ele que seria sua aliada, para juntos tentarem ajudar Orlando a mudar a maneira de pensar. Imediatamen‑ te, saiu da contemplação para o sentimento de culpa, já que em vez de ajudá-lo, estava se afastando dele. Levantou-se do banco e se dirigiu ao quarto, onde se habituou, a partir daquele momento, a fazer compa‑ nhia a Orlando e despertá-lo para assuntos diferentes, principalmente sobre o que vinha ouvindo de Stevens. Em poucos dias, Orlando já apresentava melhoras, tanto que propôs a Stela venderem a casa, pois esta se localizava num bairro conhecido como “dos ricos”. Tudo ocorreria bem, não fossem os espíritos que viviam ali mesmo na casa. Ao ouvirem a conversa, encheram-se de ódio, pois já se ima‑ ginavam com direitos à moradia. Charles, que liderava o grupo, tratou de cobrar, com energia, as últimas tarefas que havia distribuído para os seus auxiliares. Assim é que, Stela, apesar da melhoria que assina‑ lava, não manteve o equilíbrio ao se defrontar com acusações de algo que teria feito no passado. Numa noite chuvosa, ela, que mantinha muito receio de raios e tro‑ vões, deitou-se mais cedo. Logo que adormeceu, deixou parcialmente o corpo físico e saiu do quarto sem saber para onde desejava ir, quando viu se aproximando uma mulher (espírito), ricamente vestida, osten‑ tando joias, cujo brilho parecia ofuscar a sua visão. À proporção que o espírito se aproximava, chegavam a sua mente, lembranças de um passado distante, quando viveu na Inglaterra, numa existência cheia de tormentos por causa do desejo incontrolável que mantinha de sair da vida simples em que vivia com o esposo e filhos, para ser alguém de destaque, principalmente, ter oportunidade de chegar a ser conhecida no palácio real e adquirir prestígio e riqueza. Sonhava em se vestir


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como uma princesa, adornar o pescoço com valiosos colares e cobrir os braços com pulseiras reluzentes de pedras preciosas. Por causa desse forte desejo, que era o principal assunto das con‑ versas com as pessoas, acabou atraindo um homem que passou a cor‑ tejá-la, exercendo sobre ela uma alta carga de influência, afirmando ter parentesco com a família real. Mesmo sendo casada e tendo filhos, abandonou o lar e seguiu o cortejador, que prometera conduzi-la ao palácio real, o que ela não conseguiu, porque fora enganada e explo‑ rada perversamente pelo estranho, que a abandonou doente, sem lar e ainda mais: sempre fugindo do esposo traído, que a procurava para vingar-se. Acabou desencarnando num estado deprimente, e desper‑ tando no mundo espiritual apavorada ao defrontar-se com a própria consciência, pois sabia do grande débito contraído. Depois de muito tempo sofrendo nas zonas umbralinas, foi socorrida. No preparo para a reencarnação, foi avisada de que no futuro teria que conviver com os seus desafetos, dentre eles Charles, o esposo traído, para reparar o erro moral. No entanto, ele, na época, também desencarnado, en‑ contrava-se odiento e vingativo de tal forma que não contava com as condições desejáveis para retornar à vida material, mesmo em se tra‑ tando de reencarnação compulsória, porque, o sentimento de vingança que portava era de tal magnitude, que certamente ao reencontrar Mary Catherine reencarnada, em vez de tentar uma convivência reparadora, poderia provocar uma tragédia, complicando ainda mais a situação de ambos perante a justiça divina. Assim, foi deliberado pelos obreiros espirituais da colônia onde ela se preparava para a reencarnação que ela, Mary Catherine, viveria ao lado de Dickson, que havia criado um sério débito para com ela por ter contribuído decididamente para o seu deslize moral. Também desen‑ carnado, ele ensejava oportunidade de amenizar os erros cometidos. Dessa maneira, é que vamos identificá-los nas personalidades de Stela e Orlando, recebendo como filhos alguns dos que foram abandonados por ela e também por ele. Outros, no entanto, faziam parte do grupo de


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desencarnados que viviam na mansão, guiados pela fúria de Charles, tentando fazer justiça com as próprias mãos. Admirada e atraída pelas vestes e joias que a desconhecida ostenta‑ va, Stela não poderia imaginar estar diante de Emilly, que fora esposa de Dickson. Sem as condições favoráveis para o objetivo da reencarna‑ ção, por causa do ódio intenso que mantinha, ali se encontrava disposta a qualquer absurdo, conquanto que servisse de sofrimento, tanto para Orlando, quanto para Stela. Para isso foi que se uniu a Charles e aca‑ bou formando o grupo de desventurados, tão odiento quanto sofredor. – Venha – convidou sorridente e prosseguiu falando: – Por ordem da rainha, venho trazer-lhe um convite para uma festa que ocorrerá no palácio, quando serão condecoradas algumas pessoas do povo, pois sua majestade deseja que as portas do palácio sejam abertas para uma apro‑ ximação maior com o povo. Por causa do seu grande interesse que, de boca em boca chegou ao palácio, você acabou sendo uma das escolhidas. Stela, embora se encontrasse na sala de visita da sua casa, tão integra‑ da se encontrava nas lembranças daquela existência passada que mesmo estando no interior da sua atual residência, via um ambiente totalmente diferente. O corpo espiritual havia sofrido uma impressionante transfor‑ mação: Na existência atual, ela era de cor morena clara e cabelos pretos. Naquele momento, ela se apresentava de cor branca e cabelos louros. Emilly prosseguiu explicando: – Contudo, para que isso ocorra, você precisa, antes, estar com um mordomo do palácio para determinadas recomendações. Stela seguiu a desconhecida que logo parou de caminhar e sugeriu: – Siga essa direção – falou apontando com a mão – e vá conversar com ele. Antes de chegar ao compartimento indicado, ela começou a se lem‑ brar dos erros cometidos, do ódio do esposo traído, do repúdio dos filhos abandonados e tentou recuar, quando aquele que ela imaginava ser o mordomo apareceu de repente em sua frente e bradou a toda voz: – Mary Catherine! Enfim, traidora, nos reencontramos!


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Amedrontada, viu bem em sua frente Charles, o ex-esposo traído. Tentou evadir-se, mas ele a reteve segurando-a pelo braço: – Pensou que eu a havia esquecido, Mary Catherine! Agora, chegou a minha vez de fazer justiça! Você, insensível e maldosa, ainda agora sequer imagina o que significou para mim ficar com sete crianças, que choravam inconsolavelmente, por causa do seu abandono! Sofri com elas, até quando o tempo nos ajudou a transformar o pranto em ódio e revolta! Sabia que um dia eu te descobriria e esse dia chegou, para minha satisfação! Doravante, de tortura a tortura, você vai sucumbir! Sem piedade, vou aplicar os castigos que selecionei, de acordo com o que você merece. Logo que estiver fora do corpo, onde você pensa que se esconde, nós cuidaremos do julgamento. – Solte-me, pelo amor de Deus! – gritou ela amedrontada. Porque ele apertasse, cada vez mais, o seu braço, ela percebeu que não se livraria facilmente e começou a lembrar de Jesus, conforme Ste‑ vens lhe falara, mas ainda assim, o espírito ordenou: – Traz aí o fogo! Emilly, o mesmo espírito que a conduziu até ali, entrou no compar‑ timento onde se alojava com os demais e já com outro traje, retornou, trazendo nas mãos algo parecido com um tubo em forma de cone, do qual saía uma chama vermelha. Quando Charles segurou o objeto e ia aproximando, Stela passou a sentir a sensação de ardor nos olhos e, em segundos, escuridão total, como se houvesse perdido a visão. Em segui‑ da, sentindo uma quentura insuportável em todo o perispírito, que fazia arder a pele como se fosse queimadura, ela, então, reuniu forças e gritou: – Oh Jesus! Você que não condenou Maria de Magdala, tenha pie‑ dade, também, de mim! Dito isso, retornou ao corpo físico e despertou. O quarto esta‑ va escuro e ela imaginando que havia, realmente, perdido a visão, começou a chorar. Mas logo que percebeu uma pequena réstia do clarão da lua que penetrava pela fresta da janela, tentou se levantar, mas não conseguiu, pois não dispunha de forças para tal. Durante


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o resto da noite, ela não fechou os olhos, com receio de dormir. Orlando, que era sempre o último e se levantar, estranhou ao vê-la ainda deitada: – Stela, você está doente? – Tive um pesadelo horrível e acordei sem forças para levantar. Preciso de ajuda! – Oh Stela! Não podemos sequer chamar o doutor Eraldo, porque o nosso débito com ele já está muito grande e não há como pagar. – Eu não preciso de médico, mas sim da presença de Stevens. – Como chamá-lo aqui? Ninguém faria esse favor, porque todos são ingratos, interesseiros... – Orlando, pare de apontar os defeitos dos outros, porque nós também os temos, e ainda piores! Vá, então, você mesmo à Colônia dos Pescadores! – Eu jamais faria tal coisa! – falou já indo em direção à porta. Abriu‑ ‑a, foi até a calçada e ficou olhando os transeuntes, até que viu um rapaz, que sabia ser filho de um dos seus ex-empregados, e gritou: – Ei, rapaz! – Está falando comigo? O que o senhor quer? – Um favor! – Favor? Acho que o senhor esqueceu, facilmente, que ao demitir o meu pai, lá da sua empresa, nós passamos muita necessidade. Para o senhor, não faço nada – falou demonstrando ressentimento, virou-lhe as costas e saiu. Orlando continuou no mesmo lugar, até quando viu dois homens caminhando justamente na mesma calçada onde ele se encontrava. Logo que eles se aproximaram, Orlando se dirigiu: – Eu acho que conheço vocês. É que... Eu estou precisando muito de um favor. – Disse bem – respondeu um deles –, conhece e deve se lembrar de quando certa feita o procurei pedindo ajuda para comprar um remédio para um filho que estava muito doente. Além de não me ajudar, man‑


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dou me expulsar lá da empresa, como se eu fosse uma fera disposta a atacar. Como agora pede um favor? É bom que você saiba que a vida dá voltas e acaba retornando ao mesmo lugar. Depois de constatar que realmente não contava com mais ninguém, Orlando foi se dirigindo à porta da casa quando ouviu uma voz femi‑ nina chamando-o. Olhou para trás e ao ver uma mulher com aparência de mendiga, soltou a voz, nervoso: – O que é que você quer? Se for dinheiro, nem me peça, porque eu não tenho! – Não! Ao senhor eu não pediria nada, por saber que não seria atendida. Descobri isso desde quando proibiu os empregados da sua casa de me darem restos de comida que iriam para o lixo, alegando não querer mendigos na porta da sua mansão. Mas eu não tenho raiva do senhor por isso, por compreender que só as pessoas que já cultivaram a bondade são capazes de servir. Eu não o chamei para dizer essas coisas, mas sim para fazer o favor que estava pedindo há pouco às pessoas que passavam. – Então, você vá à Colônia dos Pescadores e procure um rapaz por nome Stevens. Diz a ele que Stela pede para ele vir aqui! – Ah! Stevens, seu filho! É justamente por ele que eu vou fazer esse favor, porque se trata de uma pessoa bondosa. Toda vez que o procuro se não tem uma moeda para me ajudar, me dá algo ainda melhor: sua atenção. Conversa comigo e me encoraja para vencer as dificuldades que tenho encontrado. A mulher saiu e Orlando entrou na casa cabisbaixo. Stela percebeu e perguntou: – Encontrou alguém para levar o recado? – Só mesmo uma mendiga seria capaz de me atender. Esse agora é o meu valor, a minha importância, o meu nível! – É como Stevens me disse: Cada um faz da sua vida, o que achar melhor... Ou pior! – respondeu ela. Ele silenciou. Afinal, que teria a dizer?


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Capítulo 8

Restaurando a paz O caminho para a conquista da fraternidade pode ser comparado à colheita de uma rosa. Embora ofereça beleza e perfume, a roseira não esconde os espinhos. Dizzi Akibah

– disse Célia ao abrir a porta. – Se não for incômodo, eu gostaria de falar com Gilza. – Um momento! – voltou à sala onde se encontrava Gilza, que perguntou: – De quem se trata? – Não disse o nome. É um homem com barbas crescidas, cor clara e a pele bastante avermelhada. Gilza ao chegar à porta, vibrou de alegria com a surpresa agradável! – Stevens, você aqui?! Nunca pensei que isso ocorreria! – Nunca deixe de pensar, por achar que algo é impossível de acon‑ tecer – falou já abrindo os braços para abraçá-la: – Vim vê-la, porque nesses últimos dias tenho sentido muita saudade de você. – A sua presença aqui me enche de alegria, porque a recebo como um apoio à decisão que tomei. Entendo que nem para todos das duas famílias! Mas não deixa de ser um traço de união, que mais tarde pode se tornar mais abrangente. Afinal, se o filho que estou esperando é – Boa tarde!


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neto dos meus pais, também é da mesma forma do seu Juliano e de dona Heloína. – Minhas felicitações, não só porque você vai ser mãe, mas, sobre‑ tudo, pela coragem de dizer “não” ao nosso pai, quando pretendeu interromper a sua gravidez, simplesmente por inimizade. Livrou-se, Gilza, de um crime dos mais sérios perante a justiça divina. – Vamos entrar – convidou ela. – Posso mesmo entrar na casa do seu Juliano? Você faz parte da família na qualidade de nora, cunhada... Eu, para essa família, sou ape‑ nas filho de Orlando e Stela. – Você mesmo comprovará como isso é possível, ao perceber o modo bom e fraterno com que seu Juliano e dona Heloína tratam as pessoas. Momentos depois, Gilza voltou à sala de braços dados com Stevens. – Acho que não preciso apresentá-lo, já que todos devem saber de quem se trata. Mas pressupondo que alguém não o reconheça, por cau‑ sa da sua atual aparência, apresento Stevens, meu irmão. – Seja bem-vindo a nossa casa – falou Juliano estendendo a mão ao visitante e, em seguida, ofereceu-lhe uma cadeira. Mas antes de sentar­ ‑se, Stevens sentiu alguém dando tapinhas de leve em suas costas: – E aí, cunhado?! Sua presença me alegra muito, principalmente por‑ que essa é a primeira vez que, depois de adultos, nos cumprimentamos. – É verdade. De certa forma, houve uma tentativa de dividir o nos‑ so mundo em dois. Um para a minha família e o outro para a sua. E você, Maurício, juntamente com Gilza, é responsável pela demolição do muro imaginário da suposta divisão. – Stevens, enquanto éramos crianças e adolescentes não entendía­ mos o porquê de certas coisas, contudo, à proporção que a vida foi nos proporcionando experiência, as coisas foram ficando mais claras. E como a tendência de tudo é fluir para o bem geral, mudamos, feliz‑ mente, para melhor. Mas não somos, eu e Gilza, os únicos responsáveis por essa benéfica mudança. Gino e minha irmã Kátia, também. E agora


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você, cuja visita nos faz muito bem. Mas isso não é novidade, porque o que ando sabendo sobre você, é de admirar! – Não diga isso, Maurício! Sou apenas um pescador. Minhas mãos calejadas são testemunhas do duro trabalho. Contudo, é a finalidade que me proporciona a alegria de viver. Juliano pegou a cadeira e aproximou-a de Stevens: – Sente-se aqui. Para quem trabalha duro, conforme você acabou de dizer, tem que descansar as pernas. Será, mesmo, que só as pernas dos mais velhos doem? Stevens sentou-se junto a Heloína e Juliano que, interessado em saber mais sobre o visitante, perguntou: – O que lhe dá forças, meu jovem, para seguir em frente e cumprir tanta responsabilidade com os seus tutelados? – O amor pelo que faço, a satisfação de fazê-lo e a alegre emoção do resultado, que não deixa de ser o efeito de uma boa causa. – Sobretudo admirável – exclamou Juliano e, querendo prosseguir a conversa, perguntou: – Posso ser um pouquinho indiscreto? – Acho que o senhor nunca seria realmente indiscreto, porque pos‑ so perceber que as suas intenções são as melhores. Afirmo, inclusive, que as minhas intuições estavam certas a respeito do senhor. – Oh! Depois do elogio, que não me sinto, realmente, merecedor, penso até em desistir, com receio de provar o contrário – falou sorrindo e deu prosseguimento à conversa: – Mas de qualquer jeito, vou arris‑ car. Pode me dizer alguma coisa sobre as aparições que você presencia no mar? – Trata-se de um espírito. – Por que no mar? – Disse-me apenas que se encontra em importantes tarefas, desig‑ nadas por espíritos de maior elevação. – O que teria um espírito a fazer no mar? – São os espíritos, seu Juliano, que atuam em todos os fenômenos da natureza. E o mar é o laboratório da vida física no planeta. Foi lá


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que surgiram as primeiras formas físicas, que aos milhares ou milhões de anos povoaram a Terra. Tudo obedece a um planejamento divino, o que nos faz entender o que diz o Evangelho: Até as folhas das árvores não cairiam, se não fosse a vontade de Deus. – Quanto mais lhe ouço, mais curioso fico. A que seria realmente voltado esse trabalho? – Dentre tantos outros que Espírito do Mar ainda não revelou por faltar em mim capacidade para entender, disse-me, apenas, que há uma imensa quantidade de espíritos atuando na tentativa de intuir na mente dos homens a necessidade de manter o planeta sem poluição, principalmente a água, indispensável à vida, e de evitar invasões in‑ convenientes de espíritos que insistem em agir no mal e se organizam tentando combater o bem. Mas, felizmente, Deus não permite que o mal sobrepuje o bem. Foi para isso que enviou Jesus Cristo, que veio com nobres propósitos de mudar a mentalidade humana daquela épo‑ ca, fosse vivendo no corpo físico ou já sem ele, no caso dos espíritos, as mesmas criaturas humanas desenfaixadas do corpo físico pelo fe‑ nômeno da morte. E já que a morte não modifica ninguém, nem para o bem nem para o mal, tanto quanto nós eles também precisam tomar conhecimento dos ensinamentos de Jesus, para a melhoria das quali‑ dades morais. Juliano era católico praticante, contudo, aberto para outras reli­ giões, por entender que todas elas são, de certo modo, um meio de se aproximar do Criador. Mas já que, segundo a sua orientação religiosa, a alma, se praticasse o bem, iria para o céu viver junto de Deus e se insistisse no mal, ao perder o corpo físico pela morte seria condenada a penas eternas no inferno, ele voltou a perguntar: – Você falou há pouco que espíritos que se comprazem com o mal são capazes de se organizar para combater a ação do bem. Eu pergunto: E por que eles não se encontram no inferno, já que a sua prática é o mal? – Deus, que é a suprema sabedoria e a suprema bondade, não cria‑ ria um local de suplícios eternos para filhos criados pelo Seu amor pelo


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fato de estarem cometendo equívocos, tantas vezes por simples igno‑ rância. Pergunto: Se um dos seus filhos cometesse um sério erro, se pudesse, o condenaria ao suplício eterno? – Sem dúvida, não! – Muito bem! Um pai, por melhor que seja, jamais poderia se com‑ parar a Deus! Se o senhor não faria isso, certamente, por sentir amor ao filho, Deus o faria? Juliano sorriu contente: – É uma verdade incontestável, que eu nunca havia pensado antes! Nesse caso, prevalece o perdão de Deus. – Sim. Deus perdoa, mas não isenta o infrator das leis morais, da culpabilidade pelos seus desatinos, mas enseja uma nova oportunida‑ de de refazimento por meio de um processo educativo que, em certas situações, exige a presença da dor – mestra rigorosa. – Mas se esse processo educativo pela dor, ao invés de reeducar, causar revolta? É fácil encontrar pessoas que, em vez de aceitar com resignação, enchem-se de amargura e clamam até contra Deus! Se es‑ sas pessoas continuarem assim, até o fim da existência, provavelmente não conseguirão se reeducar. – Sim! São realmente muitos que cometem esse equívoco. Contudo, se não conseguem na presente existência, na próxima ou nas próximas certamente conseguirão. – Você acredita mesmo que há mais de uma vida? – perguntou Ju‑ liano cheio de dúvidas. – Mais de uma vida realmente não há, porque ela é somente uma e imortal. As existências físicas, pelo processo da reencarnação, sim. Se não, o que seria dos que, depois de praticarem sérios erros morais, se rebelassem contra o sofrimento, chegando ao final da existência sem nem um aproveitamento? O perdão de Deus é a nova oportunidade que é concedida para reparar as mazelas morais perpetradas, se rea‑ justar para com as leis divinas e evoluir sempre, pois todo ser vivo se encaminha para o aperfeiçoamento, inserido na lei de evolução.


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Stevens parou de falar, por instantes, mas o suficiente para ver, deslumbrado, a imagem de Espírito do Mar, do mesmo jeito que sem‑ pre a via. Involuntariamente, ele desdobrou-se por alguns segundos e retornou ainda mais sereno. Percebendo que não só Juliano, mas todos estavam na expectativa, voltou a falar: – A alma é criada simples, ignorante e de forma em forma, aos mi‑ lhões de anos, vai despertando as potencialidades interiores até chegar à forma física mais aperfeiçoada, em se referindo a esse planeta, que é a humana. Daí para frente, alguns milhares de anos, segundo infor‑ mação de Espírito do Mar, para se sublimar pela iluminação. Como podem perceber, há bastante tempo para se livrar das mazelas, dos equívocos, sérios enganos e adquirir, na prática, a necessária experiên‑ cia para chegar à finalidade para a qual Deus a criou. – E qual seria essa finalidade? – perguntou Heloína, que até então ouvia em silêncio. – O despertar da perfeição e felicidade plena. Digo despertar, por‑ que Deus, que é a suprema perfeição, não criaria nada imperfeito. As‑ sim sendo, a alma é criada com tudo o que necessita para a sua plena felicidade. Pensemos numa semente. Por minúscula que seja, há nela, sintetizada, a árvore que florescerá e frutificará, gerando outras se‑ mentes para a preservação da espécie. Da mesma forma, a alma ao ser criada já é a síntese do espírito iluminado do porvir. – Teria muito ainda a perguntar – falou Juliano – contudo, pela profundidade do assunto, que requer bastante raciocínio, mais do que isso poderia confundir a nossa mente. Gostaria que você visitasse, do‑ ravante, a nossa casa. Se o convite for aceito, fique certo de que será sempre bem-vindo e recebido de corações abertos. Stevens levantou-se, imaginando que já deveria sair. No entanto, Juliano disse-lhe: – De forma alguma, ir agora! A sua presença entre nós é muito grata! O jovem pescador abaixou a cabeça, hábito que usava toda vez que alguém tentava enaltecê-lo, por entender que, quanto mais se aprende,


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melhor compreende que pouco se sabe. Durante a conversa, entretan‑ to, ele não demonstrou isso em nenhum momento. Estava sereno, mas ativo, com a fisionomia branda e voz firme, mas bastante suave. Na verdade, ele não foi ali tão somente, por saudade da irmã. Mas, sobretudo, por influência de Espírito do Mar, que atuou por meio da sua mediunidade com o objetivo de despertar as mentes para a verda‑ de, para bons sentimentos e, sobretudo, para o amor. Ali, no entanto, havia um direcionamento, cujo objetivo era ajudar o jovem pescador na sua tarefa de harmonização entre as duas famílias, que no passado foram separadas por causa de desavenças geradas por interesses liga‑ dos, simplesmente, a bens materiais. Depois da conversa, que deu muito que pensar a todos, Heloí‑ na sugeriu: – Que tal um chá acompanhado de biscoitos? Depois de todos acomodados em volta da mesa, Juliano, então, le‑ vantou e disse: – Permitam-me a prática de um hábito que adquiri há alguns anos: agradecer a Deus pelo pão que nos alimenta. De mãos postas em forma de oração, fez o agradecimento. Em se‑ guida, já que todos conversavam paralelamente, Heloína, pediu que a deixassem falar algo que há muito intencionava, mas que só agora encontrava a ocasião e ambiente certos. – O pedido que quero fazer agora poderia ter sido feito pela Gilza, a quem considero filha do meu coração. Mas não quis envolvê-la no assunto, por estar esperando o meu neto. Mas já que Stevens não está esperando nenhum filho e por isso muito bem emocionalmente, trans‑ firo o pedido a ele. Todos riram do bom humor revelado pela dona da casa. – Por favor, meu filho, quando estiver com Stela, diga-lhe que a amizade cultivada entre nós, em mim continua viva aguardando, sem‑ pre, o dia em que eu possa ter a grande alegria de revê-la e matar a saudade que, às vezes, parece doer no coração.


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Ao perceber que todos estavam surpreendidos com o pedido, ela, então, esclareceu: – Compreendo o espanto na fisionomia de todos vocês, por não saberem que Stela foi minha amiga na infância, na adolescência, na ju‑ ventude... Diga-lhe que fique certa e confiante que as portas dessa casa e do meu coração estão para ela escancaradas.

preparados e bem-intencionados, se consti‑ tuem obreiros da Seara do Cristo agindo sob o impulso do amor em vários setores da vida, especialmente na harmonização da convivência entre as criaturas humanas, por entenderem que é nesse particular que ocorrem os mais sérios erros morais. Stevens despediu-se, deixando em cada um da família de Juliano e Heloína a melhor impressão. Para a irmã Gilza foi de tal forma, que teve a certeza de ter vivido ao lado dele no mesmo lar, mas não o co‑ nhecia. Ficara tão alegre que propôs a Maurício que, se o filho fosse do sexo masculino, colocassem o nome de Stevens.

Espíritos quando bem


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Capítulo 9

Surpreendentes revelações Em vez de usar o ódio – inverso do amor –, use o inverso do ódio. Dizzi Akibah

Logo depois que esteve com Stela e tomou conhecimento do encontro

que ela, semidesligada do corpo físico pelo sono natural, tivera com os espíritos obsessores – o que ela definiu como sendo um pesadelo –, Stevens decidiu acompanhar, na casa espírita, os trabalhos de desob‑ sessão na tentativa de ajudar os espíritos que se afirmavam inimigos de Stela e de Orlando, a compreenderem o valor e a eficácia benéfica do perdão, com o objetivo de resolver o processo obsessivo em curso. Assim, logo que começou a primeira reunião por ele acompanha‑ da, um dos médiuns passou a transmitir a comunicação do espírito Charles, que se afirmava chefe dos componentes do grupo: – Eu só aceitei o convite para vir aqui porque fui informado de que eu poderia falar o que bem desejasse. – Sim, mas com respeito e moderação – disse o dirigente dos trabalhos. – Verão vocês – voltou Charles a falar – que estou coberto de razão e com direito a fazer com aquelas víboras, o que bem me aprouver.


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Não preciso falar sobre a torpe traição, porque ela já sabe e se lembra, muito bem, disso. Mas que todos tomem conhecimento do sofrimento que isso causou a mim, na condição de pai responsável e amoroso para com os sete filhos, desde a mais velha, que contava apenas oito anos de idade, ao pequenino que tinha, apenas, nove meses de nascido. Além da dor e do ódio que passei a sentir, eu me via atormentado, sem saber o que fazer com todas elas que choravam sem cessar, chamando ma‑ mãe! Mamãe! “Para cuidar deles, acabei perdendo o emprego, porque todos os dias chegava atrasado. Desempregado, as crianças já não choravam apenas por causa da mãe, mas, sobretudo, por estarem com fome e eu não tinha como suprir as suas necessidades. Foram anos de sofrimen‑ to. A revolta foi aos poucos se transformando em ódio... Ódio como veneno letal que mata de vez. Veio-me, em seguida, um sentimento de vingança, que até, hoje me tira por completo a lucidez e a razão. Passei, assim, a procurar a desalmada mulher, mas toda vez que adquiria uma pista, já não a encontrava no local informado e não conseguia pôr nela as minhas mãos para esganá-la. “Agora, que a localizei escondida em outro corpo, não posso de‑ sistir de dar vazão ao desejo da vingança, fazendo-a pagar com muito sofrimento, por tudo que nos fez. Ela e o amante, tão ruim quanto ela mesma, pois também traiu a sua família, se encontram juntos de novo. Mas a minha satisfação é que, eles, de ricos orgulhosos, já estão se tor‑ nando miseráveis. Fiz perderem tudo o que tinham. Agora o meu tra‑ balho, ajudado por alguns dos meus filhos e dos filhos dele e, ainda, a que sofreu como esposa dele a pérfida traição, é doravante tirá-los do corpo físico, para o grande e esperado dia do julgamento que já está todo preparado, com o juiz, na expectativa de determinar o castigo que ambos merecem.” Stevens ouvia com atenção a narração do espírito, procurando ana‑ lisar o que ele falava para saber se dirigir com segurança. E quando o comunicante parou de falar, ele então lhe disse:


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– Meu irmão, não estamos aqui para julgá-lo, pois não temos esse direito, e sequer deixar de reconhecer que o seu sofrimento foi de tal forma cruel, mas nunca comparável ao de Jesus, que completamen‑ te inocente em relação a qualquer culpabilidade, morreu numa cruz. No entanto, antes de dar o último suspiro no corpo físico, se dirigiu a Deus, Criador de todos nós e pediu: ‘Pai perdoa-os! Eles não sabem o que fazem.’ É que ele, o Mestre de todos nós, sabia que o perdão não beneficia somente a quem o recebe. Mas, sobretudo, a quem per‑ doa, porque retira das entranhas o veneno do ódio que atormenta e afugenta a paz e a alegria de viver. Não que ele, o mestre, precisasse limpar o seu coração, pois ele estava repleto de amor. O que pretendeu foi deixar, pelo exemplo, essa lição cuja prática é uma necessidade de todos nós. – Muito bonito, bastante interessante o que você acabou de falar e não posso afirmar que não seja uma verdade. Mas eu gostaria de ou‑ vir tudo isso, pela boca de outra pessoa, que não fosse você. Quando soube que ela, Mary Catherine, havia morrido como uma mendiga, soube também quem a escondia de mim e quem sepultou o corpo! Foi você mesmo, David! Tentei encontrá-lo, durante muito tempo, mas você sumiu. Mesmo escondido nesse corpo físico, foi descoberto por mim. Pensa que não o conheço? Oh! Está muito enganado. Enganado, também, quando se imagina cheio de sabedoria. Fui eu quem te tirou daquela casa e venho acompanhando passo a passo tudo o que aconte‑ ce contigo. Não tente me atrapalhar, porque sei como retirá-lo do meu caminho! Não sei com que interesse você ajudou a desalmada mulher e acabou sendo, atualmente, filho dela e do outro traidor. Stevens, embora não tivesse conhecimento desses detalhes na pre‑ sente existência, respondeu: – Certamente, de buscar harmonização, não só a mim mesmo, mas para eles e oferecer a minha mão amiga a você, para ajudá-lo a sair desse sofrimento que já se arrasta, há mais de dois séculos, segundo fui informado. Entendo que, para você, é como se houvesse ocorrido


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ontem ou hoje mesmo, porque isso passou a ser o seu único interesse. Lembre-se, meu irmão, que há muitas outras coisas para se pensar e realizar, melhor do que se vingar de alguém. Tente esquecer esse passado, para recompor o seu íntimo e melhorar a sua vida. Você é filho de Deus que o ama verdadeiramente. Mas se não consegue sen‑ tir esse amor é porque o seu íntimo está repleto de ódio. Pense nos que foram seus filhos, que ainda agora, contagiados pela sua revolta e amargura, vibram, também, na mesma desventura, experimentan‑ do o mesmo sofrimento. Quer isso para eles? Pense também nos ou‑ tros que não estão do seu lado, porque renasceram como filhos de Orlando e Stela e vêm sofrendo a sua perseguição, com planos para destruí-los moralmente, assim como tem feito com Gildo, que, sem qualquer vigilância, aceitou sugestões ruins do seu próprio pai de outrora... Você mesmo! Pergunto, meu irmão: Acha justo fazer isso com um filho que sofreu muito, quando o seu lar foi desfeito e agora, arrasado moralmente, só por causa das suas intenções de se vingar de Stela e Orlando? Stevens achando que estava se alongando, dirigiu o olhar ao diri‑ gente dos trabalhos e este, então, percebendo que o espírito continua‑ va receptivo, meneou a cabeça positivamente e então o jovem pesca‑ dor, prosseguiu: – Tirando a vida física de Orlando e Stela, você será feliz na condi‑ ção de criminoso? Perdoe e poderá, também, ser perdoado, segundo a justiça divina. Fez pequena pausa, para sentir o efeito das suas palavras e, em seguida, prosseguiu: – Mary Catherine, ou Stela como é conhecida atualmente, se agiu mal, terá que se reajustar perante as leis do Divino Senhor. Quem sabe os espíritos maiores não deliberem, futuramente, sobre o reencontro dos dois, você e ela numa existência, por meio da reencarnação, para tentarem apagar o ódio do passado com o respeito e amor no presente? O desejo determinado que você alimenta dia a dia de tirar-lhe a vida


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física, poderá se tornar realidade justamente quando estiverem tentan‑ do a reabilitação e o reajustamento das emoções, recebendo de volta os filhos de outrora que foram abandonados, para com isso torná-los novamente infelizes? Quer isso, meu irmão? O espírito não respondeu de imediato e por isso Stevens silenciou na expectativa. Mas alguns minutos depois, ele falou reticencioso: – Preciso de tempo para pensar, porque estou confuso e não posso responder agora. Não acho que seja assim tão fácil retirar o ódio que já fez morada nas minhas entranhas e que, às vezes, sinto-o como se fosse fogo me queimando por dentro, bem pior do que o fogo do castigo. Ele se referiu à tocha vermelha, com que tentou atingir Stela na noite do reencontro. A reunião terminou e Stevens, ao chegar à casa, Juvenal, o pescador, percebendo que o amigo se encontrava pensativo, procurou animá-lo: – Não desanime! A tarefa pode ser árdua, mas que valor deve-se aferir ao que nos vem com facilidade? Bem, se você está preocupado ou triste, vai mudar agora de vibração. Pôs a mão dentro de uma gaveta de uma velha peça de madeira e falou cheio de satisfação: – Alguém mandou lhe entregar isso aqui! O jovem pescador sentiu o coração acelerar: – O livro de Espírito do Mar?! – Disse-me, o portador, que toda a edição já está pronta e Hermes pede para você ir lá, para tratar do lançamento que pretende fazer. – Eu vou pedir a ele que me exclua disso, porque do jeito que me vis‑ to e considerando que muitos, ainda, julgam pela aparência, em vez da minha presença ajudar, poderá atrapalhar. Não tenho uma roupa condi‑ zente com o evento e mesmo que dispusesse de dinheiro para comprá-la, não o faria, pois, a prioridade é da necessidade que está em volta de nós. – Não é bom pensar assim, a não ser que você decida voltar atrás e viver de modo a dar satisfação aos outros, isto é, fazer o que eles que‑ rem e como querem que você faça.


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A orientação foi útil, pois o jovem pescador mudou repentinamen‑ te seu pensamento: – O senhor está certo. Eu estou assim, não por achar que é preciso viver na pobreza para crescer espiritualmente, como muitos pensam. Há muitos pobres orgulhosos, como há muitos ricos cujo comporta‑ mento é de verdadeira humildade. Entendo que é muito importante, o cuidado com a aparência pessoal, que não diz respeito, tão somente, à roupa que se veste, mas, sobretudo, à atenção que se deve manter em relação ao corpo físico. No entanto, por agora, a minha atenção encon‑ tra-se direcionada à necessidade que está aqui mesmo em volta de nós. Mesmo prevendo que o meu traje será considerado incompatível com o ambiente, irei sim. Mas que o senhor esteja ao meu lado.


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Capítulo 10

Aplainando os caminhos O silêncio está para o recolhimento assim como a consciência tranquila para a paz. Dizzi Akibah

da livraria, distribuiu mais de cem convites para o lançamento do livro de Stevens e do Espírito do Mar. Era muito conhecido e bastante estimado por causa do seu jeito alegre e atencioso para com todos, sem distinção. Tanto que as pessoas que o estimavam, não se encontravam tão somente na cidade, mas em toda a região. As‑ sim é que, quando Stevens acompanhado de Juvenal, o pescador, en‑ trou no salão de consideráveis proporções, assustou-se ao vê-lo repleto de convidados, que ali se encontravam. Alguns, simplesmente, para atender ao convite de Hermes, outros por curiosidade e uma boa parte desejosa de conhecer o conteúdo do referido livro. Hermes já se encontrava no local e ao vê-lo, chamou a atenção do público que fazia muito alarido, conversando paralelamente: – Com muita satisfação, anuncio a chegada de Stevens, o coautor do livro, que vai daqui a pouco, autografá-lo para quem desejar. O público, por inteiro, voltou o olhar na direção da porta de entra‑ da e, ao ver os dois pescadores vestidos em roupas simples e calçados Hermes, proprietário


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com chinelos, dos que eram usados somente por quem não dispunha de condições de pagar por um artigo de melhor qualidade, deixou­ ‑se impactar e logo surgiram as críticas, sem levar em conta que não se deve julgar pela aparência, sem que se esteja cometendo um gran‑ de equívoco. Mas apesar de ter notado a contrariedade que a sua roupa causara, Stevens, seguro de si e bastante tranquilo, se aproximou da mesa na qual exemplares do livro estavam expostos e recebeu o abraço afetivo de Hermes, que cheio de contentamento convidou-o a sentar-se para atender àqueles que desejassem receber o seu autógrafo. Contudo, an‑ tes de ocupar a cadeira, alguém, dentre os mais exaltados e críticos sobre a aparência do jovem pescador, gritou lá do meio do salão: – Não vai falar nada?! É. Vai ver que nem isso sabe fazer! Em seguida, começou a insuflar os convidados, com intenção de ridicularizar Stevens: – Fala! Fala! Em instantes, o público aderiu, formando um coro que ecoava em todo salão. Juvenal, vendo o jovem pescador indeciso, aconselhou-o: – Não perca essa boa oportunidade de pôr uma semente do bem nas mentes dessas pessoas. O avesso às vezes funciona e pode se tor‑ nar inesquecível. Ele, então, que já havia sentado, levantou-se e o alarido deu lu‑ gar à expectativa, de tal maneira que, em segundos, o salão era silên‑ cio completo. – Senhoras e senhores – falou com firmeza – desejo agradecer pela presença de todos para este evento que tem a finalidade de tornar pú‑ blico um trabalho literário, cujo conteúdo foi ditado por um espírito a quem trato de Espírito do Mar. Além dos valores auferidos com a venda, que serão revertidos em benefício de mais de vinte famílias ca‑ rentes, o conteúdo do livro oferece, como semente de luz, a abertura de um novo entendimento sobre a vida e a sua real finalidade perante as leis imutáveis do Criador, principalmente para aqueles que culti‑


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vam o salutar interesse de modificar para melhor as suas vidas, corri‑ gindo enganos e mudando hábitos e costumes. Excepcionalmente, os que nunca antes se dedicaram à busca de um entendimento sobre a existência de Deus e a sua ação benéfica, que poderão mudar de ideia logo que se proponham a observar a natureza, onde viceja a vitalidade dos vegetais e a vida em movimento nos animais, desde os domésticos aos mais ferozes; o espaço em todas as direções do infindo Universo, recoberto de pontos de luz, cujo brilho parte dos milhões de conste‑ lações, contendo infinidades de estrelas, com uma grande variedade de planetas, onde se dá a evolução da vida, a exemplo do que ocorre conosco, aqui na Terra; o ser humano com toda capacidade de pensar, raciocinar, procriar, chorar quando está triste, sorrir quando alegre, amar se venturoso ou odiar e sofrer as consequências, certamente en‑ tenderá, diante de todo esse complexo, que há acima de todas as nos‑ sas cogitações um poder, provindo de uma inteligência suprema, de onde emana todas essas coisas que vemos e tantas outras que, sequer, nos damos conta existirem. Fez pequena pausa e percebendo que havia total expectativa, vol‑ tou a falar: – Queridos amigos e amigas, procuremos nos aproximar dessa divin‑ dade maior, Pai de todo ser vivo, buscando compreender uma das mais importantes lições de Jesus, nosso mestre, a qual nos faculta oportunida‑ des de ascendermos à luz da compreensão sobre o verdadeiro sentido e finalidade da vida: Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo, querendo para os outros, o que se deseja para si. Parou de falar, mas ao observar que todos tinham os olhos fixos nele, lembrou-se da lição de Jesus sobre a água da vida e, então, para amenizar a sede de conhecimento de quem lhe ouvia, passou a decla‑ mar um dos mais belos poemas de Espírito do Mar, que falava jus‑ tamente da presença de Deus em tudo onde há algo criado pela sua inteligência suprema. Quando terminou, o público aplaudiu-o de pé, repetidas vezes.


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Sempre é o amor, quando bem dosado, o vitorioso de qualquer si‑ tuação, mesmo as consideradas por demais embaraçosas. Stevens, ao levantar-se para falar, foi acometido, repentinamente, de profunda paz e passou a sentir amor por todos que ali se encontra‑ vam, sem excluir o que lhe desafiou a falar, por entender que fora ele um instrumento pelo qual, naquele momento, lhe veio uma preciosa sugestão, que, posta em prática, acabou mudando repentinamente a vibração do ambiente. É que o magnetismo, positivado pelo amor, aca‑ bou criando uma verdadeira onda de simpatia do público para com ele. Quando ele acabava de se sentar e algumas pessoas já se levantavam para formar a fila e receber o autógrafo do livro, um homem, que se encontrava entre os assistentes, se aproximou de Hermes e perguntou: – Posso dizer algumas palavras? Hermes chamou a atenção do público, pedindo silêncio e o desco‑ nhecido de todos, exceto de Hermes, único ali que sabia de quem se tratava, começou a falar: – Sou, ainda, desconhecido de todos vocês, pois estou chegando a esta cidade. Não vim aqui para dizer quem sou e sequer falar sobre os meus planos, mas, sobretudo, satisfazer a minha vontade de que todos, aqui, saibam que este livro, que está sendo publicado, é como uma joia preciosa que devemos usar com bom proveito, para aprofun‑ dar o entendimento das suas luminosas mensagens, que falam, desde a existência do Criador, da sua ação por meio da natureza, do compor‑ tamento moral e até da finalidade para qual Deus criou cada um de nós. Falo sem receio sobre isso, pois adquiri esse livro, há alguns dias, na livraria de Hermes, onde fui à procura de bons livros, o que sempre faço em todos os lugares que chego. Depois de ter feito pequena pausa, prosseguiu: – Não há muita importância no nome. Mas se por simples curiosi‑ dade alguém quiser saber, meu nome é Ênio. Hermes, então, tomou a palavra e falou: – Aproveito essa oportunidade, apesar da inegável simplicidade


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do nosso visitante, para dar-lhe as nossas boas-vindas. Ênio chega a nossa cidade como novo proprietário da empresa que pertenceu a Or‑ lando, com propósitos de contribuir com o progresso do município. Ênio se dirigiu a Stevens e disse, abraçando-o: – Admirável sob todos os aspectos a sua dedicação às pessoas ca‑ rentes. Penso que temos muito o que conversar, pois esse assunto já não se encontra em mim como algo no porvir, porque já está há algum tempo sendo materializado, transformando-se numa realidade, o que por sinal é o que proporciona a maior alegria da minha vida. A seguir, apertando a mão de Stevens, perguntou: – Onde posso encontrá-lo? – Resido num local conhecido como Colônia dos Pescadores. O meu lar está entre as dezenas de choupanas construídas com paredes de taipa e teto de palha. Digo isso para você não se assustar ao chegar lá, se realmente eu contar com a satisfação da sua visita. Não há nome de rua, nem número na porta, mas sim uma roseira que me presenteia todos os dias com a beleza das suas pétalas e o perfume que exala bem junto à porta.

pescador se encontrava com a atenção totalmente voltada à observação contemplativa do pôr do sol, tentando compreen‑ der a grandiosidade e bondade do supremo Criador do Universo, quan‑ do sentiu que alguém se encontrava do seu lado, em silêncio, certamente para não interrompê-lo. Contudo, ao olhar para o lado, foi surpreendido com a presença de Ênio, que, conforme afirmara, ali se encontrava. – Oh que satisfação! Você é mesmo um bom cumpridor da palavra! – A palavra é força que não deve ser usada inutilmente – falou es‑ tendendo a mão para um cumprimento afetuoso. – Alguma dificuldade para encontrar o endereço? – Guiei-me pelo perfume das rosas e cheguei facilmente – fa‑ lou sorrindo. Dias depois, o jovem


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Fez uma rápida pausa e, em seguida, pediu desculpas por estar apressado e foi direto ao assunto que o interessava: – Já estou informado sobre o seu trabalho filantrópico, ao lado do senhor Juvenal, em prol dessa comunidade, o que classifico como admirável, principalmente o esforço pessoal empreendido para cumprir um compromisso assumido por livre e espontânea vontade. Entretanto, para as pretensões que aqui me trouxeram, preciso saber, por exemplo, as necessidades mais urgentes desses nossos irmãos. Stevens respondeu de imediato: – Dentre as maiores carências, inicialmente, era a de alimentação. Entretanto, agora, isso já se encontra amenizado, depois que providen‑ ciamos ocupação para a maioria, que já vem produzindo o suficiente para a própria sobrevivência, com exceção de algumas mulheres, cujos companheiros se ausentaram em busca de trabalho em outros estados. Por isso, foram forçadas sozinhas a cuidarem dos filhos, quase todos, ainda, precisando de assistência constante. “Atualmente, são as moradias, como se percebe facilmente, que precisam passar por uma melhoria, para proporcionar um pouco de comodidade e condições de higiene. Também para isso, felizmente, já demos o primeiro passo, reservando o dinheiro arrecadado na venda dos livros para a compra de material de construção.” O visitante, enquanto o jovem pescador falava, prestava atenção na sua fisionomia, que demonstrava, sem equívoco, a sinceridade e o sentimento com que se referia ao assunto, inclusive a satisfação que demonstrava com a esperança de ver os seus tutelados encaminhados, não só em referência à vida material, mas, sobretudo, à vida moral-es‑ piritual. Convicto de que poderia seguramente participar da obra de caridade, propôs: – Stevens, você me permite caminhar paralelamente ao seu lado, para realizar esse sonho? – Oh! A não aceitação seria comparável à mão estendida fraternal‑


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mente sem que a outra correspondesse – uma atitude além de desagra‑ dável, injustificável! Tê-lo ao meu lado nesse objetivo é um motivo de muita alegria para o meu íntimo. – Então, a partir de agora somos sócios no sentimento de amor ao próximo! Era o espírito Adrian reencarnado com o nome de Ênio, conforme afirmara o instrutor espiritual de David (Stevens). Ênio acabava de chegar para servir de apoio à obra de caridade, idealizada por Juvenal e Stevens. – Amanhã logo cedo – disse o visitante, prosseguindo a conversa –, um engenheiro fará um levantamento e em seguida começaremos, imediatamente, a construção das novas casas. Mas por causa da minha exiguidade de tempo, porque viajo muito, preciso da sua cooperação direta no sentido de administrar, inclusive financeiramente, toda a obra. Posso contar? Stevens, surpreendido com a confiança que o empresário deposi‑ tava nele, sendo aquela a segunda vez que conversavam, perguntou: – Você está certo, mesmo, em confiar tamanha responsabilidade a uma pessoa que está conhecendo agora? – Conhece-se a árvore pelo fruto! Estou certo de que você conhece esse ensinamento que nos veio pela sabedoria de Jesus. E fique certo, também, de que a nossa parceria não ficará restrita a isso que agora planejamos, porque sinto que iremos em frente! A não ser que você, por uma razão qualquer, recue. Depois de uma pequena pausa, prosseguiu: – Stevens, eu já tomei conhecimento de tudo que se refere a você e de toda a situação que causou o fechamento da empresa que pertenceu ao seu pai. Creia que não é por acaso que aqui me encontro. E convicto disso, deixo-me conduzir pela vontade de servir. Retirou um relógio do bolso e depois de conferir as horas, comentou: – É pena que agora não posso continuar conversando, o que gosto muito de fazer, quando o assunto é agradável e útil. Outros encontros,


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no entanto, ocorrerão, certamente, quando trataremos de assuntos li‑ gados à vida espiritual, particularmente sobre Espírito do Mar, pois te‑ nho presenciado, durante viagens marítimas, fenômenos interessantes que me chamam muito a atenção. Abraçou o jovem pescador e saiu deixando-o vibrando de alegria pelas novas perspectivas de ver os seus tutelados, realmente encami‑ nhados, sem a necessidade de “muletas” para seguirem em frente, o que ele mesmo se autodenominava. Stevens sentou-se num banco que ficava junto à porta, ao lado da roseira, fechou os olhos e começou a pensar em Espírito do Mar. Em instantes, o mesmo fenômeno se repetia. Sobrepujando o ruído das on‑ das chocando-se com a areia da praia, aquela mesma voz tão agradável quanto a sinfonia para os ouvidos de um maestro: – Que o amor seja sempre a sua rota; que a bondade nunca se au‑ sente do seu íntimo; que jamais permita que qualquer vendaval apa‑ gue a luz que começa a clarear o seu caminho. Parou de falar e Stevens, então, aproveitando a oportunidade, in‑ tencionou travar um diálogo construtivo, como já havia ocorrido ou‑ tras vezes e perguntou: – Pode me dizer se fiz bem ou não aceitando a parceria proposta por Ênio? – Se eu disser o que deves ou não fazer, estarei desrespeitando o teu livre-arbítrio e retirando a oportunidade de discernimento e conse‑ quentemente de crescimento interior. Digo, apenas, que já estás provi‑ do do necessário para o devido discernimento. Já é hora de traçar o teu rumo, pois a tua consciência, de acordo com teus sentimentos, indicará o melhor para a natureza de cada situação e... Foi interrompido por Gildo, que acabava de chegar, sem se dar ao cuidado de, antes de falar, verificar se era ou não conveniente: – Oh mano! Sentiu nossa falta? – Não os vi por aqui, e fiquei na expectativa de saber por onde an‑ davam todo esse tempo.


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– Eu ocupei seu Juvenal, ouvindo-o para tentar compreender mui‑ tas coisas, já que o meu interesse, agora, é mudar para melhor. – Eu também, Gildo, estava tentando compreender o porquê de determinadas situações que, às vezes, são encaminhadas de forma tão surpreendente. – Se refere a quê, mano? Fala de vez! – Espírito do Mar me disse, certa vez, que a pressa gera ansiedade e esta a impaciência. – Obrigado pela lição, mano! Mas fale mesmo assim! Stevens e Juvenal acabaram achando graça do jeito de Gildo, que usa‑ va da franqueza de tal maneira, que, para quem não o conhecia, esse jeito denotava rudeza. Mas mesmo que Stevens não quisesse ou não devesse falar, já não teria outro meio a não ser satisfazer a curiosidade do irmão: – Dentro de poucos dias, essas palhoças à guisa de casas desapare‑ cerão todas daqui, para... – Que mau presságio é esse mano? – interrompeu Gildo, provando que não havia entendido o que acabara de ouvir sobre a impaciência. – Escute com calma, Gildo! Deixe-me completar o assunto! Como dizia, elas darão lugar a casas sólidas com paredes de tijolos, cobertura de telha e piso revestido de material que propicia facilidade na limpeza. Juvenal que estava à parte, ouvindo a conversa deu dois passos para frente e falou cheio de alegria: – Isso se chama otimismo, que deve ser conservado, mesmo que demore ainda algum tempo para a materialização do sonho. – Não vai demorar, seu Juvenal! Começa tudo amanhã! – Mano! Como pode ser isso, se milagre não existe como mui‑ tos pensam? – Gildo, não se trata de algo miraculoso. Ênio esteve aqui e formou conosco uma parceria... Stevens falou de todos os planos traçados sob o olhar curioso de Gildo e o sorriso de plena satisfação de Juvenal, o pescador.


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Capítulo 11

Um raro exemplo Liberta-se do apego quem renuncia pelo bem de outrem. Dizzi Akibah

No dia seguinte, logo depois de o engenheiro ter concluído o levanta‑

mento do lugar, Juvenal se aproximou de Stevens: – Tudo tem a sua boa hora! As pedras simbólicas que você vem colocando, uma sobre a outra no alicerce da construção do homem novo do porvir, proporcionam um bom entendimento e me permi‑ tem volver ao passado, que parecia dormitar no meu íntimo, mas que agora, para efeito do pagamento de uma promessa, despertá­ ‑lo-ei. Percebendo que Stevens não estava alcançando a sua intenção, foi claro: – Lembra quando prometi que um dia contaria a minha simples história? Digo simples, porque nela não há nada especial. Segurou no braço do jovem amigo e perguntou: – Está disposto a subir a montanha? – Com o senhor, eu iria até o pico Everest ou onde as minhas pos‑ sibilidades permitissem.


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Depois de percorrerem alguns metros, pararam ouvindo a voz de Gildo pedindo para esperá-lo. – Esqueceram-se de mim?! – Não, Gildo! – respondeu Juvenal. – Gostaria que você nos acom‑ panhasse, mas o assunto que vamos tratar, certamente, acabaria con‑ fundindo a sua mente, que já recebeu, hoje, o suficiente para meditar e compreender. Faça isso até o nosso retorno. Gildo, que se sentia ainda pequeno em relação aos conhecimentos e à experiência revelada pelo velho pescador, entristeceu-se e retornou à palhoça, pensativo. Por outro lado, Juvenal, só depois da longa cami‑ nhada em total silêncio, foi que, ao parar no sopé da montanha, voltou a falar, quando, olhando para o alto, perguntou a Stevens: – Está mesmo disposto a subir? – Com o senhor e para o senhor a minha resposta será sempre sim! – Mas é preciso que, doravante, tente sozinho, para robustecer a au‑ toconfiança. Não me refiro a esta montanha que é material e depende, apenas, das pernas aguentarem. Mas sim, as montanhas morais que geram desafios e dificuldades bem maiores! Juvenal seguiu na frente e Stevens acompanhou-o na subida íngre‑ me do monte até chegarem ao mais alto. Depois de alguns minutos, Juvenal disse: – A montanha pode ser comparada aos desafios que deparamos. Enquanto não nos dispomos a ultrapassá-los, ficamos temerosos, achando por demais difíceis. No entanto, assim como há pouco, a al‑ tura que escalamos nos dava a impressão de que não conseguiríamos, da mesma forma passamos a ver com alegria, depois de vencermos tais dificuldades, que não era tão grande como imaginávamos. Olhe para baixo. Stevens ficou observando. Depois de instantes, o velho amigo per‑ guntou-lhe: – Que pode perceber? – Que tudo lá embaixo parece menor.


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– É isso mesmo que ocorre quando enfrentamos as dificuldades com coragem, determinação, otimismo e sobretudo fé, tanto humana quanto divina. Stevens, contente, agradeceu por mais uma lição de vida, dentre tantas outras já recebidas. Em seguida, Juvenal segurou o braço do jovem amigo e disse: – Sente-se aqui nessa pedra. Sentou-se também bem em frente e depois de instantes com o olhar sereno deu início à seguinte narração: – Eu nasci numa propriedade rural, onde era cultivado o café e onde havia, também, um criatório de gado, com centenas de reses. Éra‑ mos uma família pequena, composta por apenas meu pai, um homem correto e de bom caráter, minha mãe, muito religiosa, que externava a sua inegável bondade servindo a tantos quantos dela precisassem, sem olhar a quem e por fim meu irmão, que se chamava Odorico. Logo no começo da adolescência, meus pais nos chamaram para uma conversa que se tratava da maneira que desejávamos viver no futuro, quando adultos. Odorico, que era mais velho do que eu, adiantou-se na respos‑ ta, afirmando que gostaria de fazer o que o meu pai fazia, ali mesmo na propriedade, pois tudo que desejava era ser rico. Queria ter muito! Disse que se lhe dessem oportunidade, iria multiplicar tudo que ali já existia, o que agradou muito ao meu pai, mas que de certo modo preo­ cupou a minha mãe, por entender isso como ambição desenfreada. “– E você?– perguntou o meu pai, se dirigindo a mim. “– Eu quero estudar, conhecer muitas coisas além do que já vejo aqui. “Cinco anos depois, deixava, contra o gosto da minha mãe, o lu‑ gar. Eu fui levado para Curitiba, onde algum tempo depois entrava na faculdade para o curso de filosofia. Com o passar do tempo, passei a observar que, quanto mais eu me aprofundava, mais sentia necessida‑ de de alargar os conhecimentos de uma maneira que não fosse apenas na teoria, mas sim na prática, observando detalhes no comportamento


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das pessoas, em relação à influência exercida pela sua religiosidade ou não. Queria saber muito mais sobre Deus e a finalidade do existir de cada um que compõe a humanidade, tão semelhante como criatura de Deus, quanto diferente individualmente. Assim que concluí o curso, expus aos meus pais esse desejo, na esperança de receber deles o apoio. “– Mas você já formado e não pensa em trabalhar? Não concordo! – disse ele enfático. Apoiei-me em minha mãe, sempre mais acessível que, por sua vez, convenceu o meu pai a liberar recursos em dinheiro para tal. Inicialmente, viajei para o exterior. E como havia me deixado influenciar por um colega da faculdade que se afirmava budista, decidi percorrer os locais por onde havia passado Sidarta Gautama, o Buda, entrar em contato com seguidores da sua filosofia de vida, observar detalhadamente o modo de viver dessas pessoas. Meses depois, bas‑ tante entusiasmado com o resultado das referidas observações, deci‑ di me encaminhar, em busca de mais conhecimento, a um mosteiro, no Tibete, onde permaneci por dez longos anos de aprendizagem sob uma rigorosa disciplina, a qual me submeti, interessado como me en‑ contrava na prática da meditação e na busca do conhecimento sobre a verdadeira natureza de determinados fenômenos, muitos dos quais eram entendidos, pelos monges, como impessoais. Dentre outros, afir‑ mavam eles, que estando consciente das características da realidade, poderia, pondo em prática, se viver de maneira plena, sem condiciona‑ mentos mentais, que originam insatisfações e sofrimento.” Juvenal parou a narração, observou, por instantes, o interesse de Stevens e prosseguiu: – Falei ao superior do mosteiro o meu interesse de alargar conheci‑ mentos, inclusive sobre os ensinamentos de Jesus, pois desde menino ouvia a minha mãe falar nele com muita fé e devoção e ele me respon‑ deu: – Se é esse o seu interesse, considere-se livre das obrigações assu‑ midas para com o mosteiro e siga rumo à nova busca. “Depois de instantes, olhando-me diretamente, voltou a falar: – In‑ formações, supostamente provindas de antigos mestres budistas, dão


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conta de que Buda, que é louvado como mestre da sabedoria, teria vin‑ do ao planeta por recomendação de alguém espiritualmente superior a ele. Por isso, não devemos encerrar as observações que podem nos conduzir à sabedoria apenas num segmento religioso adotado, como se fosse ele a única verdade, mas, sim, alargarmos os conhecimentos e com eles, buscarmos, pela prática, a desejada experiência. “Ele silenciou e eu então, perguntei-lhe: “– Posso saber quem recomendou a vinda de Buda ao planeta? “Ele, então, respondeu: “– Para satisfazer o seu interesse, e encontrar respostas para as suas indagações, busque, busque conhecimentos onde se encontram princí‑ pios alusivos às principais religiões. E já que é do seu interesse saber mais sobre Jesus, procure conhecê-lo pelos seus feitos e pelos seus en‑ sinamentos, conforme encontram-se no Evangelho, o livro sagrado dos cristãos, com a mesma dedicação que você nos revelou todo o tempo vivido aqui no mosteiro. Conhecendo e avaliando os ensinamentos do Nazareno, você poderá fazer uma comparação entre ele e Buda... E descobrir onde se encontra a verdadeira sabedoria. Mas se isso ainda não lhe deixar satisfeito em relação à sua procura, inclua o conteúdo das obras da codificação do francês Allan Kardec, cujos seguidores cre‑ em na mesma afirmação de que teria sido ele, o Nazareno, que enviara Buda à Terra para a sua sublime missão. “– Apesar de ter notado o tom de desafio com que ele se expres‑ sara, fiquei emocionado com o ecumenismo surpreendente. A partir daquele momento, eu, que durante a minha permanência no mosteiro, imaginava Buda o mais perfeito e sábio que havia passado pela Terra, não poderia negar a mim mesmo que a conversa do monge poderia abrir, doravante, um novo horizonte. Tanto que a minha primeira de‑ cisão foi, imediatamente, ir a Xangai à procura de um exemplar do Evangelho. Encontrei-o traduzido para o inglês, o que não me traria dificuldade, já que havia estudado o idioma e com facilidade falava, escrevia e traduzia. Assim, logo que passei a estudar o conteúdo do


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precioso livro, passei, também, a sentir vibrar no meu íntimo, uma for‑ ma diferente de amar e ver a vida e as pessoas sob a ótica do amor que Jesus havia nos recomendado: Ao próximo como a si mesmo. E quanto mais eu me aprofundava nos conhecimentos, mais me sentia ligado a ele por essa nova forma de amar, que acabou me modificando de tal jeito que, agora, olho para trás e percebo que, conhecer Jesus, foi um marco na minha vida. Tanto que, hoje, em relação ao meu passado, sinto-me outra pessoa.” Depois de pequena pausa, prosseguiu: – Ciente de que não deveria mais continuar no mosteiro, por causa das minhas novas intenções, decidi retornar trinta dias depois ao Bra‑ sil, tempo suficiente para cuidar da documentação necessária para a viagem. Durante esses dias de espera, fui surpreendido com uma car‑ ta da minha mãe, informando que se encontrava muito doente e que temia falecer antes da minha chegada, porque tinha algo importante a me dizer. Disse, ainda, que o meu pai, muito desgostoso por causa de determinadas atitudes do meu irmão, também não se encontrava bem. Aflito, me despedi dos monges, para a longa viagem de retorno ao saudoso lar. Fez, novamente, uma pequena pausa na narração e em segui‑ da, prosseguiu: – Depois de vários dias, ao pisar no chão brasileiro, precisamente no Rio de Janeiro, onde o navio foi ancorado, a minha primeira atitude foi procurar uma livraria, onde, com bastante alegria, comprei todos os livros da codificação de Allan Kardec. Nova pausa e prosseguiu: – Lembro-me, ainda, que cheguei em Curitiba numa sexta-feira. Tão ansioso me encontrava que aluguei um carro para encurtar o últi‑ mo percurso. Assim foi que segui com o coração aos pulos, sem saber o que encontraria. A possibilidade de a minha mãe já ter falecido me enchia de aflição. Mas a notícia de que o meu irmão estaria desgos‑ tando o meu pai, para mim, era inconcebível, por se tratar de um pai


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justo, zeloso e amável. Enquanto o veículo trafegava tentando vencer os obstáculos da estrada íngreme, eu deixava que a saudade do lu‑ gar, dos familiares e de alguns empregados, a exemplo de Antero, por quem eu tinha muita afeição, dominasse a minha mente, até quando o condutor me interrompeu: – Penso, segundo as suas informações, que estamos chegando. “Momentos depois, parou em frente à grande cancela, por onde havia passado há mais de dez anos quando deixei o lugar. De repente, percebi que vinha alguém correndo. Olhei na direção e reconheci o meu amigo de infância Antero, que parou do outro lado da cancela e cons‑ tatando quem era o passageiro, exclamou num tom quase inaudível: “– Oh Deus! Não gostaria que fosse hoje, o dia! “Fiz de conta que não havia entendido o que ele queria dizer e falei em bom tom: “– Antero, que satisfação! “– Para mim, também, não haveria alegria maior do que revê-lo, depois de tanto tempo! Entretanto, embora proibido, me sinto, perante a minha consciência, no dever de falar a verdade, a impiedosa verda‑ de, seja qual for o resultado. “– Antero, meu amigo, não faça mistério! Se você se refere aos meus pais, abra, por favor, essa cancela e me conte tudo! “– Sim. Seus pais, infelizmente, faleceram. Primeiro, dona Eutália. Dias depois, seu Alexandre. “Desci do transporte e porque ele não se dispunha a abrir a cancela, fui direto com a mão na trava, mas ele segurou-a firmemente. “– Entendo a sua tristeza, o seu desgosto e me sinto solidário. Con‑ tudo, há algo, também, por demais doloroso! – parou de falar chorando. “Fui novamente com a mão na trava, ainda assim, ele reagiu e disse: “– Lamento dizer que você está morto. Morto para todos daqui! “– Antero, eu não estou morto! Olhe para mim! “– Sim, agora eu sei, porque vejo-o bem na minha frente, em carne e osso. Mas até há pouco, eu também pensava que sim, porque parti‑


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cipei do velório, chorei muito, fui ao sepultamento, a missa de sétimo dia, que o seu Odorico mandou celebrar. Só não entendi por que o caixão fora lacrado, sem que ninguém pudesse ver o corpo. Segundo o seu irmão, era por causa da doença, por demais contagiosa, que havia lhe matado “– E onde se encontra o meu irmão? “– Nem pense em procurá-lo! Ouvi-o há uma semana dando or‑ dens aos homens que vigiam o lugar, para, caso apareça alguém afir‑ mando ser você, atirar e matar por se tratar de impostor. Inclusive, eu vi o atestado de óbito que ele usou para fazer valer a herança e agora afirma ser herdeiro único, o proprietário de tudo! “Antero terminou a narração tentando enxugar, com as mãos, as lá‑ grimas que brotavam insistentemente. Eu, no entanto, já havia secado as lágrimas que também derramei quando ele falara sobre a morte dos meus pais. Ali, entretanto, mesmo percebendo a gravidade do assunto, que era por demais sério, porque eu não passava de um morto vivo, para ele, e um vivo morto para mim mesmo, não lamentava por mim, mas sim por ele, meu irmão, porque se eu insistisse em procurá-lo não seria mais morto vivo e sim, realmente morto! E isso seria muito pior, porque ele, que já havia cometido um crime, seria, também, assassino. Sabendo-o casado e com dois filhos, imaginei quanto sofrimento eles passariam vendo-o preso por uma denúncia feita por mim. “Antero abriu a cancela, veio em minha direção e abraçou­ ‑me chorando: “– É como se realmente você morresse, porque diante da gravidade dessa situação, penso que nunca mais nos veremos. “– Antero, nós nos veremos, sim. Daqui mais alguns anos, eu esta‑ rei mais velho e as pessoas que me viram pela última vez quando saí daqui, ainda bem jovem, terão dificuldade em me reconhecer, ainda mais por imaginarem que estou morto. Você, no entanto, sabe que não. “Agradeci a lealdade do bom amigo, voltei ao veículo, verifiquei se o dinheiro que tinha daria para pagar ao condutor e disse-lhe:


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“– Siga em frente! Eu indicarei a rota até o novo destino. Segui sem qualquer recurso para sobreviver, porque sequer um emprego deveria procurar, pois acabaria identificado. Além do perigo que corria em re‑ lação a minha integridade física, havia o outro lado, o do meu irmão, que seria denunciado. Pergunto: Isso me deixaria feliz? Realmente, não! E estaria agindo contrariamente a tudo que havia aprendido.” Fez novamente uma pausa, respirou fundo e exclamou: – Assim é que cheguei a esse lugar. O veículo parou na praça. De‑ pois de receber o pagamento, o condutor disse, olhando para mim, cheio de compaixão: “– Lamento muito, senhor, por essa situação que lhe atinge tão impiedosamente! Se levar a sério o prosseguimento dessa situação de morto, mas vivo, não poderá arranjar um emprego... É casado? “– Ainda sou solteiro. “– E certamente vai continuar sendo, porque não poderá, legal‑ mente, constituir família sem que seja descoberto. “E continuou perguntando: “– Tem, aqui, onde se abrigar? “Respondi que não e ele falou resoluto: “– Então, venha comigo! A minha casa tem um cômodo vazio. “– Não fica bem – respondi – para sua família a presença de um estranho na casa que é o seu lar. Não deveria, apesar da sua bondade, fazer isso! Vá, meu irmão! Eu jamais esquecerei a sua atitude bondosa. “Ele abaixou a cabeça, pôs o veículo em movimento e deixou-me com sentimento de gratidão pela gentileza com que fui tratado, mas por outro lado, ciente de que ele era, exceto a lealdade de Antero, a única testemunha daquela situação, porque havia tomado conheci‑ mento de tudo, ouvindo a narração de Antero e também que eu po‑ deria ser encontrado aqui. Durante todos esses anos, fiquei em alerta por causa da possibilidade de ser procurado, ou pelos empregados do meu irmão ou pela justiça, se a trama de Odorico fosse descoberta. Mas felizmente até agora...


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“Bem. Já que não tinha onde ficar, segui andando sem saber onde chegar, até que visualizei a praia e falei para mim mesmo: “– Sendo aqui de todos, tentarei sobreviver da maneira que me for possível. Caminhei para um local, onde, pela minha imaginação, não seria frequentado por banhistas, por haver muitas pedras. Sentei em uma delas e lembrei-me fortemente do Criador. Quando me dei con‑ ta da meditação, estava concluindo uma prece de gratidão a Deus pela alegria que sentia naquele momento, por causa da decisão que havia tomado, que me deixara satisfeito comigo mesmo. Com o corpo cansado da longa viagem, deitei-me na pedra e tão logo adormeci, percebi que me encontrava em desdobramento. Não tive nenhum receio, porque du‑ rante os últimos anos que vivi no mosteiro esse fenômeno me ocorria, inicialmente, involuntário. Mas com o passar do tempo e um treinamen‑ to que fiz com muito interesse por esse fenômeno, passei a programar as minhas saídas e de volta ao corpo não me esquecer de qualquer detalhe do que via e ouvia. Inclusive, há poucos dias, programei uma viagem até a casa do meu irmão. Entrei e ele que se encontrava em desdobramen‑ to involuntário, por causa do corpo físico que dormia profundamente, ao me ver gritou amedrontado e acordou apavorado. O grito, embora ele estivesse em corpo espiritual, acabou repercutindo no corpo físico e acordando a todos em casa. A esposa, assustada, perguntou: “– O que você está sentindo? “– Tive um pesadelo horrível! Vi Juvenal bem na minha frente, com a mão estendida e sorrindo para mim! Aí, imediatamente, ouvi uma voz rouca falando bem junto ao meu ouvido: “– Se prepare! Vai chegar a sua hora, criminoso! “– Isso deve ser a sua consciência que não anda em paz, por alguma razão – respondeu-lhe a esposa. “– Se eu pudesse – respondeu ele – voltaria atrás e faria tudo bem diferente do que fiz. “Depois que ouvi isso, fiz uma prece e, em seguida, emiti vibrações amorosas para ele, que, bocejando, falou para a esposa:


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“– Me deu um sono incontrolável. Vamos dormir?” Stevens, que ouvia a longa narração em silêncio, pediu que Juve‑ nal voltasse atrás e falasse de que maneira ele conseguira sobreviver na praia. – É verdade – falou a sorrir o velho pescador. – Quase me perco no atalho! Como dizia, logo que deixei o corpo físico, sobre a pedra, dormindo profundamente, vi surgir de repente um foco de luz, que se movimentava para um lado, para o outro... Mas isso durou pouco, por‑ que, imediatamente, tomou a forma humana, com aparência feminina e ao se aproximar disse-me: “– Bernard, creio que não esteja lembrado de mim. Contudo, nos conhecemos na Inglaterra, mais precisamente em Londres. Levando em conta, o parentesco consanguíneo, você era meu avô. Ainda agora atendo pelo mesmo nome. Mas isso não é o assunto que desejo tratar com você, porque há um programa que está sendo elaborado na espi‑ ritualidade a ser cumprido e você faz parte dele. Se conservar a atual condição íntima, vencerá todos os obstáculos. “Dito isso, acenou e, imediatamente, voltou a mesma forma do foco de luz e logo desapareceu.” Stevens, curioso, quis perguntar se se tratava de Espírito do Mar, contudo, conteve-se para não interromper a narração do amigo, que assim prosseguiu: – Bem, no dia seguinte acordei bem cedo e saí caminhando pela praia em busca de algo que pudesse usar para pescar. Encontrei, quase todo enterrado na areia, um pedaço de linha de nylon, mas faltava o mais difícil: o anzol. Continuei andando e observando quando vi alguns pregos numa tábua. Retirei um, bati com uma pedra até tomar a forma do anzol e com isca de camarão consegui pescar pequenos peixes, com que passei a me alimentar. Tempos depois, numa noite chuvosa, as ondas trouxeram e deixaram na areia da praia uma canoa... A mesma que ainda agora nos serve para a pescaria.


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Parou por alguns instantes, encheu os pulmões de ar e respi‑ rou falando: – Não é por acaso que nós nos encontramos. E não é sem sentido que você se encaminhou para aquela mesma pedra, pois ela ao longo dos anos tem sido o meu local de meditação. Foi lá que descobri, estu‑ dando e raciocinando, o real valor e a finalidade da vida. Fez novamente uma pausa e, em seguida, prosseguiu explicando: – O Evangelho e os livros da Codificação de Allan Kardec me situa­ ram e me ajudam, ainda agora, a despertar o sentimento de caridade e a combater as mazelas que devo ter cultivado, inadvertidamente, na existência anterior a essa. Toda reação é fruto de uma ação. Depois de tomar conhecimento dessa inegável verdade, compreendi que ainda estou quitando débitos contraídos no passado, vivendo na condição de “vivo morto” – falou sorrindo e reiterou: – A minha meta é pacificar e, por isso, observo com cuidado a consciência que, na condição de juiz incorrupto, chama-nos sempre aos brios quando agimos à margem das leis divinas. Fez pequena pausa, mas já que Stevens prosseguia receptivo, ele voltou a falar: – Só para você estou, realmente, vivo. Só para você em quem iden‑ tifiquei naquele dia um drama que poderia levá-lo ao suicídio, não fos‑ se a bondade de Espírito do Mar. – O senhor me procurou naquele dia! Como soube de mim? – Não vejo os espíritos como ocorre com você, mas ouço-os. Um amigo espiritual, velho conhecido, avisou-me. Juvenal parou de falar. Stevens, por sua vez, não ousava interrom‑ pê-lo antes de observar se o velho amigo estava com o olhar distante, por entender que aquele momento era só dele. Assim, ambos perma‑ neceram sentados, ainda de frente um para o outro, meditativos, por mais de quinze minutos, quando Juvenal falou compassadamente: – Se você pretender narrar o que ouviu, deixe, por favor, para fazê­ ‑lo depois que sepultar o meu corpo. Certamente, experimento agora


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a colheita das sementes que não foram bem selecionadas antes de se‑ rem semeadas. – Jamais o faria, pois seria uma imperdoável traição, tanto à sua confiança quanto à minha decisão de mudar sempre e sempre para melhor. Diga o que deseja de Stevens e o seu discípulo o fará, pois sei que jamais me pediria o impossível. Juvenal, visivelmente emocionado, levantou-se e Stevens também imitou o gesto. Olhando um para o outro, iniciava-se uma das mais belas cenas, semelhante à de pai e filho. Passaram a sentir uma alegria íntima. Rindo alegremente, abraçaram-se e Stevens falou com bastante sentimento o que era revelado no tom da voz: – Eu te amo, meu pai pelo coração, meu verdadeiro amigo, meu orientador. – Eu também, filho querido, que talvez o tempo e a longa história das nossas existências trouxeram-no de volta para junto do meu coração.


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Capítulo 12

Buscando a pacificação Para se liberar do orgulho, da prepotência e do egoísmo, basta dizer não à vaidade. Dizzi Akibah

dois meses que Gildo fora libertado da prisão, mas os pais, inconformados com o procedimento equivocado que ele havia adotado, sequer procuravam saber, pois qualquer informação sobre ele era assunto que os deprimia. Stela não mantinha o desejável equilíbrio para isso. Tanto que, na única vez que fora visitá-lo, sen‑ tiu-se mal. E não tocava no assunto com Orlando, porque ele, ainda desequilibrado, tendia a piorar, por causa da revolta que guardava no íntimo, se sentindo traído, já que Gildo era, para ele, a esperança da continuidade do seu trabalho. Stevens, perceptivo, não deixou de compreender a situação. Tendo sido ele que, durante muito tempo havia trabalhado para apurar a quantia suficiente para o pagamento da multa e conse‑ quente liberação de Gildo, poderia, se quisesse, levar a boa notícia a Stela. Contudo, apesar de estar sempre com ela, preferiu nada falar. Sua intenção era tocar no assunto somente quando o irmão estives‑ se recuperado.

Já haviam se passado


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Assim é que, numa sexta-feira, pouco antes do meio-dia, Stela ou‑ viu alguém batendo na porta. Ao abri-la, viu, inicialmente, o carro de madeira cheio de peixes e falou com bastante alegria, imaginando fos‑ se Stevens: – Oh filho, meu filho querido! – Oh mãe! Sou, ainda, seu filho querido?! – Gildo?! Mas o que é isso? Você também? Não sabia que já havia saído da... – Da minha querida casa de recuperação. Não se admire, mãe! Eu estou morando numa palhoça com Stevens e Juvenal e aprendendo a ser bom como eles. – Meu Deus, não dá para acreditar no que vejo! Será que tinha que ser assim mesmo ou meus filhos nasceram com alguma deforma‑ ção mental? – Quem está aí, Stela? – perguntou Orlando, já chegando à porta e, ao ver Gildo junto ao carro de peixes, que ele tanto odiava, gritou a toda voz: – Além da vergonha de ter roubado, me aparece aqui com esse mal‑ dito carro de peixes? – Oh pai, que recepção dolorosa para mim, que estou tentando mu‑ dar a vida para melhor! O senhor dizia todos os dias que eu era o seu filho predileto. Agora não mais? Eu errei, sim! Mas estou assumindo a responsabilidade do que fiz e tentando melhorar cada vez mais. Por que o senhor não faz o mesmo? Reconheça, meu querido pai, que errou, per‑ deu tudo que tinha e continua errando, por não assumir a responsabili‑ dade e também por continuar culpando o mano Stevens. O senhor sabe muito bem que tudo não passou de um mero capricho, alimentado pelo poder do dinheiro. Mas agora, que não tem mais dinheiro e nem poder para alimentar a vaidade e o orgulho, é hora de pensar melhor. Se hoje o senhor estivesse como se encontra, agora, Stevens, já não sofreria tanto! Eu descobri, pai, que o valor da pessoa não está no que tem, e sim no bem que procura viver. O senhor se esconde aqui, entre as paredes des‑


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sa casa vazia, não apenas de móveis e de outros objetos ricos como era antes, mas, também, de amor e compreensão, para não ser visto ou não ver ninguém, se sentindo humilhado e inútil, esquecendo-se que é filho de Deus. Saia, meu pai, daqui e enfrente de cabeça erguida as pessoas que não têm nada a ver com a sua vida! Faça como a mamãe, conforme disse Stevens, que já não se importa com os rostos virados para o lado daqueles que se diziam amigos. Retire do seu íntimo a aversão injustifi‑ cável contra Stevens, porque ele nada fez de mal ao senhor, tampouco a qualquer um de nós. Ele já era bom e bem melhor do que todos nós, que não tivemos a capacidade de compreendê-lo. Se alguém tem que pedir perdão a ele sou eu mesmo, por tê-lo agredido, o senhor, que o colocou fora de casa, a mamãe, que não fez diretamente, mas foi mais ou menos conivente, por achar que ele era a vergonha da família. Era não! Ele era e continua sendo uma luz, que de certa forma está clareando o nosso obs‑ curo caminho, ainda cheio de ilusão e de boba vaidade. Essa é uma boa hora de voltarmos o pensamento para o alto e perguntar: que queres de mim, Senhor? E seguir os ensinamentos de Jesus Cristo, para não mais cair na tentação do orgulho e da ganância. Parou por instantes e falou com muito sentimento: – Eu te amo muito, meu pai! Orlando, parecendo estar hipnotizado, saiu porta afora na direção de Gildo, mas ele, assustado, sem saber qual era a intenção do pai, re‑ cuou. Orlando de um só pulo segurou o filho e apertando-o nos braços falou chorando: – Gildo, meu filho, quanta desventura! – Não chore não, pai! Vamos ser mais fortes e enfrentar essa dificul‑ dade com confiança em Jesus e muita fé em Deus. Stela, de tão emocionada, soluçava. As surpresas repentinas me‑ xeram profundamente com o seu íntimo. Orlando soltou Gildo, ela, então, se aproximou e abraçou-o ternamente: – Meu filho, perdoe-nos por não termos sido bons pais. Só agora entendo que, bons pais, não são aqueles que dão tudo que os filhos


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pedem e também o que não pedem, mas os que não lhes negam a dis‑ ciplina, a educação doméstica, a orientação em prol de um bom com‑ portamento moral e a noção de Deus como nosso Criador. Oh! Gildo! Mas agora que o sofrimento vem lapidando o meu íntimo, deixando­ ‑me mais sensível e que caiu o véu da ilusão que obscurecia a verdade, sinto que te amo e você é, sim, meu filho querido. – Oh mãe! Eu já estava ficando triste, pensando que agora era só Stevens seu filho querido. – Por que você não volta aqui para casa? – Eu voltarei, mas só quando puser na minha frente a responsabi‑ lidade em tudo que fizer; a amabilidade para com todas as pessoas, indistintamente; a alegria de me sentir realmente filho de Deus, o que estou aprendendo na convivência e nos exemplos de Stevens e seu Ju‑ venal, o pescador. Só depois de tudo isso é que Gildo lembrou-se de entregar os pei‑ xes a Stela. Logo que saiu, sem qualquer comentário, ela preferiu cha‑ mar a atenção de Orlando para outro assunto, que sabia ser para ele bastante melindroso: – Orlando – falou ela medindo as palavras – eu tenho um assunto muito importante. – Fale só se for alguma coisa boa. Porque de ruim, já me encontro além das medidas. – É uma coisa tão boa quanto alegre: nós somos avós de uma lin‑ da menina! – O que você está me dizendo?! Eu não sou avô de ninguém! Prin‑ cipalmente dessa, que é também neta de Juliano. – Orlando, quem poderia guardar mágoa era ele, porque em toda essa história foi quem saiu prejudicado. No entanto, segundo Gilza me disse, ele não demonstra isso! Se assim fosse, não a teria recebido e nem a Gino e os tratado como o faz com os seus próprios filhos. Bem diferente de você, que sendo ela sua filha hostilizou-a a ponto de, des‑ gostosa, sair de casa. Enquanto ele a recebeu de braços abertos.


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Sem argumento, Orlando respondeu apenas: – Não me toque, nunca mais, nesse assunto! – falou quase gritando. – É preciso, porque Gilza quer trazer a criança para conhecermos. – Que ela não ouse a tal ponto. Já disse que não a considero neta. – Então fique sabendo que eu vou lá, agora mesmo, conhecer a mi‑ nha neta! – falou já saindo da sala. Entrou no quarto e, momentos de‑ pois, retornou de roupa trocada: – Estou indo. O almoço está pronto. Até logo! – Se você quiser teimar, então vá de vez. – Se é assim, como você está dizendo, então, adeus!

houvesse uma resposta favorável ao térmi‑ no do processo obsessivo, conforme o espírito mostrara tendência na última reunião, Stevens entrou na sala para os trabalhos daquele dia bastante confiante. Contudo, logo que teve início a comunicação ele percebeu que ainda havia pela frente muito a fazer, por causa da frieza que o comunicante revelava no jeito de se expressar: – Para não pensarem, aqui, que estou com má vontade, dei uma trégua aos traidores enquanto pensava no que fazer da minha vida e dos que me acompanham. O que ouvi na última vez que estive aqui não foi o suficiente para amenizar o sentimento de vingança, porque não entendo e também não aceito as explicações com que vocês, aqui, tentaram me convencer, principalmente sobre o perdão, por ter con‑ cluído, depois de muito pensar, que não passa de uma covardia, de‑ pois deles terem arruinado a minha vida e de toda a minha família, re‑ ceberem de graça o perdão, sem sequer demonstrarem qualquer sinal de arrependimento e sem nunca terem pedido. Não acho isso justo! Já que fazem pouco caso de mim, terão que sofrer até que lhes venha o arrependimento e se humilhem, rogando que lhes conceda o perdão. Para isso, eu pedi auxílio a uma organização que trata desse assunto e agora já sei a melhor maneira de minar as energias do corpo físico, até

Na expectativa de que


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que, fora dele, os traidores enfrentem todos os castigos que merecem, até se decidirem a ajoelharem-se aos meus pés para pedir clemência. E se isso não acontecer, já acertei com o juiz da mesma organização para montar um tribunal e julgá-los. Caso sejam condenados, serão detidos em porões imundos, onde nem os seus gritos de dor serão ouvidos! É tudo que eu tinha a dizer e, por favor, não me atormentem mais, me trazendo aqui nesse lugar para me persuadirem a fazer o que eu não tenho condições íntimas. – Meu irmão – falou Stevens –, há um equívoco... – Já disse tudo! – interrompeu bruscamente. – Se não tenho mais o que falar, também não tenho que ouvir o que não desejo. Stevens parou de falar e sentiu amor por aquele irmão, que embora demonstrasse facilidade de se comunicar, era uma prova inequívoca da obscuridade que se deixara acometer ao alimentar, há tanto tempo, o sentimento de vingança, o que lhe tirava a oportunidade da reencarna‑ ção, cujo objetivo seria apagar o ódio do passado com o cultivo do amor. Em silêncio, Stevens emitiu com fé e confiança em Jesus e os espíritos trabalhadores da Seara Divina uma prece pedindo por aquele desencar‑ nado, compreendendo que ele não era tão mal quanto tentava demons‑ trar, mas moralmente doente que, inconscientemente, pedia socorro para sarar as suas mazelas. Momentos depois, o espírito passou a reclamar: – Me deixem ir embora! Não retirem as minhas forças, porque eu me vingarei de cada um de vocês sem dó e sem piedade. Parem com isso! As forças a que ele se referia eram justamente o ímpeto do ódio e da vingança que, naquele instante, cedia lugar às vibrações amorosas dos trabalhadores espirituais da casa. Compreendendo isso, Stevens, então, voltou a falar: – Meu querido irmão. Quem corrige aqueles que desrespeitam as leis morais é a Justiça Divina, que tudo registra, de tal maneira que nada passa despercebido. Se você matá-los, como afirma ser a sua in‑ tenção, será feliz? E a sua vida, de que jeito será ao se transformar num


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criminoso? Aí, portanto, será a sua vez de enfrentar a Justiça, não dos homens, mas de Deus! E em relação ao perdão, há um equívoco no seu entendimento quando pensa que estará beneficiando somente a eles, quando na verdade o primeiro beneficiado é o que perdoa, por retirar do íntimo o sofrimento moral causado pelo ódio. Mesmo quando nos sentimos lesados, não nos cabe o direito de julgar, porque, além de não termos conhecimento para tal, não é certo se imaginar juiz para julgar em seu próprio benefício. O espírito, ainda bastante endurecido, respondeu: – Nem pense que não tenho inteligência para compreender as coi‑ sas! Mas isso não significa que eu aceite, porque o tormento de todo aquele sofrimento está dentro de mim, e chego, às vezes, a imagi‑ nar que estou enlouquecendo! Eu poderia ter me transformado num monstro, porque algumas vezes planejei matar a todos os meus filhos e a mim também, para que os traidores se sentissem culpados. Mas minha filha mais velha, que era bondosa e cheia de sabedoria, quan‑ do me surpreendia com esse plano ruim, conversava, explicava com paciência, aconselhava-me com doçura e amabilidade. Mas só que ela cresceu e quando completou vinte um anos de idade, numa manhã, ao me ver muito triste, disse-me: “Sei que você tem sofrido muito, não apenas pelo que aconteceu, mas por causa do ódio que está envene‑ nando o seu coração. Está na hora de mudar os rumos, porque cada um de nós, seus filhos, tem que escolher o tipo de vida que não deve ser este que você vem exemplificando. Mas, sim, buscando dignidade, responsabilidade e amor, muito amor! Eu já escolhi o meu rumo. Vou para um convento, onde certamente eu porei em prática o meu desejo de servir a todos, por amor, principalmente ao divino mestre.” Foi ser freira! E eu não compreendo como uma filha tão amável desaparece, assim, do pai, como vem acontecendo! Acho que era boa demais para ficar perto de mim! – lamentou o espírito: E concluiu: – por tudo isso, eu não aceito proposta de ninguém para mudar os meus rumos! Mesmo que ainda houvesse tempo para prosseguir o diálogo, Ste‑


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vens achou inconveniente, para o momento, pois a conversa havia sido demasiadamente longa e ele sabia que não é o muito falar que acres‑ centa! Mas, sim, o que se diz. O espírito retornou à casa de Orlando, onde os seus comandados aguardavam curiosos para saber o que havia ocorrido na reunião. Mas logo que o suposto chefe se aproximou deles, falou resoluto: – Nada feito! A proposta deles é perdoar os traidores, o que, pes­ soalmente, eu não aceito. E vocês, o que acham? A primeira resposta foi de Emilly (espírito), que na época em que surgiu o conflito teria sido traída pelo esposo, identificado ali, naquele momento, na personalidade de Orlando: – Eu estou cansada desse tipo de vida, que não me traz paz e nem alegria de viver. Quero muito esquecer tudo isso e, se for verdade o que ouvi falar, renascer, ter um lar e filhos. – Você está fraquejando, porque não sabe que para se ter uma famí‑ lia, pelo que ouvi alguém falando lá naquela casa (casa espírita), terá que se casar com o traidor para ajustar as coisas. Mas não espere muito por isso, porque logo que eu retirá-lo do corpo físico, onde pensa que se esconde, ficará sob o meu poder por tempo indeterminado! – Bom mesmo é esquecer isso e pensar em algo melhor – respondeu ela – e se for o caso de ter que viver com ele, para ajustes, não recuarei! Conquanto que seja, também, para o bem dos meus filhos. Ela falava dos filhos como se estivesse ainda encarnada. – Bem, se você já pensa assim, é porque deve estar do lado deles. Desapareça, então, da minha vista! Cinco espíritos que ali se encontravam e que ainda tinham-na como mães decidiram: – Se a mãe for, iremos com ela! De um a um deixaram a casa de Orlando e seguiram caminhando pela rua, sem saber para onde. Mas logo viram aparecer, de repente, alguém acenando, o que eles entenderam que os chamava e se aproximaram. O desconhecido (espírito trabalhador da casa espírita) falou sorridente:


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– Se querem mudar a vida para melhor, venham comigo. Momentos depois entravam na mesma casa espírita, onde se‑ riam doutrinados. Já Stevens, quando retornava da reunião, caminhava lentamente pensando na maneira pela qual pudesse resolver o conflito que pode‑ ria ter um desfecho ruim, se não com Stela, que decidida continuava buscando a sua melhoria íntima por meio do Evangelho e das reuniões que assistia na casa espírita, mas com Orlando, seu pai, que ainda se encontrava endurecido, revoltado e, às vezes, odiento, sem se dar con‑ ta de que só o bem faz bem. Absorvido por esses pensamentos, quando se deu conta estava chegando à Colônia. Entrou em casa e antes mes‑ mo de se dirigir a Juvenal, Gildo, que estava lá fora, falou a toda voz: – Mano, vem aqui, rápido! Stevens pôs a cabeça pra fora pela porta e ele falou: – Olha quem vem ali! É a mamãe! Foi uma grande surpresa, porque ninguém, nem ela mesma, imaginava que um dia fosse buscar socorro junto à pobreza mate‑ rial de onde, se pudesse tempos atrás, teria afastado Stevens por se sentir envergonhada diante daqueles que, antes, afirmavam-se amigos, mas que naquele momento viravam-lhe o rosto para não cumprimentá-la. Stevens saiu rápido para encontrá-la e sem conseguir ocultar o efei‑ to da surpresa, perguntou: – Mãe, a senhora aqui?! – Meu filho, não se admire tanto com a minha presença. Eu já havia pensado em vir aqui visitá-los e conhecer o amigo a quem você consi‑ dera pai. Mas agora aqui me encontro, não como imaginei, mas, sim, porque Orlando me pôs fora de casa. – Quê?! – perguntaram os dois simultaneamente. Stela, então, falou sobre a visita que fizera à casa de Juliano para conhecer a neta recém-nascida e concluiu, assim, a narração: – Agora, sou eu que procuro socorro, porque não tenho para onde ir.


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Gildo se adiantou na conversa: – Oh mãe! Eu mesmo queria muito ter uma casa para a senhora se acomodar. Mas já que não tenho, a senhora poderia ficar com Gino! – Gino reside num sítio que pertence a Juliano. E isso seria enca‑ rado por Orlando como um desacato, o que pioraria a situação. Com Gilza, nem falar porque reside na casa do sogro. – Oh mãe! Aqui, além de total desconforto, estamos, agora, moran‑ do os três nessa barraca, até que as novas casas fiquem prontas. Stevens lembrou-se de Juvenal e foi buscá-lo para apresentar a mãe, mas ao se aproximar, Gildo adiantou-se: – Mãe, esse é Juvenal, um homem rico de sabedoria e bondade. – O que é isso, Gildo? Você está me atribuindo qualidades que ain‑ da não foram desenvolvidas em mim! Juvenal estendeu a mão a Stela e falou sorrindo: – Não repare a aspereza dessa mão calejada. – É uma satisfação sentir essa aspereza, a que o senhor se refere, por sabê-la operosa, em nome da caridade – respondeu e sem querer perder o ensejo de uma conversa proveitosa, falou compassadamente: – Eu gostaria muito de fazer uma pergunta, posso? – Mãe, fique à vontade! exclamou Stevens. – Ouço falar, desde criança, que Deus ajuda a todos e que está em toda parte, ao mesmo tempo. Como posso compreender isso, se são milhares ou milhões de pessoas que podem estar, ao mesmo tempo, pedindo-lhe alguma coisa? Stevens dirigiu o olhar para o velho amigo, que não se fez de rogado: – Dona Stela, Deus, como imaginam, não se desloca pessoalmente para lá e para cá no intuito de atender os nossos clamores. É a sua ma‑ nifestação, em toda forma de vida e em tudo mais onde há algo por Ele criado, que testemunha a Sua presença. Tudo, de Deus até nós, é estabelecido nas leis imutáveis que, de cujo conjunto harmonioso, é estabelecida a Justiça Divina que proporciona a cada um segundo as suas obras, como disse Jesus, a Luz do Mundo. Muitos, por ainda


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não entenderem esse mecanismo divino, confundem a oração com petitórios, que nem sempre dizem respeito ao desenvolvimento mo‑ ral-espiritual. Fez uma pausa proposital, dando ensejo para a compreensão do assunto, e instantes depois Stela voltou a perguntar: – Nesse caso, não devemos pedir nada a Deus? – Nenhum pedido, que parte de qualquer tipo de necessidade, pas‑ sa despercebido, sem que seja analisado por seres que já dispõem de sabedoria em relação às leis divinas. Eles agem por meio de uma hie‑ rarquia, que obedece a ordem do mais alto para baixo, onde nós nos encontramos. Quantas vezes, por um pedido formulado por meio de uma oração com forte impulso dos sentimentos, nos vem o socorro por quem nunca antes imaginávamos? Assim podemos compreender que a ajuda de Deus, já estabelecida nas Suas leis, não nos chega por uma ação direta do Criador, mas administrada, sabiamente, pelos espíritos elevados, sob o direcionamento de Jesus, pois tudo que vem de Deus para a humanidade na Terra passa antes pelo mestre. São muitos os que ainda pedem para ganhar mais dinheiro, amontoar bens materiais, adquirir fama... Quando deveriam destinar a sua rogativa à aquisição de forças para vencer as dificuldades que se encontram em si mesmos, no intuito de crescer moral e espiritualmente. Mas esses enganos po‑ dem ser considerados normais, em se tratando de desenvolvimento moral, pois se a vida provém da ação amorosa do Criador, somos, ori‑ ginalmente, uma centelha divina, o que denominamos de espírito, que foi criado para a eternidade, contendo em sua estrutura interior tudo que precisa para chegar, pelo despertar, ao estado de plena sabedoria e pureza. Contudo, esse despertar, que exige milhões de anos vivendo de forma em forma num corpo físico, depende tão somente dele mes‑ mo, pois quando criado, recebeu tudo que precisava para a conquista do estado angelical... Felicidade plena! É, pois, nesse exercício em bus‑ ca do despertar que, às vezes, nos enganamos e afastamo-nos das leis divinas e, apesar da ligação original com o Pai criador, passamos a não


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registrar os benefícios dessa originalidade. Não que Deus se afaste de nós. Mas nós, sim, que nos afastamos d’Ele e, à margem das leis, passa‑ mos aos mecanismos da justiça Divina, que corrige e educa de acordo com a necessidade de cada um. Como podemos perceber, não se trata de esquecimento do Criador em relação aos seus filhos (todos nós), como muitos imaginam, mas, sim, resultado das nossas próprias ações. Stela, que se mostrava pensativa, quis ainda saber: – O senhor falou que o espírito já possui tudo que necessita para o seu crescimento e que isso se dá, vivendo na matéria, de forma em forma, durante milhões de anos. Que pode mais me dizer sobre isso, para que eu compreenda melhor? – Faço-lhe, também, uma pergunta: para que Deus criaria os ani‑ mais? Que importância teria, por exemplo, um leão feroz, uma serpen‑ te, cuja picada venenosa é fatal, ou qualquer outro animal peçonhento se não houvesse um real sentido? A alma estagia de forma em forma no seu reino característico até chegar à forma humana. É aí, portanto, que se exige milhões de anos. Da forma humana em diante, ela tende a se sublimar, o que exige, também, tempo considerável: alguns milha‑ res de anos. Se Stela se encontrava boquiaberta com as revelações, Gildo se tor‑ nava cada vez mais ávido por conhecimento. Stevens, no entanto, que já retinha esses esclarecimentos, estava muito satisfeito em ver ali o interesse de sua mãe e do irmão Gildo por assuntos tão importantes referentes à vida espiritual, o que os distanciava, cada vez mais, dos interesses materiais, que antes defendiam com muita energia. Dois dias depois, Stela já procurava se aclimatar ao novo ambiente, se aproximando das pessoas, conversando e se inteirando da situa­ção de cada uma. Enquanto Orlando sozinho na casa, ainda vista e denomi‑ nada de mansão, remoía desesperado os acontecimentos que motiva‑ ram as situações difíceis, mas não assumia a responsabilidade dos seus atos, pondo a culpa sempre em alguém. Assim, vivia um dos piores momentos daquela existência, com as mãos feridas por queimaduras


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que ocorriam durante a sua tentativa de preparar comida, pois nunca antes se dera ao cuidado de procurar saber como eram preparados os pratos deliciosos em almoços e jantares, para os quais convidava os que desfrutavam da sua amizade, mas que, naquele momento, sequer desejavam saber como ele estava vivendo. A casa grande e vazia de gente e de móveis e utensílios, os quais foram vendidos, se encontrava repleta de vibrações deletérias, não só dos espíritos que ali vibravam em ódio, mas, sobretudo, pela falta de bons pensamentos, que o leva‑ va ao desespero, sem ter com quem partilhar as suas desventuras. O medo parecia levá-lo à loucura, porque àquela altura o espírito vinga‑ tivo passou a produzir efeitos físicos, provocando pancadas por toda a casa, balançando objetos e contribuindo para que ele se queimasse enquanto tentava fazer a comida. Contudo, o que mais o amedronta‑ va era ouvir as ameaças odientas do obsessor, que tentou por todos os meios, até ser ouvido e expressar toda a sua mágoa, ameaças para intimidá-lo e amedrontá-lo, pensando chegar ao seu objetivo, que era retirá-lo do corpo físico pela morte. Assim é que, três dias depois da chegada de Stela à vila, Stevens, preocupado com a situação do pai e consciente de que pessoalmente nada poderia fazer, porque ele não desejava vê-lo, chamou Gildo para a seguinte conversa: – Acho que você pode dar uma ajuda ao nosso pai. – De que forma, mano? – Entendo a sua satisfação de estar aqui conosco, inclusive agora com a presença da mãe. Mas o pai não pode e nem deve ficar sozinho naquela casa. É hora de pôr em prática, Gildo, o sentimento de frater‑ nidade que você vem despertando com tanta rapidez. – Mano, você não quer dizer que eu devo ir embora daqui, não é mesmo? – Não! Você pode ir lá dar um apoio: Fazer comida, lavar a roupa suja, sobretudo, conversar. Ele sempre gostou muito mais de você do que de todos os outros filhos e você sabe disso! Está disposto a corres‑ ponder, agora, a essa preferência dele para com você?


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– Se quero tanto mudar para melhor, como perderia essa oportu‑ nidade de servir, principalmente ao pai? Vou hoje mesmo e pretendo passar a noite lá com ele. Assim que Gildo chegou à casa, foi acometido de verdadeiro es‑ panto! Tudo revirado e fora do lugar: roupas pelo chão, água derrama‑ da pelo piso, lixo acumulado, cujo mau cheiro era desagradável. Assim que entrou, não vendo Orlando, começou a chamá-lo: – Pai! Pai! – Quem é?– perguntou com voz rouca e ameaçadora. – Sou eu, pai! O senhor deixou a porta de entrada aberta! – É você mesmo que eu quero aqui! Pensou que ficaria lá escondi‑ do junto daqueles tirados a bonzinhos, não é? Pois agora vamos acertar as nossas velhas contas. Você também é traidor por ter me deixado para renascer filho das duas serpentes que são os seus pais! Eu amava muito você, mas depois que me traiu, o amor passou a ser ódio. Foi por isso que fiquei colado em você, passo a passo, até colocá-lo nas mãos daquele viciado. Eu pensava que você acabaria igualzinho a ele, mas foi bem pior: parou na cadeia! Mas já que você está, agora, querendo ser bonzinho, eu o quero aqui bem perto de mim, pois eu sei o que fazer de você. Para isso, afastei sua mãe, a traidora, por algum tempo, porque agora é com a gente! Gildo tinha conhecimento da obsessão do pai e de tanto ouvir Stevens e Juvenal falar sobre isso, estava convicto de que quem fala‑ va ali não era o seu pai e sim o espírito por meio dele, e partiu para a revanche: – Escuta aqui, cara, seja quem for você, não pense que eu tenho medo de ameaças! Cão que muito ladra não morde! Pare logo com essa conversa e vamos botar um ponto final nisso! Você pode até ter sido meu pai, mas perde o meu respeito por estar agindo maldosamen‑ te, um exemplo tão feio do qual deveria se envergonhar. E digo mais: você deve ser muito burro em pensar que o ódio traz contentamento e alegria para alguém! Procure outra coisa para fazer, cara, que justifi‑ que a vida que Deus lhe deu.


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– Quer saber de uma coisa? Eu vou te matar! – ameaçou o espíri‑ to raivoso. – Que matar nada! Desencarnou há tanto tempo! Já poderia ter re‑ tornado para uma nova existência, ou melhorado a situação íntima! No entanto, permanece odiento e vingativo, fazendo ameaças desse tipo! “Onde já se viu ter medo de desencarnar? Ora cara, mude de ideia, porque essa não funciona bem. Se você não sair dessa casa por bem, para o que estou disposto a dialogar de homem para homem, aliás, de homem para espírito raivoso, vai sair daqui na marra! Os guardas da paz (espíritos que assim se autodenominavam) certa‑ mente vão tirar você e seus comparsas daqui. Onde já se viu viver tanto tempo com ódio?” O espírito, diante do jeito destemido de Gildo, acabou compreen‑ dendo que ele não se encontrava tão fácil, como antes, quando o in‑ fluenciou até vê-lo viciado e aquietou-se. – Isso mesmo! – disse Gildo resoluto. – Fique caladinho aí, porque eu tenho algo mais importante a fazer do que dar atenção a quem sabe que está errando e insiste em continuar. Mas se quiser, balance os objetos, jo‑ gue-os ao chão, para mim isso é nada! Mas para você sim, porque por cau‑ sa da escuridão da vingança, já está caminhando para cegueira total. Quer saber se é verdade? Olhe aqui, para junto de mim e diga quem está vendo. O espírito permaneceu calado e Gildo então perguntou: – Não está vendo, não é mesmo? É a cegueira, meu irmão, que vai fechar os teus olhos. A luz vem de Deus. E quem não perdoa e não está com Deus, perde até a luz dos olhos! Você deve pensar que é bonzinho e que nunca fez nada errado contra alguém. “Se procurar lembrar, vai saber que é igualzinho a quem acusa. Ou não consegue mais se lembrar de nada? Vai ver que, a esta altura, já deve também estar perdendo a memória.” Naquela noite, o espírito deixou-se sugestionar com o que ouvira de Gildo e aquietou-se pensativo. Gildo, por sua vez, limpou a casa, preparou comida, lavou roupa, preparou um banho e fez o pai higieni‑


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zar-se, pois já exalava odor desagradável. E depois de tudo isso, Orlan‑ do, mais lúcido e calmo, deu ensejo a uma proveitosa conversa: – Oh pai, cadê a mamãe? – Ela traiu a minha confiança, indo contra a minha vontade, à casa do nosso inimigo Juliano. Não tolerando essa afronta, eu não permiti que ela voltasse aqui para casa. – Mas o que é isso, pai?! O senhor deu agora para agir com malda‑ de? A mamãe não merece isso, não! Deixá-la ao desamparo é, ainda, mais vergonhoso do que estar pobre, depois de ser considerado rico, conforme o senhor imagina. Ainda assim, penso que o senhor é um bom homem. Mas esse papel não diz respeito a qualquer tipo de bon‑ dade! Eu nunca imaginei sentir vergonha do meu pai, mas vou ficar muito envergonhado se o senhor não aceitar a mamãe de volta em casa. Orlando falou cabisbaixo: – Pelo menos dessa vez parece que você teve um bom pensamento. Só que eu não sei onde Stela se encontra! – Não se preocupe! Amanhã, logo cedo, tratarei disso. No dia seguinte, logo cedo, Gildo chegou à Colônia dos Pescadores e Stevens quis, imediatamente, saber como se encontrava a situação do pai: – Como foi por lá, Gildo? – Oh mano, foi ótimo! Briguei com o espírito, coloquei-o no seu lugar, mansinho e caladinho! Logo, logo deixou o pai em paz. – Você tem convicção de que agiu certo? – Se não agi certo... Ora! Deu certo assim mesmo! Nem sempre é o caminho escolhido que nos conduz ao que desejamos, porque há vá‑ rios! Mas, sim, de que maneira nos conduzimos, como disse, há poucos dias, seu Juvenal.

depois de ouvir as observações de Gil‑ do, saiu do compartimento de Orlando e se dirigiu ao local da casa onde se acomodava com os seus companheiros de desdita.

Charles, o espírito obsessor,


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Assim que ele chegou, um dos que teriam sido seus filhos pergun‑ tou-lhe: – Com esse jeito de desânimo, alguma coisa deve ter dado errado. Estou certo? – Estou me sentindo cansado dessa rotina, sem chegar às reais vias de fato, o que tira a liberdade de todos nós. Presos e sem sabermos de um novo rumo, a vida está cada vez mais se tornando sem senti‑ do! Reconheço que poderíamos estar vivendo bem diferente, sem esse mal-estar que nos traz tanto desconforto. E, inclusive, não consigo me lembrar da última vez em que senti vontade de sorrir. – Coincidência! Eu também tenho pensado nisso. Realmente esta‑ ríamos bem melhor se conseguíssemos esquecer essas mágoas e parar com esse ódio! Sabe o que eu acho? É que todo mundo erra! E quem garante que agindo assim não estamos errando? Vai ver que os segui‑ dores de Jesus estão certos, quando aconselham a perdoar quem nos ofende ou maltrata. – Não me diga que você, também, já quer chegar a esse ponto! Diante da reação brutal do suposto líder do grupo, ele en‑ tão obtemperou: – Acalme-se! Só estou pensando. Nada ainda definitivo! No entan‑ to, já não suporto mais essa vida, presa a um objetivo que não me traz alegria de viver! Eu quero nascer de novo no mundo! Ser gente! Ter uma família e viver diferente de tudo isso, pai, que você vem adotan‑ do para si mesmo e nos forçando a acompanhá-lo. Saiamos daqui e esqueçamos esse homem! E ela também, porque apesar do erro que cometeu, era a minha mãe que, enquanto viveu em casa, me carregou nos braços, me alimentou e me acalentava com muito carinho quando eu chorava por qualquer coisa. Por isso, eu acho que devo perdoá-la. No meu caso, se trata de um perdão de filho para com a mãe, o que não deve ser comparado com a sua situação de esposo dela. Você, pai, é quem deve saber o que quer. Os espíritos, de tão ligados que se encontravam aos conflitos, ain‑


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da se reconheciam como pai, filho... Até mesmo em referência a Mary Catherine, eles ainda a reconheciam com o mesmo parentesco do pre‑ térito, apesar dela já se encontrar reencarnada e conhecida como Stela. A seguir, os outros, de um a um, foram se manifestando sempre com queixas idênticas, o que convergia para o mesmo sentido. Satu‑ rados, desejavam buscar outro rumo para as suas vidas, o que acaba sempre ocorrendo a todos aqueles que se demoram na mesma situação por longo tempo. Mas, percebendo isso, o espírito Charles, temendo acabar sozinho, foi enfático: – Vocês estão pensando que vai ser fácil, assim, mudar de vida? Isso é complicado, porque não estamos sozinhos! Lembram-se do pacto? Para isso, precisamos da permissão do chefe da “organização vingança em ação”. Se vocês quiserem, mesmo, desrespeitar as suas orientações, não contem comigo! E tem mais: renascer no mundo e viver na mesma família com pessoas, como os traidores, será um grande sacrifício. – E quem disse que eu vou querer viver com eles? Eu vou escolher onde quero renascer. – Não se engane, porque se trata de lei. Lei divina, conforme diz o pessoal lá da casa onde tenho ido. – E você, sabendo disso, preferiu viver assim, com tanto ódio? – perguntou um deles. – Bem, eu não posso dizer que você está errado. Pelo menos, é me‑ lhor do que ficar cego e perder a memória, como já deve estar come‑ çando a acontecer comigo. De todas as observações feitas por Gildo, essa, na qualidade de au‑ tossugestão, foi a que mais marcou no espírito Charles, por causar-lhe medo. Estava certo Stevens, ao tentar, sutilmente, tomar conhecimento do que Gildo teria dito ao espírito, por saber que o medo pode forçar a mudança de um interesse ou uma situação. Mas que só a conscientiza‑ ção e o esclarecimento conseguem motivar alguém a tomar a própria decisão, sem qualquer desrespeito à lei do livre-arbítrio. O diálogo, entre os espíritos, prosseguiu:


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– Pai, você sabe do paradeiro de Katy Magdalene? – Não! Até ela nos desprezou. Nem para aquelas conversas que nos ajudavam tanto a compreender melhor as coisas ela aparece! – Eu acho que Katy deve ter virado santa! Lembro quando ela era freira, que eu olhava para ela e via o seu rosto como se fosse o de uma santa! Os olhos eram tão serenos, que eu sequer conseguia encará-los por muito tempo. Como eu gostaria de ver a minha irmã! O espírito silenciou e, pensativo, buscava lembranças da irmã. E Charles que fora o pai, sentia por ela verdadeira adoração. Katy Magdalene fora a filha mais velha de Charles e Mary Catheri‑ ne (Stela) na encarnação na qual ocorreram os conflitos emocionais que duravam até então, na história.


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Capítulo 13

Desafios oportunos A autocrença é indispensável à conquista do objetivo desejado. Dizzi Akibah

De tão concentrado na administração da construção das casas, ha‑

via muitos dias que Stevens não visitava o recanto onde se encon‑ trava a pedra, local onde havia conhecido Espírito do Mar. Mas ao perceber a reação positiva de Orlando, depois da conversa que Gil‑ do tivera com o espírito Charles, achou melhor buscar orientação. Para isso, não era necessário se deslocar até a praia, porque àquela altura, com a mediunidade totalmente aflorada e educada, bastava direcionar o pensamento e logo seria estabelecida a comunicação, fosse pela clariaudiência, clarividência ou pelo desdobramento. Ti‑ nha consciência disso, mas para ele era um espetáculo de rara beleza presenciar aquela luz viva, que se deslocava como se fosse trazida pelas ondas do mar, até tomar repentinamente a forma humana. A entidade, por sua vez, poderia aparecer a Stevens de outra maneira ou em outro local qualquer que lhe fosse conveniente. Entretanto, assim agia para agradá-lo, já que cultivara por ele, no pretérito, uma grande amizade.


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Com essa expectativa, ele se dirigiu à praia e, em lá chegando, sen‑ tou-se na pedra, mergulhou os pés na água, cerrou os olhos e, em ins‑ tantes, começou a balbuciar: – Jesus, divino mestre de todos nós, aqui me encontro para agra‑ decê-lo por ter permitido a esse ser que chamo de Espírito do Mar, ­atuante na tua seara divina, ter me ajudado até agora a retirar um pou‑ co da escuridão da ignorância, acendendo uma tênue luz que vem, certamente, clareando o caminho, não do que a minha tendência às vezes me leva a querer, mas, sim, do que eu devo. Não pediria outra coisa que não fosse coragem suficiente para nunca recuar, mesmo que isso me custe a própria vida física, a qual trocaria sem qualquer receio pela possibilidade do crescimento e do despertar espiritual, contanto que eu possa continuar me sentindo contigo. “Hoje, mestre querido, eu já posso dizer que o amo! Isso só me ocorreu depois que consegui pôr em prática o amor ao próximo. Ago‑ ra, no entanto, é hora da busca do amor a Deus sobre todas as coisas. Embora o caminho já esteja traçado pelo amor a mim mesmo, passan‑ do pelo amor ao próximo, peço, Senhor, que fortaleça a minha vontade e robusteça o ânimo, pois sei que para isso terei ainda que enfrentar muitos obstáculos e dificuldades.” Terminou a prece e ainda de olhos fechados sentiu-se mais uma vez deslumbrado, ao ver a mesma luz em tom azul celeste sobre as ondas. Momentos depois, Espírito do Mar, que na última encarnação na Inglaterra atendia pelo nome de Katy Magdalene, já se encontrava diante dele, com o mesmo sorriso encantador. – Paz com o divino mestre de todos nós! – falou com a mesma bran‑ dura e suavidade na voz. – Senti saudades – falou ele, pela primeira vez, de algo pessoal. – Podemos comparar a saudade a um espaço no íntimo, que se tor‑ na vazio, pela ausência de quem muito queremos, mas nunca de quem amamos, pois jamais haverá espaço vazio quando o íntimo se encon‑ trar repleto de amor.


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Stevens aproveitou uma pequena pausa feita pelo espírito e se ex‑ pressou, revelando muito sentimento: – Minha irmã espiritual, permita-me exteriorizar o meu sentimento a seu respeito. Ela, sorrindo, meneou positivamente a cabeça e ele então disse: – Eu te amo! – Eu também, querido irmão! – falou ainda sorridente, mas repenti‑ namente mudou de assunto: – Sei o que deseja saber sobre o andamento do processo de desobsessão. Tenho particularmente muito interesse no êxito dessa tarefa, pois entre todos os que formam esse grupo em litígio, encontram-se entes queridos a quem devo muita gratidão. O tratamen‑ to dado por Gildo, ao espírito Charles, não corresponde às orientações estabelecidas em O Livro dos Médiuns, da codificação de Allan Kardec e, tampouco, aos ensinamentos de Jesus. No entanto, no presente caso, foi de bom proveito, porque o impacto despertou o espírito Charles, que agora, encontra-se repensando o seu comportamento. Cabe, no entan‑ to, a você, que teve há mais tempo acesso a esse tipo de conhecimen‑ to, completar os esclarecimentos, sem que precise amedrontá-lo, como ocorreu, porque já se aproxima o momento em que haverá o necessário reencontro para a conclusão parcial da tarefa redentora. Digo parcial, porque, levando em consideração a profundidade dos malefícios cau‑ sados pelos conflitos sentimentais, para saná-los será necessário juntar todos eles, futuramente, numa só família, em posições favoráveis ao cultivo do amor, que certamente apagará o ódio do passado, que infe‑ lizmente tornou enfermos morais os que nele ainda vibram. De passo a passo, repassando o que acabara de ouvir do espírito, Stevens, quando se deu conta, já estava na porta de entrada da palho‑ ça, onde se encontrava Stela. Vendo-a absorta, perguntou: – Mãe, está pensativa? – Eu? Sim, filho! Estou pensando se posso, mesmo, voltar para casa. – Pela ótica da verdade, deve sim voltar para casa. Entretanto, se pode retornar, só a senhora deve saber se há ou não condições íntimas.


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Stevens falou, tomando como base o fato de que ela e Orlando se encontravam unidos pelos laços matrimoniais muito mais para reajus‑ tes. Se ela não retornasse, estaria perdendo a oportunidade de sanar de vez os resquícios deixados pelas mazelas do passado. Depois de pensar por alguns minutos, ela falou resoluta: – Bem, se desejo mudar para melhor, penso que não devo temer desafios. Vou tentar ajudar Orlando, enquanto tento, por minha vez, treinar a tolerância, a paciência e a perseverança. Mudando de assun‑ to... Já ia me esquecendo! Tem aí uma carta para você. Recebeu-a, colocou-a no bolso da roupa e falou já se dirigindo à porta: – Mãe, me aguarde um pouco. Volto já para levá-la para casa. Caminhou até um local onde não havia alguém por perto, para não ser interrompido na leitura da carta. Abriu-a e percebendo que havia caído algo, ele pegou e ficou surpreendido e admirado com o que via. Era uma fotografia de Helenice. Depois de olhar todos os detalhes que lhe chamaram mais atenção, falou para si mesmo: – Como pode alguém mudar tanto assim? Nem parece a mesma pessoa! Mas apesar disso, está ainda mais linda! Helenice, em contato com os costumes da cidade grande, estava com outro visual. Os cabelos com um corte jovial, óculos escuros tipo esporte, uma blusa com pequeno decote e um colar enfeitando o pes‑ coço. Era a diferença que Stevens notava por nunca antes tê-la visto assim, cuidando da aparência pessoal. Mesmo desanimado por imagi‑ nar que ela havia mudado, também, intimamente, desdobrou o papel e começou a ler: “ Sempre amado Stevens. Peço desculpas pela demora em enviar­ ‑lhe notícias. São as múltiplas ocupações que não me permitem fazer o que eu gosto, mas, sim, o que venho traçando como meta para a re‑ alização do meu ideal. Falta apenas um ano para o término do curso. Contudo, provavelmente, eu não voltarei a residir aí, porque já estou, há tempo, trabalhando e com perspectivas de uma grande melhora de‑


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pois de graduada. É pena que a cidade aí não tem campo para quem adquire uma formação de nível superior. Mas isso, entretanto, não será obstáculo para pôr em prática o meu desejo de, juntos, formarmos uma família, conforme a minha vontade pede, porque, se eu for realmente impedida pela situação, você que, acho já deve estar mais livre, poderá vir para cá. Mas de qualquer maneira, como o futuro a Deus pertence, como o povo diz, vivamos o presente, tentando ser felizes da maneira que pudermos.” Stevens esperava outro conteúdo, que pelo menos fizesse-o sentir as mesmas emoções de quando conversavam pessoalmente, antes dela ir embora. Dobrou novamente a folha de papel e, desapontado, falou recolocando-a no bolso: – Ela mudou muito, a ponto de achar que eu iria embora daqui, deixando para trás compromissos tão sérios que assumi perante a espi‑ ritualidade, a vida e a mim mesmo! Adeus, Helenice! – comentou ele. Voltou à palhoça e além de Stela, já pronta para retornar para a casa, lá se encontrava um auxiliar de Ênio, que, ao vê-lo, foi logo falando: – Vim trazer um recado de Ênio. Ele pede para você estar presente a uma reunião, logo mais às quatro da tarde, lá na empresa. O jovem pescador confirmou a presença à reunião e imediatamente seguiu acompanhando Stela. – Que tem filho? A carta lhe entristeceu? Ele riu sem graça e respondeu: – Nem tanto, mãe! Tenho coisas muito importantes para tratar. – Mas se você gosta dela, não deve dar pouca importância, porque se trata de sentimento. E mesmo porque, você não vai querer ficar sol‑ teirão sem uma família. Apesar de tudo que nos ocorreu e dos dissa‑ bores que atravessamos, a única queixa que eu tenho, atualmente, é de mim mesma, por não ter sabido ser uma verdadeira mãe e, também, por me deixar conduzir pela vontade de Orlando. Mas, ainda assim, acho que valeu a pena! Inclusive, agora, com o nascimento de Clarice, eu sinto uma alegria muito grande por ser avó!


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– Eu compreendo o seu ponto de vista, mas já tenho uma família muito grande, composta por todas aquelas pessoas que a senhora viu lá na Colônia. Até uma filha eu já tenho. Pelo coração, é claro! O meu compromisso maior é com Jesus, o nosso divino mestre, a quem eu amo verdadeiramente e desejo manifestar esse amor, não apenas lou‑ vando-o ou adorando-o; mas, sobretudo, a todos como a mim mes‑ mo, conforme ele mesmo nos orientou. Helenice, no que pesa a sua formação espiritual, não se submeteria a esse tipo de vida, porque todo o seu empenho tem sido justamente para sair dele. Disse-me na carta que não voltará a residir aqui na cidade. Não a acho errada, porque sendo ainda jovem deseja desenvolver-se e penso que tam‑ bém ajudar a mãe e os irmãos. Se os nossos interesses são assim tão diferentes... Paciência! Stela abraçou Stevens e falou: – Sinto-me honrada em ser tratada de mãe, por você. Stevens falou sorrindo: – Sendo a senhora a minha mãe, de que outra maneira eu a trataria? – Eu quis dizer, que, sendo você tão bondoso, inteligente e cheio de sabedoria, me sinto honrada em ser a sua mãe! Stevens, que era muito perceptivo, fixou o olhar bem nos olhos da mãe e ela, embora tentasse, não conseguiu demonstrar tranquilidade. Ao contrário, mostrou-se inquieta, desviou o olhar e tratou de mudar de assunto. – Você gosta do local da sua morada? – Atualmente, ele é o meu mundo. Nele, não só gosto de viver, mas sobretudo é onde venho aprendendo muito com o exemplo de cada um com quem convivo. Continuaram andando em silêncio, pensando ainda no assunto, até quando Stevens assim se dirigiu a ela: – Mãe, mudando de assunto, eu queria fazer uma pergunta. Res‑ ponda só se lhe for conveniente. Quando levei o pescador para apre‑ sentá-lo à senhora, observei a sua reação e também a dele. É como se já


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se conhecessem e estivessem cuidadosos para não deixar que isso fosse notado. A minha percepção estava certa ou foi apenas uma impressão? – Oh, não, Stevens! Eu imaginava que você falava de outra pes‑ soa. Não ele, que eu já conhecia de longe, há muito tempo, empurran‑ do o carro com peixes. Nunca imaginei ser ele a pessoa que tanto lhe ajudou, a ponto de modificar, radicalmente, a sua vida para melhor! Quando vi que se tratava dele, sequer queria acreditar. Sei que isso se trata de prejulgamento, inclusive pela aparência, o que não deixa de ser um erro. A firmeza com que Stela se expressou, dando resposta à curiosida‑ de de Stevens, deixou-o convencido de que se tratava apenas de uma impressão, e disse: – Desculpe, mãe, pelo meu engano! O fato de o pai ter expulsado a sua mãe de casa e do seio da família foi para ele traumatizante. Contudo, o que mais lhe marcou foi pôr a culpa da sua presença na família em Stela. Isso gerou uma série de interrogações em sua mente, sem que ele, até então, tivesse encontra‑ do respostas. Ao encerrar o diálogo, já se encontravam em frente à casa e perce‑ beram que a porta de entrada encontrava-se aberta. Stela, ainda receo‑ sa, chamou Orlando antes de entrar, mas ele não respondeu. Stevens, que nunca se esquecia da área ajardinada da casa, o recanto onde sem‑ pre se sentia bem, deu alguns passos na direção do lugar e viu Orlando entre as flores, regando-as. Voltou para junto de Stela e falou: – Ele está ali no jardim, cuidando das plantas. Enquanto o aguardavam, sentaram-se nos degraus que dava aces‑ so à porta e começaram a comentar o jeito engraçado de Gildo se com‑ portar em certas situações e que, no final, acabava dando certo. – Quem sabe não deu certo também com Orlando? – perguntou ela. Antes de Stevens responder, Orlando chegou de repente, com um buquê de rosas na mão, estendendo-o em direção de Stela, que se le‑ vantou e perguntou:


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– É para mim?! – Quem, senão você, mereceria essas flores escolhi‑ das especialmente? Com os olhos úmidos, pois a emoção fazia-a chorar, ela recebeu as flores, levou-as junto às narinas aspirando o perfume e exclamou: – Como nos velhos tempos! Oh! Orlando! Deus que é o nosso Pai cheio de bondade e amor, parece que, por misericórdia, nos inspira a conquista da paz verdadeira. Não mais a ilusão da vaidade, da osten‑ tação e da ilusória grandeza, graças a esse bondoso filho que Deus co‑ locou em nossas vidas quando imaginávamos que ficaríamos sozinhos. Orlando abraçou Stela e disse: – Eu quero que você me perdoe pelo que fiz, porque naquele mo‑ mento a minha cabeça estava cheia de pensamentos ruins. Gildo, quan‑ do esteve aqui, abriu os meus olhos e a minha mente. Eu, agora, desejo mudar a minha vida para melhor. Parou um pouco de falar e fixou o olhar em Stevens: – Sei que fui muito ruim com você por causa do orgulho que ainda existe dentro de mim. Mas só o fato de reconhecer, acho que é o primei‑ ro passo para combatê-lo. Não peço perdão e nem desculpas a você, porque se eu não o tivesse mandado sair daqui de casa, possivelmente não seria, hoje, uma pessoa tão admirada e querida por todos, inclusi‑ ve eu, que desejo, pelo menos, ser seu amigo, se você aceitar. Stevens, com timidez, estendeu a mão. Orlando segurou-a e levan‑ do-a à altura do seu coração, disse: – Juro que serei um amigo leal. – Eu também, pai! – em seguida, levou a mão de Orlando aos lá‑ bios, beijou-a e se expressou cheio de emoção: – A minha gratidão pelo alimento produzido por estas mãos labo‑ riosas, o qual me fez crescer e ficar adulto. Parecia que tudo caminhava para a reta final. Mas ainda havia mui‑ to a ser resolvido antes de alcançar o êxito desejado, se realmente lá chegassem. O fato é que Orlando se encontrava visivelmente melhor,


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mas isso se dava, apenas, por causa da trégua dada pelo espírito Char‑ les, que tendia para uma mudança no seu comportamento. Mas não havia garantia de que os seus planos fossem favoráveis, mesmo por‑ que ele não havia deixado a casa e tampouco permitido isso aos seus companheiros de desdita. Assim, poderia ainda voltar atrás para dar vazão ao ódio que sentia, como se o estivesse queimando por dentro e, ao remorso, que parecia enlouquecê-lo. Nos momentos de desespero, a perversidade com que tratava Stela e muito mais Orlando, dava-lhe a impressão de que se sentia aliviado. E quando agia com fúria, logo depois parecia ficar sereno, calmo e com a fisionomia menos desagra‑ dável. Como alguém que toma um analgésico para a dor e sente-se melhor, ele sentia-se momentaneamente aliviado, mas não curado, porque a sua dor, que era moral, precisava ainda de muito tempo para ser eliminada, mesmo buscando um rumo diferente. Há muitos que perdem o corpo físico pela morte e levam consigo os malefícios morais que, inadvertidamente, dão guarida em seu íntimo, precisando, para extirpá-los, de uma ou mais reencarnações.

da empresa. Lá chegando, foi imediata‑ mente levado por uma recepcionista à sala onde seria realizada a reu‑ nião. Depois de um toque na porta, foi abrindo-a devagarzinho e ao ver em volta da mesa algumas pessoas trajadas socialmente, usando paletó e gravata, enquanto ele usava uma roupa simples e calçava um velho chinelo, o que, segundo a sua ótica, não condizia com o ambiente, fechou, novamente, o pouco que havia aberto da porta e imaginando que ninguém havia notado a sua presença decidiu descer rapidamente os degraus da escada. Mas antes de dar o primeiro passo, a porta foi reaberta e Ênio, ao vê-lo, abraçou-o, cheio de alegria: – Oh meu bom amigo! Pensei que não havia aceitado o meu convi‑ te! Venha! Apesar da alegria com que era recebido, o jovem pescador tentou,

Stevens seguiu na direção


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ainda, se livrar daquela situação que achava ser incômoda. Se não para Ênio, mas para os outros participantes da reunião: – Oh, Ênio! Eu peço que me desculpe, mas eu não me encontro em condições psicológicas para atender ao seu convite, e inclusive a mi‑ nha aparência não condiz com a dos outros participantes por causa da roupa que estou usando. Seria, inclusive, um contrassenso... Talvez até um incômodo para eles! Ênio, boquiaberto, respondeu-lhe: – Stevens, acorde! Assim como o espírito não é o corpo físico, que usa, como uma simples vestimenta, o homem não é, também, o paletó e a gravata que usa! Isso é mera formalidade. Você sabe, muito bem, que o homem se mede pelo caráter, pela inteligência e pela capacidade de ser bondoso, justo e amável, qualidades que reputo a você. Segurou-o pelo braço e distanciando-se da sala, falou em baixo tom de voz: – Todos eles estão na expectativa do cargo de diretor. Nem se preo­ cupe com isso! Ainda quer desistir? Stevens respondeu sorrindo: – Vou com você até onde sequer já ouvi falar. Satisfeito, Ênio pôs a mão sobre o ombro do amigo e falou ao se aproximar da mesa: – Pessoal, eu quero apresentar um amigo que prezo de coração. Esse amigo é uma das pessoas mais competentes e bondosas dentre tantas outras que já conheci. Não se encontra aqui como mero visitan‑ te, mas, sim, para, tanto quanto vocês, tomar conhecimento das dire‑ trizes da empresa, que inclusive pertenceu ao seu pai. Como vocês já sabem, devo fazer uma viagem ao exterior e preciso de alguém, aqui, que não seja apenas competente, mas acima de tudo que desfrute da minha total e irrestrita confiança, qualidade que reputo a todos vocês, pois, se assim não fosse, eu não os convidaria. Eram pessoas que já atuavam com o empresário, em outras empre‑ sas da rede. A reunião prosseguiu com a exposição dos planos traça‑


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dos desde a organização interna até as vendas. Nada deixou de ser tra‑ tado. No final, Ênio pediu que alguém fizesse um relato do que havia sido discutido. Os participantes ficaram olhando entre si e o tempo foi passando, sem que ninguém se propusesse, pois, eles não prestaram bem atenção ao que se passou, porque os seus pensamentos estavam ligados no interesse de assumir a diretoria por causa do salário. Ste‑ vens, no entanto, que nada conhecia do assunto, prestou bem aten‑ ção a todos os detalhes, não que tivesse qualquer ganância pelo cargo, mas simplesmente para honrar o convite, a atenção e a consideração de Ênio. Ao perceber que ninguém se propunha a fazer o relato, ele levantou-se e todos olharam. Houve até quem externasse gesto de iro‑ nia e zombaria. Mas o jovem pescador, sem nenhum papel contendo dados que pudesse ajudá-lo, começou a fazer o relato, citando núme‑ ros, comparando, sugerindo e mostrando de que maneira a empresa poderia não só funcionar a contento, mas crescer. No final, para sua surpresa, o que chegou até a assustá-lo, foi aplaudido efusivamente até pelos que inicialmente desdenhavam-no. Ênio, abraçando-o, disse cheio de contentamento: – Está empossado o novo diretor da empresa, que estará ao meu lado a partir de amanhã e assumirá totalmente, em quinze dias, quan‑ do eu viajar. Findada a reunião, Ênio desceu a escada ao lado de Stevens. Lá embaixo, chamou um dos empregados e falou: – Miguel, por favor, pegue a chave do carro e leve Stevens em casa. Minutos depois, ao chegar à Colônia dos Pescadores, o motorista não entendendo o que via, comentou: – Acho que errei o caminho! – Siga em frente! Não está errado. – Mas o senhor mora aqui mesmo, ou... – Sim. E estou muito satisfeito! – Me desculpe! É porque eu estou acostumado a ver gente que faz questão de se mostrar importante! O senhor, no entanto, já soube que


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é o novo diretor e é assim tão simples. Deus ajude que não mude! Até eu vou gostar, porque eu tenho certeza de que eu não serei humilhado como muitos fazem, menos seu Ênio, que é pura bondade! – Está certo, Miguel. Pode confiar nisso! Desde já, deixo-lhe avisado, que toda vez que eu precisar sair de carro, será você meu companheiro. – É seu Stevens! Quem tem rosas, dá rosas. Mas quem não tem... – Dá o que tem. Não é isso? – Não, seu Stevens! Dá os espinhos da roseira. Miguel deixou a Colônia com as melhores das impressões. Estava acostumado a lidar com pessoas orgulhosas e por demais vaidosas, que tantas vezes humilhavam-no. Ali, no entanto, o que pôde perceber em Stevens dava-lhe uma esperança de ser tratado como gente. Ao ouvir a zoada do carro, que já deixava o lugar, Gildo pôs a cabe‑ ça para fora da porta e ao ver Stevens, gritou a toda voz: – Mano, você está ficando um pobre importante! De carro, aqui na Colônia? Juvenal se aproximou sorrindo: – Não é todo dia que se vê um automóvel por aqui, principalmente conduzindo um pescador! Os três riram à vontade, demonstrando o bom humor, que é tantas vezes a manifestação da consciência tranquila. Entraram e Stevens falou apressado: – Seu Juvenal, eu estou precisando de um conselho de um pai cons‑ ciente e bondoso. Ênio me empossou na diretoria na empresa. Mas eu ainda não me sinto com firmeza suficiente para me situar. Juvenal pensou, pensou e em seguida, levantou-se e falou apoian‑ do a mão sobre o ombro do jovem amigo: – Penso que os canais não foram abertos por acaso. Também, não foi por acaso que Ênio se aproximou de você e mantém, agora, toda essa confiança. Diante das circunstâncias, não seria elegante da sua parte recuar, pois há entre você e ele uma parceria formada por con‑ fiança mútua. Seria bom experimentar, porque a criatura humana que


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não aceita a oportunidade que lhe chega, afasta-se, não somente dela, mas de tantas outras que poderiam vir, pois com essa atitude acaba fechando o círculo em volta de si mesmo. Penso que você pode fazer tudo isso, sem precisar mudar nada do seu jeito de ser e, se tentar, estará cometendo um engano. Qualquer tipo de mudança teria que ocorrer, no caso, antes do surgimento da oportunidade. – O senhor está certo! Vou experimentar. Gildo, que ouvia a conversa, falou eufórico: – Parabéns, mano! Quem diria, tempos atrás, que isso um dia pu‑ desse acontecer? Principalmente com você, que nem gostava de ir lá! – Gildo, eu não ia lá por causa das imposições do pai, que queria nos conduzir com a intenção de despertar em nós aquele mesmo fas‑ cínio por dinheiro! Você sabe, agora, que tanto se tratava disso que acabou falindo! Não era do trabalho, em si, que eu me excluía. Agora, por exemplo, embora eu tenha fascínio pelo mar e goste de pescar, vou fazer algo bem diferente do meu gosto. Mas não deixarei de cuidar de tudo com amor, responsabilidade e dedicação, principalmente na con‑ vivência com os companheiros trabalhadores. – Vai dar tudo certo, mano! Mas eu acho que seria bom você mudar um pouco o seu visual. O traje deve estar de acordo com o ambiente. Não ficaria bem você usar uma roupa de banho de mar numa igreja, por exemplo, ou essas mesmas roupas que usamos para irmos a uma solenidade. Não é verdade? – Concordo com você. No entanto, penso que não é o cargo ou a função que faz o profissional correto e eficiente, mas, sim, o homem que qualifica a sua função e honra o compromisso do cargo que assu‑ me. Não é a roupa que molda o caráter do homem. – É, mano! Você está certo. Mas de qualquer maneira, eu tenho uma sugestão para lhe dar. Depois, quando você estiver usando paletó e gravata, tira um retrato e manda para a Helenice. Ela, certamente, vai gostar de vê-lo assim... Bem diferente! Stevens lembrou-se, imediatamente, da sua reação negativa ao ver


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a fotografia de Helenice, por causa das mudanças na aparência, e aca‑ bou compreendendo que estava errado em relação ao que pensou dela, porque, como disse Gildo, o traje deve estar de acordo com a ocasião e o ambiente, mesmo sendo isso uma mera formalidade. A franqueza de Gildo, às vezes exagerada, se não dava certo, pelo menos, em determinadas situações, ajudava. Logo que havia tomado conhecimento da nova situação do irmão, ele foi visitar os pais. Em lá chegando, ao ver Orlando com boa aparên‑ cia e Stela bem mais alegre, abraçou-os carinhosamente, mas como se encontrava eufórico, foi logo ao assunto que lhe interessava: – Tenho uma novidade! É a prova de que, quem faz o bem, gera-o para si mesmo. Stevens foi convidado para dirigir a empresa. Orlando arregalou os olhos e perguntou: – E ele aceitou? – Como não, pai? Ele merece isso e muito mais, porque é tão bom que nem parece pertencer à nossa família! – Ele não é assim tão bom como você pensa! Se fosse, não teria relu‑ tado, tanto, no meu tempo, para trabalhar conosco. E agora na primei‑ ra oportunidade que encontra, vai correndo sentar no lugar que era meu! Se houvesse a consideração de filho para com o pai, não aceitaria de forma alguma! – Pai, ele não está fazendo mal algum, nem a ele e nem ao senhor. Ele estava certo em não aceitar o nosso jeito ganancioso por dinheiro e destaque na sociedade. Eu pergunto: por onde andam os que se afir‑ mavam leais? E os que se diziam amigos? Algum deles voltou aqui para fazer uma visita? E os bajuladores que tratavam o senhor de dou‑ tor, mesmo sabendo que o senhor não era graduado, para onde foram? Os interesseiros que atraímos com o nosso jeito equivocado de viver, também não sumiram? Fez uma pequena pausa e em seguida prosseguiu, mudando o tom da voz: – Agora é diferente. Ênio, o novo proprietário, é um homem volta‑


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do para a caridade e é de natureza simples, tanto quanto Stevens. Não adota essa sociedade corrompida por convenções e costumes equivo‑ cados de se mostrar pelo que tem, mesmo sendo ele um milionário! Fez uma pausa, mas como gostava muito de falar, prosseguiu: – Pai, não quero ofendê-lo, porque já disse que o amo muito! Mas não devemos ignorar que tudo depende do comportamento. Enquanto o senhor pôs os moradores fora do terreno que comprou, só para esta finalidade, Ênio, sem que ninguém pedisse, foi visitar Stevens e ao ver os casebres, apiedou-se dos moradores e mandou construir casas boas e até bonitas. Na próxima semana, será realizada uma festa para a en‑ trega das chaves. Vendo o pai pensativo, continuou: – Pois é, pai! Está na hora de retirar essa impressão do seu filho porque ele, hoje, para mim, é, além de irmão, o meu melhor amigo. E, além disso, é bom o senhor esvaziar aí esse coração de tanta coisa ruim que já foi colocada nele, porque do contrário o senhor pode vol‑ tar à mesma situação ruim que estava acontecendo. O seu médico é o senhor mesmo! No fundo, Orlando sabia que Gildo estava certo. Mas ele era bas‑ tante orgulhoso para aceitar facilmente a verdade e mudar de atitude, por imaginar que sabia mais do que todos.


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Capítulo 14

E o sonho se tornou real Mais uma derrota? Não desanime! Pode ser ela o último passo que faltava para a vitória final. Dizzi Akibah

– Que mais posso pedir, se o que eu tenho recebido já ultrapassa, certa‑

mente, o meu merecimento? Penso que a misericórdia divina me dire‑ ciona oportunidades para que eu consiga ultrapassar a ignorância que obscurece a visão do mais amplo e do horizonte que pode ser aberto, como se faz com as cortinas que obscurecem o ambiente. Mas que, de‑ pois de descerradas, eis que penetra a luz. Era Stevens conversando com Juvenal, enquanto aguardavam a presença de Ênio para a singela festa de entrega das casas novas aos moradores. – Disse bem – falou Juvenal, sobre os petitórios dirigidos ao Criador –, pois Deus já estabeleceu em cada um de nós, no ato de criação, tudo que necessitamos para o grande voo. Entretanto, não devemos nos limitar às ações, imaginando que já estamos rea­ lizando o suficiente para o desejável crescimento, porque a vida do espírito, pela eternidade afora, se constitui de estudo, prática e experiência.


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A conversa prosseguiria, se não fosse interrompida por Gildo, que sem prestar atenção, se aproximou eufórico: – Mano, já viu quanta gente está chegando para a festa? Não en‑ tendo por que essas pessoas, que nada têm a ver com o evento, foram atraídas para cá. – Creio, se tratar, apenas, de curiosidade – respondeu Stevens. – Talvez não – interveio o velho pescador, com o olhar fixo numa mesma direção, o que chamou atenção de Stevens: – Algo importante deve estar chamando a sua atenção. Não é mesmo? – Aquela senhora, ali, sentada embaixo da árvore... Chama-me atenção o fato dela estar inquieta, olhando sem parar para todas as direções. É como se estivesse à procura de alguém... Alguma coisa... Stevens passou, apenas, a observar, enquanto Gildo, que ainda não dominava o ímpeto, disse já levantando da cadeira em que estava sentado: – Vou lá perguntar a ela. Quem sabe está precisando de algu‑ ma informação? – Gildo, você é livre para agir – disse Juvenal –, no entanto, não deve esquecer-se da sensatez. Creio que se fosse esse o interesse dela, já teria se dirigido a alguém. Ele aquietou-se. Mas quando preparava um contra-argumento, foi interrompido por Stevens, que falou olhando para o caminho que dava acesso ao lugar: – Ênio está chegando! Porque ele prosseguiu sentado, Gildo falou a toda voz: – Mano! Você não vai receber o seu futuro patrão, para as boas­ ‑vindas? – Todos que aqui se encontram, são igualmente merecedores das nossas boas-vindas. Ênio, já fora do veículo, se aproximou falando cheio de satisfação: – É com muita alegria, que desfruto de tão preciosos momentos ao lado de vocês.


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Olhou na direção onde se encontrava a referida mulher, e convidou: – Venham comigo! Eu quero apresentar a vocês a pessoa pela qual tive oportunidade de abrir os olhos no cenário do mundo. Aproximou-se e falou em bom tom: – Mãe, estes são os amigos de quem eu falei com a senhora: Juvenal, Stevens e Gildo! Ela estendeu a mão em direção a Juvenal. Ele levou aos lábios, como era costume na época, e disse em seguida: – Seja bem-vinda! E receba os meus parabéns pela formação moral, pela educação doméstica e fineza de trato com que educou o seu filho, a quem reputo como rara pessoa. – Obrigada pelo elogio – respondeu a visitante, que, querendo tra‑ var conversa perguntou: o senhor é daqui mesmo? – Não! Mas vivo aqui há tanto tempo, que me sinto nativo. – Desculpe-me a falta de discrição, mas os seus traços fisionômicos são, por demais, parecidos com o do meu saudoso esposo. – Às vezes notamos essas particularidades, em pessoas sem ne‑ nhum laço consanguíneo – respondeu o velho pescador. – Mãe – aparteou Ênio – a senhora foi muito perceptiva! Eu, inclu‑ sive, já havia notado isso, desde a primeira vez que o vi. Embora Juvenal demonstrasse ter ficado sem jeito com a conversa, Ênio prosseguiu argumentando: – Mesmo sabendo de que se trata de uma coincidência, fico muito satisfeito ter um amigo do porte moral de seu Juvenal, cuja fisionomia relembra o meu pai, que já não se encontra entre nós. Digo coincidên‑ cia, porque o único irmão que ele tinha, morreu, quando eu era ainda menino. Não foi isso, mãe? – Foi. E, infelizmente, eu não cheguei a conhecê-lo. A conversa foi encerrada e Stevens, então, se aproximou de Gilca – este era o seu nome – e falou: – Espero que a nossa festinha, que tem para nós um importante sentido, traga-lhe bem-estar e satisfação.


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– Tentarei, principalmente por causa de Ênio. Não fosse a insistên‑ cia dele, eu não teria vindo, porque não guardo boa lembrança des‑ se lugar desde que minha irmã aqui faleceu, quando ainda era mui‑ to jovem. – Lamento! – falou Stevens. – Ela veio para veranear, mas acabou conhecendo um rapaz e por aqui ficou. Tempos depois, recebi uma triste notícia de que ela havia morrido por complicações no parto. Vim para o sepultamento, e logo depois tentei encontrar o pai da criança, para pedir que me deixasse criá-la, mas ninguém me informou. Não sabia de quem se tratava. Ima‑ ginando fosse ele um desconhecido na cidade, me convenci de que o meu esforço estava sendo inútil. Mesmo inconformada, retornei, sem sequer ter conhecido o meu sobrinho, que pelo tempo deve estar com mais de trinta anos de idade. Parou de falar e Gildo, que estava do lado de Stevens, já impa‑ ciente, pois desejava também, cumprimentá-la, aproveitou o ensejo e estendeu a mão, já falando o que desejava: – Vi, há pouco, a senhora olhando para todos os lados. Procura‑ va alguém? – Estava procurando, sim, alguém com alguns traços fisionômi‑ cos parecidos com os da minha irmã, na esperança de encontrar o meu sobrinho. Ênio, então, se aproximou já falando: – Mãe, vamos esquecer tudo isso? Trouxe a senhora para mudar de ambiente e tentar melhorar o seu íntimo! Hoje, quero-a alegre e sorri‑ dente! É um presente que a senhora pode dar a toda essa boa gente! Vamos à inauguração? Na entrada da nova comunidade, foi colocada uma fita, que deveria ser cortada por um deles. Aproximaram-se e Stevens, então, tirou do bolso uma tesoura e estendeu a mão na direção de Ênio, que não acei‑ tou, achando que o certo seria Stevens cortá-la, pois era o idealizador da construção das casas. O jovem pescador voltou-se para Juvenal e disse:


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– Isso é para quem, com tanta dedicação, começou toda essa história. Mas Juvenal acabou concordando com Ênio, por entender que a ideia da reforma do lugar teria nascido com Stevens. O tempo foi pas‑ sando e eles rindo alegremente, enquanto os moradores já se encontra‑ vam ansiosos para conhecer as novas moradias. Foi quando Stevens acenou, chamando alguém. Logo chegou correndo a menina Xandi‑ nha. Ele suspendeu-a até a altura do seu rosto e falou a toda voz: – Essa honra pertence à filha do meu coração. Foi ela quem, um dia, em poucas palavras, me motivou a servir, não só a ela, por quem eu experimento um grande amor paterno, mas a todos que aqui se en‑ contram, pois os tenho como irmãos, entrelaçados pelo amor fraterno. Pôs a menina no chão, entregou-lhe a tesoura e disse: – Corte a fita! O ruído das palmas e dos fogos demonstrava a gratidão daque‑ las pessoas, que depois de longos anos sem ter onde residir, viam o seu desejo realizado. Logo uma banda de música começou a tocar e Ênio subiu num pequeno palanque armado na pracinha para esse fim e falou: – Nada têm a nos agradecer, pois se vocês se sentem beneficiados, nós ainda mais, pela oportunidade de sermos úteis. Desfrutem do con‑ forto e da comodidade que as novas residências proporcionam e agra‑ deçam a Jesus, o nosso divino mestre, que coordena todas as vidas nesse planeta, interpretando com perfeição a vontade de Deus. Não se trata de um simples agradecimento em palavras, que se não forem pro‑ vidas de sentimento, poderão se perder, levadas pelo vento, por onde o som se propaga. Agradeçam, sim, de um modo diferente: No dia a dia, na cordialidade uns com os outros, no apoio mútuo, no respeito recíproco, na cooperação e, principalmente, na convivência salutar e amorosa, para que a vida, doravante, se torne para cada um de vocês um hino de amor à paz e à alegria no caminho da conquista maior, que é a de si mesmo! Esta, sim, é a boa forma de agradecer a Jesus. Em seguida, Stevens, Juvenal e Gildo fizeram o sorteio das cha‑


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ves e à proporção que os moradores iam abrindo as casas, notava-se a grande alegria estampada na fisionomia. Era, realmente, um presente valioso, porque não recebiam apenas o imóvel, mas todo o mobiliário necessário. Ênio assim preferiu, porque sabia que eles ainda não se encontravam em condições de adquiri-los. Acreditava-se que a ideia de construir casas teria nascido do senti‑ mento de caridade de Stevens e Juvenal e o custeio da construção por Ênio. Entretanto, eles foram instrumentos da justiça divina para cor‑ rigir um erro praticado por Odorico, irmão de Juvenal, que demitira e desalojara as referidas famílias da propriedade, quando assumira a herança deixada pelos pais. Por enquanto, parece obscura essa afirmação. Contudo, o decorrer da história mostrará a razão pela qual Ênio, Juvenal e Stevens foram usados como instrumento da justiça divina, demonstrando a perfeição com a qual age a justiça incorruptível do divino Criador.

ficando vazia. Ênio e a mãe sentaram-se, ali mesmo, nas tábuas do pequeno palanque e começaram a conversar. Um pouco mais afastados, os três amigos, por sua vez, também co‑ meçaram a comentar sobre o que dissera a mãe de Ênio em relação à irmã que teria desencarnado, conforme o comentário feito por Gilca. – Curiosa essa história, não acham vocês? – perguntou Stevens e prosseguiu falando: – Se ela não encontrou a criança, conforme disse, alguém deve tê-la adotado, porque seria muito difícil o pai tomar conta de uma criança que havia acabado de nascer, sem a desejável habili‑ dade das mãos femininas, por onde flui, não apenas a agilidade, mas, sobretudo, o amor maternal. – Não fosse isso, essa criança, hoje já adulta, estaria fazendo parte da família de Ênio! Estaria bem, em termos financeiros e também com boa formação moral. – E se ela foi amparada por uma família pobre? A praça foi aos poucos


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– Gildo, isso depende do merecimento. Se pobre ou rico, estará como nós mesmos, colhendo o que plantou, ou seja, vivendo o que merece. Juvenal, no entanto, estava calado e pensativo, de tal forma que sequer percebia a conversa dos dois amigos. Notando isso, Gildo pôs a mão sobre o ombro do velho pescador e exclamou: – Seu Juvenal, parece que de repente o senhor voou espaço afora! Não sei se no pretérito ou no porvir. – É verdade, Gildo! É válida a sua observação. Contudo, não há mal algum em revolver o passado, onde se encontram os arquivos das nos‑ sas ações, quando precisamos analisá-las para um fim útil, mas nunca viver nele! Por sua vez, viver o futuro é algo bem mais complicado, porque quem tenta fazer isso acaba prejudicando as suas ações do dia a dia. Entretanto, não devemos esquecer de que as ações do presente refletirão no futuro. Para ser mais claro, estamos sempre, ao mesmo tempo, colhendo e plantando, porque no presente vivemos os efeitos das causas e, ao mesmo tempo, estamos criando outras causas, cujo re‑ sultado conheceremos no futuro, que pode ser imediato ou até mesmo na próxima existência. – Nesse caso – falou Gildo –, tudo se resume apenas nisso: selecio‑ nar as sementes para que a colheita não seja desfavorável ao bem-estar, à paz e à alegria de viver, sentindo-se, sempre, filho de Deus! – Está indo bem, Gildo! – exclamou Juvenal que, em seguida, parou de falar e na sua fisionomia lia-se facilmente a expressão da saudade. Gildo já ia interrompê-lo, mas Stevens percebeu em tempo: – Gildo, não queira penetrar em assuntos de foro íntimo! Se ele silenciou, é porque se trata de algo somente dele... Da sua intimidade. Momentos depois, Ênio e a mãe se aproximaram e despediram-se. Stevens, então, falou com bastante satisfação: – Vamos nós, também, conhecer a nossa nova moradia! A praça parecia vazia. Mas sem que ninguém percebesse, ficara um visitante, ali mesmo, sentado no palanque. Cabisbaixo, sentia-se só e desolado, sem rumo e sem esperança. Era o espírito Charles, que ainda


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se deixando arrastar pelo sentimento de vingança, depois de ter ten‑ tado, sem êxito, encontrar alguém que desse guarida aos seus planos, para lá se dirigiu, intencionado a encontrar oportunidade de se aproxi‑ mar de Gildo e usá-lo como instrumento para continuar dando vazão ao ódio que ainda conservava no íntimo. Os companheiros de desdita haviam deixado, recentemente, o ambiente da antiga mansão. Ele, no entanto, como faz um guerreiro que, mesmo consciente da sua derrota na batalha, não se dá por vencido. Inconformado com a melhora apre‑ sentada por Orlando e a nova fase que Stela já vivia, pensava que Gil‑ do, ainda, poderia ser presa fácil como da outra vez. Contudo, encon‑ trou um ambiente totalmente diferente, cuja vibração era de alegria, paz e gratidão aos benfeitores do lugar e principalmente a Jesus, como recomendara Ênio há algumas horas. Perdendo, assim, a sua única es‑ perança e sem ânimo para reagir, prostrou-se ali e, totalmente integra‑ do às lembranças dos conflitos emocionais com Mary Catherine, via, como se estivesse acontecendo no momento, imagens que tomavam vida, energeticamente alimentadas por ele mesmo. Mas apesar disso, a dureza de coração, dava pela primeira vez, lugar às lágrimas que rola‑ vam rosto abaixo. Imaginava-se sozinho, entretanto, uma testemunha, a ele invisível, observava-o com muito interesse, constatando se o seu estado íntimo tendia ao arrependimento sincero, o suficiente para um novo destino a ser dado a sua vida. Era Katy Magdalene (Espírito do Mar) que dali saiu e retornou mais tarde, com Stevens, em desdobra‑ mento natural, já que o corpo físico repousava em sono profundo: – Ele não tem condição de me ver – explicava ela– e mesmo que tivesse, ainda não seria a hora certa para tal. Assim sendo, é de bom proveito que você converse com ele. Eu continuarei aqui, na retaguar‑ da, auxiliando para o êxito do diálogo. Stevens se aproximou e vendo-o com a cabeça apoiada nos joelhos e o olhar para o chão, deu-lhe um toque na cabeça, à altura do chacra coronário. Charles reagiu como se houvesse recebido um intenso cho‑ que elétrico e de um só pulo ficou de pé.


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– Não tenha receio, meu irmão Charles, sou eu! – Eu quem? Se eu o conheço, não estou lembrado. Afaste-se de mim! – Apesar de estar vivendo num corpo físico ou fora dele, eu posso mudar a minha fisionomia, como faço agora, relembrando de quando vivi em outro corpo, séculos atrás, na Inglaterra, quando você, um cer‑ to dia, por ciúme de Mary Catherine, tentou contra minha vida sem saber que eu era irmão dela. – Por favor, não me denuncie, porque se trata apenas de um enga‑ no. Perdoe-me e me deixe, por favor! – Foi por isso, Charles, que você não entendeu a razão pela qual, depois da separação que ainda agora lamenta com tanto ódio, eu a escondi até quando você descobriu e ela então, com receio da sua per‑ versidade, desapareceu e só depois obtive informações quando ela já havia morrido no estado de mendicância. Como pode perceber, a mi‑ nha ajuda não foi só para preservar a vida dela, mas também para que você não se tornasse um criminoso, pois apesar de tudo você era meu cunhado e pai dos meus sobrinhos. – Mas ela merecia ser morta! – bradou. – Além da vida pertencer a Deus, e você não ter o direito de agir assim, não se encontrava tão cheio de razão, como ainda imagina. Ca‑ therine já não suportava mais as suas cenas doentias de ciúme e agres‑ sões morais, o que ela desabafava comigo às escondidas. Charles, meu irmão, poucos suportam esse tipo de vida, a não ser quando se trata de alguém cuja evolução esteja num patamar bem mais elevado. O espírito demonstrava amargura, mas Stevens, notando que ele ouvia atento, prosseguiu: – Tanto era que a sua filha me procurava nos piores momentos de sofrimento, justamente quando você se deixava arrastar pelo ódio e me dizia: – Tio, meu pai enlouqueceu e eu, embora tente lhe dar o melhor remédio contra o ódio, que é o amor, ele não apresenta sinais de melhora. – Você lembra, mesmo, da minha filha?


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– Como esquecer aquele anjo bom, Charles? Stevens tratava-a de anjo, não que ela realmente o fosse. Mas tenta‑ va assim qualificá-la, para que o espírito mantivesse nela o pensamen‑ to, o que facilitaria o êxito da tarefa. – Se você estiver me enganando, eu vou prendê-lo comigo, até que o seu corpo morra, sem você poder retornar a ele. – Não conseguiria, Charles, porque ela, sua filha, não deixaria. – Você está querendo inocentar a sua irmã e pôr a culpa toda em mim. Eu não aceito porque ela foi a causadora de tudo! – Deixe isso com a justiça divina! Catherine, hoje, reencarnada com o nome de Stela, já ultrapassou esse tipo de comportamento. É uma senhora de respeito e dignidade, que caminha, seguramente, para Je‑ sus, por meio dos seus ensinamentos redentores. Orlando, que você tanto odeia, já está prestes a mudanças benéficas no comportamento moral. Você contribuiu, decididamente, para que ele perdesse todos os bens materiais, imaginando que estaria prejudicando-o, mas ocorreu o contrário, acabou ajudando-o a despertar para se livrar das ilusões da riqueza, o que ocorre agora. Stevens parou de falar, olhou na direção de Katy Magdalene, e, seguindo a sua orientação, perguntou: – E você, Charles, que fará da sua vida? – A única esperança que eu tenho é saber da minha filha por outra pessoa que eu possa confiar, porque você tem segundas intenções. Mas isso é muito remoto, porque ela, certamente, também me abandonou. – Não é verdade! Ela me disse que lhe visita, sempre, mas você não a vê. – Será verdade mesmo que eu estou ficando cego? – Propriamente não. É a escuridão do ódio que não o deixa vê-la. Sua filha é luz! Para mim, é como se fosse uma santa cheia de amor e sabedoria. – Gostaria muito de vê-la! – Faça por merecer, Charles! Esqueça esse passado e passe a culti‑


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var amizade para com as pessoas. Experimente perdoar Mary Cathe‑ rine e Orlando. Além de ver sua filha Katy Magdalene, voltará a viver em paz. – Se eu já tivesse dado cabo do traidor, que sequer quis saber o seu nome, talvez estivesse me sentindo mais satisfeito. – Que criminoso pode desfrutar de paz e bem-estar com a cons­ ciência chamando aos brios? Fez uma pausa, mas já que Charles (espírito) não respondeu à per‑ gunta, ele lhe disse: – Encontra-se em suas mãos ou nas suas intenções a escolha do seu destino! A um sinal de Katy, que à parte ajudara Stevens a se lembrar do pas‑ sado e imprimir no perispírito, a aparência do corpo físico que usara, como quando atendia pelo nome de David, concluiu, assim, o diálogo: – Adeus, Charles! Se desejar mudar para melhor, converse pelo pensamento, com Jesus, abra o seu coração e peça socorro.


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Capítulo 15

A verdade que faltava Enquanto o orgulho ostenta, a humildade silencia. Dizzi Akibah

transcorrido da festa de entrega das novas casas e Juvenal, o pescador, desde então mostrava-se introvertido. Ao notar, Stevens passou a analisar pormenores e acabou convicto de que essa mudança tivera início durante a conversa de Gilca, a mãe de Ênio, so‑ bre a irmã falecida e o sobrinho que não havia conhecido. Pensou em tratar do assunto com ele, mas, bastante sensato, preferiu não interfe‑ rir sem que fosse solicitado. Gildo, entretanto, que às vezes se deixa‑ va conduzir pela impetuosidade, também notara. Nos primeiros dias, conseguiu dominar o ímpeto por causa das recomendações de Stevens, mas isso duraria pouco, pois ele já se encontrava impaciente. Assim é que, convidado por Juvenal para pescar, ficou eufórico, pois longe das vistas de Stevens estaria livre para a conversa que gostaria de ter com o velho pescador. No entanto, desde a saída da casa, até o alto-mar, onde já se encontravam, nenhuma conversa. Foi quando Gildo, acostumado a ouvi-lo horas, rompeu o silêncio e foi direto ao assunto: – Seu Juvenal, ouvir o senhor não é apenas uma satisfação para

Oito dias já haviam


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mim, mas, sobretudo, uma necessidade, porque as suas palavras che‑ gam à minha mente como a água ao sedento. Por que o senhor me priva, agora, dessa oportunidade? Está triste, meu bom amigo? O velho pescador dirigiu o olhar por alguns minutos para Gildo e, em seguida, começou a falar – o que não vinha fazendo nos últi‑ mos dias: – Com o seu movimento natural, o mar apresenta o fluxo e o refluxo – maré alta, maré baixa. Se em tudo há dois lados, o que contribui com a harmonia, em nós também se processa o mesmo fenômeno. Às vezes, sem nos dar conta, abrimos a mente e deixamos entrar, pelos sentidos, ideias e desejos, dentre outros, sem o devido cuidado de selecionarmos o que vemos, ouvimos, pensamos, fazemos e sentimos, sem selecionar o que contribui para a melhoria da personalidade e do caráter do que classi‑ ficamos como lixo mental. Essa mistura é comparável a uma casa, em que os moradores, descuidosos com a arrumação e a higiene, permitem que as coisas, de diferentes utilidades, se misturem sem qualquer ordenamen‑ to. Como seria esse ambiente? Por demais desagradável, não é mesmo? Pois bem. Quando a mente assim se encontra, há uma necessidade de se fazer uma introspecção. Penetrar em si mesmo, fazer uma organização cuidadosa e, em seguida, exteriorizar o lixo mental acumulado. Até o mar, por meio do movimento das ondas, acaba devolvendo o lixo que nele foi depositado por quem, ainda, não experimentou a importância da educa‑ ção ambiental. Gildo ouvia atentamente o que Juvenal dizia, mas nem tudo assi‑ milava. Logo que Juvenal parou de falar, ele perguntou: – O senhor estaria, então, fazendo uma limpeza mental? – Diria, para ser mais claro, um exame de consciência, o que me deixa reflexivo. Há situações que marcam muito! E mesmo que se quei‑ ra deixar no passado, não se consegue, porque o passado envia, por fios invisíveis, justamente o que não se deseja lembrar. – Não creio haver algo no seu passado que lhe traga tristeza, como noto em sua fisionomia.


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– Oh Gildo! Desculpe-me, se eu estou sendo desagradável. É possí‑ vel que você esteja me vendo pela ótica da amizade, a ponto de esque‑ cer que sou igualzinho a você! Gildo, embora com a longa explicação de Juvenal, não se dava por vencido: – Eu imaginei – disse em tom de lamento – que a inauguração das casas, algo tão desejado por todos, alegrasse por demais o seu íntimo. Que teria ocorrido naquele dia? Notei que o seu semblante perdeu o brilho da alegria depois da conversa de dona Gilca, a mãe de Ênio, sobre a morte da irmã e o sobrinho que não chegara a conhecer. Há alguma coisa relacionada a isso, seu Juvenal? Ele fez a pergunta, mas em vez de esperar pela resposta, conti‑ nuou falando: – Se o senhor quiser e confiar em mim, eu farei qualquer coi‑ sa para ajudá-lo. Reconheço que ainda sou muito impetuoso. Mas nada faria sem a sua orientação. Completei vinte e quatro anos e toda essa energia, própria da juventude, deve ser canalizada para algo bom. E no momento, para mim, não há algo melhor a fazer do que poder ajudá-lo a resolver o que for necessário, para que o se‑ nhor volte a sorrir. Juvenal ficou tão emocionado, que acabou esquecendo que se en‑ contrava em alto-mar, numa canoa. Levantou-se para dar um abraço em Gildo e, já que os dois ficaram no mesmo lado, a pequena embarca‑ ção virou e eles caíram na água. Gildo começou a gritar, pois não sabia nadar contra as ondas. O velho pescador, no entanto, já acostumado a situações idênticas segurou Gildo pelo braço, mas a canoa estava sen‑ do levada pelas ondas. Calmo e com os braços ainda fortes, mesmo segurando Gildo, conseguiu alcançar a canoa. Salvaram-se, mas ha‑ viam perdido toda a pesca e os equipamentos usados na pescaria. Já na canoa, o velho pescador respirou forte e comentou: – Faltamos com a devida atenção ao que fazíamos, permitindo que a emoção dominasse os nossos sentidos. Poderíamos ter pago com a


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vida física! Não devemos esquecer de dar atenção ao que fazemos e como estamos fazendo. Gildo, ainda pálido por causa do susto, exclamou: – Desculpe-me, seu Juvenal, foi a minha curiosidade deseducada! Stevens estava certo ao me dizer, que não devemos nos intrometer em assuntos de foro íntimo de outrem.

Enquanto isso, Stevens de volta da empresa, onde foi estar com Ênio,

caminhava lentamente, com o pensamento paralelo ao de Gildo, sobre o velho amigo pescador e indagava a si mesmo: – Seria alguém ligado a ele, o esposo de Gilca ou o sobrinho que ela afirmara não haver conhecido? Monologando, chegou em casa. Mas antes de entrar, percebeu que um veículo vinha na mesma direção e aguardou: O motorista ao parar o carro, foi logo perguntando: – Moço, por favor! Eu estou à procura de uma pessoa com o nome de Juvenal Bueno. Você conhece alguém com esse nome? Já fiz essa pergunta a dezenas de pessoas, mas, até agora, sem êxito, porque to‑ das elas revelaram conhecer alguém com o nome de Juvenal e que ele moraria aqui, nesse lugar, mas não souberam informar o sobrenome. Mesmo sem certeza de que se trata de quem eu procuro, aqui me en‑ contro na esperança de encontrá-lo. – Quem é o senhor? Preciso saber, antes que eu possa fornecer qualquer informação. – O meu nome é Josué. Eu tenho uma notícia que vai, certamente, mudar a vida, de quem eu procuro. Eu não sei se ele ainda reside aqui na cidade, porque certa feita, há muitos anos, eu o trouxe para cá no meu carro de aluguel. Sei muito sobre ele, mas se trata de um segredo, que não posso revelar, enquanto não encontrá-lo. Para que você não fique totalmente alheio, se trata de um vivo, se ainda não morreu de verdade, mas considerado morto.


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Ouvindo isso, Stevens, lembrando-se de quem tocara nesse mes‑ mo assunto, para ele, muito sério, ofereceu uma cadeira ao desco‑ nhecido e depois de pedir licença para se ausentar por alguns mi‑ nutos, disse: – Vou falar com alguém que sabe muito mais do que eu. Saiu pela porta do fundo da casa, sentou-se embaixo de uma árvo‑ re, o que gostava muito de fazer. Concentrou-se e em instantes ouviu a voz de Katy Magdalene (Espírito do Mar) ecoar na sua mente: – Lembra-se quando prometeu que jamais falaria sobre esse as‑ sunto, a quem quer que fosse? Fora isso, sua informação, baseada na verdade, seria valiosa! Entretanto, toda promessa constitui-se numa dívida, quando não cumprida. Seu Josué – falou Stevens ao retornar –, eu conheço, realmente, uma pessoa que atende por esse nome, mas não devo prestar informações sem o seu consentimento. Josué, não se dando por vencido, lamentou: – Oh moço, eu só estou aqui por ele mesmo! Não haveria qualquer interesse particular que me motivasse a fazer essa viagem, por estra‑ das de tão difícil acesso e dezenas de quilômetros, para encontrá-lo. Cheguei ontem e já percorri toda essa parte da cidade, mais próxima da praia, onde ele demonstrou interesse de residir, na época. Essa era a minha única esperança! Mesmo sem saber de quem se tratava, como já disse, não poderia deixar de verificar. Agora, que desconfio que se trata de quem eu procuro, como não encontrá-lo? – Lamento! – disse Stevens, realmente sentido, por não poder aju‑ dá-lo. Stevens poderia sugerir que o visitante esperasse um pouco, pois Juvenal àquela altura já estaria para chegar. No entanto, sem a certeza das intenções de Josué, preferiu nada mais falar. – De qualquer jeito, eu lhe agradeço pela atenção – respondeu Jo‑ sué, demonstrando certo desânimo, mas não o suficiente para fazê-lo desistir do seu intento.


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Entrou no veículo e saiu bem devagar, como se estivesse sem von‑ tade de deixar o lugar. Minutos depois, Stevens passou a ouvir a voz de Gildo, que tinha o hábito de falar alto e de por onde passar, cumprimentar as pessoas, com muita atenção e alegria. – Oh mano! – falou já entrando em casa. – Vi um carro saindo daqui e imaginei que fosse alguém lá da empresa. Mas logo notei que não, porque o condutor ao me ver, parou o veículo e perguntou se eu co‑ nhecia alguém com o nome de Juvenal Bueno. E você respondeu o quê? – Falei a verdade: Disse que não conhecia, porque mesmo que fos‑ se esse o nome de seu Juvenal, eu não diria, sem saber quais eram as intenções. – E ele disse mais alguma coisa? – Não. Mas mesmo que dissesse de nada adiantaria. – Muito bem! Mas você não sabe mesmo o nome todo dele? – Nunca me disse. – Falar nisso, você retornou sozinho e ele? – Disse que era para eu alargar os passos, porque preferia caminhar devagarzinho, para refletir. – E como foi a pescaria? – Pescamos e não trouxemos nenhum peixe. O mar levou-os de volta e quase fomos, por ele, pescados! – passou a contar o que ha‑ via ocorrido e antes de terminar, parou de falar ao ver o velho pes‑ cador chegando. Ele entrou sério, mas demonstrando paz e brandura na fisionomia: – Sei do que falavam! Esqueçamos, já que tudo acabou bem, dei‑ xando-nos uma boa lição... Gildo tomou a palavra: – Antes que eu me esqueça, seu Juvenal , eu falava, há pouco, aqui com o mano, sobre um homem num veículo que me perguntou se eu conhecia um tal Juvenal Bueno!


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Depois de rir a gosto, Juvenal perguntou: – E ele disse por que estava à procura desse tal Bueno? – Disse que era um segredo, mas que se tratava de um vivo morto, que poderia deixar de ser morto para se tornar somente vivo! Embora se tratasse de um assunto sério, Juvenal e Stevens ri‑ ram à vontade! Mas logo em seguida, Stevens voltou-se para Gildo e perguntou: – Não me disse há pouco que Josué não tinha lhe dito mais nada? – Oh mano, desculpe! Ele disse... Mas como você sabe o nome dele? Juvenal dirigiu um olhar interrogativo e Stevens, sentindo-se inti‑ midado, acabou falando, o que achava, antes, que não deveria. – Isso é muito interessante! – disse Juvenal, demonstrando interesse. – O senhor quer que eu vá procurá-lo? – Não, Gildo! Eu mesmo faço isso. Minutos depois que Juvenal havia saído, Stevens pediu a Gildo que permanecesse em casa, porque Josué poderia retornar, e saiu às pres‑ sas. Mais adiante o alcançou: – Vou com o senhor, a não ser que não seja conveniente! – Ora, ora, mas o que eu poderia ocultar de você, que o tenho como filho do meu coração? – Trata-se do homem que o deixou aqui, quando tudo ocorreu? – O nome é o mesmo. A pessoa, no entanto, só quando o encontrar‑ mos, saberemos. Tentavam conversar, mas não conseguiam. Desfrutavam de tanta amizade, que a todo momento alguém se aproximava para cumpri‑ mentá-los. Mas logo que chegaram à rua onde se concentrava o comér‑ cio do lugar, Stevens falou contente: – Olha lá, seu Juvenal, aquele carro azul, estacionando, deve ser o dele! Juvenal sugeriu ao jovem pescador que permanecesse ali mesmo, enquanto ele se aproximaria e o chamaria em seguida, caso se tratasse, mesmo, de Josué.


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Assim o fez. Quando ia passando junto ao veículo, o homem cha‑ mou-o: – Meu senhor, boa tarde! Desculpe-me abordá-lo assim, mas eu estou precisando de uma informação importante... Já ouviu falar em alguém com o nome de... – Juvenal Bueno ? – Como sabe disso? – Alguém me falou. Juvenal, bom fisionomista, reconheceu o visitante, mas, ao notar que não havia sido reconhecido, achou por bem, antes de se identificar, verificar as intenções que o levaram a procurá-lo e perguntou: – Deve haver um forte motivo para você deixar os seus afazeres e viajar só para procurá-lo, não é mesmo? – É isso mesmo! Eu o conheci, há muitos anos, quando ele me pro‑ curou para uma viagem de retorno ao lar. Mas ao chegar ao local, ficou chocado com uma surpresa inesperada que o fez mudar os rumos... – Que tipo de surpresa? – Isso faz parte da minha lealdade. Prometi a ele que jamais revela‑ ria o segredo! Posso dizer, apenas, que ele, considerado morto para os seus parentes, agora, se ainda vivo eu encontrá-lo, já poderá reverter toda situação! Depois de pequena pausa prosseguiu: – Ainda me lembro de que ele, com os olhos cheios de lágrimas, verificou o dinheiro que tinha, para ter certeza se daria ou não para pagar o aluguel do carro e disse: – Vamos em frente! Ao chegar aqui... – Você convidou-o – interrompeu Juvenal – para morar em sua casa o que ele não aceitou, mas guardou na mente, com muita gratidão, essa bela atitude que só poderia ter partido de um bom coração como o seu, que depois de tantos anos aqui se encontra para, mais uma vez, dar provas não só de lealdade, mas, sobretudo, confirmar quão bom é o seu íntimo. Josué saiu de vez do veículo, soltando a voz: – Você está se referindo a outro, mas esse outro é você mesmo! Ju‑


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venal?! Enfim te encontrei, oh vivo-morto! Mas agora você poderá ser só vivo! – falou já de braços abertos. Depois do abraço cordial e alegre, Juvenal quis saber o que, realmente, havia ocorrido para motivá-lo a todo aquele empenho: – O que aconteceu, meu amigo? Josué, em vez de responder, estendeu a mão falando: – Toma! A resposta aí se encontra! O velho pescador, antes de abrir o envelope da carta, acenou cha‑ mando Stevens e apresentou-o a Josué, como filho do seu coração. Em seguida, abriu o envelope e começou a verificar o conteúdo da carta. À proporção que a lia, suas faces enrubesciam. E, ao terminar a leitura, falou visivelmente emocionado: – Oh Deus! Será que ele desencarnou com todo aquele peso na consciência? A carta era da viúva, sua cunhada, convidando-o, caso ainda fosse encontrado, para reaver os seus direitos e deles tomar posse, dentre eles a propriedade que havia sido transformada em grande plantio de café, já que não dispunha de condições para continuar administrando-a, por‑ que se encontrava sozinha. Disse ainda que tinha dois filhos, mas que o mais velho fixara morada em Portugal, depois de ter se casado com uma portuguesa e que, graças a sua tendência para negócios, tornou-se um empresário bem-sucedido. O mais novo, sempre viajando, cuida‑ va também de uma grande rede de negócios e que ambos não tinham qualquer interesse na parte da herança da propriedade, por haverem se tornado milionários. – Josué, você a conhece? – perguntou, se referindo à remetente da carta. – Sim. Tanto que ela me encarregou diretamente disso, sem inter‑ mediário, apesar de ter demonstrado dúvida em relação ao que eu lhe disse. – Eu ainda não tive a satisfação de conhecê-la! Como você se apro‑ ximou dela?


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– Eu até que tentei me esquecer, mas não consegui tirar da mente, não apenas a injustiça, mas, sobretudo, a falta de amor para com você, mes‑ mo sendo ele seu irmão. Contudo, o que mais me marcou foi a sua deci‑ são de viver como se morto estivesse, sem os direitos que desfrutam os cidadãos brasileiros, somente para poupá-lo da merecida correção pela justiça. Isso me fez aproximar do lugar e procurar Antero, aquele mesmo rapaz... Ele já está assim como nós... Meio envelhecido! Mas continua resi‑ dindo lá. Bem, como dizia, ficamos amigos a ponto de ele visitar, sempre, a minha casa. Quando ele me deu a notícia que Odorico havia morrido, a sua primeira atitude foi me perguntar se eu ainda me lembrava onde você teria ficado, na época. Tendo a reposta positiva, ele tratou de tornar ciente a ­viúva de toda encenação feita por Odorico para defender os seus interesses. Segundo ele, foi uma grande decepção para ela, mas logo que reagiu, a sua primeira providência foi mandar me chamar. Para essa tare‑ fa, ela me ofereceu em pagamento uma quantia equivalente à compra de uma casa nova, para a minha família, mas não aceitei, sequer, o dinheiro do combustível do veículo, porque te encontrar era um ponto de honra e uma grande satisfação. Se fui eu quem te trouxe para uma vida sacrifica‑ da, teria que ser eu a te levar à reparação e à reconquista da sua liberdade! Depois de pequena pausa, falou com toda satisfação: – Vim te buscar, amigo! Agora, o meu maior desejo é que você entre aqui no carro e deixe para trás tudo que não merecia passar. – Oh Josué! Fico realmente emocionado com a sua prova de lealda‑ de e sincera amizade. Mas em relação ao merecimento, penso que se não merecesse, não teria ocorrido assim. Juvenal se dirigiu a Stevens: – Gostaria muito de contar com a sua companhia, mas já que você está compromissado com Ênio... – E Gildo, seu Juvenal? – Estava, realmente, pensando nele! Chegaram em casa. Gildo, curioso, ao ouvir o ruído do carro, que acabava de parar bem em frente à porta, se aproximou:


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– Oh! Então acabaram se encontrando?! – Gildo, quer viajar comigo? – Oh seu Juvenal! O senhor pode me levar aonde desejar. Iria sem perguntar, até à lua, às estrelas... até o fim do mundo! – Onde é esse fim de mundo, a que você se refere, sabe me dizer? – Oh! O senhor mudou o humor! Já está até brincando! – Então, trate de arrumar a mala. – Seu Juvenal, o senhor está gracejando de novo, que mala eu te‑ nho? E mesmo se tivesse, eu não teria o que pôr dentro dela! – Então, arrume de qualquer jeito as suas roupas e vamos! Stevens silenciou. Era a primeira vez que ficaria longe do velho pescador, a quem tinha como pai, amigo, irmão... E sem Gildo a casa ficaria, sim, muito silenciosa. Notando, Juvenal tratou de amenizar: – Não vibre em tristeza por causa de uma rápida ausência. Lembre-se que já passei dos setenta anos e, nessa idade, muitos já foram e eu também terei que seguir. – Não fale! Porque nem para tocar nesse assunto me sinto prepara‑ do, embora saiba que aqui nos encontramos como simples passageiros, em busca da própria melhoria moral. – Ora, ora! Você convive, há tanto tempo, com um vivo morto e agora está com receio da ausência de um morto vivo? – riram todos e em seguida Juvenal voltou a falar: – Estou, enfim, readquirindo a minha liberdade. E isso se dá por ter cultivado a amizade. Se em vez de tratar com fraternidade eu mal‑ tratasse e humilhasse Antero, por ser empregado da fazenda, ele teria se lembrado de mim? E Josué, se eu não aceitasse a sua manifestação sincera de bondade, provinda da amizade, estaria aqui? Não importa o tempo e nem a distância! Mas, sim, o sentimento fraterno que une as criaturas como verdadeiros irmãos. Abraçou, demoradamente, Stevens, que por sua vez, beijou-lhe o rosto já bastante enrugado, não só pela idade, mas sobretudo pelas longas exposições aos raios solares. A seguir, Gildo se aproximou:


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– Bom, mano – falou emocionado –, sei que é uma perda significa‑ tiva para mim não conviver com você, por estes dias. Abraçou o irmão, apertando-o fortemente: – Até breve, mano! Seja feliz com o seu trabalho! Depois de mais de sete horas de viagem, Juvenal viu pelo para-bri‑ sa do carro, ainda ao longe, a cancela3 de entrada do seu antigo lar. Emocionou-se de tal forma, que não conseguiu evitar que as lágrimas rolassem, incessantemente, rosto abaixo e, assim mesmo, exclamou com a voz entrecortada: – Oh Deus! Quantas recordações! Quantas saudades invadem, ago‑ ra, o meu velho coração! A cancela foi aberta e quando o carro ia passando, Juvenal ouviu alguém pronunciar o seu nome a toda voz. Era Antero que pulou de vez para frente do carro e gritou: – Pare, por favor! Josué pisou no freio e Juvenal saiu do veículo. Tanto Juvenal quanto Antero portavam a mesma sensação de saudade. Antero abriu os braços. Dos seus olhos as lágrimas desciam em abundân‑ cia. Não era para menos. Havia chorado muito na despedida, sem certeza de voltarem a se ver. Agora, embora ambos vertessem lágri‑ mas, eram bem diferentes, porque se as anteriores eram contagiadas pelas vibrações de tristeza, ali, no entanto, eram elas a expressão da pura alegria. Por isso, pareciam gotas cristalinas que, antes de caírem ao solo, refletiam o dourado do sol, expressão da beleza que nem sempre é notada pela simples visão material, mas quase sem‑ pre, pela espiritual. Depois do longo abraço, Antero passou a sorrir, sorrir alegremente. Afinal, ele era o mesmo amigo de outrora... Agora, o velho empregado,

3 Cancela – Portão de grandes proporções, usado em entradas de propriedades ru‑ rais.


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único da propriedade que conhecia toda a história, mas que nunca, antes, revelara. Seguiram o pequeno trecho, conversando, ainda abraçados: – Que surpresa para dona Gilca! – comentou Antero. – É, Antero. Isso poderá acontecer, se ela acreditar. Mas nós já pla‑ nejamos. Primeiro, Josué, que se responsabilizou pela minha procura, irá comigo e fará a apresentação. A qualquer dúvida, você, Antero, a testemunha-chave, entrará em ação. Instantes depois, já em frente à Gilca, Josué falou com ar de vitorioso: – Senhora, eu estou de volta. Missão cumprida! Para nossa alegria, graças a Deus ele está vivo! – Conseguiu entregar a carta? – Momento, dona Gilca! Foi lá fora onde o velho pescador havia ficado aguardando. – Vamos, meu amigo, conhecer a sua cunhada! Ela ia se dirigindo à porta, mas Juvenal já estava chegando e se encontraram. Ao vê-lo, ela parou sem ação. Ele, por sua vez, de tão surpreso, ficou sem palavras. Só depois de alguns minutos, foi que ela perguntou: – O senhor?! Ele, em vez de responder, fez a mesma pergunta: – A senhora?! – Sim, sou eu mesma! Gilca, esposa de Odorico e mãe de Ênio. Mas o senhor, quem realmente é? – Eu sou Juvenal Bueno Olivas, conforme consta na certidão de nascimento e também na de óbito, que a senhora deve tê-la. Gilca, não conseguindo esconder a dúvida que surgira, ao ver ali, na condição de cunhado, o velho pescador que conhecera no dia da fes‑ ta de entrega das casas, na Colônia dos Pescadores, usou a franqueza: – Desculpe-me! Mas eu estou muito confusa! Juvenal estendeu a mão e entregou-lhe a certidão de nascimento. Ela olhou, olhou e em seguida, pediu licença, saiu da sala e em


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instantes retornou com a certidão de óbito, conferiu e depois fa‑ lou reticenciosa: – Os dados conferem. Mas, sem querer acusá-lo, eu preciso de algo que me convença, porque esse documento pode ser conseguido a troco de qualquer gratificação, mesmo não havendo legitimidade nas infor‑ mações. Não estou atribuindo a culpabilidade, propriamente aos car‑ tórios, mas a alguns funcionários incorretos, que assim agem sem levar em consideração a responsabilidade que a sua função exige. Conheço vários casos desse tipo. Por isso, peço que me desculpe a exigência. – Uma testemunha, por exemplo? – perguntou o velho pescador. – Que seja. Juvenal foi lá fora, e, em instantes, retornou com Antero. – Ele é a única pessoa, aqui na propriedade, que presenciou tudo, desde a morte forjada, até o dia em que retornei e não me deixou ul‑ trapassar a cancela de entrada, afirmando que, se eu teimasse, poderia morrer de verdade. As lágrimas que rolaram no meu rosto, naquela época, quando eu ainda me encontrava bastante jovem, não foram pe‑ los prejuízos materiais. Mas, sim, por causa da perda de um irmão, a quem eu dedicava muita amizade e consideração. Depois de pegar um lenço e enxugar as lágrimas brotadas da emo‑ ção que sentia, concluiu: – Por enquanto, nada mais tenho a dizer à senhora, em minha pró‑ pria defesa. Com licença! Saiu deixando-a a sós com o velho empregado. Gilca, en‑ tão, perguntou: – O que você sabe sobre este homem que diz ser irmão do fina‑ do Odorico? – Senhora, eu lamento dizer que não gostaria de ter presenciado todos os fatos que tanto me fizeram sofrer... A narração, com todos os detalhes, durou mais de uma hora. Quan‑ do ele terminou, ela então perguntou: – Por que , sabendo de tudo isso, nunca me disse nada?


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– Porque, além de ser um segredo e eu não ter autorização dele para revelar, eu tinha receio de acontecer alguma coisa com ele, como era a orientação de seu Odorico. Por isso, eu realmente não o deixei entrar, como ele disse há pouco, quando retornou do exterior. – Antero. Agora me faça o favor de dizer a Juvenal que tenha a bondade de vir estar comigo. Juvenal entrou na sala e antes de se aproximar, ela levantou com a mão estendida: – Perdoe! Perdoe tudo e principalmente a seu irmão. Há muito tempo, eu passei a notar que ele, a cada dia, se encontrava mais triste e calado. Tentei por todos os meios ao meu alcance ajudá-lo, inclusive a desabafar, para juntos tentarmos encontrar algo que melhorasse a sua situação. Mas foi em vão. Da tristeza passou às crises nervosas e logo veio a doença que lhe minou o organismo e acabou matando-o. Já na agonia da morte, depois de muito esforço, ele disse com os olhos cheios de lágrimas: – Se você vir Juvenal, diga-lhe que me perdoe. Res‑ pondi que sim, porque imaginei fosse delírio. Afinal, eu tinha convic‑ ção de que você realmente havia morrido. Tudo foi tão bem montado que não dava para desconfiar. Meu Deus! Eu fico agora a pensar sobre a ambição pelo dinheiro! Parou de falar por instantes e depois perguntou: – Por que você, uma pessoa esclarecida, silenciou e se sujeitou a uma vida como se morto fosse e não reagiu com toda razão que dispunha? – Que alegria eu poderia sentir em ver o meu único irmão deti‑ do numa prisão, a sua esposa e os filhos tristes e infelizes, em troca de bens materiais, dos quais somos apenas depositários, já que tudo pertence a Deus? Pelo meu modo de pensar, não haveria outro meio a não ser desaparecer e viver como morto, embora vivo. Mas, mesmo sem qualquer direito como cidadão, enfrentando as dificuldades para sobrevivência e tudo mais que me ocorreu, afirmo que não me arre‑ pendo, absolutamente, de nada. Tenho a consciência tranquila, a ponto de sentir alegria, muita alegria pela vida!


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– Gostaria de fazer uma pergunta de cunho pessoal. Se não quiser, não responda – chegou a casar-se? – Não da forma tradicional como o casamento é visto. Mas... Con‑ vivi com alguém que, enquanto esteve ao meu lado, enriqueceu-me de ventura! Mas a partir do momento em que a perdi de vista, a lacuna jamais foi preenchida! Além disso, a sua falta contribuiu para que eu não tivesse a ventura de carregar nos braços um filho pela falta de con‑ dições de criá-lo sem a mãe e registrá-lo como meu filho, pois embora se tratasse de uma farsa, oficialmente eu me encontrava morto. Tive, então, de abrir mão e doá-lo para quem, certamente, tinha condições de cuidá-lo. Já se passaram mais de trinta anos, entretanto, ainda agora gostaria muito de poder me revelar como pai. Não sendo isso possível, se chegasse a conhecê-lo nem que fosse de longe, sentiria uma grande satisfação ao dizer para mim mesmo: Meu filho! Quando ele voltou o olhar para Gilca, ela estava com um lenço en‑ xugando as lágrimas. Juvenal, então, tratou de pedir desculpas, por achar que a sua história estava causando mal-estar à cunhada: – Desculpe-me pela inconveniência! Acho melhor mudarmos de assunto! – Não! Eu acabei me lembrando da minha irmã, que certa feita foi de férias à Antonina, e acabou se envolvendo com um rapaz. As férias acabaram, mas ela não retornou. Tempos depois, meu pai foi a sua procura e a encontrou grávida. Desgostoso, retornou sem ela. Àquela altura, minha mãe já havia falecido. Por diversas vezes, eu planejei ir procurá-la, mas Odorico protestava veemente, afirmando que não a queria aqui, pelo fato de ela ter engravidado sem casar. Foi quando certa feita recebi uma carta de alguém que a teria conhecido, dando conta de que ela havia morrido por complicações no parto. Para lá me dirigi. Busquei informações, mas ninguém conhecia o en‑ dereço onde ela havia morado, tampouco quem era o pai da criança. Minha intenção era realmente criá-la. Soube, apenas, que se tratava de um menino e que o pai, alegando não ter condições de cuidar de


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um recém-nascido, teria autorizado a doação para uma família de alto nível financeiro. Juvenal estava perplexo. A coincidência era muito grande! E a in‑ formação de que a criança teria ficado com uma família rica, chamou­ ‑lhe muito a atenção, pois foi bem isso que soube, quando autorizou a doação do filho e, por isso, quis saber mais: – Lembra ainda o nome da pessoa que lhe prestou essa informação? – Não. Era uma pessoa aparentemente de idade já avançada. Já deve ter morrido há tempo. A vida nos apresenta muita diversidade ao mesmo tempo! Mas há coincidências que não conseguimos deixar de lado, como se fosse obra do acaso, mesmo porque, como diz o meu filho, o acaso não existe. Eu me queixando pela perda da minha irmã e por não ter conhecido o meu sobrinho. Você lamentando ter doado um filho, por, além de não ter condições de criá-lo, não ter, também, como lhe dar um nome. – É muita coincidência! – exclamou Juvenal, pensativo. Ela também silenciou. Depois de alguns minutos, ele voltou a falar: – Essa é a primeira vez que entro em detalhes sobre a minha vida íntima. Penso que o fato de você ser minha cunhada, me dá condições de desabafar a saudade incontida que sinto de Celeste! – Celeste?! – Sim, Gilca, era o nome dela, ainda hoje, o amor da minha vida, pois entendo que ninguém morre! Terminou de falar e vendo-a com os olhos imensamente abertos e olhando em sua direção, chamou-a: – Gilca! Sente-se mal? – Meu Deus, como isso é possível? Celeste era o nome da minha irmã! – respondeu ela. Juvenal que havia colocado a mala com os seus pertences em cima de uma cadeira, pegou-a e de dentro dela retirou a Bíblia. Abriu-a e ficou procurando algo. Gilca pensava que ele ia ler alguma passagem do Evangelho, com


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intenção de amenizar a tensão que o assunto havia lhe provocado. Mas ele sem nada ler, disse estendendo a mão: – Veja! O nome pode ser uma mera coincidência. Não creio fosse ela a sua irmã. Ela pegou a fotografia e soltou um grito: – Oh meu Deus! É ela, a minha saudosa e amada Celeste! Juvenal sentiu-se realmente abalado. Os seus conhecimentos, na‑ quele momento, e a sua experiência, nem mesmo o equilíbrio que o mantinha sempre calmo, não foram suficientes para conter a emoção! Não tendo palavras, desabou em pranto. Ela, da mesma forma, não se continha. Levantou-se foi até ele, abra‑ çando-o ternamente: – Você é meu cunhado duas vezes! E o meu sobrinho é o seu filho! Momentos depois, Juvenal se reequilibrou e falou já com ou‑ tra disposição: – Gilca, já vertemos todas as lágrimas que tínhamos para hoje. Ago‑ ra, a minha nova disposição é partir em busca do meu filho! – Vou estar rente com você, para esta procura! Por estes dias, Ênio deve chegar e vai me levar para Antonina. Comprou uma casa e me disse que toda vez que precisar viajar, vai me deixar aos cuidados de Stevens. Confia muito nesse rapaz e tem por ele muita afeição. Você que o conhece, pode me falar algo sobre ele? – Adotei-o como filho do meu coração, desde o dia que o conheci... Falou com satisfação, durante mais de meia hora, sobre Stevens e concluiu dizendo: – Pode confiar, sem qualquer restrição. Ele é uma pessoa rara! – Ênio me fala muito dele... Juvenal interrompeu: – Oh, só agora percebo que Ênio é meu sobrinho! De todas as emo‑ ções que senti durante essas horas que estamos conversando, essa me traz uma grande alegria. Dou-lhe parabéns pelo filho que tem! – E também a você! Pois é o único pescador filósofo que já ouvi


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falar! Bem, mudando de assunto, venha comigo. Vou mostrar-lhe o quarto onde você poderá, a partir de agora, dormir sem os pesadelos de tantos anos. Só aí é que Juvenal lembrou-se de Gildo que o aguardava lá fora e disse: – Eu não vim só. As emoções me fizeram esquecer de Gildo! Ele é irmão de Stevens. O pai deles era proprietário da empresa que, hoje, pertence a Ênio. Gildo trabalhava ao lado do pai e demonstrava muita capacidade na função, segundo informações. Atualmente, ele é o meu parceiro na pescaria. – A situação agora é outra! – exclamou Gilca interessada. – Se ele não quiser ficar por aqui, onde há muito o que fazer, com excelentes resultados, pedirei a Ênio para readmiti-lo na empresa. – Gilca, há situações que requerem calma e paciência, porque há sempre a melhor hora para tudo. Ele está praticamente recuperado de um deslize. Mas ainda precisa adquirir um pouco mais de sensatez. Se trata de uma alma provida de grande lealdade e tem um ótimo poder de decisão. Mas não estranhe se ele chegar a fazer perguntas, aparen‑ temente indiscretas, porque se trata, apenas, de curiosidade. Mas em relação à situação da propriedade, eu vim disposto a fazer da parte que me toca uma doação para você e os seus filhos. As circunstâncias aca‑ baram me conduzindo a um modo de viver do qual não desejo abrir mão, pois as minhas aquisições são todas voltadas ao enriquecimen‑ to interior. – Em absoluto, Juvenal! Você tem um filho que, se vivo, será o seu herdeiro! Pense nele! A minha intenção, antes, era vender a proprie‑ dade, já que os meus filhos, conforme disse na carta, não precisam e nem têm interesse, e eu não disponho mais de condições para lidar com isso. São quase cem pessoas que trabalham nos cafezais, quer no cultivo, na colheita e em tudo mais que é necessário. Sozinha, para administrar tudo, tenho procurado fazer o possível! Mas além de me sentir cansada, não tenho mais necessidade disso. Desejo aproveitar o


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tempo que me resta, fazendo algo em prol dos que vivem em carência, desde a material à afetiva. Juvenal ficou assustado, não pela responsabilidade, mas, sobretu‑ do, pelo trabalho exaustivo. Para ele, que já havia passado dos setenta anos, acostumado com a vida no mar, seria uma mudança drástica. Terminado o longo diálogo com Gilca, ele foi estar com Gildo, que conversava na área da casa, animadamente, com Josué e o velho em‑ pregado Antero. Depois de pedir desculpas por tê-los deixado por todo aquele tem‑ po lá fora esperando, Juvenal falou seguro de si: – Tenho muito a agradecer a vocês, mas essa gratidão será revelada de uma forma toda especial, de acordo com a habilidade de cada um. – Missão cumprida! – respondeu Josué e continuou falando: – Agora, devo retornar à minha família, porque já estou sentin‑ do saudades. – Tenho muita coisa a tratar com você, meu bom amigo. Por isso, peço que volte aqui o mais breve possível. Em seguida, voltou-se para Antero, deixando-o ciente de que ele se encontrava nos planos que começaria a traçar em relação à adminis‑ tração da fazenda. Antero saiu e o velho pescador retornou ao interior da casa, acompanhado de Gildo, que, ao ver Gilca, antes mesmo de cumprimentá-la, falou desinibido: – Ora, meu Deus, é a mesma pessoa! Seu Juvenal, dona Gilca é a sua cunhada? Então Ênio é o seu sobrinho! Isso é inacreditável! Gilca rindo à vontade do jeito engraçado de Gildo se expressar, se aproximou falando: – É isso mesmo, meu filho! Se isso o alegra, imagine eu?! Gilca não estava assim alegre tão somente por causa das últimas descobertas, mas, sobretudo, pela expectativa da chegada do filho Ênio que, coincidentemente, tratava naquele mesmo dia com Stevens de as‑ suntos ligados à empresa: – Já que a essa altura você já está a par de todos os detalhes e pormeno‑


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res da administração, posso adiantar a minha viagem. Estou indo, agora, buscar a minha mãe, que vai permanecer aqui durante o tempo que eu fi‑ car fora ou até quando ela desejar. Não fico tranquilo em deixá-la sozinha na propriedade, apesar de contar com assistência de várias pessoas que lhe demonstram lealdade e muita amizade. Por isso, meu querido amigo, eu gostaria de contar com um importante favor seu: que preste a ela, assis‑ tência idêntica à de um filho para com a mãe. Posso contar? – Com toda dedicação e amabilidade. – Adquiri aquela casa, que vimos na praça. Já está devidamente mobiliada, com todo conforto que minha mãe merece. Três dias depois dessa conversa, ja de retorno, Ênio, após deixar sua mãe na nova casa, vai encontrar-se com Stevena:: – Muito ocupado agora? – Para você, meu amigo, nunca estarei muito ocupado – respon‑ deu resoluto. – Vamos lá em casa conversar um pouco com a minha mãe! Lá chegando, Stevens ficou impressionado com a velocidade e agi‑ lidade com que Ênio resolvia as coisas. Em apenas dois dias, havia comprado a casa e equipado-a, não só com o que era necessário, mas com muito conforto. – Mãe – disse Ênio ainda na porta de entrada –, trouxe um novo filho para a senhora! Stevens depois de cumprimentá-la, pôs a mão a altura do coração e disse: – Dona Gilca, não prometo agir igualmente a Ênio, porque não me sinto à altura das suas qualidades, que são as melhores que conheci até hoje. Mas garanto que a senhora vai contar com o amor do filho para com a mãe, na intensidade da minha capacidade de amar. – Ora, meu filho! Não precisa se esmerar tanto! Venha almoçar e jantar comigo, durante todos esses dias... Meses, aliás, que Ênio vai estar longe de mim. Quando Stevens terminou essa rápida conversa, Ênio já havia colo‑ cado as malas no carro. Em seguida, abraçando carinhosamente a mãe,


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disse-lhe: – Boa sorte, mãe, com a sua procura! Espero que tenha êxito. Para mim, será um motivo de muita satisfação a descoberta de um primo, que não conheço. Ouvindo isso, Stevens presumiu que Gilca não estaria ali somente pelo fato de não ficar na fazenda, com os empregados, mas, sim, pela procura do sobrinho, uma vez que até Juvenal já demonstrava estar in‑ teressado no assunto. As suas deduções foram interrompidas por Ênio, que segurou a sua mão e em seguida abraçou-o recomendando: – Não precisa se empenhar, demasiadamente, nos negócios. A mi‑ nha experiência diz que o empenho que noto em você é o bastante para que, no final, tudo dê certo! Saiu deixando Stevens com Gilca, que quis aproveitar a oportuni‑ dade para algo do seu interesse: – Eu gostaria muito de conhecer a sua mãe. Você me apresentaria? – A hora que a senhora desejar. Posso acompanhá-la até a casa dela ou trazê-la aqui. O que a senhora prefere? – Gosto muito de receber as pessoas em minha casa e tratá-las de modo que se sintam bem! – Ótimo, dona Gilca, porque os meus pais vêm passando por uma espécie de reajuste. Basta dizer que a empresa – acho que a senhora já ouviu falar sobre isso – pertencia ao meu pai. Mas, por várias circuns‑ tâncias, acabou perdendo tudo. Até a casa, que era denominada “a mansão”, hoje encontra-se vazia, sem móveis ou qualquer outra coisa que signifique conforto. Embora minha mãe esteja se esforçando para se superar, certamente, ainda se sentiria acanhada por não poder rece‑ bê-la como gostaria. – Oh! Stevens! Eu lamento muito por eles. – Eram dignos de compaixão antes, quando se deixavam guiar pelo orgulho e pela vaidade, que os tornavam insensíveis aos problemas e sofrimento dos demais. Agora, porém, acho que já merecem parabéns. – Eu preciso conhecer muita gente aqui, para tentar encontrar algu‑


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ma informação que me leve ao meu sobrinho. Até agora, soube apenas que ele teria sido entregue a uma família de excelente poder aquisitivo. Contudo, o que mais dificulta é o fato de não ter qualquer informação sobre o pai. Mas Juvenal, logo que organizar as coisas por lá, deverá retornar. E juntos tentaremos, pois isso é também, para ele, de grande interesse. Quem sabe, Stela, sua mãe, que vive aqui há tanto tempo, saiba de alguma coisa? Até você, Stevens, sempre que puder e houver oportunidade, procure informações. Eu serei muito grata! Stevens saiu da casa de Gilca impressionado com o que acabara de ouvir. Afinal, o fato de Juvenal se encontrar, também, empenhado no assunto, não deixava de ser algo importante, uma vez que ele jamais se ocuparia com qualquer coisa insignificante. No dia seguinte, logo que Stevens entrou na sua sala de trabalho, para o seu primeiro dia na qualidade de diretor da empresa, uma fun‑ cionária avisou-o que alguém esperava por ele no salão de reuniões, chamado pelos funcionários de auditório. Ele desceu rápido os degraus da escada e ao abrir a porta do com‑ partimento, assustou-se com uma salva de palmas. Eram os ex-funcio‑ nários que haviam perdido o emprego quando a empresa fora fechada. Readmitidos, queriam demonstrar a sua gratidão, pelo fato de ter ele intercedido junto a Ênio, para que todos voltassem ao seu antigo posto de trabalho. Assim, emocionado, ele foi entrando, abraçando alegre‑ mente a todos que se aproximavam, até chegar ao palco, onde tinha uma mesa com vários ramalhetes de flores. Em um deles, um cartão com os seguintes dizeres: Por onde passa a luz do amor, a escuridão do ódio desaparece. Somos gratos pelo belo exemplo de amor, bondade e simplicidade. Depois de ter lido o conteúdo do cartão, segurou-o com as duas mãos, e disse: – Se é esse o pensamento de vocês, em relação a mim, devolvo, as‑ sim, a gentileza! – levou-o aos lábios, beijando-o. Em seguida, comple‑ tou: – Esse beijo é para os corações de todos vocês, meus irmãos. Mas fiquem certos de que nada têm a me agradecer, porque nada fiz além


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do cumprimento de um dever, já que pertenço à família que, outrora, foi proprietária dessa empresa, como vocês sabem. O mais importante de tudo é estarmos juntos, ombreando por igual. Superior aqui, há, apenas, o dever assumido por todos nós para com a função que desem‑ penhamos. Não sou luz, e sequer imagino ter condições de clarear ca‑ minhos. No entanto, se em nossas ações do dia a dia houver a presença do amor, mesmo que ainda não seja possível clarear caminhos, como disse há pouco, estaremos acendendo uma tênue chama, que com o passar do tempo poderá transformar-se na luz que todos um dia sere‑ mos. Peço que amem-se! Não sejam, apenas, colegas de trabalho, mas amigos, pois somos filhos de Deus, irmãos uns dos outros. Depois de pequena pausa, concluiu: – Feliz retorno a todos que foram readmitidos e boas-vindas aos que estão chegando. Nesse momento, Arnaldo, o antigo chefe de setor, também readmiti‑ do, subiu no palco e fez uma surpreendente homenagem a Stevens e, em seguida, declamou um poema do livro ditado por Katy Magdalene (Espí‑ rito do Mar), o que deixou o novo diretor da empresa muito emocionado. Assim é que o jovem pescador, saudoso, guardou o material de pesca, deu um “até logo” ao mar que tanto amava, para cumprir os novos deveres, para os quais fora convocado.


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Capítulo 16

O resgate Não se consegue a paz sem a brandura do amor. Dizzi Akibah

Apesar das novas ocupações, Stevens não deixou de ir à casa dos pais,

para visitá-los, comparecer a cada quinzena às palestras sob a respon‑ sabilidade de Hermes, o proprietário da livraria, o que vinha ocorren‑ do desde a época do lançamento do livro de poemas e, principalmente, às reuniões da casa espírita, para onde seguiu no final daquele mesmo dia, após o expediente na empresa, com esperança de que o espírito Charles já houvesse decidido mudar os rumos da sua vida, em relação ao processo obsessivo que promovia contra os seus pais. Logo que a reunião teve início, a primeira comunicação mediúnica foi justamente do espírito que atendia pelo nome de Charles. – As outras vezes aqui estive – disse ele –, não pela minha vonta‑ de, porque ainda não compreendia certas coisas. Hoje, porém, aqui me encontro para dizer que passou por completo o meu interesse de continuar fazendo justiça contra aqueles que foram os causadores de situações difíceis e penosas, para todos das duas famílias. Desejo, a partir de agora, dar um novo rumo a minha vida, disposto a respon‑


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der pelos erros e exageros que pratiquei e assumir a responsabilidade, seja lá qual for, dos resultados. O que me levou a refletir foi a última conversa de David, ou agora Stevens, numa noite em que estava muito deprimido, sozinho, sem esperança e ele, então, livre do corpo físico, bondosamente foi ao meu encontro e o que me disse, naquela noite, me ajudou despertar de um pesadelo. – Agradeça a Deus, meu irmão – interveio Stevens, bastante conten‑ te e prosseguiu falando: – Se tiver mais alguma coisa a dizer, pode falar! – Tenho sim. É um pedido de socorro, porque eu cometi um grande erro, quando pedi ajuda a uma organização conhecida como Vingança em Ação e agora, que o chefe soube que eu desejo dar um novo rumo a minha vida, disse que vai fazer de mim um escravo e que de lá da sua fortaleza eu jamais sairei. – Se realmente você está sendo sincero ao dizer que deseja mudar de vida – respondeu Stevens – ninguém vai conseguir tirá-lo daqui. No entanto, se houver ainda em seu íntimo vestígio de ódio, fique certo de que ninguém conseguirá lhe proteger, por causa das baixas vibrações que estabelecem a ligação. Quando Stevens saiu da casa espírita já era noite. Mas em vez de se dirigir à residência para o descanso desejado, tomou a direção da praia. Sentou-se na pedra aguardando, como nas outras vezes, o aparecimen‑ to de Katy Magdalene (Espírito do Mar), que à sua ótica era um raro espetáculo. Encantado com o reflexo do clarão da lua refletindo nas ondas irrequietas, continuava na expectativa da presença de Katy, mas o tempo foi passando e ele, sem compreender a razão pela qual ela não aparecia, levantou-se entristecido para deixar o lugar. Mas antes de dar o primeiro passo, disse: – Até outro dia Katy! – Até logo, David! – Quem disse isso? – Katy. Não era esse o seu nome quando foi o meu amado tio, na Inglaterra?


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– Por que só agora você me revela isso? – Porque você me tratou pelo nome que eu atendia e acabei retor‑ nando, rapidamente, àquela época. – Não estou conseguindo vê-la. Por quê? – Falta para isso a condição essencial, o ectoplasma doado por Ju‑ venal, que se encontra, nesse momento, muito ocupado. – Todas as suas aparições dependem dele?! – Para que eu possa me tornar nitidamente visível a você, sim. Ex‑ ceto quando você se encontra em desdobramento, quer seja voluntário ou pelo sono normal. – Ele nunca me falou sobre isso. – Falar de si mesmo, sem que alguém tenha perguntado, denota falta de modéstia. – Mas apesar disso, gostaria de saber por que você demonstra gos‑ tar muito de balé. Pode me responder, se não for inoportuno? – Não só gosto da arte, como preservo-a como lembrança de um passado longínquo, na Rússia, quando por meio dessa arte pude dar vazão ao meu desejo de, em nome da caridade, socorrer a dezenas de pessoas carentes, principalmente na época de inverno, quando a baixa temperatura acabava vitimando os que não tinham como dela se protegerem. À noite, eu sempre me encontrava na atividade nos salões festivos dos palácios, onde a chamada nobreza não poupava aplausos. Ali, eu era a bailarina. No entanto, durante o dia, sem que ninguém suspeitasse, eu vivia o que eu era interiormente. Trajava­ ‑me modestamente, de forma a não ser reconhecida, e o dinheiro que havia ganho à noite com os movimentos, principalmente dos pés que o balé exigia-me, durante o dia eu deixava escorrer pelas mãos, transformando-o em socorro para as pessoas que passavam por ne‑ cessidades materiais e, com a minha presença, tentava consolar os carentes de afetividade. Para muitos, eu era uma milionária. Mas na verdade, a minha riqueza era, somente, a satisfação íntima que sentia em poder ser útil, pois quando findei aquela existência, sequer deixei


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recursos necessários para o sepultamento do corpo, mas havia ganho a paz brotada da consciência tranquila, por ter feito tudo que se en‑ contrava ao meu alcance. Depois de uma pequena pausa, prosseguiu: – Além de gostar e admirar esta bela arte, o balé lembra-me do meu despertar para o amor ao próximo, que foi um marco na mi‑ nha vida, pois foi amando ao próximo que descobri, por via desse mesmo sentimento, o amor a Jesus, que por sua vez facultou-me a compreensão sobre o amor a Deus sobre todas as coisas, ou seja, o amor universal. Stevens ouviu a narração feita com aquela voz tão carregada de amor e ternura, como um raro momento na sua vida. Deslumbrado, pensou em perguntar: Por que o mar? Mas antes que ele articulasse qualquer palavra, ela respondeu: – Considero o mar, além dos objetivos para o quais foi criado pela Mente Divina, por meio de Jesus, a maior expressão da beleza material do planeta! Depois de uma pequena pausa, completou: – Espero ter respondido a contento as suas indagações – falou dan‑ do a entender que o diálogo havia chegado ao fim. Mas logo em se‑ guida, voltou a falar: – Mudando o assunto, peço que retorne ao lar e procure se recolher o mais cedo que puder, porque irei buscá-lo para uma importante tarefa, que exige muito cuidado.

Voltemos agora à

propriedade onde se encontravam Gildo e Juve‑

nal conversando: – Quem diria que surpresa tal como essa estivesse para acontecer? – perguntou Gildo. – Toda causa, Gildo, gera um efeito. É aí que a justiça divina inter‑ vém. Que ocorreria assim, eu também não imaginava, mas pressentia que alguma coisa haveria de ocorrer. Mas se você quer saber, nada


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disso, aqui, muda a minha vida, porque não me pertence. É tudo patri‑ mônio do Criador do Universo. Minha situação, doravante, é apenas de um depositário. Logo, logo isso passará para outras mãos. – Outras mãos de quem, seu Juvenal? Se o senhor não tem herdeiro? Juvenal permaneceu por alguns instantes calado e depois fa‑ lou sorrindo: – Quem sabe ele aparece? – Ele quem? – perguntou investigando minuciosamente. Gildo gos‑ tava de descobrir o que ainda se encontrava oculto. – Oh Gildo, Gildo! Por que não domina essa curiosidade? Digo­ ‑lhe, apenas, que só os caminhos da vida poderão lhe dar a resposta que deseja. Creio que os passos que damos por estes caminhos já nos aproximam da possibilidade de fazer cair o véu que oculta a realidade. – É. Se eu tivesse mais conhecimento, entenderia claramente. Mas... O senhor às vezes fala muito difícil! Juvenal riu a gosto e encerrou a conversa: – Vamos dormir em paz, Gildo, sem qualquer preocupação com o amanhã. A cada dia o seu labor, disse Jesus, a luz do mundo!

do espírito amigo, deitou-se, mas não conseguia conciliar o sono. A informação do espírito Charles, de que estaria sendo ameaçado, deixava-o um pouco aflito por causa do trabalho desenvolvido durante todo aquele tempo, direcionado à de‑ sobsessão de Orlando e Stela. Antevia a satisfação de ver todos os es‑ píritos envolvidos adotando novos rumos. Mas a informação fazia-o imaginar-se incapaz de resolver tal situação. Katy Magdalene, no en‑ tanto, já se encontrava observando as imagens que os pensamentos de Stevens criavam no plano energético e imediatamente se aproximou dele, estendeu as mãos sobre a cabeça do amigo e lançou fortemente o pensamento: – Dorme, irmão! Stevens, seguindo a orientação


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Ele nada ouvia, por causa das vibrações do seu pensamento, mas logo começou a bocejar, fechou os olhos, adormeceu e imediatamente deixou parcialmente o corpo físico e, ao ver Katy Magdalene, exultou de alegria. – Por acaso, não desejava a minha companhia? – perguntou ela sorrindo. Stevens ficou impressionado ao vê-la passar por uma transmutação tão rapidamente. Via, em vez da forma perispiritual com que ela se apresentava atualmente, do mesmo jeito que era, quando procurava o seu ombro para verter as lágrimas do sofrimento que passava com os desatinos do pai, na encarnação quando se registraram os conflitos entre o pai e a mãe. Ainda mais surpreendido ficou ao olhar para a parede e ver surgir, de repente, um espelho fluídico refletindo a sua própria imagem, bem diferente da atual, que era de altura mediana, cabelos castanhos, pele clara mas aparentemente tostada por longas exposições aos raios solares e olhos castanhos claros. Ali, no entanto, via-se de olhos azuis, cabelos louros e pele clara. O formato do rosto nada tinha a ver com o atual. Depois de contemplar aquela imagem perispiritual, ele perguntou cheio de admiração: – Como você conseguiu isso? – Eu nada fiz para que isso ocorresse. As suas lembranças fizeram­ ‑lhe sentir-se David, meu tio. Parece autêntico. Mas nós vamos precisar de recordações bem mais longínquas, época em que os cristãos eram perseguidos no Circo de Roma. Ela estendeu a mão sobre a cabeça de Stevens e começou a falar: – Lembre-se! Você se chamava Maximus. O seu irmão foi morto no Circo de Roma, mas pelo fato de não ser seguidor de Cristo revoltou­‑se contra os princípios cristãos, os seguidores e também contra Jesus, a quem culpa pela sua morte injusta, como imagina. Desde aquela épo‑ ca, vem agindo com instinto de ferocidade. Da Itália encaminhou-se para o Brasil, interessado em se vingar de uma antiga autoridade ro‑ mana que havia reencarnado no país, a quem atribuía a sua condena‑


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ção e consequente morte no Circo de Roma. Odiento, acabou desper‑ tando o instinto de ferocidade, e por meio de uma organização que ele mesmo denominou de Vingança em Ação, vem disseminando o mal, provocando obsessões pertinazes e procurando interferir em segmen‑ tos religiosos que tenham como base os ensinamentos de Jesus – Começo a me lembrar! – exclamou Stevens. – Ele chamava-se Marcus Linus. A sua mãe... Nossa mãe, mesmo tendo passado pelo trágico acontecimento, que poderia motivá-la a se afastar de qualquer ligação com os cristãos, acabou aderindo a eles e dedicando a sua vida à prática das lições luminosas do divino mestre e... Não completou a frase, porque ao olhar em direção a Katy, viu em vez dela uma mulher de forte compleição, o rosto com agradáveis tra‑ ços fisionômicos, os cabelos partidos ao meio e caídos pela frente dos ombros, e falou a toda voz: – Mãe?! – Preciso manter essa aparência e você também. Por agora você é Maximus! Tente viver por algumas horas a personalidade daquela época, pois não era outro, e sim você mesmo. À proporção que ela ia falando, o perispírito de Stevens sofria mais uma vez uma radical transformação morfológica. Katy, então, disse­ ‑lhe ainda: – A sua atuação será de grande importância. Se você falhar por medo ou qualquer outro tipo de insegurança, toda tarefa será prejudi‑ cada e Charles (espírito), poderá ser aprisionado por ordem de Marcus Linus. Isso acontecendo estaremos perdendo, com muito pesar, um dos meus principais objetivos de estar aqui, e você da sua própria en‑ carnação, cujo propósito foi contribuir com o reerguimento de todo es‑ ses nossos irmãos, que no passado eram integrantes das duas famílias em litígio. Stevens, àquela altura, já havia se lembrado de muitos detalhes re‑ ferentes à convivência dele com o referido mandatário da organização, principalmente quando eram crianças. Katy Magdalene (Espírito do


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Mar) segurou as mãos do amigo e disse: – Vamos! Em instantes já se encontravam na praia, onde a equipe de traba‑ lho formada por ela já estava à espera. De lá, rumaram volitando. Ste‑ vens, percebendo que havia algo bem diferente do que antes presen‑ ciava, perguntou: – Todos perderam a iluminação! Até você Katy ? – Não a perdemos. Diria que foi ocultada. Procedimento necessário para o êxito da tarefa. Agora, esqueça a curiosidade e concentre-se no que tem a fazer. O local de onde saíam as ordens para ações vingativas era uma caverna de pequenas proporções, localizada no interior de uma mata densa, ainda não descoberta por exploradores encarnados. Desceram a certa distância, cautelosos e silenciosos. Katy Magda‑ lene distribuiu tecnicamente as tarefas, e antes de começarem a agir fez uma comovente prece, pedindo a Jesus pelas dezenas de espíritos que ali se encontravam compartilhando das ações doentias do suposto chefe da organização. Depois que todos ocuparam as suas posições em volta da caver‑ na, foi criado instantaneamente uma espécie de muralha fluídica. Katy olhou para Stevens que havia acentuado, ainda mais, a aparência de Maximus e recomendou: – Vá, meu irmão! Você já sabe o que fazer! Mas não se deixe en‑ volver pelo ambiente; não olhe, principalmente, para os rostos deles, nem para cima, e nem para os lados. Olhe somente para o chão. E quando estiver em frente a ele, em nenhuma hipótese imagine vê-lo com a mesma imagem de quando foi seu irmão. Isso é muito impor‑ tante, porque para pôr tudo a perder basta você suspender as vistas para vê-lo. Imediatamente, despertará no corpo físico com lembran‑ ças nada boas. A passos lentos, ele chegou à entrada da caverna e dois espíritos que atuavam como vigilantes apontaram-lhe objetos pontiagudos


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comparáveis ao sabre à guisa de armas: – Pare aí! Que deseja? Nem pense em passar por aqui, se for essa a sua intenção! – bradou um deles com a voz afônica. – Sim! Não desacataria as ordens porque, assim, estaria desconsi‑ derando o meu irmão que tanto prezo e ele também, que sente o mes‑ mo por mim, certamente ficaria muito chocado. – Nunca o ouvi falar que tivesse algum irmão e também que man‑ tivesse qualquer amizade com alguém. – Se puder me fazer um favor, diga-lhe que é o seu irmão Maximus, da época em que ele viveu na Itália. O guarda (espírito) entrou na caverna e, depois de alguns mi‑ nutos, retornou com mais seis, devidamente armados como se fos‑ sem guerrear. – Se você estiver mentindo, o seu sofrimento, doravante, será ine‑ narrável, porque aqui a lei é dura! Não há compaixão. Três de cada lado, com passos cadenciados como se marchassem, foram conduzindo Stevens que, entre eles, tentava acompanhar os pas‑ sos dos guardas, seguindo à risca as instruções de Katy Magdalene e tentando relembrar detalhes de quando viveu encarnado, na Itália, época de perseguição contra os cristãos, na condição de irmão consan‑ guíneo do suposto chefe daquela organização. Assim pensando, só se deu conta que já se encontrava em frente ao irmão do pretérito quando ouviu o guarda anunciar: – Pronto chefe! Eis aqui, ele, que diz ser seu irmão. A curiosidade pode ser bem aproveitada quando a intenção é investigar, descobrir e conhecer. No entanto, a curiosidade, por simples curiosidade, pode provocar sérias consequências. Stevens, apesar da recomendação de Katy, logo que o guarda terminou de anunciá-lo dirigiu o olhar para o rosto do irmão de outrora. Não fosse a ação rápida de Katy, que, apesar de estar fora da caverna, tudo percebia, ele teria, na melhor das hipóteses, retornado imedia‑ tamente ao corpo físico, gerando indesejável fracasso à importante


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ação. Não há necessidade de descrever o que Stevens presenciava, por não acrescentar absolutamente nada agradável às mentes dos que leem essas páginas. Com a voz rouca, se esforçando para pronunciar as palavras em português, ele perguntou: – Quem é, realmente, você? – Eu trago, além da saudade que chega doer o meu coração, as manifestações também saudosas e amorosas da nossa mãe, quando vivemos nos arredores de Roma e você foi sacrificado no Circo. Eu sou Maximus! Não creio haver me esquecido, pois na época propus e provoquei os homens da lei, afirmando que eu, sim, era cristão, inten‑ cionando a me colocarem em seu lugar por causa da admiração que eu mantinha por você, um irmão muito querido. O espírito, com os olhos avermelhados e imensamente abertos, as‑ sim se expressou: – Quê?! Não creio que viesse me procurar, por amizade, depois de tanto tempo esquecido que eu existo! Não pode ser você o meu irmão, embora esteja bem informado e demonstre a mesma aparência na fisio‑ nomia, de acordo com as minhas lembranças. – Creio que você ainda se lembra quando éramos crianças, os nos‑ sos avós nos levavam para a sua casa, em uma propriedade rural com extensas plantações de trigo, onde gostávamos de correr, espantando as revoadas de pássaros que faziam da semente o seu alimento prefe‑ rido; o lago onde gostávamos de nadar e de pescar pequenos peixes; o cavalo chamado “Biono”, que toda vez que o montávamos ele relin‑ chava e suspendia as patas dianteiras nos derrubando pelas traseiras! Foram dias inesquecíveis! Por isso é que, até hoje, não consegui tirar da mente o irmão querido, companheiro e amigo de infância... O espírito com a voz menos afônica tomou a palavra e disse: – Oh, como fui feliz! Não devo lembrar dessas coisas, porque acabo perdendo o pulso que tem que ser forte e enérgico para agir em prol dos meus propósitos. Mas, mesmo assim, lembro-me ainda da face da


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minha mãe! As outras lembranças que tenho dela, apesar de serem muito vagas, prendem-se a sua bondade. – Se você se der por vencido de que está ciente de que sou seu irmão Maximus, não só falarei, como poderei trazê-la aqui, para bem perto do seu coração. O chefe da organização “Vingança em Ação” tinha certeza de que o visitante havia sido, sim, seu irmão, tanto que sentiu vontade de le‑ vantar da cadeira onde se encontrava sentado, como se um rei fosse, e abraçá-lo demoradamente. Mas, para ele, na condição perversa a que se submetera, a atitude se tratava de uma prova de fraqueza. Mas, ain‑ da assim, não deixou de reconhecer, quando disse: – Por ela, não falo apenas a verdade sobre você, que sei ser meu irmão, embora as diferenças que nos separam, mas tudo que a minha natureza ultrajada pela revolta puder permitir. – Diante do que me disse, garanto que há condições de trazê-la aqui às suas vistas. Contudo, há ainda uma condição para que isso ocorra: – É só falar. Aqui eu posso tudo que quero. Mando e sou obedecido. – Ela não se sentiria bem nesse ambiente, onde só há homens (es‑ píritos com aparência masculina) e, ainda mais, desconhecidos. Não seria de bom proveito ordenar uma trégua ... Uma folga aos seus co‑ mandados, já que esse momento é tão importante para a sua vida? O espírito ordenou aos guardas que lhe davam segurança que o deixassem a sós com o visitante e avisassem a todos que, por sua or‑ dem, estavam de folga. E que os que se encontravam em ação, fora do local, fossem chamados pelas ondas do pensamento para deixarem as suas atividades e voltarem, para também participarem da trégua. Logo que as dezenas de espíritos tomaram conhecimento da deter‑ minação, começaram, imediatamente, a mudar as vibrações. Guarda‑ ram as armas e tantos outros instrumentos, a exemplo do que produzia uma espécie de fogo, como já vimos antes, para gerar sofrimento a obsediados e passaram, descontraídos, a fazer gracejos e soltar altas gargalhadas. Assim, com as mentes desconectadas da ação do ódio e


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da perversidade, dezenas de espíritos da equipe de Katy Magdalene passaram a enviar vibrações amorosas. À proporção que se sentiam cada vez mais soltos e aparentemente alegres, iam penetrando sem se darem conta num campo magnético formado pelas vibrações da ami‑ zade. Logo passaram a conversar, relembrando passagens da última encarnação: A família, os entes queridos e tantas outras recordações. Foi aí que Katy, com aparência da matrona italiana e trajada com rou‑ pas características da época, foi entrando na caverna. Logo que ela apontou, o espírito levantou-se abruptamente da ca‑ deira – uma réplica das que eram usadas, antigamente, pelos impe‑ radores de Roma – e ficou pasmo, como se chumbado ao chão, sem condições, sequer, de dar um passo para sair do lugar, com os olhos vidrados na direção da visitante. Ela se aproximou, parou na sua frente e falou com voz que era pura expressão do amor: – Meu filho! Há quanto tempo eu espero por esse momento! Àquela altura, o perispírito do suposto líder já havia tomado outra feição. Os traços fisionômicos que se encontravam grosseiros pela ação do ódio se tornaram mais finos, os olhos perderam a cor de fogo, como se encontravam antes, vistos por Stevens e demonstravam vestígios de brilho, embora fosco. Era um prenúncio de que os sentimentos de amor que ele já havia cultivado no passado e que se encontravam em estado latente, como ocorre com a semente, aguardando as condições para germinar, vinham à tona, rompendo as comportas do ódio e da vingança. E assim, antes do que Katy previa, ele gritou a toda voz: – Mãe, minha amada mãe! Eu estou perdido desde que mataram injustamente o meu corpo! Eu era feliz, mãe, vivendo ao seu lado, des‑ frutando da sua bondade e do seu carinho! Por que, mãe, por que eles fizeram isso comigo?! Agora eu não tenho sossego, porque o ódio me queima por dentro, sem me dar trégua, como se fosse chamas de fogo! Eu não tinha e ainda não tenho nada a ver com esse Jesus, que de certa forma também foi culpado pela minha desdita! Não fosse ele, eu não teria sido acusado tão injustamente! Sofro mãe, sofro muito! E só sinto


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um pouco de alívio quando faço alguém sofrer também. Mas para isso eu tive que me tornar perverso, insensível e muitas vezes mau, mesmo! Mas agora estou cansado! Muito cansado, sem esperança, sem alento... Gostaria de mudar, mas não sei como recomeçar... Parou de falar. Dos seus olhos, em vez de lágrimas, escorria uma substância enegrecida, cor de lama, nos quais ele passava a mão a todo instante, tentando limpar. – Meu filho amado, não foi Jesus culpado pelo que lhe ocorreu, mas, sim, uma simples ação dos homens, para que você quitasse um débito contraído à margem das leis de Deus. Certa feita, antes da citada existência, você cometeu um grande equívoco, quando levantou uma pérfida calúnia contra um suposto inimigo e, por isso, mesmo sendo ele inocente, foi preso e condenado à morte. A justiça divina julga o in‑ frator pela ação praticada, não para castigá-lo, mas para educá-lo. Você que se julga inocente, agora, já sabedor da sua culpabilidade, deve pa‑ rar de odiar os que decretaram a sua morte no Circo de Roma, e sim agradecê-los, porque eles foram apenas instrumentos da justiça divina, e ainda mais! Proporcionaram-lhe a oportunidade de morrer, também, por Jesus Cristo, o que poderia ter sido aproveitado para redimir-se. – Oh mãe, eu não sabia, não lembrava ... Errei! Que faço? Katy Magdalene estendeu as mãos, por onde passavam raios lumi‑ nosos direcionados para a cabeça do espírito, que em instantes, com a voz arrastada, disse apenas: – Mãe, me leve com você! Eu quero muito! Mas que faço com os meus amigos? – terminou de falar e tombou no solo, em sono profundo, como se houvesse desmaiado. Katy direcionou o pensamento aos demais espí‑ ritos que se encontravam fora da caverna e todo o feixe de energia que saía das suas mãos foi tocando um a um. Nesse exato momento, os seus auxiliares começaram a segunda etapa daquela tarefa redentora. Logo, a maioria dos espíritos, a exemplo do seu suposto chefe, já se encontravam em sono magnético. Os que ainda se mostravam despertos, gritavam: – Fujam! Fujam todos, porque o mundo está se acabando! – pare‑


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ciam dementados, mas, ao verem os trabalhadores de Katy, que se co‑ locaram na condição de serem por eles percebidos, pediam ajoelhados: – Não nos deixem morrer! Temos consciência dos nossos erros, mas prometemos que vamos mudar para melhor! Eles não tinham qualquer entendimento sobre a imortalidade do espírito. Um deles, cujo perispírito tinha a aparência de um idoso, bra‑ dou de joelhos e curvado com o rosto próximo do chão: Oh! anjos de Deus! Sei que errei muito, muito, mas tenham piedade de mim! – Venham, meus irmãos! Deus quer vê-los felizes – falou um dos componentes da equipe. Lá no interior da caverna, Katy colocou nos braços aquele que tan‑ tas vezes, no passado, carregou no colo e segurou sua mão quando menino. Ali, no entanto, ele não era uma criança no corpo físico, mas perante a grandeza moral e a capacidade de amar que Katy Magdale‑ ne já havia conquistado, ele era sim, ainda, um espírito infantil. Uma criança espiritual! Momentos depois, em um espaço, a certa distância da caverna, acomodaram todos os espíritos. Entre eles, se encontravam parentes consanguíneos e afetos do pretérito. Todos os sessenta e sete espíritos que ocupavam a caverna foram resgatados. Katy voltou-se para a sua equipe e exclamou: – Concluamos a tarefa! Eles, imediatamente, estenderam as mãos em direção à caverna, no entorno dela e, de repente, começaram a fluir pelas extremidades dos dedos raios multicores e de intensa luminosidade, que rapidamente se juntavam, formando um enorme feixe, bifurcando-se em seguida. Uma parte penetrou na caverna e a outra subiu velozmente até certa altura e em seguida começou a descer, e antes de cobrir toda a área em torno da caverna, se repartiu em várias porções parecidas com re‑ lâmpagos e, em instantes, ouviu-se estrondos que eram registrados tão somente pela audição perispiritual. Em menos de um minuto, a ca‑ verna e toda aquela área estavam livres dos miasmas produzidos pela


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baixa vibração energética dos que lá viviam. Alguns, dentre eles, há muitos séculos! Quando chegaram à praia, para onde levaram todos os resgatados, encontraram, pronto, um novo posto de atendimento, junto ao que ali já existia, que tinha a finalidade de proporcionar os primeiros socor‑ ros a desencarnados, cuja situação exigia envolvimento nos fluidos benéficos do mar. O novo posto, construído mentalmente por compo‑ nentes da equipe de Katy Magdalene para a acomodação dos espíritos resgatados, era de grandes proporções e contendo todo mobiliário e equipamentos necessários para o intenso trabalho, que tinha início na‑ quele momento. Stevens, que, apesar da vidência e constantes desdobramentos, ain‑ da não conhecia de perto essa atividade dos espíritos, observava com muita surpresa. E, embora percebendo que o momento requeria muita atenção e cuidados especiais, se aproximou de Katy e perguntou: – Poderia me explicar o porquê da localização desses postos, assim bem junto ao mar? – Todo contato direto com a natureza se constitui em importantes benefícios, não só na presente situação dos desencarnados, mas tam‑ bém dos que ainda se encontram encarnados, pois muitos dentre eles, que ignoram essa particularidade, acabam promovendo a poluição, ceifando vidas e tornando o habitat natural dos reinos da natureza es‑ téril por longo tempo, até que ocorra a sua recomposição natural ou por ação de espíritos especializados, de acordo com a qualificação, o local e a necessidade momentânea. – Imaginava que os espíritos se especializavam e direcionavam as suas atividades diretamente à criatura humana! – comentou Stevens. – Trata-se de uma cadeia, onde tudo se relaciona e todos depen‑ dem de todos. Em escala decrescente, desde as maiores formas ani‑ mais já conhecidas, até as infinitamente pequenas, jamais suspeitadas pelo homem na Terra, mas visíveis aos espíritos que se especializam para ­atuar, com segurança, nos fenômenos da natureza. A finalidade é


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sempre o desenvolvimento da vida, participando do processo de evo‑ lução, de acordo com a vontade de Deus, a fonte de todas as ciências. Todo ser vivo, por mais insignificante que nos pareça, motivado pelo instinto de defesa movimenta-se, seja em função da autodefesa ou em busca do alimento. De qualquer forma, esse movimento constitui-se em importante colaboração ao equilíbrio do todo. A árvore ao firmar-se no solo por meio das raízes, extrai dele os nutrientes necessários à vida. Entretanto, proporciona estabilidade ao solo em toda a área onde mergulha as suas raízes. O caule que aponta, quase sempre, para o alto, sustenta o peso das ramagens e as folhas, por sua vez, pelo pro‑ cesso da fotossíntese, recolhem o gás carbônico com o qual se nutrem e eliminam o oxigênio indispensável à vida animal no planeta. Depois de silenciar por instantes, voltou a falar: – Lembre-se do que você, quando em desdobramento, tem presen‑ ciado nas profundezas das águas. Depois de pensar por instantes, Stevens comentou: – Parece outro mundo, em relação à terra firme, pois apesar da mi‑ nha pouca percepção, deu para notar que a vida nos mares se apresen‑ ta, em certas situações, admiravelmente, diferente do que observamos em terra, com abrangência ao vegetal, animal e espiritual. Pelo menos isso pude observar. Mas o que eu gostaria de saber é o porquê dos es‑ píritos, em tão alto número no mar, se apresentarem com formas tão diversificadas no perispírito! – Além do patamar evolutivo, as formas são sempre intrínsecas à função que exercem na natureza. – E então, todos trabalham? – O que você pode imaginar em relação à minha presença quase constante no mar? Não é por simples deleite! Além das tarefas que as‑ sumi juntamente com você, Juvenal e outros, para apaziguar os confli‑ tos familiares, atividade que já se encontra na reta final, minha atuação principal, além dos postos de assistência a desencarnados, se localiza desde a superfície às profundezas do mar.


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Parou de falar, mas instantes depois concluiu o assunto: – Apenas a boa vontade e o cumprimento de obrigações não habili‑ tam o trabalhador para tarefas específicas. Precisam de especificações, que são passadas, tecnicamente, por instrutores. – Então, é essa a sua função? – Como uma das mais simples servidoras do divino mestre – confirmou. Repassando o que acabara de ouvir, Stevens retornou à impressão sobre a falta de responsabilidade de muitos para com o meio ambiente, e em relação ao local escolhido para instalação dos postos de socorro, que ela ainda não havia respondido, conforme a sua expectativa. Percebendo os seus pensamentos, Katy Magdalene pôs a sua diáfa‑ na mão sobre o ombro do amigo e exclamou: – Não se impressione! A pior de todas as poluições é a mental, con‑ forme pudemos constatar no interior da caverna, cujo ambiente dele‑ tério acabou viciando as mentes desses nossos irmãos equivocados, a ponto de se alimentarem psiquicamente e reciprocamente com os miasmas que infestavam o ambiente. E porque se encontram profun‑ damente afetados, necessitarão de tempo considerável expostos aos fluidos benéficos do mar, até recobrarem os primeiros sinais de reequi‑ líbrio emocional, quando serão avaliados e submetidos a tratamentos inerentes à situação de cada um. Em relação ao posicionamento dos postos, é nesse local, onde a água se movimenta com mais intensidade, formando volumosas on‑ das durante a subida da maré, concentra e libera muita energia fluídi‑ ca, benéfica ao reequilíbrio de espíritos pós-desencarnados e, em casos específicos, a exemplo dos nossos irmãos resgatados da caverna. Os clarões da alvorada já podiam ser vistos ao longe. Katy abraçou Stevens e falou sorrindo: – Muito bem! Gostei do que fez, meu amado tio de outrora! – Grato pelo incentivo, minha sempre querida sobrinha e eficiente instrutora – respondeu ele sorrindo, pois já entendia que o parentesco


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consanguíneo desaparece logo que a morte do corpo físico libera o es‑ pírito e que só o amor une e cria laços inquebrantáveis e eternos. – Se pretender conhecer mais, venha estar conosco, enquanto o cor‑ po físico repousar em sono – convidou ela. – Virei sim, virei tantas vezes quantas me forem permitidas. – Vou levá-lo ao corpo físico. Mas antes disso, você precisa passar por uma descompensação das energias usadas para as tarefas, pois não convém se recordar de tudo que presenciou. Como disse Paulo apósto‑ lo: Tudo me é lícito, mas nem tudo me convém.


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Capítulo 17

Perdão e reconciliação Não há paz onde escasseia a reconciliação. Dizzi Akibah

de Stela para dar um novo rumo à vida, Orlando foi aos poucos cedendo. Já compreendia que o modo de vida que adotava até perder os bens materiais não era realmente o desejá‑ vel. Em relação à aversão contra Stevens, depois da última conversa de Gildo, compreendeu que ele e não Stevens era o causador de tudo o que lhe ocorrera. É nesse novo estado íntimo que vamos encontrá-lo bastante atento ouvindo Stela: – A vida, que é um dom de Deus, não deve ser desperdiçada por interesses exclusivos, pelos bens materiais. Felizmente, já entendo que aqui nos encontramos para o crescimento moral e espiritual. Mas isso se dá com mais propriedade quando observamos, com interesse, os ensinamentos de Jesus, os quais se referem à convivência pacífica e salutar. Dentre eles, o que recomenda amar ao inimigo, o que muitos ainda consideram como algo difícil. – Eu me incluo dentre os que consideram essa atitude difícil de ser

Com o insistente incentivo


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posta em prática. Como pode alguém tratar amorosamente a quem lhe dirige ódio? – perguntou Orlando, em tom de dúvida. Stela voltou a explicar: – Para amar, não se faz necessário estar ao lado do suposto inimi‑ go, como fazemos para com as pessoas afins, mas que se mantenha por ele bons sentimentos, que lhe deseje sempre o bem e que esteja disposto a ajudá-lo, até mesmo sem que ele saiba. Afinal, fazer com a mão direita o que a esquerda não veja não é uma orientação de Jesus? E se ele pedir perdão, perdoá-lo conforme indicação do divino mes‑ tre. Entretanto, se a situação for o contrário, que o faça com vontade e disposição. Stela terminou de falar e Orlando, em silêncio, começou a repassar de uma a uma as pessoas que antes considerava inimigas e percebeu que àquela altura não guardava mais ressentimentos, mas, sim, sentimento de culpa. Depois de alguns minutos de reflexão, ele se dirigiu a Stela: – Eu estou com muita vontade de conhecer a minha neta, mas in‑ felizmente ela se encontra onde justamente eu não devo ir. Você pode pedir a Gilza para trazê-la aqui? – Acho que a essa altura, você deveria ir lá. Gilza ficou muito cho‑ cada quando você a proibiu de trazer a criança aqui. E pior é que já se passaram três anos e ela nunca mais nos visitou. – E se Juliano me pôr para fora da sua casa? – Você sairá! Ele tem fortes motivos para isso, entretanto, creio que não o fará. – É muito difícil pôr em prática os ensinamentos de Jesus! – comen‑ tou ele, desanimado. – Difícil quando falta empenho. Por que não aproveita agora, que já entende o fundamento da reconciliação? É só ir lá e pedir perdão. – Eu, pedir perdão? É muita humilhação! – Se assim fosse, Jesus não teria indicado essa atitude, que é, acima de tudo, pacificadora. – E se ele não me perdoar?


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– Dificultará a reconciliação. Entretanto, dado aos bons princípios, como demonstram as suas atitudes, creio até que ele já o perdoou. Orlando se dirigiu para a área ajardinada da casa, onde, sentado num banco, passou a relembrar os bons momentos ensejados pela ami‑ zade de Juliano e a família e sentiu saudades. Respirou forte e falou para si mesmo: – Como seria bom se pudesse voltar atrás! Faria tudo diferente... Interrompeu as suas lembranças ao perceber um veículo parando bem em frente à porta da casa. Era Stevens que acabava de chegar e logo que cumprimentou Stela, perguntou pelo pai. – Ele deve estar no jardim, refletindo sobre o que eu lhe disse há pouco. – Cada dia que passa, sinto-me mais alegre e grato a Deus pelos novos rumos que nos direcionam ao bem, tendo como exemplo a mu‑ dança para melhor adotada por todos nós, inclusive pela senhora, que vem influenciando, também, ao meu pai. Ele precisa, sim, voltar atrás, pedir perdão e tentar reatar a amizade com Juliano, por causa do que fez. Descobri, verificando documentações da empresa... Parou de falar, ao ver Orlando se dirigindo à porta de entrada da casa. Ao ver Stevens, falou sorrindo: – Oh filho, enfim apareceu! Sei das suas atuais ocupações que são muitas. Mas você é muito comedido e sabe dosar o tempo, não como eu fazia, que por causa disso, não cheguei a ver os meus fi‑ lhos crescerem. – Esqueça, pai! Já passou. Eu gostaria de continuar conversando, mas vou agora ver a minha sobrinha. Quer ir comigo, mãe? Stela olhou para Orlando. Ele percebeu a intenção da esposa, me‑ neou positivamente com a cabeça, mas não deixou claro se os acompa‑ nharia ou não.

Juliano, que se encontrava

na varanda da residência, parou rapida‑


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mente de conversar com Heloína, ao perceber um carro estacionando bem em frente à casa. Curioso, vendo Stela e Stevens saindo do veícu‑ lo, falou satisfeito: – Temos visitas! Ia se levantando para receber os visitantes, quando viu descendo do veículo, outro passageiro. Voltando-se para a esposa perguntou: – Será que eu estou enxergando bem ou se trata de uma sim‑ ples miragem? – Você está, sim, enxergando muito bem! Isso teria que ocorrer e quis Deus fosse hoje, o grande dia! Stela se aproximou e os donos da casa, receberam-na com vi‑ sível alegria. A seguir Stevens, que recebeu de Juliano um forte abraço. Orlando, por sua vez, em pé, apoiava-se no veículo, pois as pernas tremiam sem controle, por causa do nervoso que sentia. Não era para menos. Já haviam se passado quase quarenta anos que ele fora admitido como empregado na empresa, que, na épo‑ ca, pertencia a Juliano. Em pouco tempo, graças a sua dedicação ao trabalho, pois era muito esforçado, conquistou a confiança de Juliano, que não hesitou em mudar a sua função, oferecendo-lhe um cargo de gerente operacional e de imediato confiar-lhe, sem re‑ serva, tudo o que se referia à empresa, inclusive a parte financeira, projetos de crescimento... Àquela altura, a amizade era de tal magnitude que se encontra‑ vam sempre juntos, quer fosse nas atividades da empresa ou fora dela. Juliano, de boa-fé e pretendendo ajudar o amigo, para que ambos ficassem nivelados em termos sociais, admitiu-o como sócio, condicionado, apenas, ao trabalho, já que Orlando não dispunha de capital. A partir daí, aproveitando a facilidade com que Juliano abria mão de qualquer tipo de reserva, passou a interferir na parte financeira, maquiando-a, para fazer retiradas em dinheiro sem que Juliano percebesse. Alguns anos depois, quando já retinha a quantia suficiente para satisfazer as suas intenções, passou, inicialmente, a


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tratar Juliano com indiferença, para logo depois criar intrigas, que acabaram arrefecendo a amizade. Juliano, desgostoso e entristecido com a desagradável situação, chamou-o para um acordo, pois sentia que não havia mais condições de trabalharem juntos. Orlando, en‑ tretanto, não aceitou, porque desejava ficar com tudo. Para isso, for‑ jou documentos, corrompendo com altas gratificações em dinheiro funcionários de um cartório na capital do estado e passou a empre‑ sa para o seu nome. Juliano, ao tomar conhecimento, apelou para a justiça, porém, o juiz responsável pelo julgamento do processo não só mantinha amizade com Orlando, mas dele recebia, desde que se conheceram, valiosos presentes e favores escusos. Assim compro‑ metido e desprovido da retidão com que devem agir os magistrados honestos, deu causa ganha a Orlando. Juliano saiu da empresa que havia criado com força de vontade e muito esforço absolutamente sem nada. Doravante, para sobreviver e sustentar a família, passou a trabalhar duramente num sítio, além da sua residência, único bem material que lhe restara. Desde então, era a primeira vez que, frente a frente, se encon‑ travam. Por isso mesmo, enquanto Orlando demorava recostado no carro apoiando-se por causa das pernas trêmulas que não lhe permitiam andar, Juliano em pé em frente à casa, com as mãos trê‑ mulas e o suor porejando, aguardava, sem saber exatamente qual atitude era mais adequada para o momento. Mas ao perceber que Orlando se encontrava imóvel no mesmo lugar, acenou com a mão e falou: – Chegue à frente! Encorajado, o visitante se dirigiu a passos lentos e chegando diante de Juliano, falou reticencioso: – Eu penso que não tenho o direito de me encontrar aqui, diante de você, por reconhecer os malefícios causados pela minha ganância, o que tanto prejudicou a você e a sua família. No entanto, a vida me ensinou, impondo-me muito sofrimento, até eu entender que nada nos


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pertence, quando se trata de bens materiais. Entretanto, gostaria, ainda agora, de ter condições suficientes para devolver tudo que foi por mim lesado. Devolveria e ainda ajoelharia aos seus pés para pedir-lhe des‑ culpas. Perdão, não apenas dos prejuízos materiais, mas, sobretudo, da pérfida traição. Mas já que a situação é outra, eu faço, diante de você, o que está ao meu alcance. Ajoelhou-se junto aos pés de Juliano e falou com os olhos lacrimejando: – Perdoe-me! Mas se você não estiver em condições íntimas para tal... Afirmo que estou disposto a pagar pelo meu erro, até mesmo atrás das grades de uma prisão, conquanto que eu possa, um dia, aliviar a minha consciência. Você está cheio de razão e pode, sim, procurar a justiça e eu confessarei tudo! Mas se por acaso não for esse o seu inte‑ resse, diga-me o que devo fazer. Juliano, perplexo, pois nunca antes imaginara testemunhar tal cena, ainda com as mãos trêmulas por causa do forte impacto emocional, lembrou-se da lição luminosa de Jesus sobre o perdão, curvou-se para frente, segurou as mãos de Orlando, fê-lo levantar e disse: – Setenta vezes sete vezes. Digo isso, para que saiba que nada me deve, pois já o perdoei há muito tempo! A sua presença me faz lembrar da alegria do pai do filho pródigo, ao recebê-lo de volta ao lar. Seja muito bem-vindo a minha casa. Segurando o ex-inimigo pelo braço, conduziu-o à sala, onde se en‑ contravam filhos, nora, genro... Ao vê-los, levantaram-se impactados, pois não estavam a par do que ocorrera lá fora. – Meus filhos – falou Juliano, sorrindo e se dirigindo a todos sem distinção, pois tratava a nora e o genro, igualmente aos filhos –, eu quero pedir que preparem uma comemoração para festejarmos com alegria o retorno do amigo pródigo. Apontou uma poltrona para Orlando que, antes de se sentar, apro‑ ximou-se da filha Gilza e disse:


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– Minha filha, perdoe-me a dureza obscura e injustificável com que eu a tratei. Gilza abraçou-o. Em seguida, apoiou a cabeça no ombro do pai e chorou. As lágrimas quentes desciam e Orlando sentia-as, não ape‑ nas molhando a roupa, mas como se elas tocassem o seu coração, proporcionando alívio, pois o arrependimento já o deixava bastan‑ te amargurado. Em seguida, Gino se aproximou e, também, abraçando o pai, disse­ ‑lhe: – Eu fiquei longe do senhor, não por ingratidão, mas sim para não vê-lo vencido e derrotado. Errei, sei. Mas acho que era preciso que as‑ sim fosse, pois eu não sabia o que fazer para ajudá-lo, quando o seu co‑ ração estava repleto de amargura causada, também, pela decisão que tomei de me casar com a filha de seu Juliano. – Esqueça isso, filho! As mágoas já se foram com a obscuridade que eu insistia em manter em meu íntimo, contudo, o sofrimento acabou expulsando as mazelas. – Isso mesmo, pai! Mudemos de assunto, para renovarmos as ideias – falou ao ver os dois filhos chegando à sala. Segurou-os, um em cada braço e disse: – São os seus netos. Gilza, que havia saído da sala, retornou, rapidamente e falou já sorrindo: – Pai, veja como é linda a sua netinha! Orlando aconchegou-a junto ao coração, ficou olhando aquele ros‑ tinho e em seguida disse: – Vou limpar o meu coração, para colocá-la nele. Garanto que o seu avô, doravante, nada fará para envergonhá-la. Terminou de falar, já entregando a criança à mãe e sentou-se. Julia‑ no, também, sentou-se. Stevens, por sua vez, achando que o momento era propício para as suas intenções, levantou já falando: – Aproveito este momento de pacificação e alegria íntima para tra‑


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tar de um assunto que diz respeito, não apenas a um reparo, mas, so‑ bretudo, à justiça. Sem mais necessidade de qualquer comentário, faço um convite a seu Juliano, extensivo a qualquer outro componente da família, para trabalhar na empresa, por enquanto, ao meu lado e, no futuro, a depender de Ênio, poderá até ficar no lugar que ocupo, uma vez que irei cuidar de outros interesses conforme Ênio, o proprietário, já se encontra ciente. Gostaria de levar, ainda hoje, a resposta, porque o interessado deverá de imediato tomar conhecimento da organização atual da empresa. Foi mais uma grande surpresa. Embora a formação moral e espiri‑ tual adotada àquela altura por Stevens, a consciência de justiça revela‑ da por ele surpreendeu a todos, inclusive a Juliano, que, emocionado, assim se expressou: – Eu agradeço muito pela sua admirável atitude, contudo, já não me encontro, talvez, capacitado para gerir um negócio que tende mui‑ to a crescer, conforme ouço falar. Já estou mais ou menos envelhecido e prefiro, doravante, viver as alegria dos meus netinhos, me preparar para o retorno, não ao céu, como eu imaginava antes, mas ao mundo espiritual, conforme você mesmo afirmou. Mas fique certo que a sua atitude trouxe muita alegria ao meu coração. Maurício, filho mais novo de Juliano e Heloína, e esposo de Gilza, se aproximou e perguntou sorridente: – Que dia eu devo procurar o meu novo chefe? – O seu chefe deve ser aquele que aponta o melhor caminho para ser trilhado pela humanidade, conforme exemplificou, quando esteve entre nós e foi conhecido como o Rabi da Galileia. Mas em se tratando de trabalho, amanhã mesmo esteja na empresa para o seu primeiro dia, já na qualidade de funcionário. O rapaz, radiante, abraçou Stevens: – Garanto que vou cumprir fielmente todas as diretrizes da empre‑ sa e honrar a sua confiança. – Aproveite e honre, também, toda oportunidade de ser honrado.


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Os caminhos, finalmente, estavam sendo aplainados. O ódio do passado cedia lugar ao amor. Apagavam-se os sentimentos de vin‑ gança, as ilusões da vaidade, o amargor da derrota graças à ação dos espíritos trabalhadores da Seara Divina, tendo à frente Katy Magda‑ lene, que em nome de Jesus vinha atuando, há bastante tempo, com o auxílio de Juvenal, o pescador, com quem manteve inicialmente os primeiros contatos e mais na frente, com Stevens, que se tornou seu instrumento mediúnico. Mas tudo isso jamais ocorreria não fossem as lições luminosas de Jesus, contidas no Evangelho, as revelações e o consolo que a doutrina dos espíritos nos enseja. Mas apesar desses bons resultados, outras pendências ainda deveriam ser sanadas, para que Katy Magdalene desse por findada a tarefa que assumiu perante a espiritualidade maior.

de ter chegado em casa, Stevens ouviu vozes e per‑ cebeu, com muita alegria, que se tratava de Gildo e Juvenal, que retor‑ navam da viagem. Ao vê-lo, Gildo, soltou a voz: – Mano, querido mano! – falou já abraçando Stevens e, porque ti‑ nha a compleição física mais avantajada, suspendeu-o e completou: – O meu coração parece explodir de tanta alegria! Em seguida, Stevens abraçou o velho amigo Juvenal e externou o seu sentimento: – Se eu pudesse, amarrá-los-ia para não mais saírem daqui, porque foi muito desconfortável sem a presença de vocês. – Então, mano – respondeu Gildo – feche a porta do seu coração, para não mais entrar saudade, porque essa não foi a única vez. Por força da nova situação, poderão ser muitas aí pela frente! Não é isso mesmo, seu Juvenal? – Disse bem, Gildo! A nova situação, gerada por tanta surpresa de uma vez, nos exige isso. Não me refiro, apenas, à herança da proprie‑ dade, porque isso não enche os meus olhos de cobiça e nem muda,

Instantes depois


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absolutamente, nada em minha vida. Mas saber que Gilca é minha cunhada e Ênio meu sobrinho é motivo de intensa alegria que não sin‑ to há muitos anos, pois nada se compara à união pela sinceridade e pelos laços do amor fraterno. – É como se de um livro fechado, há muito tempo, fosse tirada a poeira do tempo, que ocultava as suas páginas! – comentou Stevens e continuou falando: – E Ênio tomou conhecimento disso, seu Juvenal, quando lá esteve? – Não poderia medir, se isso fosse possível, toda extensão da sua alegria. Foram muitas surpresas, que aos poucos você ficará sabendo... – Inclusive, dá licença seu Juvenal – interrompeu Gildo, como sem‑ pre apressado, adiantando-se na conversa –, a propriedade é de enor‑ me extensão, toda plantada de café! Mano, seu Juvenal é proprietário de tudo! É o pescador mais rico que já se ouviu falar! E as coincidên‑ cias, seu Juvenal, que o senhor me contou? Aí é que a gente fica sa‑ bendo como recebemos ajuda dos espíritos, para aplainar os nossos tortuosos caminhos! – A que coincidências você se refere, Gildo? – quis saber Stevens bastante curioso. Apesar de Juvenal ter gesticulado dando a entender que não era oportuno falar sobre o assunto naquele momento, Gildo não perce‑ beu e acabou falando sobre a procura do sobrinho de Gilca e também de um filho de Juvenal. Stevens levantou-se rapidamente da cadeira e perguntou a Juvenal: – O senhor não afirmou que para ser feliz não dependia de ter uma família? – formulou a mesma pergunta feita anteriormente, quando viu, tempos atrás, a fotografia do velho amigo, ao lado de uma jovem. – Há sempre uma boa hora para se tratar de certos assuntos. Hoje, sim, é mais conveniente para o meu equilíbrio emocional afirmar que tenho um filho, mas que o vi apenas durante algumas horas depois de nascido. A mãe havia morrido por complicações no parto e como


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eu não poderia lhe dar um nome, pois como cidadão eu estava mor‑ to, tinha que tomar uma séria decisão: Ficar com ele na palhoça, lá na praia onde eu vivia, sem saber como cuidá-lo, o que poderia lhe causar a morte prematura ou entregá-lo a alguém para criá-lo e edu‑ cá-lo numa possível orientação que pudesse atingir a finalidade para a qual ele acabava de chegar ao mundo. Não sinto pesar na minha consciência por não tê-lo procurado durante todo esse tempo, porque a condição imposta pela família que o adotou era que eu jamais o pro‑ curasse. Como fui forçado pelas circunstâncias a aceitar... Acabou repetindo o que havia dito a Gilca, mas acrescentando de‑ talhes. Em seguida, fez uma pequena pausa e voltou a falar: – Mas agora que chega às minhas mãos o que não mais preciso e sequer desperta o meu interesse, devo procurá-lo, para passar para ele a herança. Se não encontrá-lo, darei outro destino à propriedade. – Há alguma pista? – perguntou interessado Stevens. – Apenas o nome da intermediária que se responsabilizou em entre‑ gá-lo ao casal, segundo ela, muito bem posicionado financeiramente. – Daqui mesmo da cidade? – Na época sim. Contudo, depois de tantos anos, não podemos ga‑ rantir que ainda resida aqui.

No dia seguinte, logo cedo, Gilca foi atender a porta e ao ver Juvenal,

encheu-se de alegria: – Enfim, podemos dar início a nossa procura! – Temos um ponto de partida – respondeu o velho pescador – que é o nome da pessoa que entregou a criança ao casal. – Que bom você ter relembrado! – exclamou Gilca entusiasmada. – Seu nome era Zulmira. Disse-me ela, na oportunidade, que esta‑ va deixando de prestar serviço à casa onde ficaria a criança, por causa de um problema de saúde. Mas que, a sua filha, por nome Madalena, ficaria em seu lugar para, inclusive, cuidar da criança.


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– Não deixa de ser uma boa informação como ponto de partida. Mas como descobrir onde trabalhou ou ainda trabalha essa pessoa por nome Madalena, se existem tantas mulheres com esse mes‑ mo nome? – Façamos com vontade firme, e logo o que nos parece impossível, passará a difícil. E o aparentemente difícil ao fácil. Daí para frente... só a vitória do nosso esforço. – E se mandássemos divulgar o nome em um jornal de boa circulação? – Além de se tratar de um periódico, pela minha longa convivên‑ cia com pessoas carentes, posso deduzir que a pessoa que procura‑ mos não deve ter esse hábito, não por falta de interesse, mas sobretu‑ do, por não sobrar dinheiro para comprá-lo, porque o que consegue, provavelmente, mal chega a satisfazer as suas necessidades. Melhor seria que fizéssemos folhetos. Muitos folhetos e distribuíssemos por toda cidade! Três dias depois, Juvenal chegava a sua residência com um pacote pesado contendo os folhetos. Ao vê-lo, Gildo, mesmo sem saber do que se tratava, foi logo perguntando: – Seu Juvenal, o senhor já está gastando o dinheiro da fazenda? Cuidado para não ficar pobre de novo! – Rico é quem cultiva a paz e consegue ter amigos. A prova é que isso aqui, nada me custou. Foi uma doação de Hermes da livraria. Logo que Juvenal abriu o pacote, Gildo dirigiu o olhar na direção e cheio de curiosidade, perguntou: – Quem é Madalena, seu Juvenal? – Oh Gildo, a propósito, eu vou precisar de você para nos ajudar na distribuição desses folhetos. – Não vai ser muito fácil encontrá-la, porque deve haver muitas Madalenas na cidade. Uma coincidência interessante! A empregada lá de casa, chamava-se Madalena!


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– Ela demonstrava ter alguma preferência por um de vocês? – per‑ guntou curioso Juvenal. – Ela tratava a todos com muito carinho. Tanto que a chamávamos de mãe Madá. Mas lembro-me, ainda, que era Stevens o alvo da sua maior atenção. Penso que era por se tratar do mais velho. Quando ele nasceu, ela já se encontrava lá. – Sabe onde ela se encontra? – Infelizmente, depois que ficamos pobres, minha mãe a dispensou por não ter condições de pagar o seu salário, como antes. – Lembra-se se ela tinha algum filho? – Uma filha que se chamava Nilza. Mas eu não a reconheceria, por‑ que quando ela cresceu, meu pai proibiu ela de ir com Madalena lá para casa. Na época, eu era muito pequeno... Só me lembro mesmo disso. – Vai me ajudar? – Já disse! Tudo que o senhor quiser, mesmo sem me perguntar, já tem a minha resposta positiva. Movidos pelo interesse, logo já se encontravam na casa de Gilca, onde um veículo da empresa, disponibilizado por Stevens, já os aguar‑ dava. Em poucos minutos, já se encontravam na periferia da cidade e co‑ meçaram a distribuir os folhetos com os transeuntes e nas poucas casas comerciais. Gildo onde ia passando, gritava a toda voz: – Quem encontrar essa pessoa, receberá um prêmio, tão bom, em dinheiro, que vai acabar sorrindo à toa! Ouvindo isso, Juvenal perguntou-lhe: – Quem vai pagar o prêmio, certamente é você, não é mesmo? Gildo, imediatamente, passou a soltar a voz: – Retiro o que disse! Retiro o que disse! Juvenal rindo a gosto, chamou-o e disse-lhe que garantia, sim, o prêmio e que se tratava de uma boa ideia. Depois de percorrerem as ruas daquela parte da cidade, resolve‑ ram parar. De volta, um homem deu sinal, pedindo que parassem o carro e foi logo falando:


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– Acho que ganhei o prêmio, porque eu conheço uma Madalena, que já foi empregada doméstica. Ela é cliente do meu pequeno comér‑ cio. É uma pessoa muito bondosa. E além disso, honesta, porque, em‑ bora as dificuldades que vive, honra os seus compromisso sem falhar. Por isso, vendo fiado a ela toda vez que me procura. Se for ela a pessoa que procuram não esqueçam do meu prêmio! – Vai ganhar em dobro por causa da sua gentileza! – falou Gildo confiante em Juvenal, que perguntou-lhe: – Você está confiando no dinheiro da fazenda?! – todos riram. E quando o homem estendeu a mão para entregar o papel contendo o endereço, Gildo, antes de Juvenal, segurou-o e falou convicto. – Agora, acabei de relembrar onde mora mãe Madá! Em poucos minutos, já se encontravam em frente à casa simples e novamente Gildo se adiantou. Depois de bater insistentemente na por‑ ta, foi atendido por Nilza, mas como não a reconhecera, Gildo foi logo cuidando do que lhe interessava: – Quero falar com a bondosa Madalena. Diga a ela que é Gildo, filho de Stela e Orlando. Se for a pessoa que procuro, certamente ela se lembrará. Momentos depois, gildo soltou a voz: – Mãe Madalena, que saudade! – gritou tão forte, que acabou as‑ sustando Gilca, que ainda se encontrava sentada no carro, enquanto Juvenal ria à vontade das reações do jovem. – Gildo, meu filho! Já tomou juízo? – perguntou Madalena, cheia de contentamento. – A senhora nem imagina! Eu, agora, sou do bem. Estou com Jesus e não abro mão disso por nada! Mas eu me encontro aqui por dois mo‑ tivos: O primeiro é que estão ali no carro duas pessoas que querem ter uma conversa com a senhora. O segundo motivo – chegou bem junto ao ouvido de Madalena e falou bem baixinho: – É que eu vou lhe aju‑ dar. Não tenho, eu mesmo, o que quero lhe dar, mas tenho quem me dá qualquer coisa que eu pedir. É o Stevens, que agora é diretor geral da empresa. Posso chamar as pessoas?


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Logo que Juvenal e a mãe de Ênio se aproximaram, Madalena falou com o olhar fixo no velho pescador: – Eu conheço o senhor. É o pescador com quem Stevens foi morar. Sentados em banquinhos, que ela chamava de tamboretes, teve iní‑ cio o diálogo, com Juvenal fazendo a seguinte pergunta: – Você trabalhou muitos anos na casa de Gildo... – Sim – interrompeu ela – desde quando a minha mãe que trabalha‑ va lá, ficou doente. – Como era o nome da sua mãe? Ela respondeu e o velho pescador, então, tirou do bolso um pedaço de papel, conferiu e prosseguiu o diálogo: – Você lembra dela ter falado, alguma vez, sobre uma criança, um menino que a mãe havia morrido no parto e o pai não tinha condições de criar? – Eu me lembro disso. Mas, me perdoe! Eu não posso e nem devo tratar desse assunto, porque é um segredo irrevelável. Sentir-me-ia uma traidora se não cumprisse a promessa que fiz à pessoa que me pediu, de quem eu gosto muito! É algo que vai morrer comigo. Olha que do jeito que ando doente, não deve estar longe disso! – Mãe Madá– interveio Gildo – nem fale isso! Em volta desse se‑ gredo, há uma fortuna em herança, esperando pelo herdeiro, que só a senhora pode dizer de quem se trata. Depois de pedir desculpas pela interrupção, Gildo voltou para Juvenal: – O senhor pode continuar. – Madalena, naquela época, essa pessoa poderia pensar assim, devi‑ do às circunstâncias do momento. Mas será que agora ainda é a mesma coisa? Tem gente que muda muito de ideia, crença, conceito... E quando passa por um sofrimento inesperado, então... Se ela soubesse o que Gildo lhe disse há pouco sobre a herança, sendo ela a pessoa que procuramos e se porventura amar o filho adotivo, creio que mudará de ideia sobre o citado segredo. Será que ela não mudou nada, em todo esse tempo?


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Depois de pensar por alguns instantes, Madalena falou demons‑ trando certa aflição: – Vou tentar descobrir se ela ainda mantém a mesma atitude sobre isso, ou se já mudou. Se eu tiver a certeza de que ela não vai ficar abor‑ recida comigo, eu contarei... A conversa foi interrompida por uma adolescente, que chegou à sala e falou demonstrando impaciência: – Eu quero pedir que não deixem a minha avó assim tão avexa‑ da, com tantas perguntas! Ouvi alguém falando aqui que uma pessoa pode receber uma grande herança. Se ela contar o que sabe, receberá alguma ajuda? Falta dinheiro para comprar comida... Remédio, nem se fala! Foi Gildo quem respondeu: – Olha, menininha! Ela vai viver da maneira que nunca imaginou! Não é mesmo dona Gilca? – Garanto que ela vai morar numa casa bonita, sem nada lhe faltar, e com todo conforto. Logo a fisionomia da jovem sofreu repentina mudança, ficando mais agradável e, com um novo brilho nos olhos, chegou bem juntinho de Madalena e falou, já tentando convencê-la: – Minha avó, esse negócio de muita lealdade é coisa do passado! O que vale é o seu bem-estar. Juvenal percebendo o jogo de interesse da adolescente, disse-lhe: – Que ela pode, doravante, viver melhor, é uma verdade. Mas não está errada em ser leal. Por isso, preferimos que ela tenha, antes, uma conversa com quem guarda esse segredo. Gildo levantou-se e antes de se despedir, perguntou: – Quer ir agora conosco mãe Madá? – Deixe para amanhã, porque além de estar indisposta, preciso pensar direito em tudo que ouvi. – Mas vovó, a senhora vai acabar perdendo essa oportunidade, por causa de uma amizade! Onde já se viu isso?!


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– Perde não, bonitinha! – respondeu Gildo, em tom de brincadeira.

do livro de poemas, o local passou a sediar pa‑ lestras de diversos temas, aos cuidados de Hermes. Stevens, toda quin‑ zena, lá se encontrava falando sobre temas extraídos do Evangelho e das obras da codificação da doutrina espírita, o que, dia a dia, aumen‑ tava o número de assistentes. Numa tarde de sábado, com o salão completamente lotado, ele fa‑ lava sobre o perdão, tema daquele dia. Depois de quinze minutos de fala, ele parou repentinamente, com o olhar fixo na porta de entrada, o que acabou chamando a atenção dos assistentes, que não compreen‑ deram o porquê do palestrante ter interrompido momentaneamente a sua oratória, pois eram apenas duas mulheres que entravam no salão. Depois da palestra, era habitual Stevens permanecer no local, por‑ que muitas pessoas procuravam-no para pedir orientação ou simples‑ mente tirar dúvidas do próprio tema exposto. Assim é que, naquele dia, depois de ter atendido a algumas pessoas, imaginando não haver mais ninguém a procurá-lo, levantou-se para sair, mas viu bem em sua frente Geilza sua irmã, que há cinco anos havia se ausentado para estudar em São Paulo. Emocionado, abraçou-a carinhosamente: – Oh querida irmã! Até que enfim resolveu voltar ao seu ni‑ nho antigo! – Voltei de posse do que fui em busca. Embora o esforço, estou bastante satisfeita. Depois de conversarem rapidamente sobre particularidades de ambos, Geilza, propositadamente, sentou-se numa cadeira à parte e Helenice se aproximou, mas percebendo-o, com o olhar interrogativo, perguntou impaciente: – Será que você não está me reconhecendo? – Oh Nice, ao vê-la, pude compreender, o quanto a criatura huma‑ na é mutável.

Desde o lançamento


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Helenice, desapontada com a recepção que não esperava, sem pala‑ vras para o momento, silenciou, mas Stevens prosseguiu falando: – Você não parece a mesma pessoa que venho guardando, até ago‑ ra, nos meus melhores sentimentos! – Decepciono-o? – Não chega a tanto, pois eu compreendo que você tem o direto de viver como deseja e eu de sentir, de acordo com as minhas possibilida‑ des íntimas. Tentando amenizar, ela então respondeu: – Oh Stevens! O meio em que eu vivo é outro mundo em relação a tudo que aqui deixei e, de certo modo, eu teria que acompanhar, já que eu tenho que trabalhar e a minha atividade atual praticamente exige... Helenice havia mudado, não apenas o seu visual, por cuidados com a aparência pessoal, mas, sobretudo, o comportamento. A sua postura assemelhava-se aos que se imaginam num alto pedestal e me‑ nosprezam os demais, que por qualquer razão não tenham alcançado o mesmo nível de instrução. Ela demonstrava, pelo jeito de se expres‑ sar, estar se deixando conduzir pelo orgulho, a ponto de esquecer das pessoas com quem vivera na penúria, inclusive a própria mãe, a quem não visitara nos últimos sete anos. Enquanto ela falava, Stevens observava, através da clarividên‑ cia que vinha aflorando nos últimos tempos, espíritos desencarna‑ dos, que induziam-na à repetição de procedimentos não recomen‑ dáveis, adotados em uma existência anterior na Inglaterra, ao que ela aderia, sem se dar conta do perigoso caminho que começava a percorrer. Na referida encarnação, Helenice, que se chamava Anny, fora uma mulher orgulhosa e vaidosa a ponto de afirmar que sentia nojo de po‑ bre. David, o esposo, que era reto e consciente dos seus deveres morais e sociais, embora tentasse despertá-la por todos os meios que lhe eram possíveis, não lograra êxito. O seu propósito de ajudá-la não arrefeceu,


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nem mesmo após a desencarnação, quando aceitou-a no seu programa de reencarnação, mesmo consciente que não havia da sua parte nenhu‑ ma pendência para com ela, o que se torna uma realidade, agora viven‑ do na personalidade de Stevens. Assim é que acabou encontrando-a vivendo na pobreza extrema. Havendo uma ligação psíquica entre os dois, não seria de estranhar a atração que um sentiu pelo outro no mo‑ mento em que se reencontraram. O diálogo prosseguiu: – Quero pedir desculpas – disse entristecida – por parecer, pela sua ótica, outra pessoa. Lamento, porque, apesar de tudo, guardo ótimas lembranças de você, a ponto de sentir saudade. Entretanto, eu não te‑ ria de forma alguma condições íntimas de viver, doravante, num am‑ biente pobre, a exemplo da Colônia, onde a minha mãe e você mesmo residem. Vim aqui com a finalidade de convencê-lo a deixar para trás tudo isso e procurar outro meio para viver. Você nasceu num ambiente rico, é uma pessoa muito inteligente e por isso não deve se misturar! Pensando assim, pedi ao responsável da empresa onde trabalho para conseguir uma vaga para você, compatível com o seu grau de instru‑ ção. Dessa maneira, em vez de voltar para cá, o que não desejo, você irá comigo, deixando para trás essa vida de pescador, que não tem nenhum valor social. – Nice, agradeço pelo seu convite, mas ser pescador não me de‑ sonra! O que me desonraria seria, depois que deixei a minha família, por causa dos conceitos equivocados que ela adotava, semelhantes aos que você me propõe, eu aceitasse! Além disso, o valor real da criatura humana não se encontra no que tem ou naquilo que aparenta ser, mas sim, nas conquistas morais positivas e no crescimento espiritual. Você sabe disso! Stevens silenciou e ela, por sua vez, falou desapontada, intenciona‑ da a mudar de assunto: – Cheguei ontem, mas ainda não fui ver a minha mãe. Não sinto vontade de ir lá, por causa...


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Stevens para não continuar a ouvir o que lhe desagradava, inter‑ rompeu-a: – Se quiser me esperar um pouco, eu a levarei. De carro é bem mais rápido! – De carro?! Você de carro? – Sim. Mas não é meu. É da empresa, a mesma que pertenceu ao meu pai. – Estou surpreendida! – Você quer ou não ver a sua mãe? Se quiser, depois que eu deixar Geilza em casa e passar rápido lá na empresa, você irá comigo. Logo que Stevens chegou e foi abrindo a porta da sua sala de traba‑ lho, um funcionário se aproximou: – Chefe, eu preciso conversar um pouco com você sobre o meu setor. – Se não for algo urgente, sugiro que deixemos para amanhã – res‑ pondeu Stevens. Logo que o funcionário se retirou do local, Helenice visivelmente interessada, foi logo perguntando: – Você é o diretor? – Não me considero! Mas sou eu, sim, o responsável por tudo aqui. – Quem diria! Inacreditável! Quem lhe vê com essa roupa, pen‑ sa que você é um funcionário qualquer... O responsável pela limpeza, por exemplo. – Aqui não existe funcionário qualquer, porque todos têm o seu valor. Aberta a sala, que era mobiliada com o melhor que existia na época e muito confortável, ela sentou-se numa poltrona bem em frente Ste‑ vens, que ao perceber a postura daquela com quem havia planejado constituir uma família, alarmou-se! Ela vestia uma saia muito curta, moda que começava a surgir na época, mas que ainda não era conhecida naquela cidade, uma blusa com um de‑ cote acentuado que deixava as costas quase completamente descobertas.


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O diálogo prosseguiu: – Mas apesar disso – disse ela –, você é o diretor e ficaria bem me‑ lhor usando paletó, gravata, um relógio de ouro no pulso... Stevens olhou para ela e disse: – Ao se referir a minha roupa, você me deu o direito de falar da sua. Não seria de bom proveito que trocasse essa roupa por uma mais composta, já que sua mãe não está acostumada com isso? Estou certo de que ela vai ficar muito chocada! – Ela vai ter que se acostumar. Ora, sua tia, onde estou hospedada, nada me falou sobre isso! – Você não vai ficar com a sua mãe? – Não! A casa não oferece conforto. Durante o percurso, ela não parou de falar. De repente, os seus conceitos sobre o mundo que havia criado em sua volta caíram por terra, desde o momento que soube da posição de Stevens na empresa. Eufórica, perguntou se havia na empresa assistente social. Ao ouvir a resposta negativa, ela insistiu no assunto: – Não acha importante, já que lá trabalha muita gente? Seria uma qualificação positiva para a sua administração como diretor geral. Se você concordar com isso, eu posso mudar de ideia. – Como? – Fico aqui para trabalhar com você. Stevens percebeu que Helenice, aquela jovem que lhe pareceu tão simples, pura e bondosa, no dia que lhe oferecera água para lavar o rosto, não passara por aquela situação sem merecer.

Juvenal retornou com Gildo à casa de Madalena: – E então, mãe Madalena? – falou apressado – já teve tempo sufi‑ ciente para pensar. Quer ir hoje? – Sim. Mas quero chegar lá sozinha! Gildo, cheio de cuidado, ajudou-a a entrar no carro. Minutos de‑

Três dias depois,


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pois, ela pediu que parasse: – Quero ficar aqui. Daqui a duas horas, estarei aqui mesmo. Madalena desceu do veículo e logo que o motorista deu partida, Gildo falou: – Pare aí, Miguel, por favor! Eu também vou ficar aqui. Juvenal seguiu na direção da empresa, pois tinha um assunto a tra‑ tar com Stevens: – Se você estiver ocupado, deixo para depois – disse ele ao entrar na sala. – Mas o que tenho a dizer, prefiro que seja, somente, entre nós dois. – Pai pelo coração! Se um dia eu dissesse que não teria tempo para o senhor, estaria traindo a mim mesmo. Juvenal começou a falar: – Quando você viu a fotografia que caiu de dentro do Evange‑ lho, lembra? – Sim. – Eu não disse que a mulher que se encontrava do meu lado estava esperando um filho. Eu seria pai, apesar de não poder dar um nome ao meu filho. Mas isso seria feito apenas com o nome dela, como mãe solteira. Só que ela acabou morrendo por complicações no parto, mas a criança nasceu bem e saudável. Mas quando percebi, a situação em que eu havia ficado era preocupante, pois tinha nos braços um recémnascido, sem saber o que fazer para a sua sobrevivência. Queria muito criá-lo, carregá-lo, ampará-lo, educá-lo, como é o dever de todo pai, mas compreendendo que se eu insistisse nesse propósito, ele poderia morrer por falta dos necessários cuidados que exigia um recém-nasci‑ do, eu decidi entregá-lo a uma família, onde a criança pudesse crescer saudável e educada num ambiente familiar. Não foi fácil tirá-la dos meus braços e entregá-la às pessoas, cujas informações prestadas por terceiros não as identificavam. Parou as explicações em tom de justificativa, por causa das obser‑ vações que Stevens havia feito antes e voltou a falar em outro tom.


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– Agora, diante do interesse de Gilca em procurar o sobrinho, como é do seu conhecimento, e descobrindo que a mãe do meu filho, minha saudosa e amada Celeste, era irmã de Gilca, decidimos nos empenhar, juntos, na procura do meu filho que é, ao mesmo tempo, o sobrinho desaparecido de Gilca e primo de Ênio. Stevens, que olhava para o velho pescador, com os olhos esbuga‑ lhados, perguntou: – Há alguma pista? – Saberei, ainda hoje, de quem se trata, embora não possa prever se está ainda encarnado ou não. Eu quis que você soubesse desse meu particular porque, sendo o amor que sinto por você como o de um pai para com o filho, nada a essa altura conseguiria lhe ocultar. – Se o senhor encontrar o seu filho, certamente, isso vai mudar! – Em nenhuma hipótese! – Oh, quem dera fosse eu essa pessoa procurada! Ser filho do velho pescador Juvenal já seria para mim o resumo de todas as venturas, de todas as alegrias e de todas as satisfações. – Só que você teve que nascer na família com quem assumiu um importante compromisso – falou já se levantando para sair. Chegaram ao local indicado por Madalena e lá estava ela e Gildo esperando. Ao entrar no carro, Madalena foi logo falando: – Não tenho boas notícias! A mulher não aceitou, em nenhuma hi‑ pótese, que eu fale sobre o assunto. Ela acha que se o rapaz souber que não é seu filho, ela o perderá de vez e que isso, para ela, seria muito triste, já que o ama de todo o seu coração. Juvenal compreendeu o posicionamento da mulher, contudo, não pôde ocultar o desapontamento porque queria muito encontrar o fi‑ lho, mas Gildo, percebendo, gesticulou e o velho pescador entendeu pela sua fisionomia que ele havia encontrado alguma informação. Dei‑ xaram Madalena em casa e assim que o carro saiu do local, Juvenal, notando que Gildo estava muito inquieto e com as faces bastante cora‑ das, perguntou:


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– Não está se sentindo bem, Gildo? – Não! Eu estou muito abafado. Quando eu preciso muito falar e te‑ nho que esperar, fico assim, sentindo quentura no rosto e não consigo parar as pernas, que balançam o tempo todo. – Isso é ansiedade, Gildo! Acalme-se e espere o momento certo! Não esqueça a ordem da construção: Pedra sobre pedra, até chegar ao desejado. Mas logo que chegaram em casa, ele falou cheio de satisfação: – Seu Juvenal, eu já sei de quase tudo! Imagina com quem ela foi conversar? – Não faço ideia! – Com a minha mãe! – Como sabe disso, Gildo? – Eu a segui de longe, vi-a quando entrou e quando saiu lá da nossa casa! Isso quer dizer que o seu filho está entre mim, Stevens e Gino! Agora está fácil para o senhor saber quem é. Basta comparar a data do nascimento com a idade de cada um de nós. Juvenal silenciou e Gildo ansioso para saber, perguntou: – Sou eu, seu Juvenal? Se for eu o seu filho, eu vou me sentir muito feliz! Por demais venturoso! – Gildo, não esqueça da lição, pedra sobre pedra. Paciência e aten‑ ção. Ainda não podemos provar isso, porque Madalena, testemu‑ nha ocular, não quer ser desleal a dona Stela, que como você ouviu, está irredutível. – Se eu for lá, convencerei a mamãe! Ela vai me confessar isso, já! – falou já saindo. – Cuidado com o que vai fazer, para ela não pensar que foi Mada‑ lena quem falou alguma coisa!

Stevens terminou o dia de trabalho e em vez de retornar ao lar, seguiu

na direção da praia. Diferente das outras vezes, deitou-se na pedra,


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relaxou e em poucos minutos entrava em desdobramento planejado e consciente. Mergulhou em espírito na água e não demorou vislumbrar a luz azul, a qual sabia se tratar de Katy Magdalene. – Venha comigo! – disse ela a sorrir. Depois de percorrerem os locais onde atuavam os seus comanda‑ dos, prestando esclarecimentos importantes ao visitante, Katy Magda‑ lene voltou-se para ele e disse: – Percebo o que deseja saber. Deve, sim, ajudá-la – falou se refe‑ rindo a Helenice. – Embora você não tenha contraído qualquer débi‑ to a ser quitado, em referência à convivência com ela, você mesmo aceitou-a no seu programa reencarnatório e, além disso, há ligação psíquica estabelecida, desde a citada existência, quando convive‑ ram conjugalmente. Silenciou por instantes, tempo suficiente para observar as reações do amigo, e voltou a falar: – Alguns espíritos, com quem ela contraiu sérios compromissos, terão que renascer, por meio dela, como mãe. Você que retém boas condições para ajudá-los, poderia fazer isso pelo amor paternal. Se isso ocorresse agora, seria para você um sacrifício, por causa da postura adotada por ela, o que acabou dando oportunidade, e eles, que se en‑ contram odientos, exigem reparo dos malefícios por ela causados. Pre‑ cisam ser urgentemente doutrinados, pois deverão renascer, para que tenham oportunidade de transformar o ódio do passado em amor, nas feições de maternal e filial, a caminho da paz desejada. Embora haja pouco tempo, você pode, desde já, começar a educar os seus futuros filhos e ajudá-la, incentivando-a para tratar da educação mediúnica e servir a tantos quantos necessitem. Afinal, o amor cobre a multidão de pecados, conforme afirmação de Jesus. Stevens, enquanto caminhava lentamente, de volta à casa, repas‑ sava o que ouvira de Katy Magdalene sobre Helenice. Antes, mesmo vivendo na pobreza extrema, malvestida e malcuidada, a beleza do seu rosto e o porte elegante já lhe chamavam muito a atenção. Embora,


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naquele momento, valorizasse muito mais a beleza interior, do que os atrativos do corpo físico, não conseguiria ocultar de si mesmo a atração que a jovem lhe exercia. Convencido disso, pensou : – Sim! Ainda bem que, além disso, eu tenho por ela bons sentimen‑ tos, boas intenções e muita afeição. Isso, certamente, me fortalecerá para apoiá-la, agora, junto à tarefa que lhe reserva como mãe, cons‑ ciente de que participarei com muito afinco, na qualidade de pai.


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Capítulo 18

Revelações emotivas Só a luz do amor ilumina a vida, despertando-a para a verdade, a paz e a felicidade desejada. Dizzi Akibah

na porta. Ao abri-la, encheu-se de alegria: – Oh Gildo, meu filho! Estava me lembrando de você! – Mãe, eu sou mesmo seu filho ou a senhora me adotou? – Que conversa é essa, Gildo? – Eu sei que um de nós foi adotado. Por que a senhora mantém isso em segredo? Fique certa de que todos nós, independentemente de adotados ou não, a amamos muito! – Gildo, permita-me não tocar nesse assunto! – Como não tocar e ficar sem saber se sou ou não seu filho? – Fique tranquilo, porque você é, sim, meu filho. – Oh, como eu gostaria, apesar do amor que sinto por meu pai, que o meu verdadeiro pai fosse o velho pescador. – Juvenal?! Que conversa é essa, Gildo? – Ele é o pai de quem a senhora adotou. Toda herança recebida por seu Juvenal será transferida, imediatamente, para o seu filho adotivo, que também é primo de Ênio, já que é sobrinho de dona Gilca. O preço

Stela ouviu toques


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do seu segredo, mãe, vai custar muito caro, tanto para o seu filho ado‑ tivo, como também para mãe Madalena, que perderá uma bonita casa bem no centro da cidade e o seu sustento sem nada lhe faltar até o fim da sua existência! Ela foi muito leal, pois apesar da nossa insistência preferiu perder tudo que lhe foi prometido por dona Gilca, do que trair a sua confiança. Ela merece muito, mãe. Nem vou falar da extrema po‑ breza em que ela se encontra! – Por favor, não fale sobre isso a mais ninguém. Eu preciso conver‑ sar com Juvenal e com Gilca. E se for possível, também com Madalena. – Deixe comigo, mãe! Eu cuido disso e aviso a senhora. No dia seguinte, o encontro foi efetuado na casa de Gilca. Diferen‑ temente de Juvenal, Madalena e Gilca, que vibravam de alegria, Stela, abatida e muito triste, fez um pedido cheio de sentimentos: – Peço, encarecidamente, que não o deixem se afastar de mim, que não perca o vínculo estabelecido, porque agora, principalmente, eu não saberia viver sem essa afetividade. Juvenal se aproximou de Stela e falou com doçura: – Antes de qualquer coisa, eu quero muito agradecê-la por ter as‑ sumido deveres que me pertenciam, mas que foram transferidos por causa das circunstâncias momentâneas. Não apenas a senhora, mas também a Orlando e a bondosa Madalena que o tratou como se mãe, também, fosse, de acordo com o que ouvi de Gildo. É verdade que o impacto que ele vai experimentar é grande. Se for realmente quem eu estou pensando, se trata de uma pessoa comprovadamente bon‑ dosa, amável, consciente da sua responsabilidade e compromissado de livre e espontânea vontade com o divino mestre e para com as leis divinas e imutáveis, qualidades que não o permitiria, jamais, agir de modo diferente, como é a sua preocupação.

Depois de muito pensar sobre o caso Helenice, Stevens foi procurá­‑la, mas

não a encontrou na casa de Helena, a mãe, que queixosa, falou entristecida:


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– Acho que perdi aquela filha que era cheia de bondade e simplici‑ dade. Ela não é a mesma pessoa. – É verdade que ela mudou em alguma coisa. No entanto, não creio que tenha deixado de ser bondosa, como a senhora pensa. Eu vou me encarregar de ajudá-la a reconquistar o equilíbrio emocional e a razão, que vêm sendo prejudicados por espíritos maldosos e odientos. Acal‑ me o seu coração! Seguiu em direção à empresa e ao chegar, coincidentemente, Hele‑ nice o esperava na recepção: – Vim te ver – disse levantando-se da cadeira em que estava sentada. – Venha comigo, porque eu desejo tratar, com você, de al‑ guns assuntos. Já na sala, ele perguntou: – Quer mesmo trabalhar conosco? – Oh! Nada melhor para mim, no momento. Que dia devo começar? – Vai depender de você, porque antes disso deverá passar por um tratamento desobsessivo... Falou do que havia notado, o que entendia como obsessão e concluiu: – Só depois disso é que você assumirá o seu cargo. – Mas eu não desejo, de forma alguma, retornar à casa espírita! – Respeito seu livre-arbítrio, no entanto, como você poderia atuar na qualidade de assistente social, lidando com as pessoas e sendo in‑ fluenciada, ao mesmo tempo, por espíritos vingativos? – Essa é a condição única exigida para que eu exerça a minha pro‑ fissão aqui? – Não se trata de exigência, mas sim de responsabilidade que eu tenho perante os funcionários da empresa, que além de tudo, conside‑ ro-os meus irmãos de jornada. – Não sei o que está ocorrendo comigo, porque basta estar perto de você para que os meus pensamentos mudem, afastando de mim o novo jeito que adotei para a minha maneira de viver. Até há pouco,


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voltar à casa espírita seria para mim um retorno a tudo que eu quis dei‑ xar para trás. No entanto, neste momento, já me agrada a ideia! Acho que o seu magnetismo me envolve de tal maneira que acabo cedendo, sem argumento. Só peço que você vá comigo. A conversa foi interrompida por Miguel, que chegou já falando: – Dona Gilca está pedindo a sua presença, na casa dela, agora! Ao chegar, Stevens estranhou ao ver na sala Juvenal, Stela, Mada‑ lena e Gilca. – É uma intimação ou uma surpresa? – perguntou sorrindo. Stela levantou-se e beijou, carinhosamente, o rosto de Stevens. Ele então, colocou o rosto dela, entre as mãos e disse a sorrir: – Te amo de todo o meu íntimo, mãe! – Espero que isso nunca tenha um fim – respondeu ela. Depois de ter cumprimentado Juvenal e Gilca, ele se aproximou de Madalena e disse alegremente: – Mãe Madá! Eu tenho uma surpresa que vai deixá-la muito alegre! – Não posso imaginar do que se trata. Mas vindo de você, só pode ser o melhor! Mas por falar em surpresa, eu também tenho uma. Mas só que não sei se vai ou não, agradar ao seu coração. – Ora Madá, de você, que pode entristecer? Desde que passei a me entender como gente, que percebo bondade em seu semblante e amor no seu coração. E essas mãos que cuidaram tanto de mim? Lembro quando me falava: “Menino eu vou te dar umas palmadas!” Mas logo me punha no colo e me enchia de carinho. Quando ele terminou de falar, Madalena estava em prantos. – Oh mãe Madá, pare logo de chorar e fale-me da surpresa! Depois de enxugar as lágrimas, ela começou a narrar: – Lembro-me do dia em que você chegou, porque o ambiente da casa mudou de repente de aspecto. Dona Stela não parava de sorrir, de tanta felicidade que demonstrava estar sentindo. Seu Orlando, emocio‑ nado, tentava todo sem jeito, segurá-lo e falava orgulhoso: – Meu herdeiro, você será como o povo fala: Tal pai, tal filho! Era


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como se um anjinho tivesse chegado para iluminar as fisionomias e os co‑ rações dos seus pais, que imaginavam ficar a sós, sem um filho. Lembro-me quando a minha mãe chegou em nossa casa, com você todo enrolad o com um paninho, tão simples e disse olhando para o seu rostinho: – O seu destino não será a pobreza, onde acabou de nascer, menino! Será como disse o seu pai, ao colocá-lo em meus braços: “– Seu destino, meu filho, embora longe de mim, será brilhante!” Stevens, que ainda estava de pé no meio da sala, acabou se aproxi‑ mando de uma poltrona e perguntou empalidecido: – Madá, você está brincando comigo, ou a sua mente... – A minha mente ainda está bem. E o que eu estou falando é a verda‑ de do que vi e nunca esqueci! Verdade necessária para este momento! Ele dirigiu o olhar na direção de Stela e ela, então, levantou-se, pôs as mãos sobre a cabeça do filho adotivo e começou a falar: – Sim, filho, ela fala a verdade. Verdade que relutei revelar, receosa de perder o seu amor, a sua atenção e as suas palavras iluminadas que acabaram mudando os rumos da minha vida, quando eu vivia no pre‑ cipício da ignorância. – Mãe, quem é, então, a minha mãe biológica? Gilca se aproximou e falou cheia de ternura: – Ela era minha irmã e se chamava Celeste. Você é o sobrinho que eu desejava tanto encontrar. Abriu os braços e falou, demonstrando muita satisfação: – Venha para o seio da minha família, especialmente, para o meu coração. O jovem pescador não continha as lágrimas. Pegou um lenço, enxu‑ gou-as e perguntou, olhando em volta: – Se tive uma mãe, naturalmente, também um pai. A senhora sabe me dizer quem foi ele? Se lembrasse do que ouvira há três dias de Juvenal sobre isso, certa‑ mente, não precisaria formular a pergunta. Mas o seu estado emotivo impedia qualquer raciocínio para situar-se.


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– Stevens, essa é outra história, que só Juvenal sabe falar sobre ela. Juvenal levantou-se e vendo-o cabisbaixo, falou cheio de ternura: – Stevens, olhe para mim! Ele olhou na direção de Juvenal e perguntou: – O senhor sabe? – A sua mãe é aquela mesma que você viu na fotografia e, da qual, eu falei na última vez que conversamos lá na empresa. Deduza Stevens! – Então o senhor... Nem completou a frase. Levantou-se e abraçando-o, beijou o rosto já enrugado do velho pescador e falou cheio de contentamento: – Grato ó Deus, pelo pai que me deste. Porque, para ser melhor do que esse, teria que ser santo! Terminou o abraço, apoiou as mãos nos ombros de Juvenal e falou com firmeza: – Sinto-me honrado em ser seu filho! Gilca levantou-se já falando: – Ora, ora gente! Paremos com as lágrimas, já que Stevens não per‑ deu nada e ninguém, aqui, teve qualquer prejuízo afetivo. Esse é um momento para ser comemorado com muita alegria! Saiu da sala e retornou, imediatamente, com uma garrafa de vinho na mão: – Esse, aqui, é puríssimo! É um dos mais apreciados em Paris. Odo‑ rico guardava-o como uma relíquia, afirmando que só o abriria para comemorar um acontecimento auspicioso. Esse acontecimento se dá aqui e agora! As taças prontas para trincarem no toque simbólico de união e ale‑ gria. Mas Stevens, emocionalmente refeito, falou antes de sorver o con‑ teúdo da taça: – Embora não mais me afine com qualquer bebida que contenha álcool, sorvo esse vinho como brinde ao amor e à gratidão àquela que, bondosamente, me recebeu como filho – falou olhando em direção a Stela –, ao meu pai Orlando, pela satisfação com que me recebeu; à mi‑


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nha mãe Celeste que pelo meu nascimento, perdeu a existência física, à Madá, cuja bondade conquistou logo cedo o meu coração e ao meu amado pai Juvenal, à minha tia Gilca e ao meu primo Ênio... – Estou fora do seu brinde, meu querido mano? – era Gildo que havia chegado momentos antes e ficara do lado da casa ouvindo. Juvenal tomou a palavra e falou: – Você, sim, Gildo! E com muita justiça, pois não fosse a sua pers‑ picácia e dedicação, certamente não estaríamos aqui neste momento, vivendo essa doce emoção. – Obrigado, seu Juvenal. Mas nem precisa perguntar. Já que o seu filho é o querido mano Stevens e como eu sou irmão dele, deixe um espaço no seu coração, nem que seja minúsculo, para mim! Gilca se aproximou e estendeu a mão, oferecendo uma taça a Gildo: – Vamos terminar o nosso brinde à paz, à alegria, à união e à vida como um dom de Deus! Em seguida, Madalena se aproximou de Stevens e disse: – Não vai embora antes de me dizer qual é a surpresa! – É uma casa que fica junto à nossa, lá na Colônia. Está desocupada, por‑ que foi construída no local somente para o terreno não ficar vazio. Como não tem dono, será sua, mãe Madá! Doravante, eu vou cuidar de você. – Oh! – interveio Gilca – eu, também, prometi uma morada para ela e a casa vizinha, que é grande e muito bonita, está à venda. Amanhã mesmo cuidarei disso e Madalena poderá residir com os seus fami‑ liares, sem nada faltar, pois me comprometo a mantê-la enquanto eu estiver viva. E se eu for antes do que penso, estou certa de que você, Stevens, e Ênio continuarão cuidando dela. Stela, apesar de sentir sinceridade em Stevens, quando afirmou que nada mudaria, encontrava-se abatida. Percebendo, ele abraçou­ ‑a carinhosamente: – Oh mãe! Ficou triste? Ora, a mãe embora tenha o dever de cuidar do filho, o faz pelo impulso do amor, sem precisar pensar em qualquer tipo de obrigação. O filho, reconhecido, ama a mãe, a partir do mo‑


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mento que estabelece a união, mas só se dá conta disso quando já tem entendimento para perceber os cuidados e carinhos recebidos. A mãe que adota uma criança o faz, simplesmente, pela espontaneidade do amor. Não foi obrigada a isso. Se o filho, realmente, reconhece a mãe pela convivência e o amor com que é tratado, como não amar aquela que o recebeu nos braços, aconchegou-o junto ao coração, acalentou-o para dormir, segurou a mãozinha para ensiná-lo a caminhar? Como não amar aquela que continua, ao longo do tempo, externando o sen‑ timento de alegria ao ver aquele que recebeu como filho? A mãe que reconheço e identifico é dona Stela, que vive aqui no meu coração. Ela passou a sorrir, desfazendo o temor de perder a afeição e o amor de Stevens. Gilca falou bem animada: – Eu desejo fazer um convite todo especial: Que Juvenal e Stevens venham residir aqui em casa. Um olhou para o outro e Juvenal respondeu: – Gilca, eu me acostumei com o ambiente e as pessoas com quem convivo. Peço que não repare, mas talvez eu não me adaptasse longe da minha gente lá da Colônia. E você Stevens? – Eu agradeço muito à minha tia Gilca, mas estou certo de que eu, também, não conseguiria me afastar de lá. Mesmo porque, tenho que prestar assistência a minha filha pelo coração, Xandinha, principal‑ mente agora, que está na fase da adolescência. Mas virei aqui todos os dias dar o meu abraço. Juvenal pôs a mão sobre o ombro de Stevens, já falando: – Você precisa arranjar um tempinho para ir conhecer a sua herança. – Herança?! – Sim. A história é fantástica: Era uma vez, um jovem pescador que dormia em cama de tábuas e se tornou muito rico, da noite para o dia... – Eu, rico? Nem quero pensar nisso! Eu acho que a verdadeira ri‑ queza que o ser humano consegue é a que o senhor me deu pela sua bondade, sem ao menos me conhecer direito. Eu já sou rico, sim, por‑


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que herdei a sua herança moral, e estou, ainda, tentando merecer a conquista da sua bondade e um pouco da sua sabedoria. Para que que‑ ro dinheiro além do suficiente para satisfazer as necessidades? Mais do que isso, poderia atrapalhar. – Que faremos, então, com aquela imensa e rica propriedade? Quis abrir mão da minha parte em favor de Gilca; ela, por sua vez, declinou. E desejosa de se livrar de tudo, acabou passando para o meu nome. Não desejo a essa altura me preocupar com dinheiro, vendas, paga‑ mentos... Você, no entanto, é ainda jovem e, certamente, vai se casar e ter filhos... Bem, se você não quiser, realmente, o único meio é vendê­ ‑la e usar o dinheiro em obras assistenciais. Por enquanto, tenho uma pessoa de confiança tomando conta de tudo, mas vou propor a Gildo a administração geral da propriedade. Depois veremos o melhor a fazer. Stevens pensou, pensou e respondeu: – Bem, diante disso, acho que o senhor tem razão. Além de consti‑ tuir futuramente uma família, eu já tenho Xandinha como filha! Vou conversar com o advogado lá da empresa para ver se há um meio de colocá-la como herdeira, com o mesmo direito que terão os que reen‑ carnarem em meu futuro lar. Preservando ou vendendo-a, de qualquer forma ela nos pertence. Quer queiramos ou não, os filhos precisam de assistência. São muitos que desejam ir mais além nos estudos, como eu mesmo. Se o meu pai não dispusesse de recurso, eu não teria feito o que tanto desejava. Temos que admitir que isso não veio às nossas mãos, por acaso. Irei, sim, conhecer, quando o senhor for, irei junto – decidiu Stevens.

em casa, Stela foi estar com Orlando, que se en‑ contrava sentado num banco do jardim, entre as flores, hábito que adquirira desde que tratou de mudar o seu modo de viver. Ao vê-la, ele comentou: – Demorou a retornar!

Logo que chegou


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– Todo esse tempo foi de fortes emoções para mim. Ele olhou para a esposa e quis saber se ela havia chorado. Ela come‑ çou a narrar e Orlando, bastante surpreendido, interrompeu-a: – Por que você fez essa revelação, justamente agora quando me sinto em condições íntimas para aceitá-lo, realmente, como filho? – Não havia condições para esconder a verdade, pois as pessoas mais interessadas no assunto já haviam descoberto tudo! – De qualquer forma, para mim, nada vai mudar, porque a essa al‑ tura já não me importo o que possa ocorrer. Se ele mudar o jeito de me tratar, por saber que não sou seu verdadeiro pai, eu ainda assim conti‑ nuarei admirando-o e lhe querendo bem. Agora, o meu maior interes‑ se é não continuar dependendo dele e de Gildo, como vem ocorrendo. Ainda me restam forças físicas e, então, meu dever é produzir para o nosso sustento. Vou, imediatamente, procurar uma ocupação qual‑ quer. Apesar disso, eu estou pensando em fazer um pedido a Stevens. Soube que há uma casa, dentre as que foram construídas por eles, lá na Colônia, que está desocupada... – Para que você quer uma casa ali, se não esteve lá sequer para conhecer? – Pra gente morar. – E vai fazer o que com essa? – Pensei antes em vendê-la, para com o dinheiro montar uma casa comercial. Mas para amenizar a minha consciência, vou vendê-la e o dinheiro será todo entregue a Juliano. Essa casa foi comprada com dinheiro que pertencia a ele, o qual eu me apode‑ rei desonestamente. Pasma com a atitude do esposo, Stela se aproximou e abraçou-o cheia de emoção. E, em seguida, deu o seu parecer: – Achei ótima a ideia, no entanto, se fosse o caso de precisarmos dos nossos filhos, poderíamos ficar tranquilos, porque a situação fi‑ nanceira, agora, é outra! – Como, se Gildo continua pescando, o que não dá sequer para ele


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viver folgado? Stevens, embora se encontre numa situação um pouco melhor, é empregado. Se perder o emprego, o caminho será o mesmo de antes: O mar para pescar. – Você não imagina quem é o pai de Stevens! – Alguém conhecido? – O pescador Juvenal. – Oh, coitado! Esse, sequer, tem onde cair morto, como diz o povo! – Engana-se Orlando! O pescador é, agora, um dos homens mais ricos de toda essa região... Depois de falar sobre a herança recebida por Juvenal, concluiu: – Stevens é o seu único herdeiro e o pescador quer passar já, ago‑ ra, tudo para o nome do filho e Gildo vai ser o administrador geral da propriedade. – Que história é essa, Stela? Deve ser por isso que o povo diz que Deus escreve certo em linhas, aparentemente, tortas. – Felizmente, você já pensa assim. – Foi preciso que eu perdesse tudo, para poder compreender o sen‑ tido real da vida. – Agora é que eu compreendo bem o que Stevens me falou sobre a lei de causa e efeito. Analisando, podemos perceber que essa lei fun‑ ciona infalivelmente! Madalena, que passou a maior parte da atual existência na condição de empregada da nossa casa, e depois que de lá saiu passou a viver com muita dificuldade, mas que, nunca reclamou ou demonstrou insatisfação, sempre mantendo a fé em Deus e com isso se consolando, a ponto de saber sorrir até mesmo no sofrimento, tem agora o efeito das boas causas que gerou... – A que você se refere, Stela? – Madalena pode ter agora o que sequer sonhou. Ela falou do amparo que Gilca proporcionaria, dando-lhe uma boa casa para morar, sustento... E sob o olhar espantadíssimo de Orlando, ela prosseguiu falando: – No entanto, nós que vivemos tendo tudo que desejávamos, como


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conforto, viagens, diversão, dinheiro, sequer queríamos saber dos que nada tinham e jamais nos interessamos de, ao menos, ir conhecer o lo‑ cal onde Stevens residia, porque era lugar de pobres. Agora, entretan‑ to, vamos residir numa casa bem no meio deles. Serão eles os nossos vizinhos, os nossos amigos... Lá será o nosso novo meio social. É a Jus‑ tiça Divina, Orlando! Dela ninguém consegue se esconder. Refiro-me a isso, não como lamento, mas, sim, com gratidão a Jesus, pelas suas lições luminosas que sempre nos conduzem, não simplesmente ao que a nossa tendência ou sentimentos deseducados pedem, mas sim ao que devemos fazer para o crescimento espiritual, que todo espírito experi‑ menta para ascender, cada vez mais, para o alto.


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Capítulo 19

Rumo ao infinito Só a força do amor nos conduz ao próprio infinito. Dizzi Akibah

assoviando, o que gostava de fazer quando se sentia alegre, hábito que conservava desde criança, mas parou assim que viu, pelo para-brisa do carro, uma pequena aglomeração de pes‑ soas. Parou o veículo e perguntou a alguém de que se tratava, ao que o desconhecido respondeu-lhe: – É um louco! Ele desceu do veículo, se posicionou diante daquelas pessoas e perguntou com toda energia: – Toda pessoa considerada louca precisa de cuidados ou, no mí‑ nimo, de compaixão e respeito. Em vez disso, vocês atiram pedras? Cuidado! Vocês poderão ser alvo dessas mesmas pedras, já que a jus‑ tiça divina é infalível! Não seria melhor que procurassem algo para fazer, que lhes desse um pouco de dignidade? – falou já se aproxi‑ mando do homem, que se armou com uma pedra, mas antes que ele a atirasse, Stevens ouviu a voz de Katy Magdalene, informando-o que se tratava de Virgílio, o mesmo que havia limpado os ferimentos

Stevens saiu da empresa


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de Juvenal quando fora agredido na praia. O jovem pescador, então, soltou a voz e falou: – Pare Virgílio! Ao ouvir o seu nome, já que todos o chamavam de maluquinho, Virgílio jogou a pedra fora e sentou-se, no chão, chorando. Notando pela vidência vários espíritos desequilibrados usando a mediunidade, Stevens fez uma sentida prece, deu-lhe as mãos e levantou-o: – Venha comigo, meu irmão. Eu vou ajudá-lo em tudo o que você está necessitando. Não obstante o odor fétido que a roupa imunda já exalava, Stevens acomodou-o no carro e em minutos chegava à Colônia. Ao parar o veí‑ culo bem em frente à porta, viu Gildo arrumando as malas para viajar. Ia assumir a administração geral da propriedade de Juvenal. Mas Ste‑ vens foi logo perguntando: – Dá para adiar a sua viagem e trabalhar como enfermeiro, por uns dias? A resposta foi outra pergunta: – Existe uma obra mais valiosa do que servir em nome do amor? – Então, venha me ajudar a acomodar o seu paciente na cama. Ao sentir o cheiro desagradável exalado por Virgílio, Gildo falou a toda voz: – Antes de ir para a cama, vai ter que tomar um banho de verda‑ deira faxina! Só depois que, ele mesmo, lavou o homem e deu-lhe comida, foi que o acomodou na cama. Ocupado, sequer percebeu que Stevens ha‑ via saído para o segundo turno do trabalho. Juvenal, também, havia saído desde cedo para as suas costumeiras visitas aos moradores do lugar. Ao retornar e ver o homem deitado na cama de Gildo, perguntou de quem se tratava, mas Gildo não sou‑ be responder: – Ainda nem sei quem é. Só sei que, agora, tenho que ser enfermei‑ ro dele por uns dias e a viagem vai ficar para depois.


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Nisso, Virgílio acordou e olhando para Juvenal, perguntou: – O senhor não é o pescador que foi expulso da praia? – Sim, sou eu. E você, quem é? – O senhor não deve estar lembrado de alguém que pegou uma toalha e limpou o seu rosto, que sangrava, depois da agressão! – Virgílio! Oh, meu irmão, o seu gesto nunca foi esquecido por mim. Você ficará conosco até quando estiver em condições de trabalhar. – Ninguém me daria qualquer tipo de ocupação. Todos pensam que sou louco, mas eu mesmo sei que não o sou. – Você precisa, urgentemente, cuidar da sua mediunidade. Para o que contará com todo o nosso apoio. Logo depois, se for da sua von‑ tade, levá-lo-emos para uma propriedade, onde você será muito útil, terá oportunidade de trabalhar, viver com dignidade e cuidar dos seus deveres junto à família. – Família?! Foram os da minha família que me atiraram na rua, porque eu não me encontrava em condições de trabalhar! – Guarda mágoa? – Seria difícil não sentir, depois de tanta ingratidão. – Virgílio, a mágoa contém baixa vibração energética e além de de‑ sestabilizar o equilíbrio do organismo, dando ensejo a alguns estados doentios, também pode dar abertura para a aproximação de espíritos que estejam na mesma onda de vibração. E, além disso, Jesus nos in‑ centivou a perdoar sempre, e amar até mesmo os inimigos. Em vez de mágoa, sinta-se alegre e esperançoso em relação a sua vida que, daqui para frente, a depender de você mesmo, poderá mudar muito para me‑ lhor. O trabalho dignifica a criatura humana e, no seu caso, será muito útil para esquecer as ofensas dos seus familiares que, certamente, mu‑ darão de atitude em relação a você logo que souberem que pelo seu esforço poderão ser ajudados nas necessidades cotidianas. Dentre essa e outras explicações, Juvenal percebeu que a noite já chegava e Gildo, que havia saído para ir à farmácia comprar um medi‑ camento para um ferimento na perna de Virgílio, proveniente de uma


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pedrada, ainda não havia voltado com o remédio. Momentos depois, Stevens, que acabava de chegar da empresa, foi direto ao quarto onde se encontrava Virgílio. Não vendo Gildo, perguntou a Juvenal: – E o nosso enfermeiro? Abandonou o paciente? – Saiu desde as três horas para ir à farmácia comprar um remédio para Virgílio. – Quatro horas para ir à farmácia?! Se demorar mais um pouco, vou ter que procurá-lo! Momentos depois Gildo chegou cantarolando alegremente: – Olá, cheguei são e salvo! – Deve ter gostado muito do que fez, não é mesmo, Gildo? – Oh, muito! Tanto que o meu coração está aos pulos. – E o medicamento que foi comprar? – Oh! Acho que esqueci num banco lá da praça! – O que fazia você, todo esse tempo, sentado num banco? – Mano eu encontrei... Não! Nós, eu e Cecília, nos reencontramos... – Depois você conta tudo, se é essa a sua vontade. Mas agora vamos buscar o remédio, porque Virgílio está sentindo muita dor.

Stevens, que demonstrava estar muito alegre, conversava descontraído na sua sala de trabalho com a irmã Geilza. Alguém deu dois toques na porta e foi logo entrando. Stevens, ao per‑ ceber que se tratava de Ênio, levantou-se rapidamente e abraçou demo‑ radamente o primo e amigo que chegava da longa e demorada viagem. – Alguma novidade boa por aqui? – Você vai ficar boquiaberto quando eu lhe narrar. Ah! Desculpe a minha falta de atenção. Essa é minha irmã Geilza. Ênio, depois de fixar o olhar na direção dela, segurou delicadamen‑ te a sua mão e levou-a aos lábios, falando: – Não imaginei você ter uma irmã tão linda assim – falou em tom de galanteio.

Naquela mesma tarde,


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– E eu não imaginava que o patrão de Stevens era assim tão jovem e belo – respondeu, por sua vez, Geilza. Stevens, então, gracejou: – Cuidado com essa reciprocidade de elogios! Vocês só estão se conhecendo! Não é assim que recomendam os mais velhos? – Os mais velhos, sim! Mas os menos velhos, como nós, já não pen‑ sam assim – falou Ênio sorrindo. A seguir, Ênio convidou Geilza para conhecer as modificações que a empresa havia sofrido, desde que por ele fora adquirida. Logo que eles deixaram a sala, Stevens ficou tentando compreender a repentina identificação de Ênio com a irmã e vice-versa. Era como se já se conhe‑ cessem e estivessem, apenas, num reencontro. Não se tratava apenas de uma suposição, mas sim um reencontro, depois de mais de dois séculos, quando viveram sob os laços matrimoniais, na Inglaterra. Na época, ela chamava-se Alyssa e ele Adrian. Meia hora depois eles re‑ tornaram à sala e Ênio, cheio de alegria, falou decidido: – Stevens peço que admita, imediatamente, Geilza, já que, gradua­ da em administração de empresa, a sua colaboração será de grande importância para nós. Stevens pensou, mas não falou: – Será que a minha atual existência tem que ser toda de surpresas? Sejam por afinidade, ajuste ou reajuste, as uniões desse gênero, quase sempre, são deliberadas antes da reencarnação pelos próprios reencarnantes. No presente caso, havia uma programação já deline‑ ada de reencarnações de espíritos ligados a cada um do grupo que, consciente e inconscientemente, traçou, na prática, a presente história. Era preciso que nada ficasse para trás, para que Katy Magdalene con­ cluísse as tarefas assumidas na espiritualidade, pois outras atividades a aguardavam na longa trajetória rumo ao infinito. Depois de cuidarem de Virgílio, Gildo, bastante eufórico, convi‑ dou Stevens para sair um pouco. Juvenal, como sempre de bom hu‑ mor, brincou:


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– Vão aos segredinhos? Sentado numa pedra numa ribanceira, Gildo passou a narrar, com bastante emoção: – Mano, depois de comprar o medicamento, eu ia saindo da far‑ mácia desatento e acabei me batendo com uma pessoa. Pedi descul‑ pa e fui saindo, de certo modo envergonhado por ter faltado com a educação, quando ouvi falar meu nome com bastante ênfase. Dirigi o olhar na direção e ao constatar de quem se tratava, falei com a mes‑ ma entonação: – Cecília, há quanto tempo! – Parabéns pela admirável mudança de comportamento – dis‑ se sorridente. – Como você sabe que eu mudei? – Não o esqueci, Gildo. E venho acompanhando, por informações, os seus passos. Além da sua participação na obra caritativa do pesca‑ dor Juvenal e de Stevens, soube agora que você vai administrar uma grande fazenda de plantio de café. É verdade? – Sim, Cecília, mas isso não enche os meus olhos de cobiça. Sou, hoje, um homem relativamente feliz, alegre e satisfeito com a vida, porque venho enriquecendo o meu íntimo de bons sentimentos e o meu intelecto de conhecimentos que conduzem à paz. – Onde você encontrou esse tesouro? – No Evangelho, por meio das lições luminosas de Jesus e na dou‑ trina espírita. – Você, espírita?! – Por que a admiração? – perguntei. – Eu sempre tive vontade de conversar com alguém sobre esse as‑ sunto, que me chama muito a atenção. Mas como você sabe... Meus pais tradicionalmente católicos, não veem isso com bons olhos. – Ora, Cecília! Você, além de ser de maioridade, tem o seu livre-ar‑ bítrio. Se quiser, poderá ir comigo, no próximo dia que eu for à casa espírita, que por sinal fica na rua em que você mora. Vai?


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– Com você, do jeito que agora se encontra, irei a qualquer lugar! Sei que estarei muito bem acompanhada. Emocionado, respondi: – Fique certa de que, para totalizar a minha satisfação com a vida, faltava me reconciliar com você, que nunca saiu da minha lembrança. Agora abro o coração. E se você quiser entrar, será muito bem-vinda. Ela, com as faces enrubescidas, mas com o olhar sereno, respondeu, pondo a mão no meu peito, à altura do coração: – Vou ver agora se essa porta imaginária está realmente aberta. – Achei muito engraçado, mano, o jeito e o humor com que ela se expressou. Aproveitei o momento, segurei a sua mão e nos diri‑ gimos àquele banco, onde, felizmente, ainda encontramos o remédio. Pergunto, mano: dava para me lembrar de remédio num momento de tanta emoção? – Acho até que você não está errado. Mas devemos ter cuidado quando estamos bem para não nos esquecermos de quem está passan‑ do por sofrimento. – Obrigado pela boa lição. Mas vou terminar a minha narração. Aí, então, só levantei do banco quando senti que havia restabelecido a reconciliação. – Muito bem, Gildo! Agora, então, que você vai ganhar muito bem, como administrador da fazenda de café, é só marcar o casamento. – Que vou me casar, não tenha dúvida. Mas ganhar dinheiro por estar trabalhando numa propriedade de seu Juvenal e consequente‑ mente sua, por direito de herança, nunca! – Gildo, não se trabalha de graça, principalmente para quem não precisa! Quando se trata de superar as necessidades de pessoas impe‑ didas de trabalhar, por alguma razão, sim. Mas você vai ganhar muito bem, e tudo já foi combinado para brevemente ser nosso sócio. – Mano, eu não quero ser rico! Não viu no que deu a riqueza do pai? – O problema está em saber aplicar o dinheiro e nunca mudar o comportamento por conta disso!


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– Está bem, mano, faça o que melhor lhe aprouver. Mas o que gostaria de saber é se você vai ficar sozinho... Solteirão! Olha que já se encontra além dos trinta e próximo dos quarenta. Se demorar mais um pouco, seus filhos, em vez de chamá-lo de pai, vão tratá-lo de avô. Stevens riu à vontade e em seguida passou a falar no assunto, que até então guardava tão somente para si: – Não, Gildo. Logo depois que Helenice terminar um tratamento espiritual que começou, agora, eu vou tratar disso. Estou informado de que vamos receber muitos espíritos pela reencarnação. – Vai ter muitos filhos assim? – Não apenas eu. Você e Ênio também. – Ele já está noivo? – Não, mas já sei com quem vai se casar. É com uma pessoa muito querida nossa: Geilza. – Quê? Isso é bom demais! – Gildo, tudo está no rumo certo e bem delineado, porque não fal‑ taram os cuidados de Katy Magdalene, que está prestes a terminar as suas tarefas assumidas e logo começar outras, porque o espírito quan‑ do atinge a iluminação tem consciência de que deve servir cada vez mais, em nome do amor. Depois da longa conversa, voltaram para casa, onde Juvenal havia ficado conversando com Virgílio, ajudando-o a livrar-se dos resquícios de mágoa que hospedava no íntimo. Depois de uma conversa agradá‑ vel sobre o perdão, Juvenal fez uma sentida prece e se recolheram para o repouso necessário do corpo físico, sem se darem conta do que estava programado no plano espiritual para todos os envolvidos nas tarefas redentoras sob os cuidados de Katy Magdalene. Gildo foi o primeiro a adormecer. Desdobrado inconscientemen‑ te, saiu imediatamente à procura de Cecília. Juvenal bastou fechar os olhos do corpo físico, já se encontrava em corpo perispiritual, de pé no quarto. Stevens foi o último. Mas logo que adormeceu, também em


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desdobramento, mas muito consciente de si mesmo, viu bem em sua frente Juvenal, que lhe fez o seguinte convite: – Precisamos sair um pouco. Vamos à praia? Volitando, o que já faziam conscientemente, instantes depois, cha‑ mou-lhes a atenção um grande foco de luz azul celeste que se des‑ locava ordenadamente, dando a impressão dos movimentos de uma bailarina, atuando sob os efeitos de uma peça musical clássica. Ao se aproximarem, viram deslumbrados dezenas de pontos de luz de cores variadas formando, realmente, um balé clássico sobre as ondas irre‑ quietas do mar. Cheios de doce emoção, ao tocarem os pés na areia da praia perceberam que se encontravam ante um anfiteatro fluídico e de médias proporções, pairando acima da água do mar. Stevens dirigiu o olhar em direção a Juvenal e balbuciou: – Como eu gostaria de saber o que significa tudo isso! Ao pronunciar a última palavra, surgiu de repente uma aber‑ tura como se fosse uma porta invisível, e dela saiu um feixe de luz que os cobriu. Eles se sentiram arrastados, tão velozmente, que sequer puderam perceber a pequena trajetória. Quando se deram conta, já se encontravam no interior de um salão, com dezenas de cadeiras arrumadas em semicírculo. Num ponto estratégico, desta‑ cava-se uma mesa, também disposta em semicírculo, cujo material era de tal forma transparente que só se tornava visível por causa da iluminação amarelo ouro que emitia. Por trás, algumas cadeiras davam a entender que logo seriam ocupadas por entidades espi‑ rituais condizentes com o motivo para o qual tudo ali fora criado com esmero por uma mente, certamente, impulsionada pelo amor. Sem ainda saberem a finalidade para a qual teriam sido atraídos ao local, se acomodaram nas cadeiras mais próximas à mesa. Logo que se sentaram, ouviram: – Coincidência. Eu estava pensando em vocês! – Voltaram-se para trás e viram Gildo ao lado de Cecília. – Gildo, como você chegou até aqui?


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– Deitei, e assim que adormeci ouvi alguém me chamando: ”Gildo, gostaria de estar com Cecília?” – Sim, isso é ótimo. Mal terminei de pronunciar a última palavra, senti que alguém me segurava pelos pul‑ sos e de repente já me encontrava diante de Cecília. Mas antes mesmo de cumprimentá-la, ouvi a mesma voz: – Venham comigo! – falou já segurando-nos pelas mãos – e, quando nos demos conta, já estávamos aqui. Seu Juvenal, isso tudo é um sonho? Antes de responder à pergunta, Juvenal viu, com alegria, Ênio sen‑ tado entre Geilza e Gilca, a sua mãe. Um pouco atrás, Helenice e Xan‑ dinha sentadas junto a Stela e Orlando; Gino com a esposa Mariela; Gilza, Maurício e Juliano ao lado da esposa Heloína compreendeu que se tratava do encontro planejado por Katy Magdalene e falou voltan‑ do-se para Gildo: – Estou certo que não. Mas deixemos detalhes para depois, pois o momento não é próprio. Depois das observações, aquietaram-se as mentes e viram surgir, imediatamente, um foco de luz direcionado à mesa, cujos reflexos passaram a formar, com a ação dos espíritos benfeitores, através da ideoplastia, uma imagem no alto do anfiteatro com a aparência de Jesus (conforme narração de espíritos que o conheceram pessoal‑ mente, quando ele esteve entre nós), de braços abertos, tendo entre as mãos uma faixa com os seguintes dizeres: Amai-vos uns aos outros como eu vos tenho amado. Um espetáculo belíssimo, mas que durou apenas alguns segundos. De imediato, os sons de uma peça musical foram se ampliando e criando tantas outras imagens que ao se junta‑ rem formavam, com letras, a palavra “amor”. Logo a seguir surgiram dezenas de entidades espirituais, formando um bailado cuja beleza fazia com que a maioria dos espíritos que ali se encontravam não con‑ seguisse reter a lágrima por causa da emoção. Mesmo os que não ti‑ nham condições de apreciar o belo espetáculo, registravam no íntimo um bem-estar inenarrável. Alguns instantes depois de concluída essa bela visão, um foco de luz cor azul-celeste localizou a mesa e surgiu,


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de repente, Katy Magdalene. Para os encarnados, exceto Stevens, Juvenal e Ênio, tudo parecia um belo sonho. Naquele mesmo momento, um espírito com aparência de mulher, que já se encontrava sentada na cadeira ao lado de Stevens, voltou-se para ele e disse: – Nós nos conhecemos há muito. Mas, por circunstâncias inerentes à vida na matéria, fomos separados. Sou a mãe que não mereceu carre‑ gar nos braços o filho que Deus havia concedido, mas que conserva no íntimo o amor que a mulher registra na condição de mãe. Antes que ele dissesse alguma coisa, como pretendia, ouviu a voz de Katy Magdalene chamando-o. Ele olhou em sua direção e ela apon‑ tou a cadeira do seu lado. Embora querendo recuar, Stevens, sentindo uma forte atração, se dirigiu cabisbaixo e Katy, então, apontou nova‑ mente o assento. – Perdoe-me pela indelicadeza, mas eu não me sinto em condições, por compreender que não tenho merecimento para tanto. – O amor ao próximo como a si mesmo, usado com fidelidade e dignidade, deu-lhe o passaporte. Logo que Stevens levantou-se, Celeste se aproximou de Juvenal: – Não mereci viver ao seu lado – disse emocionada –, como tam‑ bém criar o filho que Deus havia nos concedido. Entretanto, estarei em breve entre vocês, no palco do mundo, pois serei sua neta, filha de Stevens e Helenice. Essa é a programação, justa e necessária, segundo os instrutores espirituais me informaram. Juvenal, radiante de alegria por tomar conhecimento de tão signifi‑ cativa revelação, respondeu-lhe: – Fique certa que o seu retorno na condição de neta será sempre um motivo para manter o meu íntimo repleto de alegria... Ouviu Katy chamando-o e a exemplo de Stevens, se aproximou, e disse tentando declinar do convite: – Alegra-me o convite, que vem da bondade de um íntimo puro e


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resplandecente, como é o seu. No entanto, não me sinto digno dessa honra, por reconhecer que os meus feitos não condizem com a eleva‑ ção que deseja me conceder. – O perdão e a doação irrestrita de si mesmo, por amor, concede‑ ram-lhe o passaporte. Sente-se, querido irmão. Depois de instantes de expectativas, Katy Magdalene começou a falar: – Queridos irmãos, nós aqui nos encontramos satisfeitos e gratos ao divino mestre de todos nós pela conclusão de uma tarefa que nos foi confiada, cuja natureza diz respeito à reconciliação de alguns ir‑ mãos, aqui presentes, que no passado não conseguiram, por causa de circunstâncias diversas, lograr êxito em relação ao que fora planejado antes do renascimento no plano material. Encarnados e desencarna‑ dos, que para aqui foram atraídos, encontram-se de certa forma psiqui‑ camente ligados, mas em determinados casos, separados por conflitos diversos que precisam ser sanados. E para isso, o único caminho é o renascimento no corpo físico, junto aos desafetos do passado, forman‑ do grupos familiares onde tentarão apagar as diferenças, as antipatias e até mesmo o ódio do passado com o cultivo do amor, nas suas várias manifestações, como o materno, o filial, o conjugal ou o fraternal, con‑ quanto que a consequência seja a união pela paz e a alegria de viver. Sabemos que todos portam no íntimo o desejo de mudança. No entan‑ to, é de grande importância que não seja esquecido o esforço que deve ser empreendido, e a aceitação da colheita, conforme a semeadura, pois para o desejável crescimento se faz necessário o cumprimento da lei de causa e efeito, sem revolta e sem inconformação. Fez uma pequena pausa e prosseguiu: – Jesus, o divino mestre, nos incentiva, ainda agora, com a clareza dos seus ensinamentos redentores, esperando de cada um de nós o cultivo do amor que reconcilia pelo ato do perdão; que socorre pela manifestação da bondade; que pacifica pela concórdia; que ilumina pela bondade; que compreende pela sabedoria; que une pela amizade e que dignifica quem


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por ele se deixa conduzir, pois se trata de uma essência divina, que per‑ meia os recantos do Universo, marcando a presença divina do Pai e cria‑ dor de todos. Estar fora dessa potente vibração divina é penetrar nas mais dolorosas experiências, quer na vida espiritual ou material. Fez nova pausa e, em seguida, prosseguiu: – Esse encontro pode ser para muitos, aqui presentes, o recomeço de uma vida melhor, se estiverem dispostos a retirarem do íntimo os resquícios do ressentimento, da vingança e do ódio. “Em breve, depois de serem preparados em algumas colônias espi‑ rituais, a depender da necessidade de cada um, vocês estarão se reen‑ contrando no plano material. A reencarnação conduzirá ao aconchego do coração inimigos de outrora, que, certamente, de acordo com as circunstâncias favoráveis que permearão pelos caminhos por onde tri‑ lharem, buscarão pelo cultivo de uma convivência salutar a verdadeira reconciliação, com o objetivo de conquistar, conforme indica Jesus, a paz pelo amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.” Terminada a orientação, como preparo e conscientização dos que iriam reencarnar e dos que os receberiam no mundo, na condição de parentes consanguíneos, recomendou: – É de bom proveito que nessa oportunidade, todos, encarnados ou desencarnados, se aproximem dos antigos desafetos e, se ainda assim os veem, perdoem ou peçam perdão. Para isso, lembrem-se do exem‑ plo de Jesus, que no alto da cruz e no auge da dor, voltou-se ao Pai Criador e pediu: Pai perdoa-os! Eles não sabem o que fazem, referindo-se aos que deliberaram a sua morte na cruz e aos que a executaram. Antes mesmo de Katy Magdalene terminar de falar, dezenas de auxiliares que faziam parte da sua equipe de trabalho já se encontra‑ vam a postos e passaram a conduzir os espíritos para uma conversa conciliadora junto aos que os receberiam no palco do mundo. Foi aí que Gildo e Cecília perceberam que um espírito se aproximou do local onde eles se encontravam e, cabisbaixo, se dirigiu a Gildo: – Fui seu pai quando vivemos na Inglaterra. Errei muito... Fracas‑


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sei! Mas agora, com a ajuda de muitos e principalmente de você mes‑ mo e de Stevens, me encontro disposto a recomeçar para experimentar o amor, pois durante muito tempo o meu íntimo foi atingido pela ari‑ dez de bons sentimentos e em seguida, regelado. Foi aí que dei ensejo ao ódio, que me passou a queimar por dentro como chamas ardentes, que me tiravam o raciocínio... Gostaria de poder voltar a ser seu pai, no mundo, para tentar conseguir a capacidade de honrar a paternidade. No entanto, fui informado que já foi deliberado por instrutores que eu renasça como seu filho. Isso, se você, juntamente com sua futura espo‑ sa, aceitar... Eu sou Charles. Gildo olhou na direção de Cecília e tendo ela concordado com o pedido do espírito, dirigiu o olhar para ele e disse sorrindo: – Oh! Então é você?! Agora, meu velho, vai ser comigo! Ou aprende de vez ou a disciplina será rigorosa! Vai estar em nossas mãos! Mas fique certo de que você vai ser muito amado quando estiver em nossos braços, mas não vamos facilitar! Charles segurou a mão de Gildo levou aos lábios e depois fez o mesmo com a futura mãe. Dali, a acompanhante que o conduzia levou­ ‑o para junto de Stela e Orlando: – Não mais a odeio. Felizmente, a mancha negra que nos envolveu no lodo moral tende a desaparecer. Fui levado do ódio e da vingança à compreensão de que só o amor gera paz e alegria. Assim, Mary Ca‑ therine, em breve serei seu neto, e isso certamente criará um novo laço de sentimento, adverso ao passado infeliz. A você – falou se dirigindo a Orlando – peço perdão pelos maus-tratos e pela perda dos seus bens materiais, no que contribui maldosamente. – Peço, também – respondeu Stela –, que me perdoe a pérfida trai‑ ção, cujas lembranças retornam neste momento, me trazendo profun‑ do arrependimento e o desejo de reparar os males causados, para que eu possa continuar na tentativa de seguir os exemplos de Jesus Cristo, para o que o convido desde já, pois não há outro caminho que nos conduza a uma vida com serenidade, compreensão, responsabilidade


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e amor! Entendo que tudo isso que vivo neste momento, logo que des‑ pertar no corpo físico, poderá ser esquecido ou lembrar apenas como um sonho. Mas estou certa que do jeito que me encontro, decidida ao cultivo do bem, você, que voltará como meu neto, será muito amado por mim – falou demonstrando sinceridade no que dizia. Os conflitos que duraram dois séculos de ódio e vingança e por último, perseguições, fazia ali um ponto de seguimento, pois, para che‑ gar ao ponto final, ainda era preciso que os seus responsáveis percor‑ ressem juntos, por muito mais tempo, os caminhos do amor. Depois desse diálogo, o espírito que acompanhava Charles o conduziu para junto da mesa onde se encontrava Katy Magdalene. Sem imaginar de quem se tratava, ajoelhou-se em frente a ela e fa‑ lou cabisbaixo: – Oh santa de Jesus! Sou um criminoso e por isso nada digno de estar na sua presença! – Feliz retorno ao caminho da paz! – respondeu ela. Ele levantou a cabeça e ao olhar na sua direção, viu não mais aquele espírito cheio de luminosidade, mas a sua filha, conforme se lembrava. Percebendo-o extático, ela falou amorosamente: – Pai, sou eu mesma, sua filha de outrora, Katy Magdalene! Ele se aproximou em lágrimas: – Katy, minha filha inesquecível! Que saudade! Os espíritos que foram seus irmãos, que também estavam sendo preparados para a reencarnação, foram conduzidos ao local. Diante da irmã, que não haviam esquecido, apesar do tempo e da situa‑ ção que viveram, sem saber o que dizer, inicialmente, choravam apenas. Momentos depois, um deles disse, mesmo cortando a voz pelo choro: – Katy, irmã querida e inesquecível, nosso anjo bom, ajude-nos pelo amor que você sente por Jesus, a não mais cairmos na tentação do ódio e da vingança, para que sejamos dignos da sua santa presença. – Estarei, como sempre estive, sem que notassem, presente na vida de


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cada um de vocês. Não fosse verdade, não estaríamos aqui neste momento. Enquanto isso ocorria, Stela, aos poucos, foi se envolvendo nas lem‑ branças do passado infeliz e caiu em pranto. Logo, um espírito dentre os auxiliares de Katy Magdalene segurou delicadamente as suas mãos e disse: – Sei o que deseja. Venha comigo! Logo se encontrava na frente da filha, que havia deixado para trás, quando abandonou o lar. – Não chore, mãe querida, porque agora já te encontras no rumo certo! – Perdoe-me, Katy, pelo abandono, pela ingratidão e pela falta de responsabilidade! – Nada a perdoar. Perdoe-se e siga em frente! Seus filhos de outro‑ ra, que aqui se encontram, estarão bem próximos do seu coração, como netos, filhos de Stevens, Gildo, Geilza, Gino e Gilza. Ame-os durante o tempo que resta, até retornar à espiritualidade. Katy Magdalene abraçou, amorosamente, a mãe do pretérito e in‑ fundiu com a sua energia amorosa novo ânimo em Stela, que em se‑ guida se posicionou na frente de Charles, que havia sido seu esposo, e dos filhos de outrora e disse: – Peço a todos que me perdoem. E fiquem certos de que os rece‑ berei carinhosamente e os amarei, conforme a orientação de Jesus, a quem eu agora procuro seguir por meio dos seus ensinamentos. O momento e principalmente o ambiente, onde a vibração era serena como a brisa do amanhecer, tornara-se propício para entendimentos entre os espíritos encarnados e desencarnados que iriam, em breve, se reencon‑ trar por meio da reencarnação. À proporção que as conversas iam cessan‑ do, lia-se nas fisionomias os sinais da alegria gerada pela nova esperança de estabelecer a paz e a concórdia, deixando para trás os conflitos, os sen‑ timentos de ódio, vingança... Consequentemente, muito sofrimento! Assim que todos voltaram às cadeiras, onde antes se encontravam sentados, dando ensejo ao retorno do silêncio, Katy Magdalene voltou­


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‑se para Juvenal e Stevens e falou sorridente: – Tarefa concluída! Grata sou pela valiosa colaboração. Sem ela, certamente, teríamos que enfrentar dificuldades bem maiores do que as que superamos durante todos os anos que laboramos juntos. Deixo­ ‑os, mas fiquem certos de que não lhes faltarão o apoio e a necessária colaboração para que as novas tarefas alcancem o êxito desejado. Levantou-se e, dirigindo-se aos demais ali presentes, voltou a falar: – Meus irmãos queridos, guardem nas suas mentes que tudo que existe no Universo surge pela vontade divina, que interpretada pelos espíritos sublimados, executam-na, laborando, seja na formação de novos mundos, no processo de evolução e aperfeiçoamento, desde o átomo às nebulosas. Assim é que Jesus, o Cristo sublime, honran‑ do a vontade da inteligência Sublime do Universo, presidiu, segun‑ do informações da mais alta espiritualidade, à formação do planeta Terra. Estabeleceu as bases para o surgimento das primeiras formas físicas, animadas pelo princípio inteligente, nas águas tépidas do mar – o nosso ponto de partida neste planeta. Aos milhares de anos, sob a assistência do divino mestre, formas físicas foram sendo estabelecidas como instrumentos temporários para o desenvolvimento desse mesmo princípio inteligente, inclusive a forma humana, que embora perecível é uma máquina perfeita – considerando o seu funcionamento. Honre‑ mos e agradeçamos a Deus a oportunidade que nos concede por meio das Suas leis imutáveis, os estágios que todos experimentamos, desde o mineral onde dormíamos, passando pelo vegetal, onde sonhávamos, pelo animal, ainda considerado irracional, onde acordamos, para mais na frente, na condição de humanos, pelo aprimoramento, conquistar‑ mos a razão a caminho da sublimação, o que estamos tentando fazer neste instante, procurando emergir das profundezas dos enganos e da escuridão da ignorância, para o despertar da luz do amor que, como um farol, pode iluminar os mais íngremes caminhos por onde, certa‑ mente, haveremos de trilhar. Fez pequena pausa, apenas, enquanto inspirava fundo e prosseguiu:


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– Agora, agradeçamos o constante apoio do divino mestre de to‑ dos nós, e acima de tudo, a Deus, pela misericordiosa assistência que recebemos durante todo esse tempo que laboramos, sob o Seu bondo‑ so amparo. A voz parecia uma melodia, cuja beleza não só emocionava, mas, sobretudo, encantava a todos ali presentes. Depois de uma pausa para reflexão, ela voltou a fronte ao alto e assim se dirigiu ao Pai da Vida: – Senhor, compreendendo pelo exemplo de Jesus, o divino mestre, que o trabalho contribui para o despertar das potencialidades interio‑ res que nos deste no momento da criação, te pedimos que nunca nos falte coragem e entusiasmo constantes para a nossa contribuição, des‑ de a preservação das condições de vida, neste planeta, seja no reino mineral, vegetal, animal e nos fenômenos elaborados pela natureza, manifestação do Teu divino amor, até os mais elevados encargos, ne‑ cessários à manutenção da paz e do progresso, nos planos material e espiritual. “Daqui, onde nos encontramos, mergulhados nos fluidos benéficos desse gigante caudaloso, de onde rumamos neste momento na busca da sublimação da essência do amor, dádiva da Tua bondade divina, profundamente agradecidos seguiremos procurando ser fiéis aos prin‑ cípios contidos nas Vossas leis que regem o Universo, para que seja‑ mos dignos da Vossa assistência paternal durante a longa caminhada rumo ao infinito.” Ao findar a prece, as feições diáfanas proporcionavam a Katy Mag‑ dalene uma aparência sublimada, de tal beleza que prendia a atenção de todos que ali se encontravam. Logo, ouviu-se novamente a música enchendo todo o espaço, como se uma orquestra sinfônica atuasse, cujas notas desenhavam no plano energético formas e cores variadas, belíssimo espetáculo que só os es‑ píritos dados aos bons princípios poderiam ver. Em instantes, os tra‑ balhadores da grande equipe de Katy Magdalene já se encontravam posicionados para partirem em auxílio durante a viagem que os reen‑


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carnantes começariam naquele momento. Logo que empreenderam a volitação, inicialmente em sentido vertical, a abóbada do anfiteatro se abriu e em vez do teto visto antes com iluminação prateada, via-se o céu faiscante de estrelas, que brilhavam, testemunhando, silenciosa‑ mente, a grandeza e a sabedoria do Pai amável e criador de todas as coisas. Lá embaixo, o grupo de espíritos encarnados, inclusive Juvenal, Ênio e Stevens, acenava, sentindo no íntimo a alegria de quem está sempre em concordância com o bem. À certa altura, Katy Magdalene destacou-se do grande grupo de espíritos que conduzia, apontou com a mão em determinada direção e dela, imediatamente, começou a fluir um feixe de luz. Como se usasse um pincel invisível, fez alguns movimentos e passou a desenhar no espaço, letras luminosas que, inicialmente, formaram palavras e estas, em seguida, a frase: Do mar ao infinito. FIM


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