A Igreja e a Surpreendente Ofensa do Amor de Deus

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“O que acontece quando juntamos um dos assuntos mais mal compreendidos (o amor) a uma das práticas mais ignoradas pela igreja de hoje, a disciplina de seus membros? Acontece um livro como este. Ao contrário da geração criada sob os conselhos do Dr. Spock a respeito da educação infantil, o Bom Pastor cuida de seu rebanho por meio de uma disciplina amorosa. Há muito a ser dito, hoje em dia, sobre o discipulado radical, mas o que mais precisamos é de um discipulado mais habitual, por meio do qual possamos perceber não só na teoria, mas também na prática, o que significa ser conformado à imagem de Cristo. Este é o melhor livro que vi sobre o assunto nos últimos tempos”. Michael Horton, Professor da Teologia Sistemática de J. Gresham Machen e Apologética no Seminário de Westminster, na Califórnia.



a I GREJA e a

S URPREENDENTE O FENSA do A MOR de D EUS Reintroduzindo as Doutrinas sobre a Membresia e a Disciplina da Igreja

J O N AT H A N L E E M A N


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Leeman, Jonathan A Igreja e a surpreendente ofensa do amor de Deus : reintroduzindo as doutrinas sobre a membresia e a disciplina da Igreja / Jonathan Leeman; [tradução Waleria Coicev]. -- São José dos Campos, SP : Editora Fiel, 2013. Título original: The church and the surprising offense of God’s love. ISBN 978-85-8132-160-8 1. Disciplina eclesiástica 2. Membros da Igreja I. Título. 13-09970

CDD-262.8

Índices para catálogo sistemático: 1. Disciplina eclesiástica : Igreja : Teologia : Cristianismo 262.8

A Igreja e a surpreendente ofensa do amor de Deus

Copyright©2012 Editora FIEL Primeira Edição em Português 2013

Reintroduzindo as doutrinas sobre a membresia e a disciplina da Igreja

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Traduzido do original em inglês TheChurchandtheSurprisingOffenseofGod’sLove:Reintroducing the Doctrines of Church Membership and Discipline Copyright © 2010 by 9Marks

• Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers 1300 Crescent Street Wheaton, Illinois 60187, U.S.A

• Diretor: James Richard Denham III. Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Waleria Coicev Revisão: Gustavo Nagel Capa e Diagramação: Rubner Durais ISBN: 978-85-8132-160-8

Caixa Postal, 1601 CEP 12230-971 São José dos Campos-SP PABX.: (12) 3919-9999

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Ao Mark, que me ensinou muito do que aqui estรก, e ao Matt, que me deu a chance de dizer isso.



SUMÁRIO

Prefácio .......................................................................................................................9 Agradecimentos.......................................................................................................13 Introdução.................................................................................................................15 PARTE 1 – O AMOR MAL DEFINIDO Capítulo 1 | A Idolatria do Amor..........................................................................45 PARTE 2 – O AMOR REDEFINIDO Capítulo 2 | A Natureza do Amor.........................................................................93 Capítulo 3 | O Governo do Amor ...................................................................... 155 Capítulo 4 | O Alvará do Amor........................................................................... 207 Capítulo 5 | A Aliança do Amor ......................................................................... 279 PARTE 3 – O AMOR VIVIDO Capítulo 6 | A Afirmação e o Testemunho do Amor...................................... 331 Capítulo 7 | A Submissão e a Liberdade do Amor.......................................... 393



APRESENTAÇÃO Num mundo caído como o nosso, o amor cristão nunca aparece espontaneamente. Ele jamais aparece por meio de um simples sentimento. Por mais que isso pareça surpreendente para nós, o amor cristão envolve fé, uma fé que nos é impossível sem a obra miraculosa do Espírito Santo. O apóstolo Paulo escreveu: “Considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder ganhar Cristo.” (Fp 3.8 — NVI)Considerar tudo como perda ou esterco envolve esforço e abnegação. É certo que o fato de considerar ou reputar as coisas dessa forma é o contrário de amar. Para nós, amor é prazer. Nós associamos o amor com felicidade, família, amigos e lar. Pensamos que o amor é familiar por sua própria natureza. Ele é autoevidente e imediato. O amor, por sua própria natureza, revela a si mesmo. Nesse sentido, pensamos que amar é simples. Jonathan Leeman está prestes a desafiar todas essas noções de amor, e o meu palpite é que ele as desafiará com êxito, se você ler até o fim do livro. E ainda há a noção de ofensa. Temos hoje em dia uma relação mista com a ideia de ofensa. Podemos ofender os outros, não temos problemas com isso. Mas muitas pessoas decididamente não gostam da ideia de que Deus se ofende, e muito menos se por nossa causa. E certamente não associamos ofensa com amor.


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Nesse ponto, Jonathan está nos levando para outra esfera — uma antiga esfera — com compromissos, relacionamentos e questões sobre o certo e o errado bem mais definidas do que as definições com as quais estamos acostumados hoje. Essas ideias já foram familiares outrora. Não sei como você lida com novas culturas, mas existe uma situação de desconforto que muitas pessoas têm que superar quando se mudam para uma nova cultura. Meu palpite é que alguns de vocês terão uma sensação parecida ao ler sobre o amor e sobre como ele pode ser ofensivo de forma real e verdadeira, e até mesmo como ele precisa ser ofensivo de vez em quando. Mas a esfera para a qual Jonathan está nos levando é bela, frutífera, fiel e bíblica, e reflete o caráter de Deus. À medida que começamos a entender mais sobre Deus e seu caráter, passamos a perceber que o amor de Deus nos envolve na abnegação. E o fato de compartilhar o amor de Deus com os outros nos envolve na disciplina, até mesmo na disciplina da igreja. Como podemos amar as pessoas e não tratá-las da mesma forma que Paulo tratou o homem adúltero de 1 Coríntios 5, que a si mesmo se enganava? Como podemos amar as pessoas que pecam contra nós e não tratá-las do modo como Jesus nos instruiu, em Mateus 18? Não estou dizendo que isso tudo é fácil ou simples (é por isso que você está segurando não apenas este prefácio, mas um livro inteiro)! Mas o fato de chegar a entender o que a disciplina na igreja tem a ver com amor pode abalar o seu mundo. Pode até mesmo salvar sua alma. Visto que Jonathan nos mostra tudo isso, não deveríamos ficar tão surpresos ao descobrir que, à medida que avançamos, aprofundamo-nos no ensino bíblico sobre a membresia da igreja. “A Bíblia ensina sobre a membresia da igreja?” — você pergunta. “Onde?” E quando você estiver fazendo essa pergunta, penso que estará pronto para começar a ler este livro. Um banquete cuidadosamente preparado está diante de você. Eu conheço Jonathan há mais de uma década. Ele tem me encorajado, provocado, divertido e surpreendido. Colaborar com ele na escrita de materiais úteis aos pastores é uma das minhas alegrias na vida. Jonathan tem uma mente inquieta e curiosa, que lhe foi dada por Deus, em partes, para escrever este livro, e assim ser capaz de nos apresentar a um mundo pelo qual ele tem sido fascinado e tem considerado com mais profundidade do que qualquer outra pessoa que eu conheça. Este livro é a melhor coisa que já li acerca da membresia da igreja. Não posso lhe fazer uma recomendação melhor. Leia-o e o aproveite, agradecendo 10


Prefåcio a Deus pelo dom de Jonathan. E pelo dom do amor de Deus, que suportou a ofensa — para o nosso espanto e deleite eternos. Mark Dever, Washington D.C., 31 julho de 2009.

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AGRADECIMENTOS Minha maravilhosa esposa, Shannon, apoiou-me em humildade, de um modo semelhante a Cristo, à medida que eu gastava muitos meses e longas horas escrevendo este livro ou andando pela casa com minha mente fixa nele. Por essa razão, ela merece ser mencionada em primeiro lugar. Obrigado, meu amor, por todo o seu trabalho, oração e afeição. Sou muito grato por você. Matt McCullough e Bobby Jamieson leram todo o rascunho inicial deste livro, e Robert Cline e Tom Schreiner leram dois capítulos. Todos vocês o melhoraram. Obrigado, irmãos. Agradeço também a Josh Coover, meu colega, pelo encorajamento e pelo interesse ao longo desse projeto e também por ter sido paciente comigo à medida que eu frequentemente pisava na bola em outras questões no trabalho! Sou grato a Al Fisher e a Crossway pela disposição da equipe em dar uma chance para um autor principiante como eu. Agradeço também a Lydia Brownback, uma editora complacente, paciente e ajudadora. O leitor deve saber que Mark Dever forneceu a ideia original para este livro, ou seja, ele concentrou o tópico sobre membresia e disciplina da igreja na ideia do amor. Ele fez o mesmo no capítulo que escreveu sobre membresia da igreja.1 Eu simplesmente enriqueci seu tema. Obrigado por isso e por muito mais, irmão. 1  Mark Dever, “Regaining Meaningful Church Membership” [Recuperando Significativamente a Membresia da Igreja] in Restoring Integrity in Baptist Churches [Restaurando a Integridade nas Igrejas Batistas], Ed. Thomas White, Jason G. Deusing e Malcolm B. Yarnell III (Grand Rapidis: Kregel. 2008), 45-62.


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Meu imenso agradecimento a Matt Schmucker por seu tempo e paciência enquanto eu trabalhava neste projeto. Matt é um homem humilde, que dedica sua vida a providenciar oportunidades para os outros. Sou privilegiado por me beneficiar regularmente de sua liderança, sabedoria e, o melhor de tudo, de sua amizade. Finalmente, talvez a Igreja Batista de Capitol Hill mereça a maior parte do crédito por moldar o coração e a mente daquele que escreveria sobre essas questões específicas aqui apresentadas. Minha oração é para que este livro seja útil para muitos. Por mais extenso que ele seja, o leitor deve entender que nenhuma página dele teria sido escrita sem a instrução e o amor dessa igreja.

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INTRODUÇÃO O MEIO É A MENSAGEM O meio é a mensagem. Você já ouviu essa frase? Ela foi dita pela primeira vez por um estudioso das mídias, o canadense Marshall McLuhan, em 1964, e significa simplesmente que o meio pelo qual uma mensagem é comunicada afeta seu próprio conteúdo. Por exemplo, ler acerca de uma batalha estrangeira no jornal é diferente de assisti-la pela televisão. O primeiro é uma notícia; o segundo, além de ser notícia, é um espetáculo. A frase de McLuhan é apenas mais uma forma de descrever o relacionamento simbiótico entre a forma e o conteúdo. Pergunte a qualquer poeta, artista, arquiteto e eles lhe garantirão que a forma de algumas coisas afeta o seu conteúdo, e o conteúdo afeta a sua forma. Um ambiente com teto alto e abobadado, colunas maciças e com luz natural sendo emitida através de janelas com vitrais coloridos comunica um tipo de mensagem; ao passo que um lugar com paredes brancas de gesso, um teto falso, luzes fluorescentes e fileiras de baias acinzentadas comunica outro. É certo que essas formas e suas mensagens estão culturalmente condicionadas, mas meu argumento é simplesmente o de que há uma ligação entre a forma e o conteúdo — em todas as culturas. Há uma relação semelhante a essa na vida de qualquer organização quando comparamos o propósito pelo qual ela existe, o que poderíamos classificar como a mensagem e a estrutura dessa organização, ou seja, o seu meio. Como um fabricante de automóveis se organiza da melhor maneira para vender carros? Como um exército se organiza da melhor maneira para defender a nação? Como um grupo de militância


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política se organiza da melhor maneira para defender sua mensagem? O propósito ou mensagem de uma organização afetará a sua estrutura, e sua estrutura, em contrapartida, moldará sua mensagem ou propósito. Imagine que três crentes, que estão sentados para tomar café, decidam começar uma organização cujo propósito é definir o amor de Deus para o mundo. Essa é a mensagem ou conteúdo da organização. Eles querem que ela diga a todos, em toda parte: “Aqui está o amor de Deus, e ele é desse jeito.” É claro que essa mensagem sobre o amor de Deus não é outra, senão o evangelho de Jesus Cristo: “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados.” (1 Jo 4.10)Sendo assim, os três crentes concordam que sua organização existe com esse propósito. E todos concordam, a princípio, que a estrutura de sua organização não só afetará o modo como eles poderão realizar esse propósito, mas também terá potencial para moldar a própria mensagem. Por exemplo, uma organização autoritária que diga: “Deus é amor”, comunicará ao mundo, com efeito, uma mensagem diferente da mensagem de uma organização igualitária que diga: “Deus é amor”. O problema é que os três crentes discordam sobre como abordar a questão da estrutura. Um deles observa que as pessoas em diferentes países e culturas podem exigir diferentes tipos de estruturas. Assim, ele utiliza demasiadamente a palavra “contextualizar” e conclui que a estrutura da organização precisa ser flexível e adaptável. O segundo crente acha que a conversa a respeito da estrutura é interessante, mas, no fim, conclui que não é isso o que importa, o que importa é divulgar a mensagem. O terceiro crente, no entanto, acha que isso é extremamente importante. Ele insiste que os outros dois, com suas soluções, desconsideraram o problema, apesar de haverem concordado, da boca para fora, com o fato de que existe uma ligação entre forma e conteúdo. E, além disso, ele sugere que Deus ordenou determinada estrutura na Bíblia, em vez de outra, e que essa estrutura combina perfeitamente com a própria mensagem, quase como se ela fosse uma consequência vital da mensagem, como o DNA produzindo o esqueleto de um corpo; e que é exatamente essa estrutura que Deus tem a intenção de usar para realizar o propósito da organização — definir o seu amor para o mundo. Essa é a sua maneira de proteger a mensagem, mantê-la em exposição, torná-la atraente e colocá-la em ação. Este livro apresenta essencialmente o argumento desse terceiro crente. A estrutura da vida coletiva da igreja está intimamente ligada ao conteúdo do evangelho, e o conteúdo do evangelho está intimamente ligado à estrutura da vida coletiva da igreja. 16


Introdução Elas moldam uma à outra, e uma coisa resulta na outra. Este livro não tenta abranger todos os aspectos da estrutura da igreja. Seu foco está principalmente nas questões acerca da membresia e da disciplina da igreja local. Numa linguagem que é popular entre os evangélicos de hoje, alguém poderia dizer que as práticas em relação à membresia e à disciplina da igreja local são resultado do evangelho. Não basta simplesmente dizer que “a igreja” é resultado do evangelho. É a igreja, de uma forma específica e diferenciada, que é resultado da mensagem. A membresia e a disciplina não são estruturas erigidas artificialmente. Elas não são imposições judiciais sobre a nova aliança da graça. Elas são uma consequência vital e inevitável da obra redentora de Cristo e do chamado do evangelho para o arrependimento e a fé. Omitir a membresia da igreja local é como omitir o fato de que os crentes são chamados para buscar as boas obras ou amar ao próximo, ou cuidar dos pobres, ou orar a Deus, ou seguir no caminho de Cristo. Submeter-se a uma igreja local é o que um verdadeiro crente faz, assim como um verdadeiro crente busca as boas obras, ama o seu próximo e assim por diante. Alguém que se recusa a se unir — ou melhor, a se submeter — a uma igreja local é como alguém que se recusa a buscar uma vida de justiça. Isso põe em xeque a autenticidade de sua fé. À medida que o evangelho presenteia o mundo com um exemplo mais vívido do amor de Deus, e à medida que a membresia e a disciplina da igreja são resultados do evangelho, a membresia e a disciplina da igreja local, de fato, definem o amor de Deus para o mundo. Em apenas uma frase, esse é o argumento deste livro. Ao longo dele, observaremos que as mesmas coisas que nos ofendem com relação à membresia da igreja se originam nas coisas que consideramos ofensivas em relação ao próprio amor de Deus. O que é impressionante, portanto, é como a maioria dos evangélicos tem lançado a questão da estrutura da igreja na categoria das coisas não essenciais e, consequentemente, sem importância. Dizemos que o evangelho é importante, até mesmo essencial, mas não a estrutura da igreja. E, visto que as questões sobre a estrutura da igreja apenas dividem os crentes, assim como dividiu aqueles indivíduos que estavam sentados para tomar café, é melhor desconsiderá-las totalmente. Certo? Mas e se isso estiver errado? E se Deus, em sua sabedoria, de fato tiver revelado tanto o conteúdo quanto a forma; tanto a mensagem quanto o meio; tanto o evangelho quanto o sistema de liderança, de modo que uma coisa combine perfeitamente com a outra? O fato de lançar as questões sobre a estrutura da igreja na categoria das 17


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“coisas sobre as quais os evangélicos respeitáveis n ​​ ão devem ter opiniões categóricas” não arruinaria consequentemente o próprio evangelho?

DE DEUS PARA O EVANGELHO E DO EVANGELHO PARA A IGREJA Eu creio que o que precisamos verdadeiramente é de uma teologia sistemática sobre a membresia e a disciplina da igreja. Precisamos considerar como as práticas sobre a membresia e a disciplina da igreja local se encaixam nas questões mais abrangentes sobre o amor de Deus, o julgamento de Deus, a autoridade de Deus e o evangelho. Ao pensarmos ou escrevermos sobre a igreja, é fácil errarmos numa direção por omitirmos as questões acerca do sistema de liderança. É fácil também errarmos na direção contrária, pulando rapidamente para os nossos textos-prova preferidos sobre presbíteros e diáconos, sobre a Ceia do Senhor ou a disciplina da igreja, sem no entanto considerar cuidadosamente o contexto teológico mais amplo. A própria doutrina da igreja deveria informar, por meio de todas as outras coisas, o que sabemos sobre Deus, seu amor e seu plano de salvação1. Ela deve refletir tudo o que sabemos sobre o amor e a santidade de Deus; sobre o fato de a humanidade ter sido criada à imagem de Deus e ter caído em culpa e corrupção; sobre a vida sem pecado que Cristo teve, sua morte sacrificial, sua ressurreição vitoriosa, sobre a imputação de sua própria justiça aos pecadores e sobre a vida estar sujeita ao governo que ele inaugurou, por meio do arrependimento e da fé. Embora eu creia que seja teologicamente problemático nos referirmos à igreja como “uma continuação da encarnação de Cristo”2, como alguns teólogos têm feito3, 1  Kevin Vanhoozer expressa isso de uma forma mais eloquente: “A igreja evangélica é a súmula da teologia evangélica”. “Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel” [O Evangelicalismo e a Igreja: A Companhia do Evangelho] in The Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects [O Futuro do Evangelicalismo: Discussões e Perspectivas], ed. Craig Bartholomew, Robin Parry, e Andrew West, Grand Rapidis: Kregel, 2003, p. 52. 2  Para começar, isso obscurece a distinção criador/criatura; anuvia a singularidade do episódio da encarnação; cria uma identificação exagerada entre Cristo e sua igreja; ignora as diferenças essenciais entre o Cristo sem pecado e a igreja ainda pecadora; supervaloriza este mundo e minimiza a importância da parousia e a esperança da Igreja nela. Veja Michael S. Horton, People and Place [Pessoas e Lugares] (Louisville: Westminster John Knox, 2008) p. 166-70; e também Ronald Y. K. Fung, “Body of Christ” [O Corpo de Cristo] in Dictionary of Paul and His Letters [Dicionário sobre Paulo e suas Cartas], ed. Gerald F. P. Hawthorne e Ralph P. Martin (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993) p. 81. 3  Essa ideia se tornou proeminente tanto entre os seguidores protestantes do idealismo alemão quanto entre os católicos, a começar por Friedrich Schleiermacher (veja Douglas Farrow, Ascension and Ecclesia [Ascensão e Eclesia], Edinburgh: T&T Clark, Continuum, 1999, pp. 182-83; J. A. Möhler (veja Michael J. Himes, Ongoing Incarnation: Johann Adam Möhler and the Beginnings of Modern Ecclesiology [Encarnação Continuada: Johann Adan Möhler e o Início da Eclesiologia Moderna], Herder and Herder, 1997, e o aluno de Möhler, Karl Adam. Michael Horton também segue essa trilha, do começo ao fim, até o presente mo18


Introdução sou complacente com a tendência de se usar a linguagem da encarnação para descrever a igreja: a igreja é precisamente onde cada doutrina é encarnada ou personificada. A igreja é onde todas essas doutrinas são postas em ação. O teólogo John Webster apreende bem o princípio vital do que estou querendo dizer, quando afirma: “A doutrina a respeito da igreja só pode ser tão boa quanto a doutrina a respeito de Deus que forma a sua base.”4 Não podemos entender o que ou quem a igreja é se não entendermos primeiramente quem Deus é. A mesma relação permanece entre a nossa doutrina do evangelho e a nossa doutrina da igreja. Webster também escreve: “É uma... preocupação especial para a eclesiologia evangélica demonstrar não apenas que a igreja é uma consequência necessária do evangelho, mas também que o evangelho e a igreja existem numa ordem estrita e irreversível, uma ordem na qual o evangelho antecede a igreja e a igreja sucede o evangelho.”5

Em outras palavras, não poderemos entender o que ou quem a igreja é se não entendermos primeiramente o que é o evangelho de Deus. Em certo sentido, todo este livro é um esforço para desenvolver esses dois comentários de Webster. Especificamente, ele argumentará que a nossa compreensão acerca de Deus e do evangelho afetará a forma como vemos as questões estruturais ou institucionais sobre a membresia e a disciplina, e a forma como as igrejas tratam essas questões estruturais, por sua vez, afetará o modo como o mundo vê o amor e o evangelho de Deus. Por exemplo, imagine que consideremos Deus como santo, mas não muito amoroso. Isso teria algumas implicações bem evidentes para a nossa doutrina da salvação e sobre como os seres humanos devem se aproximar de Deus ou sobre como Deus deve se aproximar deles. Supondo que ele os chamou para algum tipo de vida coletiva, isso traria implicações extras para a forma como esses humanos mento, junto com escritores como o Papa Bento XVI, o teólogo luterano Robert Jenson, o teólogo batista Stanley Grenz e o círculo de escritores conhecido como Ortodoxia Radical, como Graham Ward (http:// sites.silaspartners.com/partner/Article_Display_Page/0,,PTID314526|CHID598014|CIID2376346,00. html, acessado em 18 de janeiro de 2008). Veja também o capítulo 6 de Horton, People and Place, principalmente pp. 156-64. 4  John Webster, “The Church and the Perfection of God” [A Igreja e a Perfeição de Deus] in The Community of the Word: Toward an Evangelical Ecclesiology [Na Comunhão da Palavra: Rumo a uma Eclesiologia Evangélica], ed. Mark Husbands e Daniel J. Treier, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2005, p.78. 5  Ibid., p. 76, cf. Vanhoozer, “Evangelicalism and the Church” [O Evangelicalismo e a Igreja], pp. 70-77. 19


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organizariam essa vida. Francamente, minha suposição é que junto com esse Deus “santo, mas não amoroso” a estrutura, o sistema e o plano de liderança se tornarão um assunto de máxima importância. Essa seria uma religião muito severa, desagradável, legalista e farisaica. Um quadro assustador. Seria mais provável que o mundo rejeitasse esse Deus e preferisse definir o amor da sua própria maneira. Imagine, como alternativa, que Deus não fosse tão santo, mas fosse muito amoroso. Se eu pudesse supor isso, esperaria que esse Deus sem santidade, mas amoroso, fosse completamente tolerante, excêntrico, temperamental e até perigoso. A salvação seria indiscriminada e não seria totalmente justa. E a vida coletiva dessas pessoas não seria diferente da do mundo. Essa religião seria cada vez mais libertina, superficial, sem significado, sem direção e grosseiramente narcisista. Novamente, um quadro assustador. Uma parte do mundo ficaria mais do que feliz em aceitar esse Deus totalmente humano, pois ele se pareceria com eles. Outros, devido ao fato de ele se parecer muito com eles, poderiam pensar: “Para que me preocupar?” Mas e se Deus fosse santo e também amoroso? Como esse Deus se relacionaria com a humanidade? Que tipo de evangelho seus profetas proclamariam? Que tipo de igreja seus apóstolos edificariam? Eles traçariam limites e estabeleceriam planos de liderança? Imagino que a maioria dos pastores, líderes eclesiásticos e crentes logo afirmariam: “É claro que acreditamos num Deus que é santo e também amoroso.” Mas e se a compreensão que uma pessoa tem sobre o amor de Deus estiver errada? E se, de fato, a compreensão que uma pessoa tem sobre o amor for manifestamente idólatra e pecaminosa? Como uma concepção idólatra sobre o amor afetaria a compreensão que essa pessoa teria sobre Deus, sobre o evangelho e, consequentemente, sobre a igreja?

O QUE O AMOR TEM A VER COM ISSO? Em primeiro lugar, portanto, este é um livro a respeito da membresia e da disciplina da igreja. É uma teologia sobre a membresia e a disciplina, e um argumento a respeito de quão vitais são as práticas de membresia e disciplina para um cristianismo bíblico, para a vida da igreja, para a obra da igreja de fazer discípulos e exibir a glória de Deus ao mundo. Mas este livro diz respeito a algo mais do que apenas membresia e disciplina. Ele diz respeito ao amor. O mundo acha que compreende o amor, assim como acha que ama a Deus. No entanto, não faz isso. Ele só compreende ilusões idólatras ou 20


Introdução invenções sobre essas coisas; sombras que exibem um pouco de sua forma, mas pouco de sua essência. A igreja local, portanto, é chamada para ser uma demonstração tridimensional do verdadeiro amor. E as práticas da membresia e da disciplina da igreja são exatamente o que ajudam a tornar a igreja local visível e evidente. Elas demonstram as exigências do amor. Elas nos ajudam a conhecer, usando a frase do apóstolo João, quem são “os filhos de Deus e os filhos do diabo” (veja 1 Jo 3.10). A membresia e a disciplina da igreja fornecem a estrutura ou a configuração do que significa ser cristão — uma pessoa que demonstra o amor de Deus. Elas ajudam a distinguir a igreja do mundo, de modo que o mundo possa olhar e ver algo nela, mas não dela mesma. Poderia essa marca de distinção ser talvez uma ação amorosa principalmente para os de fora? Eu argumentarei que sim, principalmente se um dos alvos da igreja for oferecer aos de fora a esperança de que eles mesmos possam ser incluídos em algo divinamente amoroso e divinamente belo. Quando a linha divisória entre a igreja e o mundo se torna obscurecida, o plano de Deus para uma comunidade amorosa, perdoadora, caridosa e santa se torna menos evidente. Mas essa linha obscurecida é por si só uma consequência de outra linha obscurecida — a linha entre o criador santo e a criatura caída, entre o Deus amoroso e o homem idólatra. Isso nos diz que muitos dos escritores que exigem hoje uma concepção menos “institucionalizada” e “delimitada” da igreja local são os mesmos escritores que preferem o Deus imanente em vez do Deus transcendente, o Jesus humano em vez do Jesus divino e uma Bíblia humana em vez de divina. Nós fornecemos panos para apagar a linha divisória entre a igreja e o mundo quando nos convencemos não de que somos a imagem de Deus, mas sim de que Deus é a nossa imagem e tem se misturado com a nossa idolatria por causa de seu amor. Dizendo de outro modo, conclui-se que uma visão deficiente sobre o amor e a igreja está arraigada numa visão deficiente sobre Deus e seu amor. Deixe-me resumir a questão dessa maneira: meu argumento para a membresia e a disciplina da igreja é o de que haja um limite evidente entre a igreja e o mundo, tão evidente quanto os limites entre o lado de dentro e o de fora do Éden, de dentro e de fora da arca, de dentro e de fora do arraial israelita, de dentro e de fora dos muros de Jerusalém. Todavia, o que se interpõe no caminho da nossa agilidade — como cristãos e igrejas de um Ocidente pós-moderno — em seguir o chamado bíblico para que essa linha exista é a nossa concepção distorcida, sem santidade, sem verdade e sem sabedoria acerca de Deus e do amor de Deus. Recuperar uma compreensão bíblica a respeito da igreja e de seus limites exige, portanto, que reconsideremos o 21


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que é o amor e o que são esses mesmos limites da igreja que ajudam a definir o que é o amor para o mundo.

UMA HISTÓRIA DE “AMOR” Existem inúmeras razões sociológicas e teológicas para que os primeiros dois crentes da minha conversa imaginária acima reagissem em relação à questão da estrutura organizacional do modo como reagiram, um dizendo que essa estrutura precisa ser flexível e o outro dizendo que isso não importa. E, visto que essas duas reações são comuns e estão profundamente arraigadas na mentalidade ocidental, vale a pena gastar algum tempo estudando arduamente as pressuposições que estão por detrás delas. No ensino médio, li uma história de amor que demonstra bem a essência do porquê é tão difícil para os crentes perceberem a relação entre o amor e a membresia e a disciplina da igreja. Na verdade, os estudantes americanos têm lido essa história por mais de um século, o que indica algo sobre o quão bem isso reflete os aspectos de nossa consciência cultural. Essa história de amor começa numa manhã ensolarada de verão, com cinco mulheres de pé num gramado, do lado de fora da cadeia de uma cidade. A data não é especificada, mas isso se dá em algum período do século XVII. O lugar é uma pequena colônia puritana na Nova Inglaterra, conhecida por Boston. A ação começa com uma mulher de cinquenta anos, de feições grosseiras, dando uma bronca em outras quatro mulheres: Prezadas senhoras, eu lhes darei uma repreensão. Seria evidentemente um benefício para a sociedade se nós, mulheres, sendo de idade madura e membros bem reputados da igreja, recebêssemos a responsabilidade de lidar com uma malfeitora6 como essa Hester Prynne. O que vos parece, fofocas? Se essa impudente estivesse de pé diante de nós cinco para um julgamento, ela teria saído com uma sentença tal qual a que os respeitáveis magistrados concederam? Penso que não7.

A assim chamada impudente, Hester Prynne, havia cometido adultério, um crime comprovado pela filha criança aconchegada em seus braços, dentro da prisão. 6  Uma mulher que violou a lei. 7  Esta citação e as outras que se seguem fazem parte da mesma conversa extraída de uma cópia do livro de Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter, que li no ensino médio (Nova Iorque: Washington Square Press, 1972, traduzido para o português como A Letra Escarlate, pp. 51-52. Modernizei levemente a linguagem em vários trechos. 22


Introdução Nessa manhã em especial, os magistrados da cidade haviam decidido que Hester sairia de sua cela, prosseguiria até o palanque da cidade e receberia várias horas de escárnio público por causa de seu pecado. Ao longo do caminho, e pelo restante de seus dias, ela seria obrigada a usar um bordado escarlate com a letra “A” — de adúltera — em seu peito. O escândalo deixa toda a igreja ansiosa. O pregador da igreja está consternado. Uma segunda mulher diz: As pessoas dizem que o Reverendo Mestre Dimmesdale, seu pastor piedoso, angustiou-se muito por um escândalo como esse ter acontecido em sua congregação.

Não é apenas o pecado de Hester que escandaliza o bom reverendo e a cidade, mas o fato de que seu amante, o pai da criança, permanece incógnito. Um hipócrita é, em geral, algo difícil de engolir numa “terra onde a iniquidade é investigada e punida à vista dos governantes e do povo”8. A recusa de Hester em revelar a identidade do pai duplica a sua culpa, e o bando de fofoqueiras barulhentas quer sangue. Uma terceira matrona comenta: Os magistrados da cidade são cavalheiros tementes a Deus, mas excessivamente misericordiosos. No mínimo, eles deveriam ter colocado uma marca de ferro incandescente na testa de Hester Prynne. A senhora Hester teria se estremecido com isso, eu garanto. Mas ela — essa impudente perversa — pouco se importará com o que eles colocam sobre o corpete de seu vestido! Por quê? Porque ela pode cobri-lo com um broche ou algum outro adorno de pagã e assim caminhar pelas ruas, tão descarada como sempre.

Depois, uma quarta matrona: Ah, deixe que ela cubra a marca como certamente cobrirá, mas o tormento dessa marca estará sempre em seu coração.

Depois, a quinta: 8  Ibid., p. 62. 23


A IGREJA E A SURPREENDENTE OFENSA DO AMOR DE DEUS

Essa mulher trouxe vergonha sobre todos nós e deve morrer. Não existe lei para isso? Na verdade há, tanto nas Escrituras quanto no livro de estatutos. Então, deixe que os magistrados que as tornaram ineficazes agradeçam a si mesmos se suas próprias filhas e esposas se extraviarem.

Li A Letra Escarlate, romance clássico de Nathaniel Hawthorne, escrito em 1850, para minha aula de inglês no ensino fundamental. Toda a classe ficou escandalizada — não com a trágica heroína Hester, mas com a população da cidade. Será que pessoas como essas realmente existiram? Nós as encaramos com todo o desdém que elas lançaram sobre Hester. Como elas podiam ser tão hipócritas, cruéis, ignorantes? A compaixão de Hawthorne em sua história dificilmente se esconde. Suas descrições sobre as cinco fofoqueiras faz com que elas pareçam carrancas monstruosas. Essa última mulher, ele descreve como “a mais feia, bem como a mais impiedosa dessas juízas autoconstituídas”. Compare a descrição dessa mulher com a descrição que Hawthorne faz da mulher a quem ela está atacando, Hester. A jovem Hester era alta, com uma aparência de perfeita elegância em larga escala. Ela tinha cabelos escuros e abundantes, tão brilhantes que lançou fora a luz do sol com seu resplendor; e um rosto que, além de ser lindo pela simetria dos traços e vivacidade da pele, possuía uma tenacidade que se devia a uma sobrancelha marcada e profundos olhos negros... E Hester Prynne jamais havia se apresentado de forma mais distinta... do que quando deixou a prisão. Aqueles que a haviam conhecido anteriormente e esperavam contemplá-la ofuscada e obscurecida por uma nuvem desastrosa ficaram surpresos e começaram a perceber como sua beleza resplandecia, transformando a desgraça e a ignomínia na qual estava envolvida numa auréola.

O contraste é evidente. O leitor pode simpatizar-se com as mulheres velhas e impiedosas ou com a auréola resplandecente de beleza de Hester — o que não seria uma escolha difícil para a maioria das pessoas. Quem não escolheria simpatizar com Hester? Parece que o emprego de uma bela mulher para “ganhar a venda” não é uma inovação da nossa época de histeria marqueteira. O reverendo mencionado pelas fofoqueiras, Arthur Dimmesdale, tem uma personalidade um pouco mais complexa. Ele aparece como o salafrário secreto que 24


Introdução engravidou Hester e a deixou sozinha para receber o ataque da cidade. Sua covardia é desprezível e sua hipocrisia é deplorável. Ao mesmo tempo, o seu caráter é mais compassivo do que maligno. Ele e Hester conversam várias vezes no decorrer do livro, e em determinado momento planejam fugir e começar uma nova vida juntos. No entanto, Arthur continua obstinadamente dividido entre suas afeições por ela e a influência da sociedade sobre ele. O amor o empurra numa direção, a lei da igreja o empurra para outra. Ninguém, nem o leitor mais impiedoso, pode fazer outra coisa senão torcer pela libertação dele e a reconciliação de ambos. Enfim, ele está arruinado por causa do conflito entre o coração e a mente, entre a alma e sociedade. A ignomínia de Hester a liberta ironicamente das convenções da igreja e do constrangimento social. Sem jamais ser avarento em seu simbolismo, Hawthorne coloca sua cabana, caindo aos pedaços, longe da civilização, na floresta selvagem onde as bruxas agem e os índios dominam, quase como um judeu imundo ou um cão gentio, forçado para fora do antigo arraial israelita. Todavia é lá longe, além dos limites da respeitabilidade, que Hester fica livre para amar de modo verdadeiro e divino. Ela pode perdoar Arthur e seus perseguidores. Ela pode sonhar com um futuro diferente com ele. Ela pode começar sua ocupação de cuidar dos pobres da comunidade. Ela pode criar a filha esperta que, no momento culminante do romance, curvar-se-á para beijar a testa do pai quebrantado, num momento ardente de graça triunfante.

O AMOR E A ESTRUTURA Embora um crente tradicional, que estivesse sentado num banco da igreja de encosto reto, com as mãos cruzadas no colo, pudesse ter considerado que os românticos dos séculos XVIII e XIX, como Hawthorne, estivessem trabalhando contra a religião, esses românticos percebiam a si mesmos como pessoas que a estavam salvando. Eles queriam definir o amor de Deus e os impulsos espirituais da humanidade independentemente das censuras rígidas da civilização cristianizada, as quais se originavam das formulações doutrinárias excessivamente elaboradas e da estrutura eclesiástica repressora. Se Hawthorne estivesse vivo hoje, ele provavelmente descreveria a si mesmo com o bem conhecido mantra: “espiritual, mas não religioso”. Sua igreja puritana romanceada classificava toda transgressão moral concebível e depois entregava essa classificação aos magistrados, para que eles as cumprissem. O problema não estava no impulso espiritual ou moral em si, mas no fato de colocar essas coisas 25


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numa estrutura religiosa. Isso era o que hoje podemos chamar de “institucionalismo” — tratar as variadas regras e sistemas de autoridade de uma organização como sendo mais importantes do que as próprias pessoas. Quando a espiritualidade e a moralidade se tornam embutidas na estrutura impessoal e autoritária de uma instituição, a conformidade a elas deve ser imposta pelos inspetores dessa instituição. Uma linha bem definida deve ser traçada entre os que são de dentro e os que são de fora. Qualquer tendência para individualidade ou criatividade deve ser reprimida pelo temor de transgredir o código. Os homens e as mulheres que demonstram uma habilidade maior para se conformarem aos códigos da instituição tendem a ficar endurecidos em posturas hipócritas, enquanto os homens e as mulheres que são incapazes de se manterem corretos, dentro dos limites, recebem uma reprimenda ou, pior, a exclusão do grupo. Com tudo isso, a graça e a misericórdia se esvaem, e o amor e a beleza são eliminados. Vale a pena notar como Hawthorne opera todos os botões de pânico de nossos dias: a igreja foi incorporada ao Estado; o que é privado tornou-se público; os semeadores religiosos de discórdia escarnecem daquela que é jovem, bonita e livre. Até mesmo a filha inocente se torna indiretamente uma vítima. Então, sobre que tipo de história de amor A Letra Escarlate é exatamente? É do tipo que ilustra bem as pressuposições sobre o amor, as quais muitas pessoas estavam começando a adotar no século XIX, quando Hawthorne escreveu seu livro, pressuposições que, creio eu, são quase que inquestionáveis hoje em dia. É difícil explicar essas pressuposições a respeito do amor de forma sucinta. Na verdade, usarei todo o primeiro capítulo para tentar dar uma explicação sobre isso. Mas deixe-me tentar fazê-lo resumidamente agora. Nós assumimos não que Deus é amor, mas que o amor é Deus. Em outras palavras, não comparecemos diante do verdadeiro criador do Universo e lhe dizemos: “Por favor, diga-nos como o Senhor é e como o Senhor define o amor.” Em vez disso, começamos com o nosso próprio conceito autodefinido de amor e permitimos que esse conceito autodefinido brinque de ser deus. Quando digo “brincar de deus”, quero dizer que deixamos que esse conceito defina o que é certo e errado, bom e mau, digno de glória e indigno de glória, mesmo quando esse tipo de avaliação pertence somente a Deus. O amor se torna o ídolo supremo. Por exemplo, era “errado” que Hester cometesse adultério? Teria sido errado se ela e Arthur tivessem fugido e começado uma nova vida juntos, apesar do fato de ela ser casada com outra pessoa? Ou poderíamos dizer que aquelas mulheres maldosas da cidade estavam arruinando a vida de Hester com seus julgamentos farisaicos? O 26


Introdução apelo implícito do romance de Hawthorne, e de todas as coisas em nossa cultura, é: “Não, isso não é errado, porque eles se amam. Ou, mesmo que isso seja um pouco errado, é justificável, pois o amor cobre os pecados. O amor justifica!” Pressuposições a Respeito do Amor Você consegue perceber as pressuposições que estão sendo feitas com respeito ao amor, na obra A Letra Escarlate, as quais eu contestaria, e que são absolutamente inquestionáveis ​​hoje? A primeira pressuposição é que nenhum limite pode ser estabelecido para o amor. Ao contrário, o amor estabelece todos os limites. Não há concepção alguma de verdade ou de santidade, ou de sabedoria, para condicionar ou estruturar tal amor. O amor segue livre, não limitado pela verdade. Na verdade, ele por si só constitui a verdade e é a fonte da justificação suprema. Podemos justificar qualquer coisa hoje em dia dizendo que isso foi “amoroso” ou “motivado pelo amor”. Considere por um momento aquilo que as pessoas entendem por amor hoje em dia e depois fale sobre o amor entre dois homossexuais. O que as pessoas entendem por amor quando usam esse termo para justificar o sexo heterossexual antes do casamento, ou fora do casamento, ou o divórcio? O que elas entendem por amor quando mimam seus filhos? O que elas entendem por amor quando mudam de uma igreja para outra ou nunca se sacrificam pelos outros em suas igrejas? É verdade que o amor é o bem mais grandioso, e é verdade que o amor justifica, mas a pergunta que permanece é o que — ou quem! — define o amor. A segunda pressuposição é que, em nossas mentes, o amor está desassociado das estruturas institucionais e dos atos institucionais de julgamento. Na melhor das hipóteses, a ideia de instituição é uma ideia fria, impessoal e burocrática. As estruturas possuem molduras rígidas e arestas. O amor, como sabemos, é flexível, complacente e pessoal. Na pior das hipóteses, as instituições têm tudo a ver com poder, não com amor. E os atos institucionais de julgamento — mesmo nas mais raras circunstâncias em que eles sejam necessários — sempre indicam uma falha do amor ou uma falha em amar. Eles certamente não são, em sua maioria, atos de amor. O que é uma instituição ou uma igreja institucionalizada senão uma autoridade impessoal e indiscriminada que alega falar em nome de Deus e nos diz o que é certo e errado, quando poderíamos saber, pelos nossos próprios instintos, que o amor está nos dizendo outra coisa? O que são as instituições e as igrejas institucionalizadas senão a tentativa de alguns poucos privilegiados tomarem o poder? Os românticos dos séculos XVIII e XIX queriam ser guiados pelo amor e não pela 27


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estrutura, pelos desejos internos e não pelo constrangimento externo, pelos impulsos espontâneos e não pela dedução racionalista, pelos sentimentos e não pelos fatos, pela beleza e pela liberdade e não pela eficiência e pela ordem, pela sabedoria suada dos dias laboriosos e não pela meditação idolente dos livros de teologia9. Eu creio que o Ocidente pós-moderno seja caracterizado por tendências semelhantes a essas. Em nossa mente, a palavra amor e a palavra instituição não poderiam estar mais distantes uma da outra. A terceira pressuposição é que amor e igreja não andam juntos, principalmente uma igreja com limites nítidos e opiniões autoritárias. Hester não era amada pela igreja. Ela foi perseguida e excomungada. Diga a palavra amor e o pensamento da maioria das pessoas imediatamente passará para alguma outra categoria, talvez para o relacionamento entre dois amantes ou para a relação entre pais e filhos, ou até mesmo para a relação entre um indivíduo e Deus. Mas quantas pessoas hoje associam o amor com os relacionamentos que subsistem dentro da igreja local? Geralmente, o caso é exatamente o contrário. As igrejas locais são mais conhecidas por contendas, maledicências e fanatismo. Além de todas essas, há mais uma pressuposição que as mentes ocidentais elaboram acerca do amor: amor e autoridade não têm nada a ver um com o outro. A autoridade reprime. O amor liberta. A autoridade explora. O amor capacita. A autoridade rouba a vida. O amor a salva. Essa dissociação entre o amor e a autoridade não é algo novo. Elas têm estado separadas desde que a Serpente sugeriu a Adão e Eva que o amor e a autoridade de Deus eram incompatíveis. Eu argumentaria que o contraste entre o amor e a autoridade chegou a ter um relevo ainda mais acentuado com o Iluminismo e os românticos contrailuministas, que compartilharam todo o individualismo autônomo dos racionalistas e classicistas contra os quais eles estavam reagindo. O que precisamos é de amor — diziam eles. Não de limites. Não de estruturas ou instituições. Não de autoridade. E, quem sabe, nem mesmo de igrejas. Essas coisas são os “bandidos” que os românticos como Hawthorne e nossa cultura de hoje colocam em oposição a este bem supremo chamado “amor”. Não há muitos crentes hoje em dia que vão tão longe, ao ponto de dizer que os crentes não precisam de igrejas, mas durante pelo menos dois séculos 9  Para uma útil introdução ao Romantismo do final do século XVIII e início do século XIX, veja Jacques Barzun, From Dawn to Decadence: 500 Years of Western Cultural Life, New York: HarperCollins, 2000, pp. 465–89, traduzido para o português como Da Alvorada à Decadência: a História da Cultura Ocidental, de 1500 aos nossos dias, Rio de Janeiro: Editora Campus, 2002. 28


Introdução inúmeros escritores têm argumentado que as igrejas precisam ser desinstitucionalizadas. Os protestantes liberais têm clamado por “mais comunhão” e “menos autoridade institucional” desde que Friedrich Schleiermacher emprestou essa linguagem dos românticos para colocar a experiência religiosa em oposição ao que ele via como formulações doutrinárias do Iluminismo racionalista10. Mais ou menos na mesma época, um movimento de renovação do Romantismo começou intensamente entre os escritores católicos romanos, como aqueles que haviam sido influenciados por Schleiermacher e outros, uma revolução que acabaria por culminar numa série de mudanças feitas no Concílio Vaticano II11. Os protestantes e os católicos abastados trabalharam em suas respectivas tradições, com certeza, mas suas doutrinas sobre a salvação e a igreja começaram a se aproximar uma da outra, em grande parte porque eles “partilhavam da mesma renovação romântica pós-iluminista”12. Os evangélicos conservadores têm nutrido essas tendências anti-institucionais essencialistas pelo menos desde que George Whitefield percebeu que os batistas e presbiterianos dos Estados Unidos eram mais favoráveis à sua obra de avivamento do que seus próprios anglicanos13. Isso surge exatamente toda vez que o cristianismo nominal e a “graça barata” se tornam um assunto importante na igreja14. 10  Veja Roger Haightm, Christian Community in History, vol. 2: Comparative Ecclesiology, [A Comunidade Cristã na História, v.2: Eclesiologia Comparativa] New York: Continuum, 2005, pp. 312–13. 11  Entre eles, Johann Adam Möhler, em especial, ajudou a inaugurar uma “revolução conceitual” na doutrina da igreja entre os católicos no ano de 1820 e seguintes, com seu livro Unity of the Church [Unidade da Igreja]; e Haight, Christian Community In History [Comunidade Cristã na História], p. 355. Veja também o útil resumo de Dennis Doyle, Communion Ecclesiology [Eclesiologia da Comunhão], Maryknoll, NY: Orbis, 2000 e o capítulo de Avery Cardinal Dulles, “The Church as Mystical Communion” [A Igreja como a Comunhão Mística] in Models of the Church, edição ampliada, New York: Image Books, 2002, pp. 39–54, traduzida para o português como A Igreja e seus Modelos, Brasília, DF: Paulinas, 1978. Seguindo a obra de Johann Adam Möhler, os pensadores-chave do último século da eclesiologia da comunhão católica romana que geralmente são citados incluem Charles Journet, Yves Congar, Henri de Lubac e Jean-Marie Tillard; veja a obra de Tillard, Church of Churches [Igreja das Igrejas]. Tanto João Paulo II quanto Bento XVI também fizeram contribuições significativas. 12  Haight, Christian Community, p. 356; Doyle, Communion Ecclesiology, pp. 23–37. 13  Uma pesquisa proveitosa sobre a influência de George Whitefield na percepção eclesiológica evangélica pode ser encontrada em Bruce Hindmarsh, “Is Evangelical Ecclesiology an Oxymoron? A Historical Perspective” [A Eclesiologia Evangélica é um Oxímoro? Uma Perspectiva Histórica] in Evangelical Ecclesiology: Reality or Illusion? [Eclesiologia Evangélica: Realidade ou Ilusão?], ed. John G. Stackhouse, Grand Rapids: Baker, 2003, pp.15–37. 14  Não é coincidência que o teólogo Dietrich Bonhoeffer, bem conhecido por sua crítica à graça barata em The Cost of Discipling [O Preço do Discipulado], seja o mesmo homem que também escreveria “The whole interpretation of the organizational forms of the Protestant Church as being those of an institution must therefore be dismissed as erroneous” [A Interpretação de todas as formas organizacionais da Igreja Protestante como sendo as de uma instituição que deve ser rejeitada como errada] in Dietrich Bonhoeffer, 29


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O que é mais notável para os nossos propósitos é a enxurrada de livros lançados nas últimas décadas pelos escritores evangélicos e pelos assim chamados pós-evangélicos de dentro da igreja emergente ou da igreja missional, ou pelos seus simpatizantes, que ecoam esse mesmo apelo por menos instituição e mais comunhão15. Não é de surpreender que essa mesma tendência romântica surja também Sanctorum Communio, London: Collins, 1963, p. 178. 15  Essa está longe de ser uma amostragem exaustiva dos trabalhos acadêmicos e não acadêmicos dos evangélicos e pós-evangélicos, listados cronologicamente, os quais, em graus variados, exigem uma maior ênfase na comunhão e menos na instituição em relação às práticas protestantes comuns nos últimos dois séculos: Colin Gunton, “The Church on Earth: The Roots of Community” [A Igreja na Terra: As Raízes da Comunhão] in On Being the Church: Essays on the Christian Community [Sobre o que é Ser Igreja: Ensaios sobre a Comunhão Cristã], ed. Colin E. Gunton e Daniel W. Hardy, Edinburgh: T&T Clark, 1989, pp. 48–80; Greg Ogden, Unfinished Business: Returning the Ministry to the People of God [Empreendimento Inacabado: Um Retorno ao Ministério para o Povo de Deus (Grand Rapids: Zondervan, 1990), 62–108; David J. Bosch, Transforming Mission: Paradigm Shifts in Theology of Mission, Marynoll, NY: Orbis, 1991, pp. 50–51, traduzido para o português como Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão, São Leopoldo, RS: Sinodal, 2002; Paul G. Hiebert, Anthropological Reflections on Missiological Issues, Grand Rapids: Baker Books, 1994, pp. 107–36; 159–72, traduzido para o português como O Evangelho e a Diversidade das Culturas: Um Guia de Antropologia Missionária, São Paulo: Vida Nova, 1999; Kevin Giles, What on Earth Is the Church: An Exploration in New Testament Theology [O que é a Igreja, Afinal? Uma Exploração da Teologia do Novo Testamento], Eugene, OR: Wipf and Stock, 2005; orig. SPCK, 1995, pp. 8–22; Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America [Igreja Missional: Uma Visão do Envio Feito pela Igreja da América do Norte], ed. Darrell L. Guder, Grand Rapids: Eerdmans, 1998, pp. 80, 84, 93–94, 221ss; Darrell L. Guder, The Continuing Conversion of the Church [A Conversão Contínua da Igreja], Grand Rapids: Eerdmans, 2000, pp.181–204; Craig Van Gelder, The Essence of the Church: A Community Created by the Spirit [A Essência da Igreja: Uma Comunidade Criada pelo Espírito], Grand Rapids: Baker, 2000, pp. 55–58, 74–75, 125, 157–58; Eddie Gibbs, Church Next: Quantum Changes in How We Do Ministry, Downers Grove, IL: InterVarsity, 2000, pp. 65–91, traduzido para o português como Para Onde Vai a Igreja? Mudanças na Maneira de Conduzir Ministérios, Curitiba, PR: Editora Esperança, 2012; Stanley Grenz, The Social God and the Relational Self: A Trinitarian Theology of the Imago Dei [O Deus Social e o Ser Relacional: Uma Teologia Trinitariana da Imago Dei], Louisville: Westminster, 2001, pp. 331–36; Doug Pagitt, Church Re-Imagined: The Spiritual Formation of People in Communities of Faith [A Igreja Repensada: A Fomação Espiritual das Pessoas nas Comunidades de Fé], Grand Rapids: Zondervan, 2003, pp. 23–31, 47–48; Stuart Murray, Church After Christendom [A Igreja Após a Cristandade], Milton Keynes, UK: Paternoster, 2004, pp. 135–64; Brian McLaren, A Generous Orthodoxy, Grand Rapids: Zondervan, 2004, p. 62, traduzido para o português como Uma Ortodoxia Generosa, Brasília, DF: Palavra, 2007; Reggie McNeal, The Present Future: Six Tough Questions for the Church [O Futuro Presente: Seis Questões Difíceis para a Igreja], San Francisco: Jossey-Bass, 2003, pp. 26–27, 34–36; Eddie Gibbs and Ryan K. Bolger, Emerging Churches: Creating Community in Postmodern Cultures [Igrejas Emergentes: Criando Comunhão nas Culturas Pós-modernas], Grand Rapids: Baker, 2005, pp. 89–115; Neil Cole, Organic Church: Growing Faith Where Life Happens, San Francisco: Jossey-Bass, 2005, traduzida para o português como Igreja Orgânica: Plantando a Fé Onde a Vida Acontece, Rio de Janeiro: Habacuc, 2008; Trinity in Human Community: Exploring Congregational Life in the Image of the Social Trinity [A Trindade na Comunidade Humana: Explorando a Vida Congregacional na Imagem da Trindade Social], Milton Keynes, UK: Paternoster, 2006, 1–3; Ray Anderson, An Emergent Theology for Emerging Churches [Uma Teologia Emergente para Igrejas Emergentes], Downers Grove, IL: InterVarsity, 2006, p.92; Dan Kimball, They Like Jesus but Not the Church: Insights from Emerging Generations, Grand Rapids: Zondervan, 2007, pp. 73–95 traduzido para o português como Eles Gostam de Jesus, Mas Não da Igreja: Insights das Gerações Emergentes Sobre a Igreja, São Paulo: Vida, 2011. 30


Introdução através de muitos desses livros, como faz um de seus mais incitantes clamores: amenizem os limites entre os que são de dentro da igreja e os que são de fora. Conforme um desses autores expressa: “Os limites entre aqueles que pertencem à igreja e aqueles que não pertencem não deveriam ser traçados de forma tão acentuada.”16 Afinal, “o estabelecimento de limites claros é geralmente um ato de violência”.17 Na Busca das Duas Coisas Jesus sabia que, num mundo caído, nenhuma autoridade, quer fosse institucional ou não, poderia ser totalmente confiável. Ele sabia que nas mãos dos seres humanos pecaminosos sempre houve e sempre haverá uma arma para praticar os piores atos de exploração e destruição. Em relação a Jesus, o apóstolo João escreveu: muitos, vendo os sinais que ele fazia, creram no seu nome, mas o próprio Jesus não se confiava a eles, porque os conhecia a todos. E não precisava de que alguém lhe desse testemunho a respeito do homem, porque ele mesmo sabia o que era a natureza humana (Jo 2.23-25). Essas palavras são impressionantes. Não se confiava a eles, porque sabia o que era a natureza deles. Ele sabia que tipo de apetites governava as suas melhores ações. Em certo sentido, é claro que Jesus finalmente se confiou às autoridades — a ponto de morrer — mas ele nunca confiou sua consciência, sua vontade, sua lealdade ou missão a qualquer autoridade humana. Mesmo com a idade de doze anos, ele se conduzia de forma submissa aos seus pais, ao mesmo tempo em que os lembrava de que sua submissão suprema pertencia ao Pai do Céu (Lc 2.49, 51). Dado o histórico da conduta de Jesus com os fariseus, sem deixar de lado os seus comentários concernentes às suas tradições, acho que também podemos dizer com segurança, apesar do anacronismo, que Jesus conhecia muito bem os perigos das instituições e a tentação humana para explorar o poder institucional para tirar vantagens egoístas. Tudo isso produz certo dilema. E se quisermos o amor gracioso que Hawthorne personifica em Hester, sem fecharmos os olhos para o adultério? E se quisermos descrever algumas coisas como “erradas” e ainda quisermos continuar sendo pessoas amorosas? E se quisermos o coração e também a cabeça, o amor e também a verdade, principalmente quando se tem em conta o estado decaído deste mundo, que geralmente coloca essas duas tendências ou esses dois tipos de pessoas uns contra os outros, 16  16 Miroslav Volf, After Our Likeness [Consequência da Nossa Semelhança], Grand Rapids: Eerdmans, 1998, 148 n. 84. 17  Ibid., 151 n. 97 31


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conforme Hawthorne faz? Será que devemos supor que Deus nos chama para nos submetermos às autoridades só quando essa submissão está de acordo com nossas opiniões pessoais ou com nossas conjecturas racionais? Se for assim, o que a submissão significa de fato? Esse dilema é bem apreendido numa afirmação de um escritor anglicano: “O clamor popular é por pronunciamentos inequívocos vindos de Cantuária — contanto que eles sejam aqueles com os quais o orador se alegra em concordar!”18 É certo que a história da igreja está repleta de igrejas caindo nesse tal “institucionalismo”, o qual pode ser antiético para o próprio cristianismo se tivermos em mente a centralização de toda a autoridade no bispo, se misturamos a Igreja e o Estado, seguindo Constantino, ou se tivermos uma proliferação excessiva de comitês na igreja batista local. O evangelho deles não dá ênfase alguma sobre a oposição que Jesus faz às estruturas que roubam a vida, estabelecidas pelos fariseus para manter a vida espiritual de Israel. Uma das tentações perenes da Igreja tem sido a de permitir que os elementos institucionais de sua vida corporativa sejam tratados como primordiais19; a de permitir que as suas regras e hierarquias se tornem mais importantes do que as pessoas e seus relacionamentos; a de deixar que as tradições dos homens prevaleçam sobre os mandamentos de Deus20. Talvez as regras erradas estejam sendo impostas. Talvez as regras corretas estejam recebendo uma ênfase errada. Talvez os guardas da instituição simplesmente gostem de ter poder. Esse é o tipo de coisa que certamente pode acontecer com frequência21. Na verdade, os seres humanos são tão inclinados a abusar da autoridade, e até mesmo os crentes são tão prontos para fundamentar erroneamente suas tradições nos alicerces de concreto de suas instituições, que 18  Paul Avis, Authority, Leadership, and Conflict in the Church [Autoridade, Liderança e Conflitos na Igreja], Philadelphia: Trinity Press International, 1992, p. ix. 19  Dulles, Models of the Church, p. 27. 20  Peter L. Berger e Thomas Luckmann oferecem uma introdução muito proveitosa à ideia de institucionalização e suas origens in The Social Construction of Reality: A Treatise in the Sociology of Knowledge, New York: Anchor Books, 1966, pp. 47–79, traduzido para o português como A Construção Social da Realidade, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1999. “A institucionalização acontece” — dizem eles — “sempre que existe uma simbolização das ações habituais por modelos ou agentes principais. Em outras palavras, qualquer simbolização é uma instituição”, p. 54. Penso que uma maneira mais simples de dizer “simbolização das ações habituais” é dizendo “tradição”; uma ideia que não é intrinsecamente problemática, mas que se torna problemática quando, conforme Jesus disse aos fariseus: “Vocês negligenciam os mandamentos de Deus e se apegam às tradições dos homens” (Mc 7:8 - NVI). Uma maneira pela qual poderíamos definir “institucionalismo” seria dizendo que nossas instituições se tornam “institucionalizadas” sempre que nossas tradições prevalecem sobre os mandamentos de Deus. 21  Paul G. Hiebert apresenta uma análise útil das características de uma igreja que está sucumbindo à institucionalização, bem como dos perigos de se fazer isso, em Anthropological Reflections [Reflexões Antropológicas], pp. 159–64. 32


Introdução realmente parece perigoso tirar os nossos olhos dessa ameaça iminente, nem que seja por um momento; o que seria quase como se o piloto de um jato de combate decidisse desligar o seu radar, embora estivesse ouvindo o zunido de um míssil inimigo indo contra sua aeronave. Ao longo dessas linhas, eu concordo plenamente com os aspectos significativos das recentes críticas ao “institucionalismo” nas igrejas ocidentais, principalmente na literatura da igreja missional. Os homens pecadores deste mundo — e até mesmo os homens pecadores crentes das igrejas! — sempre desejarão abrigar suas tradições em estruturas autoritárias, e eles o farão de maneiras que acabam impedindo uma comunhão amorosa. Posto isso, a ameaça do institucionalismo e o abuso de autoridade não são os assuntos que este livro está rebatendo22. Na verdade, ele está rebatendo o erro oposto, o erro que, creio eu, aflige muito mais os crentes e as igrejas de hoje, à luz da cosmovisão anti-institucional, antilimites, antimoralidade, antiautoridade e das tendências da cultura ocidental. Ele está rebatendo as ameaças da falta de limites que é antiautoridade e a ameaça da falta de submissão. Fazer isso de maneira adequada, num contexto de decadência, requer que mantenhamos ligado o radar de nossas telas. Precisamos considerar o que significa se submeter à autoridade de uma igreja local e aos seus líderes, mesmo em face da ameaça de a autoridade estar sendo exercida erroneamente. De modo implícito, este livro argumentará que a dicotomia entre o amor e a estrutura, entre a comunhão autêntica e a instituição estruturada é uma dicotomia falsa. Correndo o risco de simplificar demais, digo que o romântico precisa do classicista; o coração precisa da cabeça; a criatividade precisa da ordem; o amor precisa da verdade e da autoridade. Com tantas dicotomias como essas, precisamos tomar cuidado para não sermos forçados a adotar uma ou outra, mas sim buscar o intangível: uma e também a outra. Enfatizar uma coisa em detrimento da outra produz algo que é inferior à humanidade, pois, conforme veremos 22  O livro de Miroslav Volf, After Our Virtue: The Church as the Image of the Trinity [A Consequência da Nossa Virtude: A Igreja como a Imagem da Trindade], promove a concepção relacional da igreja local, mas ele o faz sem rejeitar os elementos institucionais da igreja: “Conforme uma visão muito difundida nos círculos protestantes, o Espírito de Deus e as instituições da igreja estão em contradição. ‘Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade’ (2 Co 3.17); em contraste a isso, as instituições são entendidas como mecanismos de repressão. Se essa visão estivesse correta, então a ‘anarquia espiritual’ resoluta seria a única ‘estrutura’ adequada para uma igreja carismática. Essa visão, no entanto, é preconceituosa, e qualquer um que compartilhe dela falha em reconhecer tanto o caráter das instituições eclesiásticas quanto o modo de agir do Espírito de Deus”, em After Our Virtue, Grand Rapids: Eerdmans, 1998, p. 234. 33


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mais tarde, uma ênfase exagerada em certa direção produz uma imagem de algo que é inferior ao divino. A simples presença de elementos institucionais (regras, recursos, hierarquias) dentro de uma igreja não implica necessariamente num institucionalismo, do mesmo modo como a lei não implicaria num legalismo ou um dogma não implicaria num dogmatismo23.

A MEMBRESIA E A DISCIPLINA DA IGREJA Explicitamente, este livro examinará as linhas divisórias da membresia e da disciplina da igreja local — as mesmas coisas que, no mundo fictício de Hawthorne, prenderam o “A” escarlate ao corpete de Hester Prynne e a expulsaram da vila para a selva desprotegida. A membresia e a disciplina da igreja local, tanto quanto qualquer outra coisa, representam o lado institucional da religião e da vida da igreja. A membresia da igreja é o traço na terra, uma linha limítrofe, um muro ao redor da cidade. É a lista de nomes. É uma forma institucional de declarar: “As pessoas desta lista são as de dentro. Todos os demais são os de fora.” A membresia da igreja, sem dúvida alguma, é exclusivista. A disciplina da igreja, então, é o mecanismo utilizado para impor essa prática exclusivista, é a caneta que escreve alguns nomes na lista e risca outros. Ela é o oficial de justiça que despeja o embusteiro. A membresia e a disciplina da igreja são os dois lados de uma mesma moeda. Este livro não só examinará as práticas de membresia e disciplina da igreja, como também argumentará que Deus tenciona usar essas mesmas estruturas para ajudar a definir seu amor para com o mundo que nos observa. Apenas para ser claro, isso significa que essas estruturas advogam em favor dessas práticas exclusivistas. Ligar e Desligar Por que alguém desejaria fazer isso? O mais importante é porque Jesus deu a igreja esse tipo de autoridade institucional. Os autores do evangelho registraram Jesus utilizando a palavra que nós traduzimos como “igreja” apenas duas vezes. Talvez seja irônico, portanto — à luz da nossa própria repulsa cultural a qualquer coisa que tenha resquícios de institucionalismo — que, em ambas as passagens, ele conceda a esse ajuntamento de pessoas a autoridade para “ligar e desligar”. 23  Dulles, Models of the Church, p. 27, cf. Giles, What on Earth Is the Church, pp. 21–22. 34


Introdução “Também eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos céus; o que ligares na terra terá sido ligado nos céus; e o que desligares na terra terá sido desligado nos céus” (Mt 16.18-19). Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra terá sido ligado nos céus, e tudo o que desligardes na terra terá sido desligado nos céus. Em verdade também vos digo que, se dois dentre vós, sobre a terra, concordarem a respeito de qualquer coisa que, porventura, pedirem, ser-lhes-á concedida por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, ali estou no meio deles (Mt 18.18-20).

Essas passagens têm sido debatidas pelos clérigos desde que Mateus as escreveu, e compreender tudo o que elas envolvem não é fácil. Voltaremos a uma discussão mais extensa sobre isso no capítulo 4. Por enquanto, vale a pena destacar algumas questões que creio bastante simples. Nessa passagem, Jesus descreve esse poder com a metáfora de uma chave, a qual é a razão de os pastores e os teólogos ao longo da história da igreja se referirem ao “poder das chaves”. Essa metáfora é bem simples. O que as chaves fazem? As chaves trancam e destrancam portas. As chaves permitem que algumas pessoas entrem, mantendo as outras pessoas do lado de fora, o que é exatamente o que Jesus queria que esse grupo de pessoas reunidas em seu nome fizesse — controlasse quem entrava e quem ficava de fora. Onde Jesus diz que essa chave deveria ser usada? Onde esse ligar e desligar acontece? Novamente, sua resposta é simples e proveitosa: na terra. Jesus chama essa assembleia de pessoas reunidas em seu nome para ligar e desligar pessoas na terra. O que não está muito claro é exatamente o que esse ligar e desligar na terra significa no céu. Os católicos romanos dizem uma coisa, os protestantes outra, mas apenas para esclarecer: esse ligar e desligar acontece em meio a pessoas reais, de carne e osso, na terra — não em meio a realidades abstratas e idealizadas. Isso acontece necessariamente de maneira local, porque os seres humanos existem de maneira local. Jesus concede aos ajuntamentos reais, constituídos de pessoas reais, tanto o poder como a obrigação de decidir se Evódia ou Ciro, ou Catherine, ou Friedrich, ou McKenzie, ou Farhod, ou Jeng é, de fato, “um deles” — um crente, um seguidor de Cristo, um discípulo. Se esse ajuntamento real e não abstrato determina que a profissão de fé de um indivíduo é fidedigna, ele une esse indivíduo a eles mesmos. Caso contrário, não o une. Como essas pessoas exercem sua autoridade para unir? Elas os 35


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unem por meio de dois mecanismos externos, visíveis e institucionais, concedidos a eles por Jesus: uma iniciação através do batismo e a participação contínua por meio da ceia da nova aliança. Como eles desobrigam ou desligam alguém? Eles negam ao indivíduo a oportunidade de participar dessa ceia contínua. É em meio a esse poder para ligar e desligar, para supervisionar e disciplinar no meio desses ajuntamentos reais de cristãos na terra, que encontramos as doutrinas da membresia e da disciplina da igreja.

A RELEVÂNCIA DESSE TÓPICO O tópico sobre a membresia e a disciplina da igreja é particularmente relevante em nosso contexto ocidental pós-moderno por pelo menos quatro razões. A Confusão Eclesiológica Em primeiro lugar, o pragmatismo que reinou nas igrejas americanas pelo menos desde o século XX, principalmente desde o advento (semelhante a de Donald McGavran) da ideia de crescimento de igreja em meados do século passado, deixou a nossa compreensão a respeito da própria igreja em alguma medida sem doutrina, sem preceitos e sem estrutura. É quase como se as correntes de ar do pragmatismo e a pressão barométrica do pós-modernismo viessem junto com a queda de temperatura do “essencialismo” evangélico (o jeitinho evangélico para descartar qualquer doutrina não considerada essencial para a salvação), a fim de produzir a “tempestade perfeita”, uma tempestade que dizimou a capacidade de pensar com seriedade e vigor renovado acerca da igreja local. Do lado dos evangélicos de direita, estão os pensadores cautelosos, que são completamente escrupulosos em outras áreas da doutrina, mas tendem a seguir a correnteza pragmática na forma como conduzem e estruturam suas igrejas. Quando os conservadores escrevem sobre a igreja, eles geralmente repetem o que os Pais disseram a respeito de a igreja ser única, santa, universal e apostólica ou o que os reformadores descreveram como as duas marcas da igreja. Essa última ênfase geralmente se traduz num compromisso com a pregação, levando a sério as ordenanças, o que é certamente essencial, mas nem sempre oferecem uma orientação imediatamente evidente nas questões que confrontam a igreja contemporânea, como o local das programações, ministérios de pequenos grupos, cultos múltiplos, múltiplos locais de culto, pastoreio por meio de vídeo transmissão, o relativismo, o papel da contextualização, os desafios da globalização, a relutância cultural quanto ao 36


Introdução comprometimento ou à afiliação, o consumismo, o cinismo, as concepções contemporâneas sobre tolerância e muito mais. Enquanto isso, do lado dos evangélicos de esquerda, novas conversas interessantes estão acontecendo em relação a como a igreja se relaciona com a Trindade ou como a essência da igreja está intimamente ligada a missões. Contudo, muitos desses mesmos escritores estão construindo suas doutrinas sobre a igreja com base nas doutrinas do Deus trino e num evangelho que se demonstra insatisfatório para os conservadores. A consequência disso é uma espécie de confusão, com evangélicos de todo tipo de concepções construindo suas igrejas com base numa mistura aleatória de tradição, pragmatismo e novas ideias, as quais possuem alguma utilidade, mas que se baseiam em concepções inadequadas sobre Deus e o evangelho. A Oposição à Membresia Em segundo lugar, o tópico sobre a membresia e a disciplina da igreja é particularmente relevante agora porque um número crescente de livros escritos por pastores e líderes de igreja nas várias últimas décadas se opõem explicitamente à prática da membresia da igreja. Alguns argumentam que a membresia da igreja local é irrelevante, desnecessária ou antiquada e, por essa razão, pode ser dispensada. Outros argumentam que a linha divisória exclusivista da membresia da igreja apresenta um exemplo distorcido do evangelho e, por isso, deve ser dispensada. Entre essas vozes, as palavras que se repetem vez após vez são: “menos institucionalismo” e “mais comunhão autêntica”, ou “menos estrutura e mais amor”. Conforme mencionado alguns momentos atrás, determinados autores católicos romanos e protestantes liberais têm dito isso desde meados do século XIX, e cada vez mais nas décadas anteriores e posteriores ao Concílio Vaticano II, mas inúmeros evangélicos, e os assim chamados pós-evangélicos, têm dito o mesmo nas duas últimas décadas. Isso quase se tornou um mantra: o institucionalismo é ruim, a comunhão amorosa é boa24. A Reduzida Importância da Igreja Local Esses autores e líderes não estão pensando dentro de um vazio, mas num contexto de tendências culturais mais profundas. Isso nos leva à terceira razão para a relevância do tópico sobre a estrutura da igreja, ou seja, os crentes ocidentais pos24  Veja n. 15. 37


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suem uma concepção anêmica e fraca sobre a igreja local e sobre seu papel na fé cristã. O pesquisador de opinião pública, o evangélico George Barna, testemunhou o seguinte fato: Enquanto aproximadamente metade da população adulta frequenta cultos religiosos durante uma semana típica... menos de um em cada cinco adultos acreditam firmemente que a congregação da igreja é um elemento crucial para o seu crescimento espiritual, e apenas alguns argumentam intensamente que a participação em algum tipo de comunidade de fé é exigida para que eles alcancem seu pleno potencial. Somente 17% dos adultos disseram que “a fé de uma pessoa deve ser desenvolvida principalmente por meio do envolvimento com a igreja local”. Até os grupos de frequentadores mais dedicados — como os evangélicos e os crentes regenerados — geralmente rejeitam essa noção; apenas um terço de todos os evangélicos e um em cada cinco não evangélicos adultos regenerados apoiam essa concepção. Apenas um em cada quatro adultos que possui uma cosmovisão bíblica (25%) concordou com a centralidade da igreja local para o crescimento espiritual de uma pessoa. Assim como apenas alguns adultos (18%) adotaram firmemente a ideia de que a maturidade espiritual exige envolvimento numa comunidade de fé25.

Também em minha experiência, quando pergunto a um crente comum o quanto uma membresia comprometida com a igreja é importante para o seu cristianismo, isso produz uma resposta que varia entre “nada” e “mais ou menos”. Muitos crentes estão felizes por frequentar indefinidamente uma igreja específica, sem que haja uma associação formal. Outros estão felizes em visitar igrejas diferentes de mês em mês e permanecem nesse padrão por um ano ou mais. Ainda há outros que, enfim, não frequentam igrejas e tentam manter sua vida espiritual através do uso autodirecionado de livros cristãos, grupos de comunhão, estações de rádio ou outros meios de mídias cristãs. Se você tentar explicar para alguém com essa mentalidade a importância ou mesmo a necessidade de se associar a uma igreja, é provável que você 25  Extraído de “Barna Update”, intitulado “Americans Have Commitment Issues, New Survey Shows” [Os Americanos Têm Assuntos Comprometedores, Apontam as Novas Pesquisas”, pelo Grupo Barna, 18 de abril de 2006. Os dados se baseiam em 1003 entrevistas telefônicas com adultos de todos os EUA. http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=235; acessado em 23 de janeiro de 2008. 38


Introdução receba, na melhor das hipóteses, um encolher de ombros, ou, mais provavelmente, a acusação: “Isso é legalismo”, ou “Isso é dogmático”, ou “Isso não é amor”. Mencione as palavras disciplina da igreja, e poderá estar bem certo de que essas acusações virão. “Assim Como Eu Vos Amei” À medida que os crentes perdem de vista o chamado de Deus para levarem a cabo sua vida cristã coletiva, eles perdem tragicamente a capacidade de definir o amor para o mundo — o que é a quarta razão por que este tópico é tão relevante. A doutrina da igreja, na verdade, conforme disse no início, leva toda a doutrina cristã a determinar como um grupo real de pessoas se reúne e organiza suas vidas. O que o evangelicalismo precisa hoje não é apenas de um centro renovado e rearticulado, ele precisa de limites. E com isso não estou querendo dizer apenas limites doutrinários ou as “afirmações e negações” indicadas pelos líderes das várias denominações e movimentos evangélicos. Falo dos limites que pertencem às igrejas locais. Essa é a ferramenta que Cristo deu à igreja na terra para impor essas declarações de fé e esses centros doutrinários vigorosos! É exatamente por essa razão que a doutrina da igreja é a mais adequada para definir o amor de um modo que até mesmo a doutrina da salvação ou a doutrina de Deus não pode: ela prepara o povo da nova aliança de Deus para exibir o caráter, a sabedoria e a glória de Deus a todo o Universo (Ef 3.10). É exatamente por isso que Jesus disse a seus discípulos: “Um novo mandamento lhes dou: Amem-se uns aos outros. Como eu os amei, vocês devem amar-se uns aos outros. Com isso todos saberão que vocês são meus discípulos, se vocês se amarem uns aos outros” (Jo 13.34-35 - NVI). O mundo entenderá quem é Cristo e o que o amor é quando a igreja o definir amando uns aos outros no evangelho — “como eu os amei”. Mas aqui há uma armadilha — a palavra “como” em “como eu os amei”. Os crentes devem amar uns aos outros como Cristo nos amou. E se, conforme eu disse, nós tivermos concepções idólatras acerca do amor — e até mesmo concepções idólatras sobre o amor de Cristo? O argumento deste livro, de modo bem simples, é que Deus chama a igreja para traçar limites; limites que distinguem essas pessoas de outras pessoas; limites que impedem que algumas pessoas se associem a elas ao mesmo tempo em que excluem outros indivíduos após eles terem se associado a elas. E não somente isso, Deus pretende que a igreja utilize essas linhas divisórias a fim de ajudar a definir para o mundo o que o amor é exatamente. 39


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A igreja define o amor. Embora ela geralmente defina o amor de forma deficiente, Deus chama a igreja para fazer isso — para definir o amor para o mundo por meio desse mesmo processo de incluir alguns pecadores e excluir outros.

CONFIANTEMENTE RELEVANTE PARA TODOS OS SISTEMAS DE LIDERANÇA Meu alvo com este livro não é formar um argumento explícito sobre a forma de sistema de liderança que eu pessoalmente creio que seja a melhor: batista e congregacional. Em vez disso, meu alvo primordial é argumentar em prol de dois aspectos específicos do sistema de liderança da igreja — membresia e disciplina — os quais acredito que devam ser aplicados em qualquer contexto denominacional, mesmo que eu mantivesse, simultaneamente, diferentes formas de liderança para a igreja, elas seriam melhores ou piores se esses aspectos estivessem sendo mantidos apropriadamente ou não. Em outras palavras, espero ver as igrejas batistas; anglicanas/episcopais; luteranas; metodistas; pentecostais; presbiterianas; menonitas; independentes, mas lideradas por presbítero; e todas as outras igrejas que pregam o evangelho, praticando a membresia e a disciplina da igreja de modo significativo, por intermédio dos mecanismos de seus sistemas de lideranças específicos, mesmo que alguns desses sistemas sejam mais apropriados para isso do que outros. Portanto, tentarei evitar qualquer ambiguidade na forma como defino a igreja “na terra”, não porque não considere que isso seja importante, mas porque não é essa a batalha que desejo travar aqui. Por exemplo, eu discordaria de um presbiteriano que dissesse que a igreja visível consiste em “todos aqueles que fizeram profissão de sua fé no Senhor Jesus Cristo e também os seus filhos”26; ou de um episcopal que se referisse a uma entidade chamada Igreja Episcopal na América27. Entretanto, acredito que uma igreja que admita os filhos dos crentes, mas que tome o cuidado bíblico de ligar e desligar os crentes na terra é melhor do que outra que não o faz. Sim, creio que incluir filhos potencialmente não regenerados na igreja trará problemas para ela mes26  The Book of Church Order of the Presbyterian Church in America, 6th ed.; [Livro de Ordem da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos, 6a ed], Gabinete do Secretário Estadual da Assembleia Geral da Igreja Presbiteriana nos Estados Unidos, conforme aprovado pela 35a Assembleia Geral em Memphis, TN, junho de 2007: 2–1, 4–1. 27  E.g., Thomas Witherow, The Apostolic Church, 1858; reimpresso por Glasgow, Scotland: Free Presbyterian Publications, 2001, p. 15 traduzido para o português como A Igreja Apostólica - Que Significa Isto?, Recife: Editora Os Puritanos, 2005. Sobre esse tópico, veja Miroslav Volf, After Our Likeness, p. 138. 40


Introdução ma, principalmente para a geração seguinte, mas meu alvo aqui é considerar questões que espero beneficiem tanto as igrejas batistas quanto as presbiterianas. Penetrando um pouco mais no livro, principalmente quando começo a discutir as questões mais práticas, o leitor descobrirá outros aspectos de meu congregacionalismo. E em um ou dois trechos eu chego a apresentar um argumento sobre por que a abordagem congregacional no sistema de liderança da igreja, além de ser bíblica, resolve melhor alguns problemas, tais como as ameaças ou abusos de autoridade. Apenas peço aos não congregacionalistas que sejam pacientes enquanto faço isso. Quanto aos desentendimentos que eu, sendo um batista, possa ter com os não batistas sobre o significado do batismo ou da Ceia do Senhor, que são dois assuntos importantes para os tópicos acerca da membresia e disciplina, a boa notícia para o leitor não batista é que a maioria das outras denominações protestantes conservadoras e moderadas pode afirmar praticamente tudo o que um batista diz sobre esses dois temas. Em geral, as divergências não envolvem tipicamente descartar o que um batista crê, mas envolvem o fato de se algo mais deve ser acrescentado ao que um batista acredita. Por essa razão, espero que os presbiterianos, anglicanos, metodistas e outros se achem capazes de afirmar muito daquilo que direi em relação ao significado do batismo e da Ceia do Senhor. Literatura Além disso, o leitor perceberá ao longo do livro que geralmente utilizo referências de obras bem conhecidas da literatura, como fiz ao usar A Letra Escarlate. Tenho feito isso por duas razões. Primeiro, porque isso tem sido divertido para mim no processo de escrita do livro. Em segundo lugar, e ainda mais importante, acredito que a boa literatura, com suas imagens e pathos, pode transmitir melhor o zeitgeist — o espírito da época — do que as pesquisas de opinião, que é o que a maioria dos livros daqueles dias parece empregar para caracterizar o panorama cultural. Uma boa teologia deve estar constantemente atenta quanto ao modo como todos nós estamos arraigados em nossa própria época, e espero que essas referências literárias nos ajudem a nos tornar mais cientes de nossas pressuposições. Nosso Plano de Culto Finalmente, eis o que vem pela frente. O capítulo 1 começa com uma consideração sociológica dos fatores culturais que impedem significativamente a membresia e a disciplina da igreja. Essa é outra parte de minha tentativa de fazer com que a 41


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teologia dialogue com nossa própria época e lugar. Enfim, argumentarei que essas considerações sociológicas dão lugar às considerações espirituais. Nos capítulos de 2 a 5, apresento um argumento teológico consistente para a membresia e a disciplina da igreja. O capítulo 2 tenta elucidar o que é uma compreensão correta acerca do amor. O capítulo 3 tenta elucidar o que é uma compreensão correta sobre a autoridade. Gastarei tempo para fazer essas duas coisas por duas razões. Primeiro, porque a membresia da igreja é uma função do amor e da autoridade de Deus exercida entre os crentes da aliança. Segundo, porque acredito que a maioria dos evangélicos possui, na melhor das hipóteses, compreensões reducionistas sobre o amor e a autoridade. Você pode até dizer que eu estou tentando usar esses dois capítulos para introduzir uma nova visão de mundo antes de formular argumentos mais específicos em relação à membresia e à disciplina da igreja nos capítulos 4 e 5. No entanto, se você estiver ansioso para ir direto ao assunto, vá logo para o capítulo 4, onde eu defino formalmente a membresia e a disciplina da igreja, com base em Mateus 16, 18 e 28. Eu argumento que membresia é um tipo de aliança. Depois, o capítulo 5 dá um panorama sobre essa aliança e considera o que ela é exatamente à luz das alianças do Antigo Testamento e da nova aliança. Os capítulos 6 e 7 são, portanto, uma tentativa de ser mais prático e de “aplicar” a doutrina desenvolvida nos primeiros quatro capítulos. O capítulo 6 leva o leitor através do processo de membresia e de disciplina do ponto de vista da igreja. O capítulo 7 faz o mesmo, mas do ponto de vista do crente.

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Parte 1

O AMOR MAL DEFINIDO



Capítulo 1

A IDOLATRIA DO AMOR

“Tudo o que você precisa é de amor.” — John Lennon Pergunta Principal: Como as nossas concepções culturais sobre o amor, hoje em dia, impedem que aceitemos a membresia e a disciplina da igreja? Resposta Principal: Temos feito do amor um ídolo que nos serve e, desse modo, redefinido o amor como algo que jamais impõe julgamentos, condições ou ligações obrigatórias.

Ponto 1: Formular a doutrina da igreja exige que consideremos a nossa bagagem cultural. A ECLESIOLOGIA É UM NEGÓCIO ARRISCADO Adulterar a doutrina da igreja é um negócio arriscado. Talvez mais do qualquer outra doutrina cristã, a doutrina da igreja — também chamada de Eclesiologia — é o ponto no qual as variáveis da ambição pessoal e da vã presunção atuam em todas as equações. A Eclesiologia é o território das guerras de influência e das rivalidades políticas. É para onde o pastor, preparado para o combate, e seu diácono intratável se dirigem mais uma vez para chegar a um acordo sobre “quem assume a responsa-


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bilidade pelo quê”; é onde a igreja episcopal local tem que determinar o que significa se separar da comunhão episcopal, que abandonou o evangelho; é onde o presbitério decide se o estilo de vida de um membro o exclui da declaração de fé da comunidade. Alguém poderia dizer que é comparativamente fácil debater sobre a presciência de Deus ou sobre se a regeneração precede a conversão, ou sobre o que é o milênio. Levante um desses tópicos, e mais da metade da igreja encolherá os ombros e alegará desconhecimento. Mas levante o tópico acerca de quem tem a palavra final sobre o orçamento da igreja ou sobre quem escolhe o novo pastor, ou sobre se a igreja tem o direito de disciplinar o filho adulto e desobediente de um presbítero, e você não encontrará muitos desentendidos. Não resta dúvida de que a história da igreja está repleta de exemplos de teólogos que mudam sua eclesiologia para satisfazer às circunstâncias políticas. Em outras palavras, existe uma “mundividência real” para a doutrina da igreja. Decidir quem recebe o batismo e a Ceia do Senhor e quem não recebe é, de certa maneira, uma decisão “política”, e outras decisões doutrinárias não o são. O mesmo se dá para decidir quem tem a palavra final nas questões decisivas. E, assim, nossas ideias sobre Eclesiologia serão afetadas de modo único pelas experiências pessoais que colocamos em ação, associadas às ambições e aos temores nutridos em nossos corações. Alguns autores têm especulado que as Escrituras não têm muito a dizer sobre como exatamente os cristãos devem estruturar suas igrejas, razão pela qual eles podem moldá-las e remodelá-las para se adaptarem melhor aos seus contextos missiológicos. Penso que é melhor — e menos especulativo acerca do porquê Deus ter feito o que fez — remover o elemento normativo dessa proposição e dizer, por uma simples questão de descrição sociológica, que a nossa doutrina da igreja é pelo menos tão passível de ser moldada por nossa época e lugar quanto outras doutrinas, isso se não for ainda mais passível que as outras. Afinal, seria uma coincidência que durante quinze séculos as igrejas tenham convergido para uma autoridade centralizada enquanto o mundo estava sendo governado por césares e monarcas? Seria uma coincidência que as revoluções democráticas do século XVIII e a proliferação de governos democráticos que se seguiram desde então tenham combinado perfeitamente com uma proliferação semelhante de formas de liderança de igreja congregacionais e não associativas? Sim, ocorreram algumas exceções1. Mas não é de se esperar que, quando uma cultura se torna acos1  Por exemplo, John Smyth estabeleceu uma das primeiras igrejas batistas antes que Hobbes escrevesse o Leviathan (traduzido para o português como Leviatã, São Paulo: Martins Fontes, 2008) ou que Locke escrevesse Two Treatises of Government, traduzido para o português como Dois Tratados do Governo Civil, 46


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tumada com uma forma específica de governo, as igrejas se tornem mais propensas a adotar esses mesmos modelos? O mesmo se dá nos modelos de negócios. É natural que as pessoas padronizem sua igreja de acordo com aquilo que funciona no escritório. Comitês nos anos 40 e 50? Pastores que são diretores executivos nos anos 90? Franquias com cultos em múltiplos locais hoje em dia? Enfim, é terrivelmente surpreendente que os líderes cristãos no Ocidente pós-moderno, antiautoridade, antilimites e anti-institucional de hoje exijam cada vez mais a desinstitucionalização da igreja?Por essas razões, é útil considerarmos o contexto do escritor à medida que ele escreve sobre a doutrina da igreja. Na introdução, consideramos a exigência por “menos instituição” e “mais comunhão” de muitos escritores contemporâneos. O teólogo Jürgen Moltmann faz esse tipo de afirmação nas primeiras páginas de sua obra sobre Eclesiologia, mas o faz encarando a “crise da igreja nacional e das igrejas estabelecidas em alguns países por longos períodos”, como a igreja luterana estatal da Alemanha2. Dado o cenário que ele está contemplando, concordo totalmente com Moltmann. Mas, e se um escritor disser a mesma coisa enquanto estiver olhando para as igrejas Batistas do Sul, que são carismáticas e voltadas para os frequentadores não convertidos, conforme determinado líder da Convenção Batista do Sul faz em seu livro de nível popular para pastores3? Apesar de ser mais familiarizado teologicamente com o autor batista, eu ficaria mais receoso. Portanto, adulterar a doutrina da igreja é um negócio arriscado, porque ela é, de modo geral, particularmente influenciável pelas realidades da cultura e, de modo mais específico, pelas ambições pessoais. É por isso que desejo dedicar um capítulo inteiro examinando algumas das causas que provavelmente mais afetam o modo como vemos as questões sobre membresia e disciplina da igreja nos dias de hoje. Não chegamos a esses tópicos sem uma bagagem cultural. Chegamos com um trem cheio dela.

UMA PROPOSTA CULTURAL CONTRA O SENSO COMUM Se a doutrina da igreja estiver atada a ambições e medos do coração, fazer uma verificação da bagagem cultural envolve muito mais do que perguntar que pressuposições ou opiniões podemos ter sobre a igreja. Trata-se de examinar as noções fundamentais sobre o amor, Deus e muito mais. Além disso, a nossa compreensão Lisboa: Edições 70, 2006, isso sem falar de grupos como os valdenses. 2  Jürgen Moltmann, The Church in the Power of the Spirit, Minneapolis: Fortress, 1993; orig. pub. 1975 (traduzido para o português como A Igreja no Poder do Espírito, 1975), p. xx. 3  Reggie McNeal, The Present Future: Six Tough Questions for the Church, San Francisco: Jossey-Bass, 2003, pp. 26–27, 34–36. 47


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acerca da doutrina cristã — principalmente acerca da Eclesiologia — está ligada a todas as áreas de nossa vida. O fato de minha esposa gostar de ver comédias românticas nas noites de sábado ou de eu gostar de assistir a filmes de ação e aventura afeta muito mais do que podemos perceber o modo como nos reunimos com a igreja nas manhãs de domingo. Na verdade, o simples fato de assistirmos a filmes nas noites de sábado, em vez de cantar cânticos em nossa velha sala de visitas, à luz de uma luminária, afetará o modo como damos e recebemos amor dos outros membros de nossa igreja. Meu principal argumento neste capítulo é que nossas ideias a respeito do amor são mais idólatras do que imaginamos. Para percebermos isso, quero pegar o enredo da história que começou na introdução, com relação à tendência romântica latente na cultura ocidental pós-moderna contra as estruturas, limites ou qualquer coisa que cheire a exclusivismo. Afinal, creio que a maioria dos leitores cristãos considerará a principal proposta deste livro — de que por meio das práticas exclusivistas da membresia e da disciplina da igreja, Deus pretende ajudar a (re)definir o amor e a beleza para os seres humanos caídos — profundamente contrária ao senso comum. Os mesmos elementos que contêm o DNA da nossa cultura ocidental pós-moderna fazem com que a maioria de nós reaja contra qualquer coisa que insinue institucionalismo ou exclusivismo, mesmo que remotamente, assim como as células brancas do sangue reagem de forma programada contra as bactérias externas. O único limite com o qual a maioria das pessoas concorda nesses dias é com o limite de manter aqueles que criam limites do lado de fora4! Mais apropriadamente, isso contradiz nossas ideias a respeito do amor. Nós consideramos o amor exatamente aquilo que nos chama a derrubar as paredes divisórias com nossas marretas, em vez de erigi-las. Por que parece falta de amor traçar limites claros em torno de uma igreja? É falta de amor? O que supomos que seja o “amor”? As nossas noções sobre o amor são de fato bíblicas? Muitos escritores hoje em dia dizem que os crentes ocidentais são excessivamente individualistas. E juntamente com tal individualismo, dizem eles, vem (2) o consumismo, (3) a relutância em ter compromissos em geral e (4) certa descrença em relação a toda verdade absoluta. 4  Eis um exemplo dessa tendência antilimites dando forma ao modo como a igreja local é vista: Tony Jones, um líder da igreja emergente, disse numa entrevista: “As declarações de fé [nas igrejas] dizem respeito a fronteiras, que precisam ser defendidas por soldados armados. Você tem que verificar os passaportes das pessoas quando passam por essas fronteiras. Isso se torna uma obsessão — guardar as fronteiras. Esse simplesmente não é o ministério de Jesus. Também não era o ministério de Paulo ou de Pedro.” Citado em Kevin DeYoung e Ted Kluck, Why We’re Not Emergent [Por que Não Somos Emergentes], Chicago: Moody, 2008, p. 117. Outro exemplo notável pode ser visto em Brian McLaren, A Generous Orthodoxy, Grand Rapids: Zondervan, 2004, p. 109. 48


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Ponto 2: O individualismo nos deixou desunidos, o que nos impele a buscar um amor que faça com que nos sintamos completos. E desejamos que as igrejas façam o mesmo. INDIVIDUALISMO Imagine Benjamin Franklin aos seus 17 anos de idade — o filho de um fabricante de velas que se tornaria tipógrafo, cientista, inventor, escritor e embaixador — entrando na cidade de Filadélfia pela primeira vez, sem conhecer sequer uma pessoa, pisando a rua do mercado com nada mais do que um dólar holandês no bolso, uma baguete de pão debaixo de cada braço e uma terceira na mão, fazendo o reconhecimento da cidade na qual ele, um dia, ajudaria a liderar as colônias americanas numa revolução rumo à nacionalização5. Imagine o escravo afro-americano Frederick Douglass — que um dia seria o abolicionista mais internacionalmente renomado de uma era e o conselheiro ocasional do presidente Abraham Lincoln nos assuntos pertinentes à escravidão — aos 12 anos de idade, debruçado sobre um pedaço de cimento com um giz inteiro entre os dedos, ensinando a si mesmo a escrever, imitando as letras que ele observava os construtores navais marcarem em pedaços de madeira — “B” para bombordo, “E” para estibordo, “B.A.” para bombordo avante, “E.R.” para estibordo a ré6. Imagine Amelia Earhart — escritora, pioneira na defesa dos direitos das mulheres e a primeira mulher a pilotar sozinha um avião por sobre o Atlântico — aos sete anos de idade, em pé, com o lábio machucado e o vestido rasgado, atrás de sua montanha-russa caseira, construída juntamente com uma caixa e tábuas de madeira escoradas numa armação de oito pés, lubrificada com banha, que a havia jogado ao chão. Imagine-a, depois disso, exclamando à sua irmã: “Ó, Pidge, é como estar voando7!”

5  Benjamin Franklin, The Autobiography and Other Writings [Autobiografia e Outros Escritos], New York: Penguin, 1986, p. 27. 6  Frederick Douglass, Narrative of the Life of Frederick Douglass, An American Slave [A Narrativa da Vida de Frederick Douglass, um Escravo Americano], New York: Penguin, 1982, 86-87. 7  Donald M. Goldstein e Katherine V. Dillon, Amelia: A Life of the Aviation Legend [Amelia: A Vida da Lenda da Aviação], nova ed., Dulles, VA: Brassey’s, 1999), p. 9. 49


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TODA ASSOCIAÇÃO É NEGOCIÁVEL Histórias notáveis como essas foram apresentadas à consciência cultural americana — minha própria consciência — com uma visão gloriosa do homem ou da mulher autoconfiante, que venceu na vida e se autodefiniu. Nenhuma classe social, etnia, gênero, distrito ou grilhões poderiam prender esses heróis. Adaptando o hino de Charles Wesley, suas cadeias foram quebradas, seus corações foram libertados, eles ressuscitaram, partiram; e o que se segue é o notório para mim. Essas biografias reais inspiraram o mundo da ficção popular em todas as coisas, desde os contos ocidentais de aventura Deerslayer ou Pioneers (traduzido para o português como Os Pioneiros, Mem Martins, Portugal: Publicações Europa América, 1983), de James Fennimore Cooper, até as aventuras posteriores de Horatio Alger, como Dick Ragged ou Struggling Upward [Luta Ascendente]. Em decorrência desse tipo de ficção, desenvolveu-se o que tem sido chamado de mito do Adão americano. Assim como Adão estava no jardim do Éden, como os primeiros peregrinos que saíram do Mayflower em Plymouth Rock, cada nova geração de americanos tem percebido a si mesma como uma geração sem limites de fronteiras nacionais ou de tradição, de espaço ou de tempo, do mesmo modo como a fronteira ocidental se estendeu além dos limites da imaginação, oferecendo oportunidades ilimitadas para a criação de novos mundos8. Por que tal ficção é tão significativa? Porque a ficção que um público escreve e lê revela o que esse público valoriza e o que ele despreza. Avançando para os nossos dias, uma pessoa só precisa ir ao cinema para perceber que o mito do Adão americano continua vivo e forte, apesar de não ter as visões inspiradoras de esperança do passado. Nos anos 2000, e nos seguintes, Jason Bourne, um assassino treinado pela CIA, com poderes ilimitados de autodefesa e um caso grave de amnésia, talvez tenha personificado isso da melhor maneira9. E Bourne permanece numa longa linha de heróis do tipo Lone Ranger, desde o Super-homem, na década de 1970, passando por Indiana Jones, na década de 1980, até o Exterminador do Futuro, na década de 1990 (observe o crescente niilismo nessa trajetória). 8  R.W.B. Lewis descreveu de forma excelente esse Adão americano como sendo “emancipado da história, felizmente desprovido de ascendência, intocado e imaculado pelas heranças comuns da família e da raça; um indivíduo independente, autoconfiante, autopropulsionado, pronto para enfrentar qualquer coisa que o espere, com a ajuda de seus próprios recursos exclusivos e inerentes... e em sua inexperiência, ele era fundamentalmente inocente”; The American Adam [O Adão Americano],Chicago, University of Chicago Press, 1959, p. 5. 9  George F. Custen, “Debuting: One Spy, Unshaken” [Estreando: Um Espião Inabalável] in New York Times, “Week in Review” [Revendo a Semana], 23 de junho de 2002; também descrito em Heather Clark, The Myth of the American Adam Re-Bourne [O Mito do Adão Americano Renasce], uma tese de mestrado não publicada, outono de 2004, Purdue University disponível em <http://www.calumet.purdue.edu/engphil/ recenttheses.html> acessado em 17 de janeiro de 2008. 50


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Há muitas outras maneiras pelas quais poderíamos contar a história do individualismo. Eu a tenho descrito como um dos maiores poderes ingleses. Um historiador da igreja poderia voltar no tempo e contar a história da Reforma de Lutero e de sua doutrina do sacerdócio de todos os crentes. Depois, poderia vir o tratado Paz de Augsburgo, de 1555, que conferia aos príncipes da Europa a capacidade de determinar se seu território seria protestante ou católico. O qual poderia ser sucedido pela Paz de Vestfália, que concedia liberdade para as minorias religiosas da Europa decidirem essa questão independentemente de seu príncipe, uma vez que poderiam continuar sendo católicos romanos, luteranos ou reformados. O qual poderia ser sucedido pelo Ato de Tolerância, de 1689, que concedia aos cidadãos britânicos o direito de se reunirem em suas próprias casas de culto, com seus próprios pastores, desde que permanecessem trinitarianos e protestantes; e isso poderia ser sucedido pela cláusula de não estabelecimento de uma religião oficial na Declaração dos Direitos Humanos dos Estados Unidos. Um estudante de teoria política provavelmente preencheria sua história com personagens como o Rei João e sua Carta Magna, Thomas Hobbes e seu Contrato Social, com o discurso de John Locke sobre o “consentimento dos governados”, com a versão do Contrato Social feita por Rousseau, a Declaração de Independência e a cabeça do rei de França jazendo no fundo de um balde em meio a uma multidão que aplaudia. Sejam quais forem as ilustrações e as histórias que utilizemos para narrar o drama emergente do indivíduo, o desfecho da história é o mesmo para a pessoa mediana na atual cultura ocidental: toda associação é negociável. Todos nós agimos independentemente, e todos os relacionamentos e situações da vida são um contrato que pode ser renegociado ou cancelado, quer estejamos lidando com o príncipe, com os pais, com o cônjuge, com o vendedor, com o chefe, com a urna eleitoral, com o juiz do tribunal, ou, é claro, com a igreja local. Estou comprometido essencialmente comigo mesmo e em maximizar minha vida, minha liberdade e em buscar a felicidade. Entre os meus vários relacionamentos, posso optar por me identificar com outro grupo, mas apenas enquanto isso for comprovadamente favorável a minha pessoa. Retenho poder de veto acima de todas as coisas. Quando, no decorrer dos acontecimentos humanos faz-se necessário remover os laços que me ligaram aos outros, eu os removo. Essa capacidade de negociar e vetar meus compromissos obviamente se estende, por todo o caminho, para o céu e para a eternidade. O sociólogo Robert Bellah nos apresenta ao termo “sheilaismo”, agora infame. Sheila Larson foi uma das pes51


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soas, entrevistadas por sua equipe de pesquisa, que se sentia com a liberdade de moldar uma religião a sua própria imagem, selecionando e escolhendo os seus princípios religiosos e morais favoritos e, por meio disso, “transformando a autoridade externa num sentido interno”10, — quase como os clientes de um restaurante, que dão uma olhada geral nas saladas. Foi exatamente assim que um pastor unitariano definiu a religião dela: uma tigela de salada11. É verdade que a identidade de grupo tem sido crescente pelo menos desde a década de 1960. Isso aconteceu entre as feministas, que buscavam galgar um espaço garantido para os indivíduos pertencentes à categoria demográfica chamada de “mulheres”; como também entre alguns participantes do movimento dos direitos civis, que buscavam medidas de solidariedade étnicas mais abrangentes. Isso também tem ocorrido cada vez mais entre os “os círculos de estilos de vida”, ou seja, blocos culturais com identidade própria, que não são formadas em torno de uma identidade étnica, religiosa ou outra forma de identidade de grupo tradicional, mas em torno de algum outro tipo de decisão, de estilo de vida, como homossexualidade, donos de Harley Davidson ou ouvintes de hip-hop — movimentos completos, com suas próprias revistas, filmes, igrejas, vestuário, discursos e assim por diante12. Não creio que essa balcanização demográfica tenha feito algo para arruinar ou destituir a supremacia do indivíduo. Ela tem simplesmente dado novas ferramentas a ele para afirmar — ou tentar afirmar — sua supremacia individual.

INDIVIDUALISMO E AMOR O que tudo isso tem a ver com a forma como definimos o amor hoje em dia? O crescimento do individualismo ao longo dos últimos séculos tem afetado sensivelmente todas as áreas da vida ocidental, incluindo a forma como compreendemos e experimentamos o amor. Conforme o sociólogo Anthony Giddens conta, a maioria dos casamentos na Europa pré-moderna foi celebrada não por causa do amor ou da atração sexual, mas por razões econômicas. Pelo menos para os pobres, o casamento era um meio de organizar o trabalho pesado13. Quando se falava de amor 10  Robert Bellah et al., Habits of the Heart: Individualism and Commitment in American Life [Hábitos do Coração: Individualismo e Comprometimento na Vida Americana], New York: Harper and Row, 1985, pp. 235, 220. 11  Em Jon D. Levenson, “The Problem with Salad Bowl Religion” in First Things 78 [“O Problema com a Religião da Tigela de Salada” em “Primeiras Coisas” 78, dezembro de 1997: 10-12. 12  Robert Bellah, Habits of the Heart, pp. 72-73. 13  Anthony Giddens, Transforming Intimacy: Sexuality, Love and Eroticism in Modern Societies, Palo Alto, CA: Stanford University Press, 1992, p. 38, traduzido para o português como Transformação da Inti52


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no contexto do casamento, ele era caracterizado como o amor compassivo entre o marido e a mulher administrando uma casa ou uma fazenda juntos.14 Em fins do século XVIII, no entanto, aquilo que Giddens chama de “amor romântico” começou a surgir em meio à agitação dos romances, muitos deles escritos por mulheres, os quais apresentavam o relacionamento amoroso como um romance, numa narrativa de autodescoberta e autoexpressão15. O amor apaixonado, em si, não era algo novo em fins do século XVIII e no século XIX. Todas as poesias que sobreviveram desde o antigo Egito até Romeu e Julieta, de Shakespeare, retrata um amor passional e sexual, que consome tudo, que envolve um indivíduo ou um casal, quase como uma doença, interrompendo suas obrigações e atividades cotidianas e lhe inspirando atos de heroísmo, sacrifício ou desespero. Essa narrativa de autorrealização era culturalmente distinta do amor romântico emergente na parte final do século XVIII e no século XIX, a qual envolvia não apenas a atração sexual, mas também a descoberta do outro indivíduo, com determinadas características que supostamente completavam o indivíduo solitário. Por essa razão, Giddens escreve: O amor romântico pressupõe algum grau de autoquestionamento. Como eu me sinto em relação ao outro? Como outro se sente em relação a mim? Os nossos sentimentos são suficientemente “profundos” para suportar um envolvimento a longo prazo? Ao contrário do amour passion (amor apaixonado), que afasta os indivíduos desordenadamente, o amor romântico os separa das situações sociais mais amplas de um modo diferente. Ele prevê uma trajetória de vida a longo prazo, voltada para um futuro antecipado, embora maleável16.

Giddens não especula sobre as origens ou causas do amor romântico. Será que isso foi uma reação à sensação que as pessoas tinham de se sentirem à deriva, já que muitas de suas amarras tradicionais haviam sido cortadas pelo individualismo racionalista do Iluminismo? Por mais que os românticos quisessem definir a si mesmos como contrários ao Iluminismo, eles continuavam como originários dele, do mesmo modo como a pós-modernidade é originária da modernidade (sendo midade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas, São Paulo: Unesp, 1992. 14  Ibid., p. 43. 15  Ibid., 39-40, Bellah, Habits of the Heart, p. 73. 16  Giddens, Transforming Intimacy, pp. 44-45. 53


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simultaneamente uma reação contra ela, apesar de compartilhar algumas de suas pressuposições mais básicas). De uma maneira interessante, Giddens caracteriza os homens como “vagaro17 sos” nessas concepções transformadoras acerca do amor, já que o amor romântico é “essencialmente um amor feminizado”18. Ao contrário das mulheres passivas dos contos medievais, as mulheres dos romances românticos são determinadas e independentes, capazes de enternecer os corações dos homens que anteriormente eram indiferentes ou hostis a elas. Giddens não elucida o que ele quer dizer com feminização do amor de modo tão claro quanto se poderia esperar, mas parece que essa ideia repousa no fato de que as mulheres são as produtoras do amor romântico e as únicas responsáveis pela ​​ manutenção de um casamento baseado em tal amor, em face da contínua ameaça da infidelidade masculina. Os homens que instigam o amor romântico não são homens masculinos, e sim “sonhadores dengosos” que estão dispostos a construir toda a sua vida em torno de uma mulher específica19. A feminização do amor também parece se encontrar em seu caráter doméstico. Giddens caracteriza a família como sendo transformada pelo advento do amor romântico, na medida em que as crianças estão cada vez mais sendo reconhecidas como vulneráveis, necessitando de cuidados emocionais e compaixão materna a longo prazo. O homem vitoriano permaneceu como a autoridade de seu lar, mas sua autoridade foi cada vez mais enfraquecida por uma ênfase crescente na ternura emocional entre pais e filhos20.

AMOR ROMÂNTICO VERSUS AMOR BÍBLICO Sem dúvida, os aspectos desse amor romântico correspondem aos anseios da amante e do amado em Cantares ou até mesmo aos elementos da linguagem do amor entre Jeová e Israel, nos profetas do Antigo Testamento. A fim de que nenhum leitor evangélico confunda essa ilustração do amor romântico com algo completamente bíblico, vale a pena considerarmos um contraste, ou seja, o amor e o casamento conforme caracterizado pelo pré-moderno Martinho Lutero. Lutero, assim como os românticos, cria firmemente que os casamentos devem ser fundamentados no amor. Ao criticar a instituição de casamentos arranjados, Lutero escreveu: “Uma 17  Ibid., p. 59. 18  Ibid., p. 43. 19  Ibid., p. 43, 59. 20  Ibid., p. 42. 54


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afeição paternal ou maternal pelos filhos deveria se recusar a tolerar qualquer coisa diferente do amor e do deleite como base para o casamento”21. E não apenas isso, Lutero, assim como os românticos, experimentou pessoalmente e testemunhou a natureza intoxicante do início do amor: “O primeiro amor é ardente, é uma intoxicação de amor, de modo que somos cegados e atraídos para o casamento”22. Contudo, a concepção de Lutero sobre o amor conjugal não era uma questão de autoexpressão e autorrealização. Ela ia além da intoxicação inicial e aspirava a algo mais bíblico, algo feito da mesma essência do amor que os crentes devem ter pelo seu próximo — uma dedicação sincera ao bem e à santidade do outro. Depois que nos livramos de nossa intoxicação, o amor sincero continua na vida conjugal do piedoso; mas o ímpio se arrepende de ter se casado... Onde a castidade conjugal deve ser mantida, o marido e a mulher devem, acima de todas as coisas, viver juntos em amor e harmonia, de modo que um trate o outro com carinho, de modo sincero e com total fidelidade. Essa dedicação sincera é uma das principais exigências para a criação do amor e do desejo pela castidade23.

Para Lutero, o casamento e a paternidade não existem principalmente para que os indivíduos humanos possam compreender, completar e expressar a si mesmos, ou para criar filhos isolados de tudo o que existe, o que lhes ensinará a fazer o mesmo. Em vez disso, o “supremo propósito dessas coisas é obedecer a Deus, encontrar ajuda e conselhos contra o pecado; invocar a Deus; buscar o amor e instruir os filhos para a glória de Deus; viver com sua esposa no temor de Deus e levar sua cruz”24. O amor romântico do fim do século XVIII e do século XIX difere principalmente da concepção de Lutero e das concepções mais bíblicas a respeito do amor geralmente desta forma: para o amante romântico, o ponto absoluto de referência moral era uma fidelidade exclusiva ao relacionamento amoroso e à sua maximização. Todos os outros laços sociais — familiares, de camada social, religiosos, profissionais etc. — tornavam-se secundários e finalmente dispensáveis por causa da preservação desse relacionamento humano primordial. Giddens não utiliza o termo “idólatra” para 21  Citado em Justin Taylor, “Martin Luther’s Reform of Marriage” in Sex and the Supremacy of Christ, ed. John Piper e Justin Taylor, Wheaton, IL: Crossway, 2005, p. 240, traduzido para o português como Sexo e a Supremacia de Cristo, São Paulo: Cultura Cristã, 2009. 22  Ibid., p. 239. 23  Ibid., p. 239-40. 24  Ibid., p. 231. 55


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caracterizar o amor romântico, mas é isso o que ele é. Enquanto Agostinho reconhece que os seres humanos só encontrarão descanso completo em Deus, o amante romântico encontra a plenitude de sua alma no outro. No amor! Não que tudo a respeito do amor romântico esteja errado. Conforme sugeri anteriormente, podemos encontrar reflexões sobre isso nas páginas das Escrituras. No entanto, o amor romântico isola um ou dois aspectos do amor bíblico — que é algo mais complexo e multifacetado — e faz deles algo supremo, distorcendo, por meio disso, até mesmo o que há de bom nesse amor. Não é difícil perceber como essa concepção sobre o amor romântico, endossada pelo desejo que um indivíduo tem de se expressar e de se completar, afeta, nos dias de hoje, as nossas concepções acerca do “amor” em todas as esferas da vida. Quer a conversa gire em torno dos cultos da igreja, das amizades ou do namoro, eu sei que você me ama quando você me deixa “ser eu mesmo” ou “expressar o meu eu” ou “ser a melhor pessoa que posso ser”. E eu a amo quando permito que você faça o mesmo. Por isso os americanos têm a tendência de descrever como “amorosas” as igrejas que nos fazem sentir relaxados e confortáveis, não condenados. Nós podemos ser nós mesmos ali. E também nenhum julgamento é importante em nossas amizades: “Eu sei que ela é minha amiga porque ela não me julga. Posso ser verdadeira com ela.” Mas isso de fato é amor? Se o “amor” consiste apenas nisso, eu mesmo me torno o verdadeiro objeto de minha afeição. Eu poderia alegar que “amo você”, mas, na verdade, o que eu amo é a maneira como você faz que eu me sinta. Você faz com que eu me sinta aceito, inteligente, romântico, estimulado, encorajado, especial, afetuoso e fofo, encantado, atraído, atraente, apaixonado, tudo o que eu posso ser, diligente, criativo, cheio de vida, intelectual e espiritualmente edificado, como um herói, capacitado, desenvolvido, formidável! Conforme John Piper disse, nós chamamos de “amor” o fato de as pessoas nos “supervalorizarem”25. Assim como o amor dos romances melancólicos do século XIX, nós empregamos a ideia de amor hoje em dia como sendo o argumento que vence todos os argumentos. Se uma ação for motivada pelo amor, ela possui toda justificação de que precisa. Este é o último trunfo: “Mas eles se amam”, ou: “Isso não parece uma coisa amorosa”, ou: “O que você está dizendo pode até ser verdade, mas isso é falta de amor”. Sabemos que o amor pode ser trágico. Sabemos que ele pode ser tolo. Mas o amor em si é bom, e ele sempre o será. As pessoas religiosas justificam esse ponto 25  John Piper, God Is the Gospel, Wheaton, IL: Crossway, 2005, pp. 149-50 traduzido para o português como Deus é o Evangelho, São José dos Campos: Editora Fiel, 2006. 56


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de vista dizendo: “Deus é amor”. As pessoas não religiosas destacam o bem da humanidade e dizem — ou cantam — “Tudo o que precisamos é de amor”. Não é impossível que o amor seja o justificador supremo, mas, se isso for verdade, deve haver um amor perfeito e divino que justifica. E se aquilo que as pessoas chamam de amor não for de fato amor? E se for uma sombra ou um espectro que simplesmente se assemelhe ao amor real? Isso não poderia ser um ídolo — um substituto para Deus —, que eles usam para justificar a si mesmos? E o que acontece quando os seres humanos usam ídolos para justificar suas ações e relacionamentos?

O AMOR AUTOEXPRESSIVO NAS IGREJAS A pergunta que os pastores e líderes de igreja em especial precisam fazer a si mesmos é: Como os crentes se relacionam com suas igrejas quando entendem o amor como uma questão de autorrealização e autoexpressão? Para alguns, os aspectos emotivos das reuniões corporativas da igreja assumem uma importância indevida, seja no estilo de música ou na personalidade do pregador. Os crentes avaliarão a igreja pelo fato de poderem “se identificar” com a música ou com o pastor. “As guerras de adoração provavelmente se seguirão a isso, porque é através da música que a maioria de nós se expressa. Justamente por isso, as letras de suas músicas não apresentam tanto uma oportunidade para meditar sobre o amor de Deus para com os pecadores (“ao contemplar a excelsa cruz onde o rei da glória sucumbiu”), mas sim expressões repetidas do amor dos pecadores por Deus (“Cantarei teu amor pra sempre, cantarei teu amor pra sempre, cantarei teu amor pra sempre”). Os dois tipos de expressão são bíblicas, mas o último sempre deve ser uma resposta ao primeiro. É isso o que acontece nas igrejas hoje em dia? Se uma igreja entender que o amor deve ser uma questão de autoexpressão e autorrealização, as classes de escola dominical, os pequenos grupos e outros ministérios se dividirão demograficamente, porque os crentes se tornam mais preocupados em encontrar pessoas que compartilhem de suas experiências de vida do que em encontrar pessoas mais velhas com quem pdem aprender e pessoas mais jovens a quem podem discipular. A capacidade de integrar as pessoas de modo étnico, cultural ou etário se torna bem mais difícil. Assim como na cultura como um todo, igrejas inteiras chegam a representar os vários círculos culturais da cidade. O princípio da unidade homogênea opera! As reuniões da igreja dão a impressão de serem vibrantes e vivas, mesmo quando 57


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uma concepção idólatra acerca do amor está sendo adorada. A pregação se torna um “aconselhamento pessoal com base nos grupos”, conforme um pastor do início do século XX afirma. Os “testes dos dons espirituais” também se tornaram populares. Não importa em que áreas a igreja tenha necessidades. Não importa onde as linhas de batalha precisem ser reforçadas. “Preciso me sentir realizado através de meu envolvimento na igreja, portanto, diga exatamente como Deus tem me equipado pessoalmente e depois especifique uma posição que me permita dar expressão ao meu próprio conjunto de dons”. Quando o amor se torna uma questão de autoexpressão entre os crentes, o evangelho em si — o próprio cerne do amor cristão — se torna remodelado para propósitos terapêuticos. Conforme David Powlison escreveu: Nesse novo evangelho, os grandes “males” a serem corrigidos não exigem qualquer mudança fundamental de direção no coração humano. Em vez disso, o problema repousa em meu sentimento de rejeição por parte dos outros; em minha experiência corrosiva sobre a vaidade da vida; em meu sentimento agitado de autocondenação e falta de autoconfiança; na ameaça iminente de aborrecimento, caso a minha música seja estragada; em minhas reclamações exageradas quando um caminho árduo e longo está pela frente. Essas são as necessidades importantes sentidas hoje em dia, as quais o evangelho se dedica a satisfazer. Jesus e a igreja existem para fazer com que você se sinta amado, importante, aprovado, entretido e edificado. Esse evangelho ameniza os sintomas angustiantes. Ele o faz sentir-se melhor. A lógica desse evangelho terapêutico é um “Jesus a meu dispor” que satisfaz os desejos individuais e abranda as dores físicas26.

O AMOR DE DEUS NO EVANGELHO DIZ RESPEITO APENAS A MIM. Ao mesmo tempo, as igrejas impregnadas com essa fragrância da marca romantizada do amor autoexpressivo, parecidas com banheiros perfumados, repelem a clientela mais masculina, o que levou muitos autores a se preocuparem com o afastamento dos homens das igrejas27. Afinal, nem todo mundo gosta dos romances 26  David Powlison, “Therapeutic Gospel” [O Evangelho Terapêutico], in Journal of Biblical Counseling [Periódico de Aconselhamento Bíblico] 25 (Verão de 2007): p. 3. 27  Veja Leon J. Podles, The Church Impotent: The Feminization of Christianity [A Igreja Impotente: A feminização do Cristianismo], Dallas: Spence, 1999, pp. 3-4, 57-59; David Murrow, Why Men Hate Going to Church [Por que os Homens Odeiam Ir à Igreja?], Nashville: Nelson, 2005; Mark Chanski, Manly Domi58


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de Jane Austen ou dos filmes de Meg Ryan. Por essa razão, um grande número de homens valorosos sacaram suas pistolas e retomaram alguns territórios evangélicos. Livros, igrejas e conferências agora explicitamente se concentram naqueles que são mais inclinados à seção da locadora com filmes de ação e aventura, corridas de stock car, MMA e em qualquer um que goste de pensar em si mesmo como o sujeito de maxilar quadrado e ombros largos. Ironicamente, todo esse movimento continua enamorado com a autoexpressão e a autodefinição. Que pressupostos culturais ocultos, no Ocidente de hoje, impedem os crentes de levarem a sério a membresia da igreja? Por que a própria ideia de membresia e de disciplina da igreja possui a débil característica de “desamorosa” para as nossas emoções contemporâneas? Porque aprendemos, no Ocidente democrático e capitalista, que devemos agir de modo independente, e que o propósito da vida é a maximização da felicidade do indivíduo. Por essa razão, as igrejas locais são simplesmente mais um grupo disputando a nossa lealdade pessoal, como os partidos políticos ou as mercearias. E assim como fazemos com os partidos políticos, com os amantes e com as mercearias, aprendemos a negociar e a renegociar a nossa associação com as igrejas locais à medida que elas se alinham exatamente com a nossa ideia acerca do eu de seus valores. A fim de legitimar essas renegociações de contratos, temos redefinido o amor, para que ele se harmonize com esse sentimento de ligação com outra pessoa que elogie e afirme a nossa percepção sobre o eu e sobre seus valores. “Como você espera que eu me mantenha nesse casamento? Nós temos nos distanciado. Não amamos mais um ao outro.” Se o amor não é nada mais que autossatisfação e autoexpressão, essa questão é razoável. Ao mesmo tempo, como consequência de um “institucionalismo” legalista, temos aprendido a rejeitar quaisquer aspectos institucionais de uma igreja ou organização. Afinal, as instituições atuam abrigando regras que refreiam as pessoas independentes mais do que elas desejam ser refreadas.

Ponto 3: O consumismo nos tem levado a nos concentrarmos no poder de atração do objeto do amor, em vez de nos concentrarmos no processo de amar. Vemos as igrejas como produtos que nos satisfazem ou não. nion: In a Passive-Purple-Four-Ball-World, Amityville, NY: Calvary Press, 2004. É notável que essa crítica não seja recente; veja Cortland Myers, Why Do Men Not Go to Church? [Por que os Homens Não Vão à Igreja?], New York: Funk e Wagnalls, 1899. 59


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CONSUMISMO De certa forma, poderíamos terminar nossa investigação acerca do individualismo e de seu efeito sobre a forma como entendemos o amor. Mas, correndo o risco ser um tanto redundante, creio que teremos uma compreensão mais completa e mais útil sobre o amor e a igreja nos dias de hoje se nos aprofundarmos mais em três aspectos do individualismo: consumismo, medo de compromisso e descrença em relação a todos os dogmas. Se a vida for uma série de ligações e compromissos negociáveis, então posso fazer tudo o que puder para maximizar minhas aquisições. É isso o que um consumidor faz. A felicidade e o descanso resultam das aquisições inteligentes, e a infelicidade e a ansiedade, das aquisições medíocres. É lógico que o problema é que nenhuma aquisição de fato encerra a negociação. A possibilidade de haver remorso por parte do comprador sempre aparece. “Será que eu deveria ter adquirido outra marca?” “Será que um modelo melhor será lançado no mês que vem?” “Qual é política de troca de produtos da loja?” A salvação sempre tem sido uma questão de troca, quer estejamos trocando os nossos pecados pela justiça de Cristo ou uma camisa de tamanho médio por uma maior. A troca não é o problema. O problema com a sociedade consumista, em primeiro lugar, é que as pessoas acreditam que as coisas tangíveis devem ser trocadas — uma camisa, um carro, uma profissão, uma amizade, um casamento, a falta de escolaridade. A redenção é uma mudança de circunstâncias, o que significa que a salvação é secularizada. Ela diz respeito a trocar algo neste mundo por alguma outra coisa, ainda neste mundo. Nós buscamos a nossa tranquilidade, nosso descanso, nossa paz e nossa alegria neste mundo ou nesta época. Em segundo lugar, a sociedade consumista não tem ideia de que a primeira coisa que precisa ser mudada é o próprio coração de uma pessoa — um coração de pedra por um de carne, um coração natural por um sobrenatural. O consumidor, pelo próprio fato de ser um consumidor, está se esforçando tanto para comparar este produto com aquele, que raramente tira os olhos dos produtos tempo suficiente para interrogar os apetites de seu coração. Ele não pergunta: “O que os meus apetites revelam? Estou desejando as coisas certas?” Uma mentalidade consumista tem uma obsessão desordenada e enganosa pelos objetos de seus desejos, em vez de pelas qualidades desses desejos. No passado, os limites de tempo e espaço, tradição e comunidade, agiam para reprimir e amestrar os apetites, para melhor ou para pior. Quando o indivíduo está 60


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livre de todas as tradições e da comunidade, os apetites não possuem outra coisa para guiá-los e moldá-los, a não ser o acaso e os próprios caprichos.

CONSUMISMO E AMOR Já no ano de 1940, o sociólogo Erich Fromm observou que as concepções ocidentais acerca do amor, na verdade, haviam se desviado para o consumismo. Considere a forma como o processo do namoro típico funciona. Um homem avalia o seu próprio poder de aquisição baseado naquilo que ele entende que é valorizado pelas mulheres: personalidade, humor, estatura, perspectivas futuras e assim por diante. Com base nessa autoavaliação, ele faz a melhor aquisição possível de acordo com, sejam lá quais forem, as características que ele mais valoriza nas mulheres, tais como inteligência, beleza ou contexto familiar. Num mercado com ofertas abundantes, ele pode ser mais específico em suas exigências. Ele não está procurando apenas beleza, mas sim uma morena com essa ou aquela estatura. Em tudo isso, Fromm observou que as pessoas têm tirado o seu foco das “qualidades” do amor e colocado nos “objetos” do amor. Estamos mais preocupados com quem nos ama do que em amar. Ele escreve: “Desse modo, duas pessoas se apaixonam quando sentem que encontraram o melhor objeto disponível no mercado, levando-se em conta as limitações de sua própria mudança de valores28.” Quando abordamos o amor e os relacionamentos como consumidores, o que nos chama a atenção são as características mais superciciais, visto que os processos de tomada de decisão do consumidor baseiam-se nas qualidades externas em vez de nas qualidades mais profundas, invisíveis. A beleza conta mais do que o caráter; o salário mais do que a lealdade; os costumes mais do os valores; o desempenho sexual mais do que a fidelidade. No amor romântico do século XIX, a sexualidade era considerada como algo que surgia do verdadeiro amor. Na época da revolução sexual ocorrida na última metade do século XX, o sexo bom se tornou uma condição prévia para o amor. O sexo passou a ser um teste no início do relacionamento, em vez de um prêmio a ser conquistado na intimidade do relacionamento. Uma ênfase muito maior foi dada à experiência sexual e ao tipo físico29. A pornografia encontrou um mercado mais facilitado, já que o público é facilmente ludibriado por suas fantasias. 28  Erich Fromm, The Art of Loving, 1956; reimpressão New York: Harper and Row, 1989, p. 3, traduzido para o português como A Arte de Amar, São Paulo: Martins Fontes, 2000. 29  Giddens, Transforming Intimacy, pp. 62. 61


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O AMOR CONSUMISTA NAS IGREJAS Não é coincidência o fato de que uma igreja “amorosa” acredite que o tamanho e o desempenho sejam importantes. A melhor forma de amar e alcançar o mundo é com uma boa linha de produtos. As igrejas maiores possuem os recursos necessários para esse tipo de coisa, as igrejas pequenas não. Logo, as igrejas pequenas enfraquecem. Um pastor relatou para outro recentemente a sua experiência de perder 1.000 dos 2.500 membros para uma igreja grande, voltada para os frequentadores não convertidos, quando esta se mudou para perto da sua (uma igreja que não era tão menor assim, na verdade). De modo notável, as contribuições da igreja não diminuíram após a saída dos mil membros; na verdade, aumentaram. Parece que foram os consumidores que deixaram a igreja. Quando os pastores falham em ensinar aos crentes que o problema do amor começa com sua qualidade em vez de com seus vários objetos, as habilidades cruciais que os crentes desenvolvem no shopping são transferidas para a vida de suas igrejas. As pessoas vêm, ouvem a música, ouvem a pregação, olham as outras pessoas ao redor — “Elas se parecem comigo? Ficarei confortável com elas?” — e fazem uma avaliação de tudo quanto viram, no caminho para a casa: “Eu gostei da música, com exceção de um cântico. O pregador não foi muito divertido. Você viu alguma programação para adolescentes?” Elas avaliam suas experiências em vez de seus corações. Elas julgam a igreja em vez de deixar que a Palavra de Deus as julgue. Em tudo isso, elas falham totalmente em reconhecer que não estão amando o seu próximo como a si mesmas. A pergunta que elas fazem não é: “Que estilo de música ajuda o meu próximo a louvar a Deus?” Elas perguntam: “Que estilo me satisfaz?” Os líderes de igreja com inteligência mercadológicatêm imaginado que podem utilizar diversos cultos para atrair diferentes segmentos do mercado. Os líderes de igreja com inteligência mercadológica têm imaginado que eles podem começar “cultos” múltiplos, todos com a mesma marca confiável da franquia. Eles se esqueceram — ou nunca foram ensinados — que o amor verdadeiro exige conhecimento pessoal, porque o conhecimento pessoal é uma condição prévia para a responsabilidade, a disciplina e a santidade. Com milhares de membros espalhados por cultos múltiplos, haverá consideração por algumas ovelhas, mas por muitas delas não. Muitas ovelhas perambularão por aí, procurando um produto melhor, e ninguém ficará sabendo. Paulo não estava realmente querendo dizer para os presbíteros darem atenção a todo o rebanho, não é mesmo? Mas apenas para a maior parte dele (At 20.28). 62


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O nome do jogo de muitas igrejas hoje em dia é “O jeito certo é do seu jeito”. Os produtos não são feitos para durar, mas sua depreciação é planejada e esperada. Um culto bem-sucedido é aquele que produz uma elevação espiritual ou uma experiência no topo de um monte. O crescimento é calculado pelo número de decisões feitas, não por “uma obediência duradoura a uma mesma norma”, nas palavras de Nietzsche. As estatísticas e outras formas de medida a curto prazo são de total importância. Quando os números começarem a mergulhar na curva sigmoide, mude a engrenagem da programação, a fim de produzir outra propulsão no crescimento. As virtudes como santidade, autossacrifício e fé não podem ser contabilizadas, razão pela qual elas não têm importância. Conforme Mark Dever afirmou, as imagens dos gráficos estatísticos são mais adoradas do que as imagens esculpidas30.

Ponto 4: A fobia de comprometimento remove o compromisso do amor, e ele se torna uma questão de vantagem pessoal. A ideia de compromisso é removida de nossa visão de igreja. A FOBIA DO COMPROMISSO Uma consequência adicional do individualismo e do consumismo é o medo de assumir compromissos obrigatórios. A ambição de buscar a felicidade nas negociações e renegociações de nossos muitos contratos significa ter a certeza de que nenhum contrato será excessivamente obrigatório. Ou melhor, significa evitar todos os contratos enquanto manipulamos as circunstâncias para conseguirmos todos os benefícios de um contrato. Essa é uma generalização grosseira que provavelmente não faz jus às complexidades da vida urbana do século XXI. Mas as notáveis mudanças ​​em uma série de indicadores sociais sugerem que as pessoas hoje em dia são geralmente mais relutantes em assumir compromissos e ligações obrigatórios, que limitem as opções disponíveis a eles no futuro, do que as pessoas das gerações passadas31. Alguns 30  Mark Dever, What Is a Healthy Church?, Wheaton, IL: Crossway, 2007, p. 96 traduzido para o português como O que é uma Igreja Saudável, São José dos Campos: Editora Fiel. 31  Para uma discussão desse fenômeno na geração dos jovens de hoje, principalmente em relação aos que pertencem a uma igreja local, veja os caps. 2 e 3 de Robert Wuthnow, After the Baby Boomers: How Twenty- and Thirty-Somethings Are Shaping the Future of American Religion [Depois da Geração Pós-MSegunda Guerra mundial: Como os Jovens e Adultos de Meia-idade Estão Moldando o Futuro da Religião Americana], Princeton: Princeton University Press, 2007. 63


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exemplos concretos deverão afirmar a importância disso, uma questão que muitos de nós, creio eu, conhecem por experiência própria. Em primeiro lugar, os americanos hoje em dia são menos propensos a se filiarem a clubes, associações e grupos cívicos do que seus predecessores. O francês Alexis de Tocqueville pode ter retornado de sua famosa viagem de 1831 aos Estados Unidos com relatórios surpreendentes sobre a vibrante vida cívica e as atividades associativas dos americanos, mas os pesquisadores recentes têm revolvido mais de um século de anuários maçônicos, registros de pagamentos de uniões sindicais, relatórios estatísticos do Rotary Clube, da liga infantil de basquete, da União dos Escoteiros e até mesmo dos membros mais ilustres do clube de boliche para descobrir que o país que Tocqueville viu está mudado32. O número de organizações que exigem um envolvimento cara a cara e um compromisso substancial por parte dos membros tem despencado abruptamente. Por outro lado, as organizações nacionais e internacionais como o Sierra Club ou a National Audubon Society, que prometem enviar boletins ocasionais em troca de nada mais que uma verificação anual de membresia, têm crescido33. Em segundo lugar, a atitude mais lenta que os ocidentais têm tomado em relação à instituição do casamento sugere uma incapacidade cultural maior para assumir compromissos com obrigações. Tanto os homens quanto as mulheres estão se casando em idade mais madura. Os índices de concubinatos estão em alta. Os divórcios são mais comuns. As estatísticas acerca do segundo e terceiro casamento estão aumentando. E não é novidade para ninguém que o sexo fora do casamento é cada vez mais aceito na cultura como um todo. Justamente por isso, a contínua aprovação cultural em favor do aborto, nas petições, sugere uma relutância em relação aos compromissos obrigatórios da paternidade. Em terceiro, os ocidentais estão mudando de profissão e de carreira com maior frequência no curso de sua vida profissional do que no passado. De acordo com as estatísticas do Departamento do Trabalho dos EUA, em 2008, a média de estabilidade no emprego para os trabalhadores entre 25 e 34 anos de idade era de 2 anos34. Se 32  Veja Robert Putnam, “Bowling Alone: America’s Declining Social Capitol” [Jogando Boliche Sozinho: O Declínio do Capitólio Social Americano] in Journal of Democracy 6 (janeiro de 1995): pp. 65-78; e também Robert Putnam, Bowling Alone: The Collapse and Revival of American Community [Jogando Boliche Sozinho: O Colapso e o Renascimento da Comunidade Americana], New York: Simon and Schuster, 2000. 33  Putnam, Bowling Alone, p. 156. 34  Departamento do Trabalho dos EUA, Divisão de Estatísticas do Trabalho, “News” [Notícias], 26 de Setembro de 2008, USDL 08-1344 disponível em <http://www.bls.gov/news.release/archives/tenure_09262008.pdf>. 64


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um indivíduo começar a trabalhar aos 20 anos, ele terá, aos 40, uma média de sete profissões. Assim como acontece com todas essas estatísticas, precisamos ajustar as conclusões que tiramos desse fato com outros fatores de qualificação. Por exemplo, o ritmo de mudança de emprego entre os trabalhadores comuns no último século é também, sem dúvida, resultado da crescente complexidade e eficiência da economia global, que altera as profissões e as torna desnecessárias com muito maior rapidez do que no passado. Ainda assim, seja qual for a causa, o efeito em cadeia é uma menor capacidade para se comprometer com uma única carreira no curso de vida de uma pessoa. Em quarto lugar, alguns comentaristas observaram a capacidade que as igrejas evangélicas conservadoras possuem para aumentar as responsabilidades de sua membresia em comparação com seus colegas protestantes mais bem-sucedidos, porque os evangélicos “exigem mais” de seus membros doutrinariamente35. O que essa conclusão não reconhece é a tendência simultânea que os frequentadores de igreja têm para se afiliarem a igrejas maiores e até mesmo megaigrejas, onde as exigências para o envolvimento interpessoal, par a responsabilidade e para o compromisso são geralmente menores. Um número maior de americanos está se unindo às igrejas? Talvez. Mas será que essas igrejas estão permitindo que seus membros persistam no anonimato? Geralmente sim. Minha geração em especial — a geração x36 — adora o deus das opções. As pessoas atingem os seus vinte e até trinta e tantos anos na incerteza quanto ao que querem ser “quando crescer”, motivando pelo menos uma dupla de escritores a caracterizar esse fenômeno como “adolescência tardia”37. Quantos homens (incluindo eu) não tenho aconselhado durante a angustiosa decisão de se comprometer ou não com esta ou aquela mulher? Afinal, outra mulher “muito melhor” poderia aparecer no mês seguinte. A mentalidade consumista, a multiplicidade de opções e a preocupação do comprador em se arrepender impedem a capacidade de ter compromisso, desde as profissões até as esposas, os restaurantes e as casas. Os compromissos 35  Roger Finke e Rodney Stark, The Churching of America [A Frequência à Igreja nos EUA], Piscataway, NJ: Rutgers University Press, 2005, p. 275. 36  N.T. Geração X tem sido uma denominação da geração iniciada aproximadamente entre as décadas de 60 a 80. 37  Ouvi que R. Albert Mohler utiliza essa frase em diversos discursos e artigos. Ela pode ser encontrada em <www.almohler.com>; veja também Diana West, The Death of the Grown-Up: How America’s Arrested Development Is Bringing Down Western Civilization [A Morte do Crescimento: Como o Impedimento do Desenvolvimento Americano Está Prejudicando a Civilização Ocidental], New York: St.Martin’s Press, 2007. 65


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nos amarram, e numa cultura onde a maximização do prazer a curto prazo tem seu prêmio, os compromissos obrigatórios são ameaçadores. Os compromissos obrigatórios, por natureza, são criados a fim de impedir que os indivíduos vivam de acordo com seus caprichos e fantasias. Eles restringem a liberdade. São prazeres adiados.

A FOBIA DO COMPROMISSO E O AMOR O que o temor do compromisso faz com o amor? Ele reconfigura o amor de modo que a obrigação ou a quebra de compromisso se torne menos relevante. A lealdade e a fidelidade são removidas dos ingredientes do amor. A marca do amor romântico que Giddens descreveu como característica do fim do século XVIII e do século XIX não era estática, ela evoluiu. Ela serviu “para abrir caminho” para algo que ele chama de relacionamento puro. O relacionamento puro é a relação social na qual entramos “por aquilo que podemos obter de cada pessoa, através de uma associação consistente com o outro, e que se prolonga somente na medida em que ambas as partes acreditam que estão recebendo satisfação suficiente por parte da outra pessoa envolvida na relação”38. Ela é pura ou descontaminada de qualquer obrigação moral, qualquer sentimento de dever ou responsabilidade, qualquer compromisso a longo prazo e qualquer apelo para servir ao outro ou para cuidar dele. Ela existe simplesmente por causa da utilidade presente e não é constrangida por coisa alguma, senão pela preferência pessoal. Uma cultura caracterizada por esses “relacionamentos puros” é uma cultura onde as amizades, as parcerias no trabalho, os parceiros sexuais e a membresia da igreja existem simplesmente em função daquilo que é imediatamente vantajoso para o bem-estar de alguém, e continuam existindo apenas enquanto as coisas permanecerem assim. Sempre que um relacionamento se tornar inconveniente ou exigir demais, deve ser deixado para trás. Por essa razão, os crentes deveriam se perguntar: “Eu gasto tempo somente com pessoas que considero agradáveis? Eu evito pessoas com necessidades ou com quem tenho dificuldades para me relacionar? Abandono a igreja quando as coisas se tornam difíceis?”

O AMOR SEM COMPROMISSO NAS IGREJAS Quando a ideia de compromisso obrigatório é removida da definição de amor, as igrejas se tornam lugares onde os sacrifícios pessoais são raramente feitos. Desse modo, o evangelho é raramente exemplificado. (Cumprir as alianças com os 38  Giddens, Transforming Intimacy, pp. 58. 66


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pecadores sempre exige um autossacrifício.) Em vez disso, as pessoas vêm e vão — “pulando de igreja em igreja” — com nenhum cuidado. Elas se associam facilmente às igrejas e facilmente as abandonam, visto que o fato de fazerem isso não viola sua concepção de amor e suas obrigações. Elas não param para medir as consequências de seu afastamento na vida dos outros. Elas não sentem o peso de sua responsabilidade pelos outros. Não discutem as razões de sua saída com os pastores. Elas apenas se vão. Devolvem suas compras no balcão. Isso não é nada pessoal. Em tudo isso, elas pedem pouco dos outros e dão pouco em retribuição. O que é trágico é que esses crentes que vêm e vão das igrejas estão simplesmente imitando muitos pastores. Um homem vem por alguns anos, ouve falar de outra oportunidade, vai embora e não pensa coisa alguma sobre isso. Sua compreensão acerca do amor é destituída de qualquer sentimento de obrigação a longo prazo por um rebanho. Com tudo isso, a ligação entre a doutrina e a prática enfraquece. Os crentes professam ter fé no evangelho. Seu sepultamento e ressurreição simbólicos nas águas do batismo indicam que eles desejam tomar suas cruzes e seguir o seu Senhor, mas a própria ética de seu amor sem compromisso não lhes proporciona a oportunidade de cumprir essa profissão de fé com suas ações. Essas ovelhas são ensinadas de modo tão deficiente, tão de acordo com as concepções descompromissadas da cultura secular acerca do amor, que a consciência de um homem é raramente alertada (se é que é alertada) quando ele se vira para sua esposa e diz: “Querida, estou cansado desta igreja, vamos procurar outra.” Tão logo ela concorde e eles saiam da igreja, eles falham em reconhecer sua violação do novo mandamento que Cristo deu a sua igreja — “Ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” —, embora eles possam afirmar esse mandamento em suas mentes. O mundo, como um todo, olha para a igreja cristã e ouve sobre o “amor cristão”, mas não vê nada diferente daquilo que já conhece, porque os nossos compromissos de uns para com os outros são insignificantes e indolentes. Então, por que os descrentes se preocuparão (desde que sejam entretidos)? Cada vez mais, os crentes estão deixando de se associar às igrejas. A “experiência providenciada por suas igrejas”, afirma o famoso pesquisador de opinião pública evangélico George Barna, “parece superficial. Eles estão buscando uma experiência de fé que seja mais vigorosa e inspire mais admiração” do que aquilo que a antiga igreja local pode lhes oferecer39. O próprio Barna fica orgulhoso. Se um cristão está 39  George Barna, Revolution, Carol Stream, IL: Tyndale, 2005, p. 14, traduzido para o português como Revolução - Cansado da igreja?, Santo Amaro, Abba Press. 67


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“mergulhado na igreja local, minimamente envolvido ou completamente desassociado de uma igreja local, é irrelevante para mim (e, em algum sentido, também para Deus). O que importa não é com quem você se associa (por exemplo, com uma igreja local), mas quem você é”40. Lembre-se, o amor é autorrealização e relacionamento, e as igrejas não estão, aparentemente, ajudando esses indivíduos. Barna cita inúmeras estatísticas para afirmar esse ponto de vista, tal como o fato de que oito em cada dez crentes “não sentem que entraram na presença de Deus ou experimentaram uma ligação com Ele durante o culto de adoração”41. Isso acontece, em parte, porque as igrejas não têm lido as estatísticas como Barna, e não têm descoberto que “o modo como os americanos experimentam e expressam sua fé” tem mudado significativamente42. Isso significa que as igrejas locais estão na verdade se interpondo no caminho dos crentes “dedicados” que “são sérios em sua fé”43. Para alguns crentes, a solução é manter as igrejas locais fora do caminho. Assuma o controle de sua própria jornada espiritual. Para outros, a solução é descobrir uma das novas “igrejas butiques”, que oferecem as “experiências personalizadas” que os americanos estão procurando44. Do mesmo modo, os crentes podem crescer em maturidade sem todas as confusões, burocracias e redundâncias da vida da igreja local tradicional. A conclusão final de Barna? Você pode ir para uma igreja ou sair dela, dependendo daquilo que for bom para você. Você é o administrador de seu portfólio espiritual, o seu próprio capitão, o seu pastor. O pastor de uma megaigreja e inventor de modismos Bill Hybels descobriu a dependência exagerada que sua igreja tinha de programas consumistas. A solução? Sua igreja, a de Willow Creek, pretende desenvolver um “crescimento personalizado ou ‘plano’ de treinamento”. Se você vai para um spa, diz ele, você tem um personal trainer que lhe diz o que você precisa fazer. Precisamos da mesma coisa em nossas igrejas, a fim de produzir pessoas que se autoalimentem45. Então, por que não um livro sobre membresia e disciplina da igreja? Olá! Tem alguém aí? 40  Ibid., p. 29. 41  Ibid., p. 31. 42  Ibid., p. 49. 43  Ibid., p. 8. 44  Ibid., p. 62–63. 45  Hybels descreve isso em <http://revealnow.com/story.asp?storyid=49>. A citação foi extraída de Greg L. Hawkins e Cally Parkinson, Reveal: Where Are You?, Barrington, IL: Willow Creek Association, 2007, pp. 65-66, traduzido para o português como Descubra Onde Você Está, São Paulo: Vida, 2008 . 68


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Ponto 5: A Descrença remove todo julgamento do amor, o que nos leva a esperar uma aceitação incondicional por parte das igrejas. O pragmatismo também dá resultados. O CETICISMO Juntamente com o consumismo e a fobia de compromisso, como consequência do individualismo em nossa atual cultura, está o ceticismo em relação a todas as formas de doutrinas ou dogmas. O fato de adotar qualquer dogma como completamente verdadeiro — ou, nas palavras de Francis Schaeffer, como uma “verdade verdadeira” — é ridicularizado como dogmatismo. Os dogmas se equivalem ao dogmatismo. A fim de que o indivíduo continue livre para avançar gradualmente para o Oeste, para cima e para o exterior, para novos territórios e possibilidades, todas as doutrinas e costumes do mundo antigo devem ser considerados como algo do qual você pode abrir mão: talvez, o que minha mãe me ensinou seja verdade, talvez não. Eu tenho que ver se isso serve para mim. Se a religião de meus avós se mostrar vantajosa para a minha situação, eu a manterei. Se ela se mostrar como um fardo para que eu alcance meu próprio telos e meu “destino manifesto”, então ela deve ser descartada ou, pelo menos, modificada. É evidente que uma abordagem pragmática da vida geralmente é uma consequência do ceticismo em relação à verdade46. Em nossa época, surpreendentemente, o ceticismo se tornou o próprio alicerce, a própria pedra fundamental sobre a qual toda a nossa liberdade pessoal e política repousa — ou, pelo menos, aquilo que entendemos como nossa liberdade47. Esse foi o ponto de partida de Descartes em sua busca pela verdade. Contudo, o ceticismo assumiu um novo nível de resistência no século XX. Em resposta à devastação provocada por duas guerras mundiais, pelo holocausto e pelas ideologias totalitárias por trás desses eventos, a sociedade aberta de Karl Popper buscava a liberdade na renúncia de todas as alegações das verdades absolutas. Semelhantemente, Isaiah Berlin evitou to46  Exatamente como pensam Jeremy Bentham e John Stuart Mill na Grã-Bretanha ou John Dewey e Richard Rorty nos Estados Unidos. 47  Colin Gunton descreve como as concepções modernas sobre a liberdade são um engano no livro The One, The Three, and the Many: God, Creation, and the Culture of Modernity [O Único, Os Três e os Muitos: Deus, a Criação e Cultura da Modernidade], Cambridge, UK: Cambridge, 1993, pp. 13, 33-37. 69


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das as formas de liberdade baseadas em algum tipo de princípio verdadeiro, optando, em vez disso, por definir superficialmente a liberdade como “libertação da restrição” e nada mais. A verdadeira liberdade (o que ele chama de “liberdade negativa”) não é uma consequência de vivermos de acordo com a verdade, mesmo que esta seja uma verdade autodeterminada. Em vez disso, a liberdade é simplesmente não ser impedido de fazer o que quer que seja que eu deseje fazer. Esta é a única verdade com a qual todos podemos concordar: “Fique longe do meu caminho.” As proposições mais recentes apresentam mais dessa mesma ideia. Tudo o que vem após o “véu da ignorância”, de John Rawls, até o “ironista liberal”, de Richard Rorty, exige que o indivíduo trate com ceticismo todos os compromissos, todas as doutrinas, todas as concepções de justiça ou liberdade adquiridas com sentido diferente disso — todos os compromissos, isto é, exceto o compromisso para com o liberalismo filosófico48. Não temos que concordar com todos os compromissos políticos e filosóficos de Allan Bloom a fim de concordar com a forma como ele caracteriza a mudança no culto de nossa cultura aberta: Abertura esta usada como a virtude que nos permite buscar o que é bom por meio da razão. Isso agora significa aceitar todas as coisas e negar o poder da razão. A busca desenfreada e irrefletida pela abertura, sem reconhecer seu problema inerentemente político, social ou cultural como o alvo da natureza, tem tornado essa abertura sem significado... O que temos ensinado é: abertura para a capacidade de estarmos fechados49.

O CETICISMO E O AMOR Não é difícil perceber o que acontece com a compreensão que uma cultura tem sobre o amor quando o ceticismo em relação a todas as verdades se torna a única moral absoluta: o amor se torna mutável, adaptável e maleável. O amor se torna “qualquer coisa que combine” ou, pelo menos, “o que quer que seja que funcione para você”. O amor se torna uma aceitação incondicional. Se você me ama com condições, então você não me ama. 48  Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, New York: Cambridge University Press, 1982, p. 179, traduzido para o português como O Liberalismo e os Limites da Justiça, Lisboa: Calouste Gulbenkian/ Dinapress, 2005; Charles Taylor, Sources of the Self [A Origem do Eu], Cambridge, MA: Harvard University Press, 1989, p. 27. 49  Allan Bloom, The Closing of the American Mind [O Fechamento da Mente Americana], New York: Touchstone, 1987, pp. 38-39. 70


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O oposto do amor, de acordo com o pensamento de hoje, é o julgamento, a intolerância ou o exclusivismo como o dos racistas, dos homofóbicos e das igrejas que traçam limites. Por um lado, eu sei que você me ama se você me aceita como eu sou e tolera qualquer coisa que eu diga ou pense, sem me condenar. Na verdade, o fato de me amar significa mais do que apenas me aceitar; significa aceitar e afirmar minhas decisões sobre meu estilo de vida como legítimas e boas.

A ACEITAÇÃO INCONDICIONAL NAS IGREJAS O que é absolutamente espantoso é que movimentos inteiros de igrejas evangélicas e pós-evangélicas agora apelam para que os cristãos desvalorizem a ortodoxia (crença correta) por causa da ortopraxia (prática correta), pensando que esse apelo, de alguma forma, libertará os cristãos para amar de modo verdadeiro e autêntico. A acusação que o Dr. Martyn Lloyd-Jones, um pastor de meados do século XX, faz à igreja de seu tempo é certamente ainda mais relevante nos dias de hoje: Houve períodos na história em que a preservação da própria vida da Igreja dependia da capacidade e disposição de determinados grandes líderes para diferenciar a verdade do erro, apegando-se com ousadia ao que era bom e rejeitando o que era falso. Mas a nossa geração não aprecia nada próximo disso. Ela é contrária a qualquer demarcação precisa da verdade e do erro50.

Quando os líderes evangélicos e pós-evangélicos apelam para que a igreja realinhe suas ênfases, eles estão, tragicamente, apelando para que a igreja se renda às piores perversões e degradações do conceito de amor inventadas pelo Ocidente secular ao longo dos últimos séculos: o amor como autoexpressão, o amor como satisfação do consumidor, o amor como “unidade de medida para as questões”, o amor como falta de compromisso, o amor como qualquer coisa que seja eficaz para você. Anteriormente, perguntei o que acontece quando os seres humanos usam ídolos para justificar suas ações e relacionamentos. A resposta é que eles escolhem seu próprio estilo de vida, chamam isso de “amoroso” e depois colocam o selo da aprovação de Deus sobre ele. Além disso, qualquer instituição cristã que busque impor seus limites e políticas se tornam alvos de críticas. 50  Extraído de D. Martyn Lloyd-Jones, Maintaining the Evangelical Faith Today, Nottingham, UK: Inter-Varsity, 1952, pp. 4-5, traduzido para o português como Mantendo a Fé Evangélica Hoje, São Paulo: PES. 71


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Quando os evangélicos conservadores traçam sua ascendência teológica, eles são rápidos em dizer que alguém como Friedrich Schleiermacher representa o lugar na árvore genealógica onde o liberalismo teológico fez brotar um ramo, e isso não deve ser confundido com sua própria linha de pensamento. Schleiermacher, que foi plantado e cultivado no viveiro do Romantismo, pediu para não ser contado entre os teólogos proposicionais, que “acreditam que a salvação do mundo e a luz da sabedoria devem ser encontradas numa nova roupagem das fórmulas ou numa nova organização das provas existentes”51. Em vez disso, afirmou ele, a verdadeira religião “deve ter vida e conhecer a vida em um sentimento imediato”. Desse modo, ele diz a seu leitor “para fixar sua atenção nas emoções e disposições internas”52. Mas a ideia de Schleiermacher sobre “sentimento” é um pouco mais complexa do que as sensações conscientes que descrevemos como “sentimentos”. Ainda assim, não é difícil perceber como a sua abordagem sobre encontrar-se com Deus em algum plano meditativo e intuitivo reflete o frequentador de igreja mediano, que caminha para o culto no domingo de manhã na esperança de encontrar uma experiência terapêutica do amor de Deus, fechando os olhos e expressando o seu amor por Deus por meio de cânticos cíclicos com refrões de louvor. Schleiermacher pode ter sido barrado na porta da frente, mas ele veio furtivamente pela parte de trás, por uma porta destrancada por toda uma cultura que tem sido levada a acreditar que o amor é essencialmente uma questão de autoexpressão e autorrealização. O “emocionalismo”, que é a visão de que qualquer afirmação da verdade é simplesmente uma expressão de nossas atitudes emocionais, “tem se incorporado a nossa cultura”, afirma o filósofo Alasdair MacIntyre. Por essa razão, os crentes de hoje, assim como qualquer outra pessoa em nossa cultura, “falarão e agirão como se o emocionalismo fosse a verdade, não importa qual seja o ponto de vista teórico que eles confessem”53. Os evangélicos podem alegar que se importam com a doutrina, mas geralmente sua religião é conduzida simplesmente com base no nível emocional. “O que Deus está lhe dizendo?” “O Senhor está me chamando para outra igreja.” “O que Jesus faria?” Os pós-evangélicos então afirmam ter ultrapassado as divergências teológicas liberais e conservadoras, e apontam o dedo para os evangélicos, argumentando 51  Friedrich Schleiermacher, On Religion: Speeches to Its Cultured Despisers [Sobre a Religião: Discursos aos Desdenhadores Cultos], tradução de John Oman, New York: Harper and Row, 1958, p. 17. 52  51 Ibid., p. 36, 18. 53  Alasdair MacIntyre, After Virtue: A Study in Moral Theory [Um Estudo sobre a Teoria Moral], 2a ed., London: Duckworth, 1985, p. 22. 72


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que seu método de formulação doutrinária é apenas um vestígio do racionalismo iluminista. Essa conversa está encerrada, dizem os pós-evangélicos. Ao fazerem isso, ironicamente, eles simplesmente repetem o próprio Schleiermacher e falham completamente em reconhecer que sua própria vida e fôlego, como pós-evangélicos, dependem do fato de que seus pais evangélicos nasceram e foram criados na casa de Schleiermacher, mesmo que eles digam que isso se deu na casa de outra pessoa.

O PRAGMATISMO É INEVITÁVEL Sempre que uma verdade, um dogma e as linhas divisórias forem deixadas de lado nas igrejas, o que vem em seguida quase sempre é o pragmatismo, assim como acontece nos círculos filosóficos. “Isso vai funcionar?” se torna a principal pergunta que os líderes da igreja fazem ao considerarem suas reuniões, ministérios e programações. Portanto, o fato de o pragmatismo reinar de forma suprema nas igrejas do Ocidente pós-moderno não deveria nos surpreender, quer as igrejas sejam avivadas, liberais abastadas, voltadas para os frequentadores não convertidos, emergentes ou simplesmente lideradas por indivíduos realmente legais, que fazem tudo o que podem para evitar os desentendimentos que às vezes são provocados pela doutrina. Muitas igrejas reavivalistas abertamente ortodoxas, pertencentes à geração da Segunda Guerra Mundial, muitas igrejas supostamente voltadas para os ortodoxos, da geração posterior à Segunda Guerra, e muitas igrejas emergentes não ortodoxas da geração das décadas de 60 a 80 entregaram as rédeas da igreja para “aquilo que funciona”. Cada geração tem simplesmente descoberto que algo diferente funciona para a sua época e localização. Pensar de modo pragmático, por si só, não é algo ruim. O problema aparece quando o pragmatismo preenche o vácuo deixado pela rejeição aos princípios bíblicos, de modo que o pragmatismo se torna o único princípio. O pragmatismo, por sua própria natureza, exige que baseemos nossas decisões em resultados visíveis, e até mesmo computáveis. Mas certamente a utilidade das estatísticas em uma igreja cristã, na melhor das hipóteses, é limitada, e na pior delas, é enganadora. Uma igreja grande é sinônimo de uma pregação sadia ou de entretenimento? Isso é difícil de dizer. Como podemos quantificar a ação daquilo que é sobrenatural? Como podemos avaliar com precisão aquelas coisas que a Bíblia nos garante que só podem ser vistas com os olhos da fé? Com que eficiência podemos discernir o que está na mente de Deus? Em outras palavras, as mesmas coisas que dão vida e fôlego à igreja não podem ser vistas ou medidas. Uma centena de escoteiros pode se reunir numa sala, assim 73


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como uma centena de maçons, assim como uma centena de muçulmanos, assim como uma centena de pessoas que se autodenominam “cristãs”. Qual é a diferença entre esses grupos? Estatisticamente, nenhuma. Qual é a diferença espiritual entre eles? Como se espera, a diferença é total. Mas as diferenças espirituais só podem ser vistas com olhos espirituais. Elas não podem ser pesquisadas com o tipo de perguntas que os seres humanos são capazes de responder marcando um X num quadradinho, pelo menos não até que os pastores e as igrejas se tornem capazes de discernir quais conversões são genuínas e quais não o são; e se o crescimento numérico de uma igreja é sinal da decisão de Deus na eternidade de abençoar a igreja com fertilidade, ou simplesmente da eficácia das programações cativantes. As estatísticas podem ter a sua utilidade para as igrejas, mas as coisas mais importantes em relação à igreja não podem ser medidas — as diferenças entre o falso e o verdadeiro, entre a carne e o espírito, entre a mente dos homens e a mente de Deus. Somente quando estivermos diante de Deus, no dia do julgamento, a real medida das coisas será revelada. Infelizmente, muitos pastores e igrejas tentam medir seu ministério por aquilo que pode ser visto, em vez de medir por aquilo que é invisível. É irônico, mas exatamente nessa questão acerca do que é invisível a aniquilação da doutrina leva a igreja não só ao pragmatismo, mas também pode levar a uma nova ênfase na liderança do Espírito Santo54. É quase como se a perda do pensamento doutrinário, que cria limites, permitisse que as igrejas pudessem se voltar para a contagem dos números ou para a perseguição ao Espírito (ou para ambas as coisas). Esta última opção permite que os evangélicos apelem cada vez mais para aquilo que o Espírito possa estar nos dizendo ou para a forma como Deus poderia estar agindo, aqui e agora. “Vamos apoiar o que Deus está fazendo!” Henry Blackaby, de linha teológica conservadora, fala dessa maneira, como também o “emergista” Rob Bell. E será que isso não contradiz o meu ponto de vista a respeito de os evangélicos se renderem àquilo que pode ser visto e medido? Render-se à ação do Espírito é um sinal de humildade, certo? 54  Por exemplo, Mark Noll escreve: “O novo movimento carismático obscureceu os limites demarcatórios entre protestantes e católicos como coparticipantes e seguidores do vento do Espírito”. Is the Reformation Over? [A Reforma Terminou?], Grand Rapids, Baker, 2005, p. 65. Apesar de Noll não apresentar isso como um exemplo negativo da deterioração doutrinária — à medida que seu livro tenta promover o desmoronamento da parede que divide protestantes e católicos romanos — isso serve para os nossos propósitos como um exemplo da relação inversa que há nas igrejas contemporâneas entre a atenção dada às distinções doutrinárias e a que é dada à ação do Espírito Santo.

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Eu certamente não estou propondo que os crentes não devam submeter seus planos ao Espírito. Ele inclina os corações dos crentes de modo maravilhoso em várias direções. Estou simplesmente observando que algumas igrejas que falam muito a respeito de nos submetermos humildemente àquilo que o Espírito possa estar nos dizendo falham, ao mesmo tempo, em se submeter de modo consciencioso àquilo que o Espírito tem falado nas Escrituras. Não quero misturar as Escrituras com as doutrinas formuladas pelos homens, mas assumo que as Escrituras devam ter algum valor para os seres humanos. Devemos ser capazes de fazer afirmações reais em relação ao que ela está dizendo — ou seja, afirmações doutrinárias. Se nem as Escrituras nem a doutrina guiar o modo como nossas igrejas se reúnem, organizam-se e cumprem a ordem de sua Grande Comissão, não seria este o caso de estarmos invocando o nome do Espírito simplesmente para justificar nossas próprias ideias? Numa era cética com respeito a todos os dogmas, isso não seria ao menos uma tentação maior?

LIGANDO OS PONTOS Não é difícil ligar os pontos entre o individualismo da nossa cultura, o consumismo, a dificuldade em assumir compromisso e o ceticismo com respeito a todas as formas de dogma à relutância que os crentes têm para se associarem às igrejas, ou, pelo menos, para considerarem o seu cristianismo como sendo profundamente dependente de sua associação como membro em uma igreja. Qualquer regra de uma organização institucional que ligue ou desligue os indivíduos e os coloque numa estrutura hierárquica será inevitavelmente impopular. Numa cultura onde os heróis históricos têm nomes como Franklin, Douglass ou Earhart, e onde os heróis da ficção têm nomes como Jason Bourne ou Indiana Jones; numa cultura onde o ambiente físico de nossas vidas — desde casas e roupas até pratos — são o produto de nossas escolhas; onde o divórcio está em voga e a permanência no emprego é baixa; onde toda a verdade é considerada como algo do qual possamos abrir mão, e onde as pessoas estão enamoradas pelas estatísticas — nesse tipo de cultura, cresceremos relativamente convencidos da nossa capacidade de fazer escolhas sábias sobre a nossa condição espiritual55. Pensaremos que podemos 55  Não resta dúvida de que uma publicação lançada em 2007, intitulada American Individualism Shines Through in People’s Self-Image [O Individualismo Americano Brilha Através da Autoimagem das Pessoas], da organização de pesquisa de opinião George Barna, observa: “Com base em entrevistas com amostras de 4000 adultos representantes da nação, a autoimagem dos adultos americanos prevaleceu de forma clara e distinta. A maioria dos americanos vê-se como líderes (71%) e acredita que são bem informados a respeito dos acontecimentos correntes (81%). Eles quase que unanimemente veem a si mesmos como pensadores 75


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conduzir nossa vida espiritual muito bem. Portanto, em comparação com pessoas de outras épocas e lugares, nós seremos provavelmente mais propensos a enxergar o compromisso e a submissão a uma igreja local com indiferença e desconfiança, e justificaremos isso através de uma redefinição da palavra amor. Muitas vezes, fico desconfiado com declarações sociológicas generalizadas, porque, em última análise, elas são inevitavelmente especulativas. Quem, a não ser Deus, sabe por que as pessoas — quanto mais sociedades inteiras — fazem o que fazem? Ainda assim, se o leitor me permitir algum grau de especulação, acredito que, até certo ponto, é razoável a conjectura de que os crentes que vivem numa sociedade individualista são mais propensos a considerar as doutrinas sobre membresia e disciplina da igreja como uma pedra de tropeço, pelo menos em comparação com os crentes que vivem numa cultura menos inclinada a definir os indivíduos como unidades isoladas.

Ponto 6: Mas o que o individualismo é de fato? Ele é o ódio à autoridade. E por trás do ódio à autoridade está um Deus depreciado. A RAIZ DO PROBLEMA Mas o drama do indivíduo é mais complexo do que pode ser comunicado por essa declaração generalizada. Muitos dos escritores e líderes de igrejas que estão explicitamente lutando por uma desinstitucionalização da igreja não são individualistas estridentes, mas sim pessoas comprometidas com a comunidade. Eles argumentam que as estruturas impessoais das classes e do rol de membros, atividades exclusivas para membros dos ministérios, hierarquias de liderança, formas tradicionais de culto, declarações de fé extensas, atos disciplinares e coisas do tipo se interpõem no caminho de seres humanos quebrantados e feridos, que estão independentes (95%), e como pessoas leais e confiáveis (98%). Eles também dizem que são capazes de se adaptar facilmente a mudanças; e uma quantidade colossal de pessoas, quatro em cada cinco, acredita que eles estão fazendo uma diferença positiva no mundo. Dois em cada três adultos notaram que eles gostam de estar no controle das situações. E embora a maioria dos americanos argumente que são livres pensadores e que são “bem abertos” a pontos de vista morais alternativos (75%), a grande maioria apoia os valores da família tradicional (92%), o que resulta numa grande maioria que alega se preocupar com o estado moral da nação (86%). Embora, curiosamente, apenas um em cada quatro adultos se preocupe suficientemente em tentar convencer outras pessoas a mudarem seus pontos de vista a respeito de tais assuntos”, 23 de julho de 2007; http://www.barna.org/FlexPage.aspx?Page=BarnaUpdate&BarnaUpdateID=275, acessado em 23 de janeiro de 2008).

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aprendendo a amar uns aos outros, a cuidar dos de fora e a levar cura para uma comunidade mais ampla. Os críticos de uma ortodoxia rigorosa não estão comprometidos com a liberdade de ação, mas sim com uma concepção relacional do ser humano. Eles acreditam que a paz humana, o senso de significado e a alegria podem ser encontrados apenas na comunhão. Portanto, aqui estou eu, argumentando que muitos crentes no Ocidente são anti-institucionais e relutantes em se associarem com qualquer coisa devido às suas ocultas pressuposições individualistas. Mas alguns dos líderes e escritores abertamente anti-institucionalistas também são abertamente anti-individualistas. Estou fugindo do assunto?

COMUNITARISMO Vale a pena observar que um aspecto notável da assim chamada cosmovisão pós-moderna, em contraste com a visão moderna, é a proeminência dada àquilo que é comunitário em oposição ao que é individual. Isso é feito de forma descritiva, afirmando que a nossa própria percepção do “eu” é necessariamente determinada pela justaposição dos grupos linguísticos, étnicos, econômicos e de gêneros que ocupamos. Às vezes, ela é feita de forma normativa, afirmando que nós, como indivíduos, devemos buscar viver nossa vida com mais mentalidade de grupo ou comunidade, já que nenhum de nós é uma ilha, afinal. Eu aprecio determinados elementos da literatura comunitarista e concordo com eles, quer seja com sua abordagem da filosofia política ou da vida da comunidade da igreja local. Pois ela geralmente oferece uma antropologia mais sofisticada e realista do que a maioria da literatura que a precedeu. No entanto, já que ela, em certa medida, permite (e até mesmo insiste) que sua própria antropologia forme e determine a sua própria teologia, devemos lidar com ela com cuidado. Os vários grupos sociais, étnicos ou nacionais dos quais você e eu fazemos parte, sem dúvida, moldarão o modo como compreendemos a revelação do próprio Deus nas Escrituras, coforme sugeri anteriormente, mas isso não significa que não possamos ter uma compreensão correta e verdadeira de suas Escrituras por meio de seu Espírito. E não somente isso, mas a reação pós-moderna e comunitarista contra o individualismo modernista continua sendo originária desse individualismo, assim como os aspectos importantes da cosmovisão dos românticos contrailuministas se originaram do Iluminismo. O “eu” pós-moderno pode ser constituído e delimitado socialmente — nenhum “eu” existe na mais radical das formulações — mas dentro 77


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de suas limitações, nenhuma autoridade existe para estender sua mão ou dizer ao “eu”: “O que você está fazendo?” Ele pode ir e vir conforme lhe apraz, invocando sua pertença a este ou àquele grupo, de acordo com seus caprichos.

ANTIAUTORITARISMO Não creio que a proposição comunitarista ofereça qualquer antídoto verdadeiro contra o individualismo e seus corolários, tal como o consumismo. Eles argumentam que a comunidade é o antídoto contra o individualismo. Mas não é, o que nos leva para o único tema central deste livro: o problema real é a briga contra a ideia de autoridade. Com o risco de soar como o último modernista Friedrich Nietzsche, ou como o pós-modernista radical Michel Foucault, tudo tem a ver com o poder. Com o risco de soar como um professor fundamentalista de escola dominical, tudo tem a ver com desobediência. Alguns escritores contemporâneos entendem isso, outros não. Não basta dizer que o problema da modernidade era o individualismo, porque esse termo é muito vago. O problema que Descartes e todos os de sua laia deixaram para a posteridade é mais precisamente descrito como individualismo autônomo — autônomo com o sentido de “lei própria” — onde estamos deixando que o adjetivo, não o substantivo, realize o verdadeiro trabalho de afirmar o nosso ponto de vista. A solução para o individualismo não é a comunidade. A solução — alguém pode temer dizer isso sem ter muitas páginas que o qualifiquem — é reintroduzir uma concepção da submissão à vontade revelada de Deus da forma como ela deve ser estabelecida na igreja local. A campanha que a cultura ocidental tem promovido durante vários séculos em favor do individual tem sido uma campanha contrária a todas as formas de autoridade. Desde o ensino elementar até a graduação, os educadores têm nos ensinado a questionar a autoridade: a autoridade da igreja, por causa do que ela fez com Galileu; a autoridade dos reis, por causa de suas usurpação; a autoridade da grande maioria, por causa de suas tiranias; a autoridade dos homens, por causa do exercício de sua força bruta e de seus atos de opressão; a autoridade da Bíblia, por causa das suas supostas contradições; a autoridade da ciência, por causa das mudanças de seus paradigmas; a autoridade da filosofia, por causa de seus jogos de linguagem; a autoridade da linguagem, porque ela tem sido desconstruída; a autoridade dos pais, porque eles não são legais; a autoridade do mercado, por causa das suas desigualdades exageradas; a autoridade da polícia, por causa de suas mangueiras de incêndio e de seus cassetetes; a autoridade dos líderes religiosos, porque eles nos farão acre78


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ditar em suas ideologias; a autoridade da mídia, por causa de suas tendências; a autoridade das superpotências, por causa de seu imperialismo. Existe alguma autoridade que deixamos de questionar? Quando se trata daquilo que devemos crer e de como devemos viver, uma suspeita onipresente em relação à autoridade espreita a mente da maioria dos ocidentais, em parte porque estamos familiarizados com a história cruel dos abusos de autoridade. Desde o início, a história que o Iluminismo conta sobre o individualismo tem sido realmente uma história sobre a batalha contra a autoridade, razão pela qual o método filosófico de Descartes começa com um total ceticismo em relação a toda autoridade epistemológica externa. A partir daí, ele construiu toda uma cosmovisão acerca dos recursos internos com seu famoso cogito ergo sum — “Penso, logo existo”. Um filósofo comunitarista caracterizou o projeto de Descartes como criador do “eu desimpedido”56. Mas ele é mais do que isso. O “eu” não está simplesmente desconectado ou desimpedido, ele é provocador. No ponto em que Jeová, criador do céu e da terra, descreveu-se a Moisés com o atributo autodefinidor “Eu sou” (ego sum, ​​na Vulgata), Descartes fundamentou o seu conhecimento de sua própria existência e, a partir daí, o seu conhecimento de todas as coisas, incluindo Deus no atributo de sua própria racionalidade: “Sei que existo porque sou um ser que pensa.” Com esse famoso desvio para o sujeito, o indivíduo se tornou o árbitro de todas as verdades. Jeová foi rejeitado. O indivíduo não precisa mais confiar na igreja, nos pais, no rei ou no professor para lhe ditar o que é verdadeiro e falso, certo e errado. O indivíduo deve julgar a verdade por si mesmo. Os românticos do contrailuminismo, apesar de rejeitarem as estruturas ordenadas e as proposições doutrinárias de seus predecessores racionalistas, compartilhavam de sua mesma rejeição a toda autoridade externa. Nesse sentido, os românticos e os classicistas eram dois filhos dos mesmos pais, embora parecessem diferentes. Em minha mente, a cena de abertura do livro A Nascente, de Ayn Rand, de 1943, apreende o clímax lógico do desvio para o sujeito, de Descartes, e apresenta um dos momentos mais degradadores de Deus e exaltadores do homem da literatura ocidental. Vale a pena observar como o imaginário primitivo de Rand desperta o sentimento dos dois capítulos de abertura da Bíblia. Seu herói é ao mesmo tempo Adão e Deus: 56  Charles Taylor, Sources of the Self, cap. 8, principalmente pp. 155-58, traduzido para o português como As Fontes do Self, São Paulo: Edições Loyola, 1997. 79


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Howard Roark riu. Ele ficou nu, em pé na beira de um precipício... O lago abaixo era apenas um fino anel de aço que cortava as rochas ao meio. As rochas desciam para as profundezas, imutáveis. Elas começavam e terminavam no céu. De modo que o mundo parecia suspenso no espaço, uma ilha flutuando sobre o nada, ancorada aos pés do homem sobre o precipício. Seu corpo se inclinava para trás, na direção contrária ao céu. Era um corpo de linhas e ângulos retos, cada curva desbastada em superfícies planas. Ele se levantou rígido, com suas mãos penduradas ao lado do corpo, com as palmas abertas. Sentiu suas omoplatas estiradas e ao mesmo tempo rígidas, sentiu a curva de seu pescoço e o peso do sangue em suas mãos.... Seu rosto era como a lei da natureza — algo que uma pessoa não poderia questionar, mudar ou contestar. Ele tinha os ossos malares salientes e excessivamente esqueléticos, as maçãs do rosto alveoladas; olhar cinzento, frio e fixo; uma boca desdenhosa, firmemente cerrada, a boca de um algoz ou de um santo. Ele olhou para o granito. É para ser cortado, ele pensou, e transformado em paredes. Ele olhou para uma árvore. É para ser rachada e transformada em vigas. Ele olhou para um vestígio de ferrugem sobre a rocha e pensou no minério ferro que está no subsolo. É para ser fundido e surgir como treliças defronte ao céu. Essas rochas, pensou ele, estão aqui ao meu dispor, esperando pela broca, pela dinamite e pela minha palavra; esperando para serem partidas, fendidas, trituradas, reformadas; esperando pela forma que minhas mãos lhe darão57.

A partir desse nosso ponto de vista, o problema com esse Howard Roark fictício não é simplesmente o fato de ele ter uma concepção mal compreendida de seu enraizamento social e da necessidade de comunidade, embora isso seja verdade. O problema está na idolatria do “eu”. O problema é que ele pensa que é Deus, e as filosofias tanto do modernismo quanto do pós-modernismo legitimam essa ambição58. Se alguém alegar que a A Nascente, de Ayn Rand, é uma peça obscura da literatura do século XX que a maioria dos crentes provavelmente ainda não leu, eles estarão fugindo da questão. Mesmo que não possamos traçar uma linha direta de 57  Ayn Rand, The Fountainhead, 1943; reimpresso por New York: Signet, 1993, pp. 15-16; traduzido para o português como A Nascente, São Paulo: Landscape, 2008. 58  Se alguém contestar que o pós-modernismo, na verdade, abomina essas ambições imponentes e faz tudo o que pode para desconstruir tais afirmações, é preciso apenas perguntar ao pós-modernista por que ele acha que tem autoridade para desconstruir. A verdade é que a desconstrução pós-moderna do indivíduo continua apenas como autônoma — autogovernada — assim como o indivíduo moderno, mesmo que ele postule autoridade simplesmente em sua capacidade de declarar todas as verdades como nulas e ineficazes. Nesse sentido, o desconstrutivismo desconstrói a si mesmo. 80


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causalidade genealógica entre um determinado livro e as cosmovisões adotadas numa cultura, precisamos apenas nos lembrar da pressuposição comunitarista razoável de que uma autora como Rand, seus muitos leitores e os escritores que vieram antes e depois dela surgiram do mesmo solo — o solo no qual ainda vivemos hoje. Howard Roark não é apenas mais um Adão americano? Partindo do ponto de vista de como os crentes definem a liderança, muitas igrejas não estão procurando por pastores visionários como Roark — homens que criam novos impérios inteiros com um planejamento, um livro, algum dinamismo pessoal e, ah, claro, com as orações da igreja? O exibido Roark é uma ilustração muito familiar do homem dos dias de hoje, líder bem-sucedido, empresário e que venceu na vida, tanto secular quanto religioso59. E tal figura não conhece autoridade alguma, senão os limites de sua própria imaginação. Mas é provavelmente um exagero dizer que os ocidentais de hoje acreditam que toda autoridade seja sempre ruim. A maioria das pessoas reconhece sua utilidade temporária na organização da vida no dia a dia. Alguém tem que fazer as leis. Alguém tem que ensinar na sala de aula. Alguém tem que administrar o escritório. Dito isso, a autoridade é algo que usamos para os nossos “contratos”, para usar a linguagem dos antigos teoristas democráticos. É algo para o qual nós, os governados, devemos dar o nosso consentimento. A autoridade final e absoluta sobre o que acreditar e como viver continua com o indivíduo. O indivíduo pode ceder temporariamente sua autoridade a outro por causa de uma vantagem estratégica. Desse modo, um homem pode concordar em ceder sua própria autoridade a uma constituição. Uma mulher pode concordar em ceder um pouco de sua autoridade a um contrato de trabalho. Um casal pode concordar em ceder parte de sua autoridade ao outro num voto de casamento. Mas todos esses arranjos são, no final, temporários, porque eles são contratuais e fiados sobre o consentimento livre e igual das partes. 59  Assim como acontece com Ayn Rand, no entanto, não é muito difícil especular sobre as possíveis cadeias de causalidade quando consideramos a imensidão do impacto que alguém como o ex-presidente do Banco Central dos EUA, Alan Greenspan, que geralmente se gabava de seu amor pela obra de Rand, poderia ter em toda a economia e na forma de vida dos Estados Unidos nas últimas décadas do século XX. Seria irracionalidade pensar que as concepções econômicas de crescimento e vitalidade que captam boa parte da nossa atenção consciente ao lermos o jornal da manhã, considerando em qual candidato votar ou determinando se as taxas de juros são favoráveis ​​para o refinanciamento da hipoteca de nossa casa, não causarão também um profundo impacto em nossas expectativas de crescimento e vitalidade na Igreja? Em seu livro Greed: The Seven Deadly Sins, New York: Oxford University Press, 2006, traduzido para o português como Avareza, Coleção Sete Pecados Capitais, São Paulo: Saraiva, 2005, Phyllis A. Tickle argumenta que “a trajetória desde Adam Smith até Ayn Rand e Arthur Andersen tem sido traçada de modo irreversível”; p. 40. 81


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Em resumo, não existe uma concepção verdadeira de autoridade, segundo a visão que o filósofo e teólogo dinamarquês do século XIX, Søren Kierkegaard, demonstra em seu ensaio Of the Difference between a Genius and an Apostle [A Diferença entre um Gênio e um Apóstolo], ao escrever: “Honrar o pai de alguém porque ele é inteligente é impiedade”60. O que Kierkegaard quer dizer? Nós seguimos os gênios quando o que eles dizem está de acordo com a nossa própria percepção sobre o que é racional ou direito. Não há reconhecimento verdadeiro algum da autoridade deles. Nesse sentido, seria impiedade transportar a linguagem do quinto mandamento para tal domínio: o filho que honra o seu pai porque ele é inteligente não está verdadeiramente honrando ao seu pai. A diferença entre o gênio e o apóstolo, portanto, é que, ao contrário do gênio, um apóstolo fala com uma autoridade divinamente outorgada, e quer suas palavras soem como sábias, quer como tolas (cf. 1 Co 1.18ss.), ele deve ser obedecido.

A AUTORIDADE NAS IGREJAS

A autoridade é uma ideia popular nas igrejas? Tudo, desde os debates a respeito do papel das mulheres na igreja e no lar até os debates acerca da autoridade de Deus sobre o futuro e sobre a salvação sugere o contrário. Os evangélicos falam e pensam a respeito da linguagem da autoridade com a mesma frequência com que praticam a disciplina na igreja, o que significa dizer: quase nunca. O que é impressionante é o modo como esses debates a respeito da autoridade entre os crentes geralmente esgotam a linguagem do amor. Impedir que as mulheres se tornem pastoras ou compartilhem uma igualdade de liderança no lar é considerado como uma falha em respeitar, honrar e amar as mulheres. Excluir um indivíduo da comunhão da igreja por causa de pecado sem arrependimento é chamado de falta de amor. Sustentar que Deus é soberano sobre a salvação e o futuro é considerado como uma falha em reconhecer o amor de Deus. “Mas Deus é amoroso,Ele não faria isso!”, é o que muitos dizem prontamente. Na mente de muitos crentes ocidentais, as ideias acerca do amor e da autoridade permanecem quase que completamente em desacordo. Talvez, o sinal mais importante a respeito desse fato seja a escassez de pregação bíblica ou de pregação expositiva. Uma igreja que adota uma pregação sadia, expositiva, é uma igreja que ao menos tem começado a reconhecer a intenção de Deus em empregar pronunciamentos autorita60  Citado em Gilbert Meilaender, “Conscience and Authority” [Consciência e Autoridade] em First Things [Primeiras Coisas], November 2007, p. 33. 82


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tivos por meio de mediadores humanos, em nossa vida e em nosso crescimento como cristãos. Uma igreja que adota uma pregação sadia, expositiva, é uma igreja que ao menos tem começado a reconhecer que Cristo entra na vida do crente com a autoridade de um rei que ordena arrependimento e obediência. Por isso essa igreja se reúne para ouvir o que o rei tem dito de modo autoritativo em sua Palavra. Infelizmente, bem poucas igrejas adotam tal pregação como o centro de sua vida comum. Em vez disso, os pregadores escolhem seus tópicos terapêuticos de acordo com aquilo que eles entendem que a congregação precisa. Eles desejam coçar onde a congregação tem coceira. Novamente, a igreja que não adota uma pregação expositiva é uma igreja que provavelmente tem colocado o amor em oposição à autoridade. Talvez, mais do que qualquer outro tema cultural que tenhamos discutido, a questão da autoridade é relevante para a discussão acerca da membresia e da disciplina da igreja local porque membresia e disciplina envolvem uma vida de submissão. A membresia da igreja é, entre outras coisas, a submissão à disciplina de uma congregação em especial. Em certo sentido, acredito que esse ato de submissão seja contratual e temporal pelo fato de nenhuma igreja local ser suprema. Em outro sentido, acredito que esse ato de submissão não seja contratual pelo fato de estar baseado nas realidades supremas realizadas pela obra da morte e da ressurreição de Jesus Cristo e em suas reivindicações sobre a vida dos crentes como rei e senhor. Se o DNA de nossa natureza caída e de nossa mentalidade cultural for inerentemente desconfiado de qualquer autoridade, as práticas de membresia e de disciplina da igreja, grosso modo, serão difíceis de serem vendidas. Crentes diferentes e igrejas diferentes enxergarão a autoridade com maior ou menor desconfiança. E não resta dúvidas, uma das dificuldades mais reais que temos que esclarecer nessa discussão é saber o que significa submissão num mundo caído, onde a autoridade — incluindo a autoridade da igreja — costuma ser tão abusiva. O que fazemos com os cultos de Jim Jones que existem no mundo, nos quais a autoridade é usada para induzir ao suicídio em massa? Como compreendemos a autoridade e seus usos, quando os oficiais nazistas como Adolph Eichmann utilizam exatamente este argumento: — “Nós estávamos apenas cumprindo ordens.” — para justificar o massacre de milhões de pessoas? Em outras palavras, essa discussão consequentemente terá de levar em consideração a questão sobre como equilibramos as concepções sobre a autoridade da igreja com a autoridade da consciência do indivíduo diante de Deus, a fim de não repetirmos os erros e terrores da história, contra os quais tanto o modernismo quanto o pós-modernismo corretamente se posicionam. 83


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Ao longo dessas linhas, talvez seja conveniente nesse ponto oferecer um conselho ao leitor. Uma parte de mim, com sinceridade, está preocupada em falar favoravelmente acerca da autoridade na sequência deste livro, levando em conta a grande quantidade de líderes cristãos que continuam abusando dela, seja na igreja ou no lar. Quantos cristãos magoados têm recebido nada menos do que egoísmo das mãos dos pastores, dos maridos, dos pais ou das igrejas, em nome de Deus ou da autoridade. Uma parte de mim está, portanto, inclinada a dizer a qualquer leitor que já afirma o papel da autoridade na igreja para ir mais além, pelo próprio temor de afirmá-la em suas formas abusivas. Meu argumento, em certo sentido, dirigese principalmente ao grupo contrário — igrejas e líderes que não podem imaginar qualquer tipo de papel para as autoridades. Dito isso, espero que um exame bíblico mais cuidadoso desse conceito demonstre que a autoridade piedosa não é algo que rouba a vida, mas sim que produz vida. Isso é algo que, creio eu, tanto os que abusam quando os que evitam a autoridade precisam ouvir. De onde quer que venhamos, um componente crucial da investigação cristã sobre membresia e disciplina deve incluir a questão de saber se nossas suspeitas e afirmações em relação à autoridade coincidem com as suspeitas e afirmações da Bíblia.

SECULARIZANDO A IDEIA DE DESOBEDIÊNCIA Embora a ideia de individualismo seja útil, precisamos estar cientes do fato de que ele pode secularizar o problema da cultura ocidental. Deixe-me ilustrar isso com outro exemplo. Podemos falar a respeito das “inseguranças” ou podemos falar do “temor do homem”. O último diz respeito ao nosso relacionamento com outras pessoas no que concerne a Deus. O primeiro está exclusivamente ligado ao nosso relacionamento com outras pessoas. E é secularizado. Eis outro exemplo: podemos falar sobre “consumismo” ou podemos falar sobre “ganância”. As duas ideias buscam a mesma coisa, mas a primeira é despida de qualquer embaraço extraordinário. “Consumismo” soa como as palavras civilizadas de um sociólogo, ao passo que “ganância” soa como as palavras vindas do púlpito de um pregador fundamentalista que ofende outros seres humanos. Mas é exatamente isso que o consumismo é. Ele é a velha ganância61. Ela é uma ação em relação a outros seres humanos, mas ela é fundamentalmente uma forma de medir como estamos em relação à Deus. Ela é uma forma de idolatria (Cl 3.5; Ef 5.5). 61  Ver Phyllis A. Tickle, Greed, pp. 38, 40. 84


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As palavras de um sociólogo, como consumismo, e as de um psicólogo, como insegurança, são úteis para a questão porque elas nos permitem separar um aspecto do pecado de outro. Mas quando temos que realmente tratar de problemas como a insegurança ou o consumismo, não iremos muito longe se não retirarmos essas máscaras seculares e os chamarmos pelos seus nomes antiquados, os nomes que soam como a escola dominical: temor do homem e ganância. Por exemplo, não deveríamos tratar a insegurança apontando para o seu oposto, autoconfiança: deveríamos falar sobre o temor a Deus. Não deveríamos tratar do consumismo lendo tratados sociológicos, mas falando a respeito de as coisas terem substituído a Deus como objeto de adoração. Estou me demorando nesse ponto porque muita literatura secular e cristã tenta tratar do individualismo dando vivas ao seu correspondente oposto — o comunitarianismo. A linguagem e a literatura sobre o individualismo podem nos ajudar a perceber e a descrever alguns dos sintomas do problema: as pessoas são relutantes em assumir compromissos com os outros e em ter que prestar contas. As pessoas rejeitam todo tipo de limites além de suas próprias preferências e pensam, com insensatez, que podem definir que estão num caminho bom e correto sem a ligação com outras pessoas. Mas quando tratamos do “individualismo” como sendo a raiz do problema, preparamos o caminho para aquilo que eu creio ser um diagnóstico insuficiente, se não for um erro de diagnóstico, pois a nossa análise ou exclui Deus ou envolve apenas uma grande depreciação de Deus. Eis um exemplo de um diagnóstico insuficiente. Um acadêmico escreve: “Meu argumento é que as falhas distintas de nossa época são decorrentes da falha de uma relação apropriada com Deus”62. Os nossos problemas, diz ele, são uma questão de uma “relação apropriada”. Bem, isso está mais ou menos correto. Mas era assim que o apóstolo Paulo ou o profeta Jeremias colocavam a questão: “Assim diz o Senhor, ‘tenho observado uma falha numa relação apropriada de sua parte, ó Israel’!”? Em certo sentido, sim, Israel falhou em se relacionar com Deus, mas o modo como eles falharam em se relacionar é o que importa. Eles falharam em obedecê-lo. Eles falharam em ouvir o seus mandamentos. Deus está interessado num relacionamento com os seres humanos, mas ele está interessado num relacionamento estruturado de uma forma específica. Ele está interessado num relacionamento autoritativamente assimétrico — ou seja, ele é o rei que deve ser adorado, nós não. Talvez esse 62  Colin E. Gunton, The One, the Three and the Many, p. 38. 85


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autor tivesse a intenção de que todas essas coisas estivessem condensadas neste simples adjetivo: “apropriado”. Mas sua ênfase — no substantivo — foi claramente nessa ideia de relação. Mesmo quando falamos a respeito de um relacionamento com Deus, ironicamente, esse relacionamento pode ser secularizado quando rebaixamos Deus para o nosso nível e o despojamos das coisas que fazem dele Deus. Com esse teólogo e inúmeros outros, a capacidade de Deus para se relacionar substitui o seu senhorio63. Quando retiramos por um momento a máscara do individualismo secularizado, o que encontramos por trás dela é um medo, ou melhor, um ódio à autoridade. Não é dos relacionamentos que as pessoas têm medo; as pessoas almejam os relacionamentos, conforme todo o movimento romântico testifica. Em vez disso, é um tipo especial de relacionamento que as pessoas desprezam. Portanto, o problema real no final não é o individualismo, mas a oposição à ideia de autoridade. O isolamento não é o problema. Mas sim a recusa em viver a vida conforme as condições de outra pessoa.

UM DEUS DEPRECIADO Deixe-me explicar isso de outra maneira. Essa ênfase no relacionamento, conforme sugeri anteriormente, tem se tornado muito comum na literatura teológica hoje em dia, com cada vez mais autores insistindo no fato de que nós, como indivíduos, não precedemos os nossos relacionamentos, em vez disso, são os nossos relacionamentos que nos constituem como indivíduos. “Eu” não sou o que “eu” sou até que minha mãe, meu pai, meus irmãos, amigos e inimigos, minha cultura e minha igreja interajam comigo e participem na criação da minha identidade. Wolfhart Pannenberg refere-se à “exocentricidade” da natureza humana, querendo dizer que Deus não nos criou para sermos egocêntricos, mas para sermos interligados e constituídos externamente64. John Zizioulas argumenta que, visto que o ser de Deus é constituído de uma comunidade de pessoas, do mesmo modo a humanidade, em seu estado de perfeição, existe não como indivíduos, mas como pessoas em comu-

63  É assim que Stanley Grenz caracteriza Moltmann no livro Rediscovering the Triune God: The Trinity in Contemporary Theology [Redescobrindo o Deus Triúno: A Trindade na Teologia Contemporânea], Minneapolis, Fortress, 2004, p. 84, citando Moltmann em Trinity and the Kingdom and God in Creation [A Trindade, o Reino e Deus na Criação], traduzido por Margaret Kohl, Minneapolis: Fortress, 1993, p. 221. 64  Wolfhart Pannenberg, Anthropology in Theological Perspective [A Antropologia na Perspectiva Teológica], Philadelphia: Westminster Press, 1985. 86


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nidade65. Entre esse tipo de escritores, o pecado é caracterizado, portanto, como uma quebra de relacionamento ou como um despojamento da paz relacional entre o homem e Deus, entre homem e homem e entre o homem e o cosmos. A salvação é considerada como uma reconciliação de relacionamentos quebrados. Eu posso afirmar tudo isso e hesito em fazer uma crítica porque acredito que a igreja possa se beneficiar com esse tipo de observação. Mas temo que possa haver um buraco profundo bem no cerne desse projeto comunitarista — uma grande depreciação de Deus. Ao fazer tal acusação, não tenho a pretensão de considerar cada frase de cada livro entre os escritores desse grupo. Por essa razão, assumamos que estou somente tratando de uma tendência que tenho observado, sem pretender fazer justiça a nenhum autor em especial. Ainda assim, o fato de tratarmos dessa questão dessa maneira nos permitirá perceber o que é necessário. Eis um exemplo de como um escritor recente caracteriza o pecado: “O salário do pecado é a morte porque, se nossa vida está baseada em nosso relacionamento com Deus e com as outras pessoas, se esses relacionamentos estiverem corrompidos, nossa própria vida está ameaçada por completo”66. Novamente, isso é verdade, mas não chega a tanto. O salário do pecado é a morte não só porque o nosso pecado quebra o nosso relacionamento com Deus, que é a fonte da vida; o salário do pecado é a morte porque o pecado ofende a majestade gloriosa, bela, santa e resplandecente de Deus! O salário do pecado é a morte porque a glória de Deus é importante e infinita, e nós carecemos dela. O salário do pecado é a morte porque Deus é digno de toda a honra, adoração e louvor, e nós o temos ignorado. Quando sua glória não é honrada e valorizada da forma apropriada, ou seja, quando nós ficamos destituídos de sua glória, nós nos tornamos judicialmente culpados, e um pagamento nos é exigido. Dizer que nenhum pagamento é exigido é o mesmo que dizer que sua glória de fato não possui valor algum. Quebre algo que é barato e ninguém se importará. Quebre algo requintado e precioso, no entanto, e seu valor será demonstrado — em partes — pelo fato de que será exigido um pagamento. Deus, que tem ciúmes de sua glória e de seu nome, teria demonstrado que ele é sem valor e indigno se tivesse escolhido salvar a humanidade pecadora sem exigir um pagamento justo pelas transgressões contra a sua pessoa gloriosa e seu caráter. 65  John D. Zizioulas, Being as Communion: Studies in Personhood and the Church [Existindo como Comunhão: Estudos sobre a Personalidade e a Igreja], Crestwood, NY: St. Vladimir’s Seminary Press, 1985, pp. 16-19; 36-65. 66  Tom Smail, Like Father, Like Son: The Trinity Imagined in Our Humanity [Tal Pai, Tal Filho: A Trindade Representada em nossa Humanidade], Grand Rapids: Eerdmans, 2005, p. 238. 87


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Como tal, o pecado é mais do que uma quebra de relacionamento, e a salvação é mais do um relacionamento restaurado. O pecado é uma ofensa contra a majestade, e a salvação é a restauração da adoração à majestade — “não ter outros deuses”, nas palavras de Moisés; “amar a Deus de coração, de mente, de alma e de força”, nas palavras de Jesus67. É por essa razão que lemos numa oração puritana: “Que eu nunca me esqueça que a crueldade do pecado não repousa na natureza do pecado cometido, mas na grandiosidade da pessoa contra quem pecamos.”68 O que os humanos individualistas precisam não é apenas de relacionamentos, mesmo que sejam relacionamentos de amor e interesse mútuo. Em vez disso, os humanos precisam de relacionamentos que os movam na direção da adoração, da honra e da apreciação de Deus e de sua glória69. A solução comunitarista, receio eu, demonstra como o nosso individualismo tem se tornado individualista — nós nos valorizamos tanto que temos dificuldade em imaginar o quão ofensivo é o nosso pecado contra a pessoa gloriosa de Deus. O chamado da Bíblia para a obediência e para a submissão diante da autoridade de Deus está arraigado em sua glória e majestade. Por essa razão, desprezar a autoridade é, enfim, desprezar a sua glória. Em outras palavras, identificar o problema real como sendo contra a autoridade e não apenas o individualismo nem chega a ser suficiente. No final, o problema real é o ódio contra a majestade e a dignidade de Deus.

Ponto 7: A membresia na igreja, portanto, começa com arrependimento. ARREPENDIMENTO Se a raiz do problema de nossa cultura e de nossas igrejas for a ideia de autoridade e o desprezo da glória de Deus, então a solução não é simplesmente se associar 67  Cf. João Calvino, Institutes of the Christian Religion, vol. 1., ed. John T. McNeill, Philadelphia: Westminster, 1960, p. 39, traduzido para o português como As Institutas, Ed. Clássica, São Paulo: Cultura Cristã, 1985. 68  Extraído da oração intitulada “Humiliation,” in The Valley of Vision [Humilhação em O Vale da Visão], Ed. Arthur Bennet, Edinburgh: Banner of Truth, 2002, p. 143. 69  Outro escritor da linha comunitarista, Miroslav Volf, espantosamente parece lançar uma luz num Deus centrado no homem, bem no cerne de sua descrição da Glória de Deus, quando ele define a glória de Deus como “o amor de Deus” para “o bem da criação”, no livro Free of Charge: Giving and Forgiving in a Culture Stripped of Grace [Livre do Fardo: Ofertando e Perdoando numa Cultura Despojada da Graça], Grand Rapids: Zondervan, 2005, p. 62; e também p. 39. Eu digo “parece” porque suas afirmações são breves e poderiam ser mais bem elaboradas. 88


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a uma comunidade e criar relacionamentos; a solução é o arrependimento. É uma mudança de coração e direção. Esse arrependimento inclui se associar a uma comunidade e criar relacionamentos, mas se associar a um tipo específico de comunidade, onde o “eu” não seja soberano e onde uma pessoa é chamada à obediência aos outros como uma expressão da obediência a Deus. É uma associação a uma comunidade onde a adoração a Deus é suprema em tudo. Nos capítulos seguintes, veremos que participar da membresia de uma igreja bíblica significa se submeter a um corpo de relacionamentos com estruturas de autoridade implícitas, um corpo no qual os diferentes membros assumem papéis diferentes, embora eles constituam, juntos, um único corpo. Isso exige que nos arrependamos do autogoverno. A maioria dos crentes não acha que deve se arrepender ou igualmente se submeter quando se associa a uma igreja. Talvez eles se sintam sozinhos e se associem a uma igreja para ter comunhão. Talvez eles tenham considerado os argumentos bíblicos com relação à membresia na igreja e tenham sido persuadidos de que isso é a coisa certa a fazer. Talvez eles nunca tenham pensado a respeito disso e estejam fazendo apenas o que os crentes que eles conhecem fazem. Mas seja qual for sua experiência consciente, associar-se a uma igreja é principalmente uma questão de arrependimento e obediência. Isso certamente não é uma questão de se associar a algum clube com vários privilégios, como quando alguém se associa a um clube. Enquanto a palavra membro possuir essa conotação nas mentes ocidentais, ela será uma palavra imprópria para ser usada. Ainda assim, ela é uma boa palavra para se usar, porque submeter-se a uma igreja local e se tornar um membro é uma ratificação externa do que significa se submeter a Cristo e se tornar um membro de seu corpo. Significa manter o imperativo daquilo que Cristo realizou no indicativo. Submeter-se a uma igreja local na terra, na linguagem da ética cristã, é nos tornarmos aquilo que somos no céu.

CONCLUSÃO Eis o que podemos extrair deste capítulo: entre os crentes díade hoje, os tópicos sobre membresia e disciplina da igreja têm sido criticados explicitamente por alguns e rejeitados silenciosamente por muitos. E isso acontece, conforme tenho argumentado, porque em nossa época individualista, cética, antiautoridade e depreciadora de Deus, nós temos uma aversão instintiva à ideia de sermos constrangidos a fazer qualquer coisa. Portanto, temos redefinido Deus e as expectativas acerca de seu amor de um modo que não é permitido que façamos. Temos levantado um 89


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ídolo e o chamado de “amor”. E esse ídolo chamado amor tem dois grandes mandamentos: “Saiba que Deus o ama pelo fato de não obrigá-lo a fazer coisa alguma (principalmente se você não quiser realmente fazê-lo)” e, em seguida, “Saiba que o seu próximo o ama melhor quando permite que você se expresse de forma completa e sem julgamentos”. Minha esperança é que a identificação desses problemas nos ajude quando, no restante do livro, voltarmos a considerar como o fato de pertencer a uma igreja local e se submeter à sua disciplina deve ser parte da forma básica da vida cristã.

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