Introdução bíblico-teológica ao Antigo Testamento

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“Para professores e expositores da Bíblia, essa é verdadeiramente uma mina de ouro. Membros atuais e anteriores do corpo docente do Reformed Theological Seminary produziram um volume há muito esperado. Abordagens bíblico-teológicas sólidas a cada livro do Antigo Testamento, ligadas a bons comentários históricos e literários, todos terminam apontando para o cumprimento dos textos na pessoa e na obra de Jesus. Com este volume, nenhum pregador jamais deveria sentir que pregar a Cristo a partir do Antigo Testamento é difícil demais ou especulativo demais.”

Graeme Goldsworthy, Ex-Professor de Antigo Testamento, Teologia Bíblica e Hermenêutica, Moore Theological College

“Nesta bela obra, você encontrará uma introdução profunda e, ao mesmo tempo, com linguagem acessível sobre a literatura do Antigo Testamento, produzida por estudiosos respeitáveis não apenas no contexto evangélico, mas também na academia em geral. Além de seguir a estrutura canônica da Bíblia Hebraica, outro mérito deste livro é mostrar ao leitor as conexões teológicas entre as obras do Antigo e Novo Testamento. Recomendo a leitura dele com entusiasmo!”

Tiago Abdalla T. Neto, Professor de Estudos Bíblicos, Instituto Missionário Palavra da Vida, Escola Teológica Charles Spurgeon e Gordon-Conwell Theological Seminary

“Para muitos cristãos, o Antigo Testamento é como um quebra-cabeça de mil peças. Por onde você começa? É bom olhar para a tampa da caixa e ver como tudo se encaixa. É isso o que esses magníficos mestres da igreja fazem neste livro perspicaz.”

Michael Horton, Professor que ocupa a cátedra J. Gresham Machen de Teologia Sistemática e Apologética, Westminster Seminary California; Autor, Bom Demais para Ser Verdade e Simplesmente Crente

“O que você ganharia ao ler um livro como este que não obteria lendo muitos outros com título e conteúdo aparentemente idênticos? A familiaridade com a estrutura, propósito e mensagem do Antigo Testamento. Há diversas introduções ao Antigo Testamento que nos deixam com a impressão de que estamos assistindo a um desmanche de uma grande máquina, de tal modo que qualquer tentativa de remontagem é dificultada. Ao ler esta Introdução Bíblico-Teológica ao Antigo Testamento, a impressão é bem diferente. Parece que estamos assistindo à montagem de um grande quebra-cabeça, cuja gravura final apresenta a pessoa e a obra de Cristo, tendo como pano de fundo o reino de Deus e a aliança com seu povo. É com base nessa gravura final que os autores apresentam suas contribuições sobre cada um dos livros do Antigo testamento. Recomendo com entusiasmo e gratidão a leitura.”

Daniel Santos, Professor de Antigo Testamento, Centro Presbiteriano de Pós-Graduação

Andrew Jumper; Professor de Exegese, Seminário JMC; Pastor Titular, Igreja Presbiteriana de Santo Amaro (São Paulo, SP)

“Neste volume, vários estudiosos bíblicos capacitados exploram fielmente os escritos do Antigo Testamento com sensibilidade e percepção. Eles fazem um trabalho admirável não apenas em descrever os temas e teologia principais de cada livro, mas também em demonstrar habilmente que o Antigo Testamento tem uma estrutura de aliança, uma perspectiva de reino e Cristo como centro. Em resumo, este é um volume excelente, que fornece um panorama abrangente e informativo do Antigo Testamento. Trata-se de um grande antídoto para a ignorância constrangedora dos cristãos em relação ao Antigo Testamento.”

Michael F. Bird, Professor Adjunto de Teologia, Ridley College (Melbourne, Austrália); autor, Evangelical Theology

“O livro Introdução Bíblico-Teológica ao Antigo Testamento é um recurso valioso para estudiosos que buscam compreender a unidade da mensagem bíblica, bem como a mensagem de cada um de seus livros. Os capítulos sobre cada livro do Antigo Testamento, escritos por vários autores, seguem uma estrutura semelhante, facilitando a compreensão do leitor e servindo como auxílio a pregadores que buscam subsídios para a exposição bíblica fundamentada em uma teologia sólida. O texto tem uma perspectiva claramente reformada e aliancista, partindo do nítido pressuposto da inspiração do texto bíblico, evitando as muitas divagações especulativas que alguns teólogos fazem em textos de teologia bíblica contemporânea. Recomendo o livro a todo leitor sério que queira crescer no conhecimento da Escritura e sua mensagem.

Mauro Meister, Professor de Teologia do Antigo Testamento e Teologia Bíblica, Centro Presbiteriano de Pós-Gradução Andrew Jumper

“O propósito desta obra — ‘mostrar como a diversidade vasta e eclética das Escrituras foi tecida por um único e divino autor ao longo de um milênio para ser um testemunho pactual da pessoa e obra de Jesus Cristo, pelo poder do Espírito Santo, de acordo com o decreto eterno de Deus, o Pai’ — é grandioso em si mesmo. Ainda mais nobre, porém, é a busca desse objetivo pelos esforços combinados de um grande corpo docente que está honrando o legado cinquentenário de uma instituição abençoada e firmemente comprometida com a inerrância da Palavra de Deus e com os distintivos históricos da fé cristã.”

Bryan Chapell, Presidente Emérito, Covenant Theological Seminary; Pastor Sênior, Grace Presbyterian Church (Peoria, EUA)

“Um grande apreço pelas Escrituras como a Palavra de Deus autoritativa permeia cada capítulo desta coleção. Além disso, ela exibe repetidamente lampejos de percepção sobre o desenvolvimento histórico-redentivo do plano de salvação de Deus para seu povo. Você pode não concordar com a posição de todos os autores, mas será desafiado a considerar com seriedade cada ensaio cuidadosamente trabalhado, todos escritos em um nível muito acessível. O livro alcança um tom

excelente em sua consciência das muitas questões difíceis que uma leitura honesta do Antigo Testamento introduz. Esses colaboradores são também sensíveis às preocupações canônicas e literárias. Finalmente, este volume inclui até mesmo ensino sobre o ‘idioma profético’ — se você não sabe o que é isso, pegue o livro e leia! Fico muito feliz por Van Pelt ter conseguido reunir um grupo tão capacitado de irmãos para produzir este belo livro.”

Bryan D. Estelle, Professor de Antigo Testamento, Westminster Seminary California; Autor, Salvation through Judgment and Mercy: The Gospel according to Jonah

“Van Pelt e seus colegas oferecem a todo adorador de Cristo um meio de extrair a história do Rei e de seu reino que perpassa a Lei e os Profetas. Suas análises individuais dos livros do Antigo Testamento revelam a beleza do cânon como um todo. Introdução Bíblico-Teológica ao Antigo Testamento é uma obra intelectualmente enriquecedora e pastoralmente fiel, que ajuda a igreja a crescer em amor pelo Salvador por meio da leitura da Bíblia Hebraica. Fiéis e estudantes da Bíblia encontrarão grande alegria ao ler suas Escrituras com o auxílio desta obra!”

Eric C. Redmond, Professor Adjunto de Bíblia, Moody Bible Institute; Pastor de Ministérios de Adultos, Calvary Memorial Church (Oak Park, EUA)

Introdução bíblico-teológica ao

ANTIGO TESTAMENTO

Miles V. Van Pelt

Editor

Contribuições de

Richard P. Belcher Jr., John D. Currid, William B. Fullilove, Mark D. Futato, Michael J. Glodo, Peter Y. Lee, Michael G. McKelvey, Richard L. Pratt Jr., John Scott Redd, Daniel C. Timmer, Willem A. VanGemeren, John J. Yeo, Miles V. Van Pelt

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

I n t r o d u ç ã o b í b l i c o - t e o l ó g i c a a o A n t i g o T e s t a m e n t o / M i l e s V . V a n P e l t e d i t o r ; t r a d u ç ã o M a r c e l o

S i q u e i r a G o n ç a l v e s . - - 1 . e d . - - S ã o

J o s é d o s C a m p o s , S P : E d i t o r a F i e l , 2 0 2 4 .

V á r i o s c o n t r i b u i d o r e s .

T í t u l o o r i g i n a l : A b i b l i c a l - t h e o l o g i c a l

i n t r o d u c t i o n t o t h e O l d T e s t a m e n t : t h e g o s p e l

p r o m i s e d .

B i b l i o g r a f i a .

I S B N 9 7 8 - 6 5 - 5 7 2 3 - 3 6 3 - 4

1 . A n t i g o T es t a m e n t o 2 . B í b l i a . A . T . - T e o l o g i a

3 . B í b l i a - E s t u d o I . P e l t , M i l e s V . V a n .

2 4 - 2 1 7 5 7 9

C D D - 2 2 1 6

Índices para catálogo sistemático:

1 A n t i g o T e s t a m e n t o : B í b l i a : T e o l o g i a 2 2 1 6

T á b a t a A l v e s d a S i l v a - B i b l i o t e c á r i a - C R B - 8 / 9 2 5 3

Introdução bíblico-teológica ao Antigo Testamento

Traduzido do original em inglês

A biblical-theological introduction to the Old Testament: the Gospel promised

Copyright © 2016 por Miles V. Van Pelt

Todos os direitos reservados.

Originalmente publicado em inglês por Crossway, Wheaton, Illinois, EUA.

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da versão Almeida Revista e Atualizada, 2ª ed. (Sociedade Bíblica do Brasil), salvo indicação específica.

Copyright © 2022 Editora Fiel

Primeira edição em português: 2024

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária.

Editor-chefe: Tiago J. Santos Filho

Editor-chefe: Vinicius Musselman Pimentel

Coordenadoras gráficas: Gisele Lemes e Michelle Almeida

Editor: André G. Soares

Tradutor: Marcelo Siqueira Gonçalves

Revisor: Willian Orlandi

Diagramador: Rubner Durais

Capista: Rubner Durais

ISBN Físico: 978-65-5723-363-4

ISBN Digital: 978-65-5723-362-7

Caixa Postal 1601

CEP: 12230-971

São José dos Campos, SP PABX: (12) 3919-9999 www.editorafiel.com.br

Preâmbulo

Ao nos aproximarmos dos 500 anos do início da Reforma Protestante da igreja cristã, o Reformed Theological Seminary (RTS) está entrando em seu 50º ano. O seminário existiu apenas por uma pequena fração desse importante período da história cristã, mas o RTS teve e continua a ter um papel significativo nessa época em que a teologia reformada desfrutou de uma renovação e uma influência amplamente reconhecida no mundo cristão.

O RTS surgiu em uma época em que as principais denominações e seminários estavam administrativamente nas mãos de teológos moderados, neo-ortodoxos e liberais, mas a curva de crescimento já estava com os evangélicos, tanto dentro quanto fora da linha principal. Enquanto os apparatchik1 denominacionais tentavam manter um status quo que já estava em declínio, um número crescente de cristãos ficava frustrado com educadores teológicos que eram indiferentes ou hostis à ortodoxia confessional cristã histórica e despreocupados com o trabalho evangélico da Igreja. O RTS foi criado para fornecer uma educação teológica robusta, reverente e rigorosa para pastores e líderes de igrejas, particularmente em igrejas presbiterianas e reformadas, mas também, de forma mais ampla, na família evangélica maior, partindo de um compromisso com a inerrância bíblica, com a teologia reformada e com a Grande Comissão. Como o RTS foi definido de forma confessional, embora não seja controlado por alguma denominação, o seminário pode exercer influência em vários ambientes denominacionais e em uma variedade de tradições da Igreja. Além disso, como os fundadores do RTS estavam conectados com uma rede evangélica global, o seminário pôde ter um alcance mundial desde o início. Ao longo dos anos, o RTS atendeu mais de 11 mil alunos de cerca de 50 denominações: presbiteriana, reformada, batista, 1 N.T.: Apparatchiks são os membros da estrutura do Partido Comunista na antiga União Soviética. Além disso, pode ser um termo usado depreciativamente em referência a uma pessoa que trabalhe de forma dedicada e acrítica para a estrutura de uma organização.

anglicana, congregacional e muito mais. Um seminário que começou com 14 alunos de uma denominação em 1966 agora tem cerca de dois mil alunos anualmente em oito cidades dos Estados Unidos, em sua educação global à distância e em um programa de doutorado em São Paulo, no Brasil. Alunos de todos os continentes representam dezenas de denominações. Trata-se do maior seminário evangélico reformado do mundo. Durante esse tempo, a reputação acadêmica e as contribuições do corpo docente do Reformed Theological Seminary cresceram. Nos estudos bíblicos, o corpo docente do RTS estabeleceu um padrão de excelência amplamente apreciado nos campos do Antigo e do Novo Testamento. Para dar apenas alguns exemplos, considere o ex-professor de Antigo Testamento do RTS, O. Palmer Robertson, que desempenhou um papel significativo no ressurgimento contemporâneo da teologia da aliança por meio de seu livro O Cristo das Alianças. John Currid, ex-professor de Antigo Testamento do RTS-Jackson e atual do RTS-Charlotte, produziu um comentário completo sobre o Pentateuco e fez um trabalho importante na área de arqueologia e estudos do Antigo Oriente Próximo. Richard Pratt, professor de Antigo Testamento de longa data do RTS-Orlando, não é apenas um autor prolífico conhecido por sua excelente erudição acerca do Antigo Testamento — tendo produzido, sozinho, artigos em tópicos para uma Bíblia de estudo inteira —, mas também é conhecido por seu trabalho em apologética e oração. Miles Van Pelt, do RTS-Jackson, talvez seja o melhor professor de línguas bíblicas que já conheci, com uma paixão contagiante pela teologia bíblica canônica e centrada em Cristo. O ex-professor de Novo Testamento do RTS-Jackson e atual do RTS-Orlando, Simon Kistemaker, foi secretário de longa data da Sociedade de Teologia Evangélica e completou o comentário em vários volumes do Novo Testamento iniciado por William Hendriksen. O professor do RTS-Orlando, Charles Hill, não é apenas um aclamado especialista em Novo Testamento, mas também um dos maiores estudiosos do mundo na escatologia do cristianismo primitivo. Além disso, o reitor do RTS-Charlotte e professor de Novo Testamento, Michael Kruger, é um reconhecido estudioso do cristianismo primitivo e fez grandes contribuições para discussões recentes sobre o cânon das Escrituras. De fato, Kruger e Hill, juntamente com John Frame, professor do RTS-Orlando, foram citados por D. A. Carson, em um recente discurso plenário na Sociedade de Teologia Evangélica, como responsáveis por contribuições notáveis no campo da doutrina das Escrituras. O estudioso do Novo Testamento do RTS-Jackson, Guy Waters, fez prolíficas publicações sobre

vários tópicos, incluindo eclesiologia, e ajudou a reformular os debates atuais sobre a teologia de Paulo.

Na tentativa de passar para a próxima geração essa erudição mundialmente afamada, fiel e consagrada, os professores de Antigo e Novo Testamento do RTS — tanto do passado quanto do presente — reuniram dois novos volumes: Uma Introdução Bíblico-Teológica ao Antigo Testamento, editado por Miles V. Van Pelt, e Uma Introdução Bíblico-Teológica ao Novo Testamento, editado por Michael J. Kruger. Existem várias características e aspirações únicas nesses volumes. Primeiro, eles são direcionados a pastores e leitores cristãos interessados, e não a colegas acadêmicos. Nós, do RTS, valorizamos e produzimos recursos destinados a um público acadêmico, mas o objetivo desses volumes é a edificação da Igreja, de forma que foram projetados para ser acessíveis. Em segundo lugar, eles são escritos por estudiosos da Bíblia que não têm medo da dogmática e, de fato, a apreciam muito. Em muitos seminários, mesmo seminários evangélicos, existe uma relação não saudável entre teologia bíblica e teologia sistemática, mas, no RTS, valorizamos ambas e queremos que nossos alunos entendam seu valor necessário e complementar. Para entender a Bíblia e a fé cristã, são necessários tanto os insights de uma abordagem histórico-redentiva quanto os do estudo doutrinário-tópico. Em terceiro lugar, esses volumes descaradamente partem do ponto de vista da inerrância bíblica e da teologia reformada. Uma visão elevada das Escrituras e um abraço caloroso da teologia reformada confessional são marcas registradas do RTS, e esses ideais brilham ao longo desses livros. Em quarto lugar, essas introduções são projetadas para ser pastorais e úteis. Têm-se em vista pregadores, líderes de ministérios, professores de Bíblia, estudantes e outros envolvidos no discipulado cristão. Queremos edificá-los e ajudá-los a edificar outros. Espero que, ao longo das próximas gerações, estes dois volumes abençoem a Igreja de Jesus Cristo, enquanto ela busca conhecer melhor sua Palavra e proclamá-la às nações.

J. Ligon Duncan III Reitor e CEO

Professor de Teologia Sistemática e Histórica que ocupa a cátedra John E. Richards

Reformed Theological Seminary

Prefácio

Atenção! Esta introdução ao Antigo Testamento pode não ser o que você espera. Como sugere o título deste livro, nosso trabalho é intencional e conscientemente nuançado. Ao produzirmos uma introdução “bíblico-teológica”, pretendemos fornecer um recurso para pastores, professores e estudantes da Bíblia, concebido para articular a(s) mensagem(ns) de cada livro do Antigo Testamento no contexto do cânon completo das Escrituras. Para isso, não apenas trabalhamos para compreender o significado de cada livro no contexto mais amplo do Antigo Testamento, como também reconhecemos, afirmamos e submetemos a mensagem completa e final do Antigo Testamento ao testemunho autoritativo do Novo Testamento (e.g., Jo 5.39, 45-47; Lc 24.25-27, 44-45; Rm 1.1-3; Hb 12.1-3; 1Pe 1.11). Em outras palavras, nosso objetivo não é desmontar as Escrituras em tantas partes desvinculadas quanto possível, mas mostrar como a diversidade vasta e eclética das Escrituras foi tecida por um único e divino autor ao longo de um milênio para ser um testemunho pactual da pessoa e obra de Jesus Cristo, pelo poder do Espírito Santo, de acordo com o decreto eterno de Deus, o Pai.

Em razão da concepção e do público pretendidos por este livro, minimizamos a interação com modelos de análise mais críticos e dedicamos maior atenção às questões que surgem da análise da forma final do texto tal como representado pelo Texto Massorético preservado no Códice de Leningrado (B19). Mantivemos as análises crítico-textuais num nível mínimo, exceto nos lugares em que elas afetam de maneira significativa questões maiores de interpretação (e.g., o livro de Jeremias). Livros diferentes exigirão graus diferentes de interação com questões introdutórias diferentes. Por exemplo, em um volume como este, a questão da autoria humana exige, ao menos, uma certa atenção introdutória para o livro de Gênesis, mas menos para um livro

como Rute. Em cada caso, permitimos que o texto, o contexto pedagógico e o bom senso do autor estabelecessem uma abordagem sensível aos vários livros do cânon do Antigo Testamento.

É também importante observar que os colaboradores deste volume têm, todos, áreas diferentes de interesse e especialidade dentro dos estudos do Antigo Testamento. Ademais, nem sempre estamos de acordo quanto à maneira de interpretar cada questão particular (e.g., a interpretação de Cântico dos Cânticos, a caracterização dos juízes no livro de Juízes ou a importância da disposição dos doze Profetas Menores). Seria uma pena não permitir que essas distinções permeassem as páginas desta obra e estimulassem os interesses de uma variedade de leitores. Entretanto, para fornecer uma medida de unidade para a apresentação de dados de cada autor, escolhemos organizar o conteúdo em cada capítulo sob os seguintes seis grandes títulos: (1) introdução, (2) questões de pano de fundo, (3) estrutura e esboço, (4) mensagem e teologia, (5) em direção ao Novo Testamento e (6) bibliografia selecionada. De modo intencional, nosso desejo é fornecer aos leitores a informação preliminar que os guiará fielmente ao longo do texto bíblico de tal forma que compreendam o significado de cada livro no contexto da mensagem mais ampla e geral das Escrituras. Aqueles que trabalham como ministros da Palavra de Deus são chamados a se posicionarem e proclamarem: “Assim diz o Senhor”. É com esse objetivo final e prático em mente que oferecemos humildemente nosso trabalho à Igreja.

Quando empregamos abreviaturas no livro, seguimos a obra The SBL Handbook of Style, 2ª edição. Além disso, usamos a Almeida Revista e Atualizada (ARA) como tradução bíblica, a menos que outra seja indicada.

Miles V. Van Pelt

Agradecimentos

Onde há colaboração, a gratidão sobeja. É um dom profundo servir junto a um grupo de homens que amam as Escrituras e trabalham para ensinar o Antigo Testamento para as próximas gerações daqueles que servirão à Igreja por meio da pregação e ensino da Palavra (2Tm 2.2). A comunhão do nosso chamado levou à produção desta obra. Todos pertencemos (ou pertencíamos) a uma instituição comprometida com o ensino de toda a Bíblia para os nossos alunos antes que se graduem, até mesmo o Antigo Testamento como o Evangelho prometido de antemão, o testemunho fiel da pessoa e obra de Jesus Cristo (Rm 1.1-3). Por esses motivos, sou grato por cada um dos colaboradores deste volume. No meio de suas agendas já tumultuadas, eles sacrificaram muito para tomar parte neste trabalho.

O que conecta cada um dos colaboradores deste volume é nosso serviço no Reformed Theological Seminary, no passado e no presente. É um grande privilégio para nós servir a uma instituição comprometida com a autoridade das Escrituras e a supremacia de Cristo sobre todas as coisas. Por esse motivo, dedicamos esta obra ao Reformed Theological Seminary em honra ao seu 50º aniversário. Como membros do corpo docente, nosso trabalho não seria possível sem todo o auxílio e recursos institucionais que nos são fornecidos — do escritório de contabilidade à segurança do campus, da administração acadêmica à manutenção das instalações e ao TI, incluindo cada doador, provedor, administrador e membro da equipe. Todos trabalhamos juntos com alegria a serviço da Igreja (1 Coríntios 12).

Obrigado, Justin Taylor e toda a equipe da Crossway, por sua parceria na produção deste volume, e pelas convicções que compartilhamos. É sempre um prazer trabalhar com essa equipe de homens e mulheres. Gostaria também de oferecer uma palavra especial de agradecimento a David Barshinger por seu trabalho editorial

especializado, bem como por sua bondade e paciência comigo. Agradeço também aos meus assistentes docentes, Joseph Habib e C. L. Pearce, que, por meio de seu trabalho fiel e incentivo quando trabalhamos juntos, permitiram-me encontrar tempo para publicar esta obra. E, finalmente, agradeço à minha família. Ela é o contexto terreno aprazível de tudo o que faço. Minha esposa, Laurie, é o reflexo perfeito do amor duradouro e sacrificial, e meus filhos aturam com alegria (assim espero!) as constantes parvoíces de seu pai.

Miles V. Van Pelt

Abreviaturas

AB Anchor Bible

ABD The Anchor Bible Dictionary, ed. David Noel Freedman, 6 vols. (Nova York: Doubleday, 1992)

ABRL Anchor Bible Reference Library

ABS Archaeology and Biblical Studies

AIL Ancient Israel and Its Literature

AnBib Analecta Biblica

ANESSup Ancient Near Eastern Studies Supplement Series

ANET James B. Pritchard, Ancient Near Eastern Texts Relating to the Old Testament, 3ª. ed. com suplemento (Princeton: Princeton University Press, 1969)

ANETS Ancient Near Eastern Texts and Studies

AOTC Abingdon Old Testament Commentaries

AOTS Augsburg Old Testament Studies

AOS American Oriental Series

ApOTC Apollos Old Testament Commentary

ASTI Annual of the Swedish Theological Institute

BA Biblical Archaeologist

BAR Biblical Archaeology Review

BASOR Bulletin of the American Schools of Oriental Research

BBR Bulletin for Biblical Research

BCOTWP Baker Commentary on the Old Testament Wisdom and Psalms

BETL Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovaniensium

Bib Biblica

BibInt Biblical Interpretation Series

Abreviaturas

BibSem The Biblical Seminar

BJS Brown Judaic Studies

BJSUCSD Biblical and Judaic Studies from the University of California, San Diego

BLS Bible and Literature Series

BMI The Bible and Its Modern Interpreters

BRev Bible Review

BSac Bibliotheca Sacra

BTB Biblical Theology Bulletin

BTCB Brazos Theological Commentary on the Bible

BWA(N)T Beitrage zur Wissenschaft vom Alten (und Neuen) Testament

BZ Biblische Zeitschrift

BZAW Beihefte zur Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft

CBC Cambridge Bible Commentary

CBQ Catholic Biblical Quarterly

CHANE Culture and History of the Ancient Near East

CJT Canadian Journal of Theology

ConcC Concordia Commentary

COS The Context of Scripture, ed. William W. Hallo, 3 vols. (Leiden: Brill, 1997–2002)

CTA Corpus des tablettes en cunéiformes alphabétiques decouvertes à Ras Shamra-Ugarit de 1929 a 1939, ed. Andrée Herdner (Paris: Geuthner, 1963)

CTJ Calvin Theological Journal

CurBS Currents in Research: Biblical Studies

DCH Dictionary of Classical Hebrew, ed. David J. A. Clines, 9 vols. (Sheffield: Sheffield Phoenix, 1993-2014)

DJD Discoveries in the Judean Desert

EBS Encountering Biblical Studies

ECC Eerdmans Critical Commentary

FAT Forschungen zum Alten Testament

FCI Foundations of Contemporary Interpretation

FOTL Forms of the Old Testament Literature

FRLANT Forschungen zur Religion und Literatur des Alten und Neuen Testaments

HALOT The Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament, por Ludwig Koehler, Walter Baumgartner e Johann J. Stamm, trad. e ed. sob a supervisão de Mervyn E. J. Richardson, 4 vols. (Leiden: Brill, 1994–1999)

HAT Handbuch zum Alten Testament

HOTE Handbooks for Old Testament Exegesis

HS Hebrew Studies

HSM Harvard Semitic Monographs

HThKAT Herders Theologischer Kommentar zum Alten Testament

HTR Harvard Theological Review

HUCA Hebrew Union College Annual

IBC Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching

IBT Interpreting Biblical Texts

ICC International Critical Commentary

IJST International Journal of Systematic Theology

Int Interpretation

ITC International Theological Commentary

JAJ Journal of Ancient Judaism

JAOS Journal of the American Oriental Society

JBL Journal of Biblical Literature

JBPR Journal of Biblical and Pneumatological Research

JBR Journal of Bible and Religion

JCS Journal of Cuneiform Studies

JETS Journal of the Evangelical Theological Society

JHebS Journal of Hebrew Scriptures

JNES Journal of Near Eastern Studies

JPS Jewish Publication Society

JQR Jewish Quarterly Review

JSOT Journal for the Study of the Old Testament

JSOTSup Journal for the Study of the Old Testament Supplement Series

JTS Journal of Theological Studies

KEL Kregel Exegetical Library

LB Linguistica Biblica

Abreviaturas

LBC Layman’s Bible Commentary

LHBOTS Library of Hebrew Bible / Old Testament Studies

LSAWS Linguistic Studies in Ancient West Semitic

MAJT Mid-America Journal of Theology

MC Mesopotamian Civilizations

NAC New American Commentary

NCB New Century Bible

NIBCOT New International Biblical Commentary on the Old Testament

NICOT New International Commentary on the Old Testament

NIDOTTE New International Dictionary of Old Testament Theology and Exegesis, ed. Willem A. VanGemeren, 5 vols. (Grand Rapids: Zondervan, 1997)

NIVAC NIV Application Commentary

NSBT New Studies in Biblical Theology (InterVarsity Press)

NSBTE New Studies in Biblical Theology (Eerdmans)

NTSI New Testament and the Scriptures of Israel

Numen Numen: International Review for the History of Religions

OBO Orbis Biblicus et Orientalis

OBT Overtures to Biblical Theology

OTG Old Testament Guides

OTM Oxford Theological Monographs

OTS Old Testament Studies

OtSt Oudtestamentische Studiên

RevQ Revue de Qumran

RTR Reformed Theological Review

SBAB Stuttgarter biblische Aufsatzbande

SBJT The Southern Baptist Journal of Theology

SBL Society of Biblical Literature

SBLDS Society of Biblical Literature Dissertation Series

SBLMS Society of Biblical Literature Monograph Series

SBT Studies in Biblical Theology

SBTS Sources for Biblical and Theological Study

SCS Septuagint and Cognate Studies

Abreviaturas

SHBC Smyth & Helwys Bible Commentary

SHR Studies in the History of Religions

SJOT Scandinavian Journal of the Old Testament

SJT Scottish Journal of Theology

SNTSMS Society for New Testament Studies Monograph Series

SOTBT Studies in Old Testament Biblical Theology

SR Studies in Religion

SSU Studia Semitica Upsaliensia

STI Studies in Theological Interpretation

SubBi Subsidia Biblica

SymS Symposium Series

TAPA Transactions of the American Philological Association

TBC Torch Bible Commentaries

TBS Topics for Biblical Study

TDOT Theological Dictionary of the Old Testament, ed. G. Johannes Botterweck e Helmer Ringgren, traduzido por John T. Willis et al., 8 vols. (Grand Rapids: Eerdmans, 1974–2006)

TJ Trinity Journal

TLOT Theological Lexicon of the Old Testament, ed. Ernst Jenni, com assistência de Claus Westermann, trad. Mark E. Biddle, 3 vols. (Peabody: Hendrickson, 1997)

TLZ Theologische Literaturzeitung

TOTC Tyndale Old Testament Commentaries

TynBul Tyndale Bulletin

UCOP University of Cambridge Oriental Publications

VT Vetus Testamentum

VTSup Supplements to Vetus Testamentum

WBC Word Biblical Commentary

WTJ Westminster Theological Journal

WUNT Wissenschaftliche Untersuchungen zum Neuen Testament

YOSR Yale Oriental Series, Researches

ZAW Zeitschrift für die alttestamentliche Wissenschaft

Introdução

Você já ouviu falar que a nossa Bíblia contém 66 livros diferentes, escritos por um número desconhecido de autores humanos, em três idiomas diferentes (hebraico, aramaico e grego), ao longo de aproximadamente 1.500 anos, com várias e, por vezes, conflitantes mensagens? Todavia, digo a você que a Bíblia também pode ser compreendida como um único livro, com um único autor, contendo uma mensagem unificada e um único propósito (Jo 5.39, 45-47; Lc 24.25-27, 44-45; At 28.23, 31; Rm 1.1-3; 2Tm 3.16; 1Pe 1.11). A Bíblia é como um grande quebra-cabeça. Cada peça (livro individual) tem seu formato exclusivo e apresenta uma imagem própria e singular. Mas essas formas individuais foram concebidas para se encaixarem em um todo maior, de forma que a imagem completa forneça o contexto e dê sentido às imagens individuais menores.

Por esse motivo, é útil entender que a Bíblia não é uma carta de amor, um guia de autoajuda, um manual de história, um conto, um código de leis, uma coleção de cartas antigas ou um manual religioso, embora esses elementos certamente apareçam ao longo das páginas do texto bíblico (diversidade).

Em vez disso, como um todo, a Bíblia é o relato, o depósito, o testemunho das Boas Novas de Deus em Jesus Cristo (unidade). Ela é um documento legal, objetivo e público que descreve e explica o relacionamento fundamentado na aliança pelo qual Deus foi complacente e se uniu, inicialmente, a este mundo e, depois, ao seu povo por meio de Jesus Cristo (função). Portanto, para compreendermos a mensagem da Bíblia, devemos trabalhar para entender a

diversidade de suas várias partes, a unidade de sua mensagem geral, bem como sua função na vida do povo de Deus. É vital que trabalhemos para entender esse livro na sua totalidade, porque a Igreja é “edificada sobre o fundamento dos apóstolos e profetas” (Ef 2.20), assim como porque esse livro é vivo e dele recebemos a vida (Sl 119.25, 50; 2Tm 3.16; Hb 4.12).

Em razão da sua idade e dos vários contextos culturais estrangeiros dos quais a Bíblia surgiu, muitas vezes é difícil compreendermos a mensagem da Bíblia e sua importância para o pensamento e a vida no século XXI. Por exemplo, o que significa o fato de Jesus ser nosso sumo sacerdote (Gn 14.18; Nm 35.9-34; Hb 7-9), e por que isso importa em um contexto no qual sumos sacerdotes não fazem mais parte da vida diária? Para complicar ainda mais, a Bíblia contém duas partes diferentes — o Antigo Testamento e o Novo Testamento —, as quais, às vezes, parecem se contradizer. Por exemplo, que mandamento devemos seguir: “olho por olho” (Ex 21.24) ou “dê a outra face” (cf. Mt 5.39)?

Assim, antes de começar a considerar cada um dos livros do Antigo Testamento nesta introdução, é importante considerarmos, primeiro, a mensagem do todo que, por fim, dará sentido às partes individuais. Quando levamos em conta o todo, é essencial começarmos com toda a Bíblia Cristã, tanto o Antigo quanto o Novo Testamento. É especialmente importante compreendermos como o testemunho apostólico do Novo Testamento identifica e estabelece o significado e propósito final da palavra profética contida no Antigo Testamento. Esse testemunho do Novo Testamento nos fornece uma estrutura conceitual unificada pela qual podemos abranger a vasta diversidade apresentada a nós nas páginas do Antigo Testamento.

O Antigo Testamento é mais complexo, diverso e distante dos nossos contextos modernos do que o Novo Testamento. Nas nossas Bíblias Cristãs, ele contém 39 livros escritos por vários autores diferentes (identificados ou não), entre aproximadamente 1400 e 400 a.C. O Antigo Testamento é também o maior dos dois Testamentos, constituindo mais de três quartos do todo.1 Entretanto, não fomos deixados à 1 É difícil chegar em uma porcentagem exata, dada a natureza da contagem das palavras hebraicas. Entretanto, no Antigo Testamento hebraico, há aproximadamente 473.020 palavras (incluindo todos os prefixos com suas próprias entradas no dicionário e sufixos pronominais), distribuídas em 23.213 versículos. No Novo Testamento grego, há aproximadamente 138.158 palavras, que aparecem em 7.941 versículos. Pela contagem de palavras, portanto, o Antigo Testamento hebraico constitui 77,3% da Bíblia Cristã. O Novo Testamento grego equivale, pois, a 22,7%. A contagem de palavras na Septuaginta (a antiga tradução grega do Antigo Testamento) é maior que o original hebraico e produz uma porcentagem ainda maior para o Antigo Testamento.

nossa própria sorte quando se trata de dar sentido a esses textos antigos. O Novo Testamento fornece o contexto final e autoritativo a partir do qual o povo de Deus pode compreender corretamente a mensagem e o propósito do Antigo Testamento. Esse relacionamento, porém, não tem um lado só. O Antigo Testamento fornece o contexto e as categorias conceituais para a compreensão da mensagem do Novo Testamento. Esses dois Testamentos, em toda sua diversidade, estão ligados para sempre como a Palavra de Deus — e o que Deus uniu não separe o homem.

O que, então, o Novo Testamento nos ensina sobre o Antigo Testamento, no que diz respeito à sua mensagem e seu propósito ou função?2 As respostas a essas perguntas certamente são debatidas, mas um lugar útil para começarmos pode ser Atos 28. No final desse capítulo, Lucas assim resume o currículo bienal de ensino do apóstolo Paulo: “Então, desde a manhã até à tarde, lhes fez uma exposição em testemunho do reino de Deus, procurando persuadi-los a respeito de Jesus, tanto pela lei de Moisés como pelos profetas” (At 28.23; veja também 28.30-31). Se prestarmos atenção, vamos entender que Lucas, por meio de Paulo, forneceu-nos as respostas a essas duas perguntas fundamentais. Em primeiro lugar, do que fala o Antigo Testamento? E, em segundo lugar, qual é o propósito ou função do Antigo Testamento?

De acordo com Atos 28, Paulo passou dois anos em Roma usando o Antigo Testamento para ensinar sobre Jesus e o reino de Deus. Para esse fim, afirmamos que o Antigo Testamento — e toda a Bíblia, aliás — fala, em última análise, de Jesus e do reino de Deus. Jesus constitui o resumo e a substância da mensagem bíblica. Ele é o Evangelho de Deus e o centro teológico de toda a Bíblia Cristã. Ele é a fonte e a força unificadora que dá sentido a toda a diversidade encontrada no relato bíblico. Com Jesus como centro teológico da mensagem bíblica, o reino de Deus funciona como a estrutura temática dessa mensagem, ou seja, o tema dentro do qual todos os outros existem e se unem. Esse tema é o domínio do profeta, do sacerdote e do rei; o lugar da sabedoria e do escriba; o mundo dos apóstolos, presbíteros e diáconos. Todo tema bíblico é um tema do reino de Deus. Se Jesus como centro teológico dá significado para a mensagem bíblica, o reino de Deus como estrutura temática fornece o contexto para essa mensagem.

2 Uma resposta completa a essa questão vai além do escopo deste breve capítulo introdutório. Os dados fornecidos aqui são limitados ao escopo e formato deste volume.

Além da mensagem do Antigo Testamento, também temos um vislumbre de seu propósito na designação abreviada “lei de Moisés... profetas” (At 28.23). Uma descrição mais longa aparece em Lucas 24.44, onde Jesus se refere ao Antigo Testamento como “[a] Lei de Moisés, [os] Profetas e [os] Salmos”. Aqui Jesus se refere ao arranjo do Antigo Testamento em sua divisão original em três partes: a Lei, os Profetas e os Escritos. Essas divisões constituem a estrutura pactual do Antigo Testamento nas categorias de aliança (Lei), história da aliança (Profetas) e vida da aliança (Escritos). Essa concepção de aliança do Antigo Testamento também serve como o padrão segundo o qual o Novo Testamento foi construído. Ver e compreender essa concepção canônica abrangente nos fornecerá pistas contextuais importantes para a maneira como se deve ler, entender e aplicar adequadamente o Antigo Testamento na Igreja hoje.

O CENTRO TEOLÓGICO: JESUS

Jesus é o centro teológico do Antigo Testamento. Isso significa que a pessoa e obra de Jesus como o Novo Testamento as apresenta (incluindo seu nascimento, vida, ensinos, morte, ressurreição, ascensão e volta) constituem a realidade singular que unifica e explica tudo que aparece no Antigo Testamento. Talvez nos seja claro que Jesus é o centro teológico ou, pelo menos, a figura central no Novo Testamento. Todavia, Jesus e os apóstolos entendiam também que o centro teológico do Antigo Testamento era o mesmo do Novo Testamento.3 O Antigo Testamento é a sombra, ao passo que Jesus é a realidade (Cl 2.16-17; Hb 8.5; 10.1). Considere como o apóstolo Paulo escolheu começar sua Epístola aos Romanos:

Paulo, servo de Jesus Cristo, chamado para ser apóstolo, separado para o evangelho de Deus, o qual foi por Deus, outrora, prometido por intermédio dos seus profetas nas Sagradas Escrituras, com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da descendência de Davi. (Rm 1.1-3)

3 Contra Marshall, que representa uma grande parte do evangelicalismo: “Segue que o AT dificilmente pode ser chamado de ‘um livro sobre Jesus’ como se ele fosse o principal assunto. Onde há uma esperança futura, ela é centrada no próprio Deus e, em alguns lugares, em uma figura messiânica não identificada. Jesus não está explicitamente presente” (I. Howard Marshall, “Jesus Christ”, The New Dictionary of Biblical Theology, ed. T. Desmond Alexander e Brian S. Rosner [Downers Grove: InterVarsity Press, 2000], p. 594).

Em 1.1, Paulo se identifica como apóstolo e afirma que foi “separado” para as Boas Novas ou o “evangelho de Deus”. Depois, em 1.2-3, Paulo identifica a fonte e o conteúdo desse Evangelho. É importante reconhecer que esse Evangelho não era algo novo, mas algo “outrora prometido”. Seguindo essa afirmação sobre o Evangelho outrora prometido, estão três expressões prepositivas que podem mudar a maneira como pensamos a respeito do Antigo Testamento. Esse Evangelho veio (1) por intermédio dos seus profetas, (2) nas Sagradas Escrituras e (3) dizia respeito a seu Filho. As três expressões prepositivas em 1.2-3 identificam (1) o veículo da revelação do Evangelho, (2) a localização da revelação do Evangelho e (3) o conteúdo da revelação do Evangelho.

Paulo afirma que o Evangelho outrora prometido veio por intermédio dos profetas, que atuavam como instrumentos autoritativos da revelação da aliança de Deus no Antigo Testamento. Além disso, essa revelação estava depositada nas Sagradas Escrituras e, para Paulo, efetivamente constituía as Sagradas Escrituras. A esta altura, é importante lembrar que, quando uma pessoa como Paulo menciona as Escrituras no Novo Testamento, ela se refere ao Antigo Testamento. Portanto, para Paulo, o Antigo Testamento é, fundamentalmente, o Evangelho outrora prometido. A última expressão prepositiva nessa série identifica o conteúdo dessa revelação do Evangelho no Antigo Testamento com Jesus Cristo, o Filho de Deus. Em outras palavras, o Antigo Testamento, que veio por intermédio dos profetas, é o Evangelho outrora prometido, uma vez que tem como sujeito Jesus Cristo, não apenas enquanto Filho eterno de Deus, mas também na qualidade de descendência de Davi “segundo a carne” (1.3).

As afirmações de Paulo a respeito da natureza e conteúdo da revelação do Antigo Testamento são apoiadas por afirmações que Jesus fez e foram relatadas nos Evangelhos. A primeira aparece em Lucas 24.25-27 (veja também 24.44-45). Depois de ressuscitar dos mortos, Jesus apareceu no caminho de Emaús para instruir dois discípulos deveras confusos:

Então, lhes disse Jesus: Ó néscios e tardos de coração para crer tudo o que os profetas disseram! Porventura, não convinha que o Cristo padecesse e entrasse na sua glória? E, começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras.

Considere que esses dois discípulos foram repreendidos como “néscios” e “tardos de coração” porque não acreditavam que o Antigo Testamento dava testemunho da pessoa e obra de Jesus. Nesses poucos versículos, a palavra “tudo” (“todos”, “todas”) é utilizada três vezes para descrever a natureza abrangente dessa realidade — tudo o que os profetas disseram, todos os Profetas e todas as Escrituras. E, então, mais uma vez, encontramos uma expressão prepositiva que identifica o conteúdo dessa revelação profética em “todas as Escrituras”: Jesus disse que todas as Escrituras contêm coisas “a seu respeito”. Em outras palavras, Jesus nos diz que ele é o princípio unificador — ou centro teológico — do Antigo Testamento.

Não é difícil entender o que Jesus diz aqui. Entretanto, para muitos de nós, assim como para os discípulos a quem Jesus falava, é difícil aceitar e compreender como essa realidade funciona ao longo de todo o Antigo Testamento, com suas partes variadas e diversas. Alec Motyer faz o seguinte comentário:

O grande Senhor Jesus veio de fora e se ligou voluntária e deliberadamente ao Antigo Testamento, afirmou que era a Palavra de Deus e se dispôs, a um alto custo, a cumpri-la (Mt 26.51-54). Esse fato dos fatos elimina qualquer suspeita de que a doutrina da autoridade bíblica repousa em um argumento circular como “eu creio que a Bíblia tem autoridade porque a Bíblia diz que tem autoridade”. Não é assim! Foi Jesus que veio “de fora” como o Filho de Deus encarnado; foi Jesus que ressuscitou dos mortos como o Filho de Deus com poder; foi ele que escolheu validar o Antigo Testamento em retrospectiva e o Novo Testamento em perspectiva e que é, ele mesmo, o grande tema do “enredo” dos dois testamentos, o ponto focal que dá coerência ao “retrato” total em todas as suas complexidades. [...] Ele é o clímax, mas também a substância e o centro do todo. Nele, todas as promessas de Deus são sim e amém (2 Co 1.20).4

O encontro no caminho de Emaús não foi a primeira vez que Jesus fez uma afirmação tão clara e ousada sobre a natureza e conteúdo do Antigo Testamento. Em

4 Alec Motyer, Look to the Rock: An Old Testament Background to Our Understanding of Christ (Grand Rapids: Kregel, 1996), p. 21-22.

um discurso dirigido àqueles que se opunham a ele antes de sua morte, Jesus disse: “Examinais as Escrituras, porque julgais ter nelas a vida eterna, e são elas mesmas que testificam de mim. Contudo, não quereis vir a mim para terdes vida” (Jo 5.3940). Mais uma vez, somos instruídos por Jesus no Novo Testamento quanto ao fato de que aqueles que “examinam” e estudam o Antigo Testamento devem compreender que essas Escrituras “testificam” (μαρτυρέω) de Jesus. Isso é o mesmo que o autor do livro de Hebreus afirma depois de um longo relato da história do Antigo

Testamento em Hebreus 11 — incluindo Abel, Abraão, Moisés, o povo de Israel, Raabe, Gideão, Baraque, Sansão, Jefté, Davi, Samuel e os profetas. Essas pessoas são chamadas de “grande nuvem de testemunhas” (μαρτύρων) em Hebreus 12.1. Observe que esses homens e mulheres não são chamados de “grande nuvem de exemplos”, mas de testemunhas, que testificam ou dão testemunho da pessoa e obra de Jesus e que nos chamam não a imitá-los, mas a fixar nossos olhos com eles no “Autor e Consumador da fé, Jesus” (12.2).

Os testemunhos de Jesus e do Novo Testamento são claros. Jesus é o centro teológico do Antigo Testamento. Ele é a unidade que dá sentido a todo o conteúdo diverso encontrado nas Escrituras do Antigo Testamento. Descobriremos que, como “o primeiro” e “o último” (Is 44.6), como o Alfa e o Ômega (Ap 1.8; 21.6; 22.13), Jesus é o segundo Adão, a semente da mulher, o descendente de Abraão, o Soberano de Judá, o Israel fiel, o Mediador de uma aliança melhor, nosso eterno Sumo Sacerdote, o Juiz que salva de uma vez por todas, o herdeiro de Davi, o Profeta semelhante a Moisés, a Sabedoria de Deus, a Palavra de Deus encarnada. Ele não estava brincando quando declarou a respeito de si mesmo: “Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida” (Jo 14.6). Nunca compreenderemos totalmente o Antigo Testamento se nos recusarmos a fixar nossos olhos em Jesus quando lermos as Escrituras. Goldsworthy está correto quando argumenta:

O centro da Igreja e da vida do crente é Jesus Cristo, o Senhor crucificado e ressurreto. Ele não é apenas o centro hermenêutico de toda a Bíblia, mas, de acordo com o testemunho bíblico, ele dá o significado definitivo para todos

os fatos do universo. Ele é, portanto, o princípio hermenêutico de toda realidade... fornecendo o centro que mantém tudo unificado.5

Goldsworthy vai além da compreensão de Jesus apenas como o centro teológico do Antigo Testamento ou da Bíblia como um todo. Ele estende esse princípio e o faz incluir toda a realidade, incluindo “todos os fatos do universo”. Para começar a compreender o Antigo Testamento — ou a Bíblia, ou a vida em geral —, devemos, primeiro, avaliar nossa visão da pessoa e obra de Jesus conforme apresentada nas Escrituras. Talvez nossa incapacidade de compreender a totalidade e a unidade da Palavra de Deus inspirada tenha origem em nossa pequena estima da Palavra de Deus encarnada (Jo 1.1-3, 14).

A ESTRUTURA TEMÁTICA : O REINO DE DEUS

O reino de Deus (também interpretado como o reino dos céus) constitui a estrutura temática da Bíblia, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Esse é o tema que compreende e abrange todo outro tema encontrado nas Escrituras, desde a criação até a nova criação — incluindo aliança, lei, profeta, sacerdote, rei, redenção, sabedoria, guerra, nações, herança, presença divina, idolatria, vestimentas, juízo, salvação, fé, esperança, amor e qualquer um dos muitos outros temas que perpassam as páginas da Bíblia.6 Todos esses são temas do reino de Deus. Essa estrutura se estende para os limites externos do corpus canônico. Ela une, estabiliza e molda todos os outros temas e conceitos bíblicos, além de lhes dar coerência.

O início do ministério de pregação de Jesus no Evangelho de Marcos é descrito assim: “... foi Jesus para a Galileia, pregando o evangelho de Deus, dizendo: O tempo está cumprido, e o reino de Deus está próximo; arrependei-vos e crede no evangelho” (Mc 1.14-15). Durante o período de 40 dias entre a ressurreição e a ascensão de Jesus, Lucas resume os dias finais do ministério de ensino de Jesus da mesma forma: “A estes também, depois de ter padecido, apresentou-se vivo, com muitas provas

5 Graeme L. Goldsworthy, “Biblical Theology as the Heartbeat of Effective Ministry”, em Biblical Theology: Retrospect and Prospect, ed. Scott J. Hafemann (Downers Grove: IVP Academic, 2002), p. 284.

6 Para uma análise preliminar de uma variedade de temas bíblicos, veja New Dictionary of Biblical Theology, ed. T. Desmond Alexander e Brian S. Rosner (Downers Grove: InterVarsity Press, 2000), p. 365-863.

incontestáveis, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas concernentes ao reino de Deus” (At 1.3). Do início ao fim, a mensagem de Jesus a respeito de si mesmo é descrita como o reino de Deus (dos céus).7 Por três meses, Paulo ensinou na sinagoga em Éfeso, “dissertando e persuadindo com respeito ao reino de Deus” (At 19.8). E, mais tarde, por dois anos inteiros, Paulo residiu em Roma, “pregando o reino de Deus, e, com toda a intrepidez, sem impedimento algum, ensinava as coisas referentes ao Senhor Jesus Cristo” (At 28.31). Aqui chegamos a entender que Jesus e os apóstolos utilizavam a designação reino de Deus (ou dos céus) para resumir o conteúdo de seus ministérios de ensino e pregação, e o livro a partir do qual eles ensinavam era o Antigo Testamento (cf. At 28.23).

John Bright captura a importância desse tema quando escreve:

Pois o conceito do reino de Deus envolve, em um sentido real, a mensagem total da Bíblia. Além de receber um grande destaque no ensino de Jesus, ele pode ser encontrado, de uma forma ou de outra, por toda a extensão e amplitude da Bíblia — se, ao menos, pudermos vê-lo pelos olhos da fé do Novo Testamento —, desde Abraão, que pretendia buscar “a cidade... da qual Deus é o arquiteto e edificador” (Hb 11.10; cf. Gn 12.1ss.), até o encerramento do Novo Testamento com “a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus” (Ap 21.2). Compreender o que significa o reino de Deus é chegar muito perto do coração do Evangelho bíblico da salvação.8

Da mesma forma, Walther Eichrodt, em seus dois volumes de Old Testament Theology, publicados na década de 1960, reconheceu a importância desse tema para compreender o relacionamento entre o Antigo e o Novo Testamento quando escreveu: “o que liga indivisivelmente os dois domínios do Antigo e do Novo Testamento... é o surgimento do reino de Deus neste mundo e seu estabelecimento aqui”.9

7 Este tema abrangente para a Bíblia Cristã é explicitamente mencionado 98 vezes no Novo Testamento. Dessas 98 ocorrências, 84 (ou 85%) estão nos Evangelhos.

8 John Bright, The Kingdom of God: The Biblical Concept and Its Meaning for the Church (Nova York: Abingdon-Cokesbury, 1953), p. 7.

9 Walther Eichrodt, Theology of the Old Testament, trad. J. A. Baker, OTL (Filadélfia: Westminster, 1961), 1:26.

Quando se trata de compreender Jesus como o centro teológico da Bíblia, começamos a reconhecer que o Antigo Testamento faz sentido apenas à luz do seu nascimento, vida, ensinos, morte, ressurreição, ascensão e volta. E o tema do reino de Deus dá o contexto para esse centro teológico e se expressa no Antigo Testamento por meio do que é comumente chamado de História da Redenção. 10 Esse é o movimento orgânico e progressivo da atividade pactual de Deus ao longo do tempo, desde a criação do universo em Gênesis 1–2 até a nova criação em Apocalipse 21–22. O reino de Deus se revela por intermédio das páginas das Escrituras de era em era e de época em época. Ele começa com a Criação e a Queda (Gn 1–3), entra em declínio com os juízos do dilúvio e de Babel (Gn 4–11), retorna com os patriarcas (Gn 12–50), desenvolve-se para a nação de Israel no deserto (Êxodo–Deuteronômio) e tem seu clímax na ocupação da terra sob Josué, os juízes e a dinastia de Davi na Terra Prometida (Josué–Reis). Mas, assim que Deus deu a Davi descanso de seus inimigos e estabeleceu sua dinastia, de maneira que o templo em Jerusalém foi terminado, a infidelidade de Salomão (cf. 1Rs 11) marcou o início do declínio de Israel, que culminou em um reino dividido e, depois, no exílio. Aspectos do exílio são capturados por alguns dos textos dos Profetas e, dentro da seção dos Escritos, em livros como Lamentações, Ester, Daniel, e Esdras–Neemias. O Antigo Testamento hebraico conclui com expectativas não cumpridas em relação ao prometido retorno do exílio (Ed 1.1-4; 2Cr 36.22-23; cf. Ed 3.12; Ag 2.6-9), deixando-nos à espera da chegada do verdadeiro Rei do reino de Deus no Novo Testamento (cf. Mc 1.14-15).

A ESTRUTURA DA ALIANÇA: LEI, PROFETAS E ESCRITOS

Depois de considerarmos que o Antigo Testamento diz respeito a Jesus e seu reino, como, então, a Bíblia funciona? Uma maneira de pensar em como responder a essa pergunta importante se relaciona ao formato ou forma final do Antigo Testamento. Anteriormente, comparamos a Bíblia a um quebra-cabeça e indicamos que as formas e peças individuais do quebra-cabeça encontravam seu significado definitivo em sua conexão e contribuição com o todo. Uma única peça do quebra-cabeça, por si mesma, tem sua própria imagem e forma 10 Além de História da Redenção, designações como História da Salvação, metanarrativa ou o termo alemão Heilsgeschichte são usadas para se referir ao desenvolvimento e apresentação progressivos e históricos dos conteúdos bíblicos. Entretanto, pode ser mais exato empregar a designação História da Aliança, já que essa é a realidade que motiva e molda a apresentação da história ao longo das páginas das Escrituras, particularmente nas categorias de prólogo da aliança, renovação da aliança e processo da aliança (cf. o livro de Gênesis, esp. 15.7; Êx 20.2; Dt 1.9–3.29; Js 24.2-13; Jz 6.7-10; 1Sm 12.6-12; Sl 78; 105; 106; Ne 9.5b-37; At 7; Hb 11).

que podem ser descritas e analisadas. No entanto, é só quando essa peça é colocada no contexto de todo o quebra-cabeça que podemos entender sua importância e contribuição para o todo. O mesmo pode ser dito no tocante ao Antigo Testamento. Cada livro, em cada seção, em cada um dos dois testamentos, mantém sua própria forma (estrutura) e imagem (significado). Porém, só quando entendemos a posição de cada livro no contexto de todo o Antigo Testamento ou de toda a Bíblia, descobrimos sua importância completa e final.11

O livro de Rute serve como um bom exemplo dessa realidade.12 Na nossa Bíblia Cristã, ele segue o livro de Juízes. Sua localização ali é baseada na observação cronológica que aparece no início do livro: “Nos dias em que julgavam os juízes, houve fome na terra; e um homem de Belém de Judá saiu a habitar na terra de Moabe” (Rt 1.1).

De acordo com o Talmude Babilônico,13 entretanto, o livro de Rute é localizado no início dos Escritos, a terceira seção da Bíblia Hebraica, logo antes do livro de Salmos. Sua posição nessa ordem parece ser baseada na genealogia no final do livro (4.18-22), onde Boaz (o marido de Rute) é listado como bisavô de Davi, que o Talmude identifica como autor/colecionador dos Salmos. Porém, na forma final da Bíblia Hebraica — a que ainda está em circulação hoje —, o livro de Rute aparece logo depois de Provérbios. Sua posição aqui é motivada pela teologia e pela pedagogia. Provérbios 31 conclui com a mensagem mais famosa ensinada ao rei Lemuel por sua mãe, a mensagem da “mulher virtuosa” (Pv 31.10-31).14 A designação “mulher virtuosa” aparece apenas três vezes na Bíblia

11 Para saber mais sobre este tópico, veja Rolf Rendtorff, The Canonical Hebrew Bible: A Theology of the Old Testament, TBS 7 (Leiden: Deo, 2005), p. 1-8, 717-39, e Stephen G. Dempster, Dominion and Dynasty: A Theology of the Hebrew Bible, NSBT 15 (Downers Grove: InterVarsity Press, 2003), p. 15-43.

12 Para uma abordagem sublime deste tópico, veja Stephen G. Dempster, “A Wandering Moabite: Ruth—A Book in Search of a Canonical Home”, em The Shape of the Writings, ed. Julius Steinberg e Timothy J. Stone, com a assistência de Rachel Stone, Siphrut: Literature and Theology of the Hebrew Scriptures 16 (Winona Lake: Eisenbrauns, 2015), p. 87-118.

13 Baba Bathra 14b no Talmude Babilônico representa a ordem rabínica mais antiga conhecida. Ela data do período entre os séculos III e VI d.C. Nessa lista, a colocação dos livros corresponde aproximadamente à disposição que aparece na edição impressa atual da Bíblia Hebraica, com apenas duas exceções: Isaías nos Profetas Posteriores e Rute nos Escritos. A posição do livro de Rute é descrita no tratado Baba Bathra 14b: “A ordem dos hagiógrafos é Rute, o Livro dos Salmos, Jó, Profetas, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Lamentações, Daniel e o Rolo de Ester, Esdras e Crônicas. Agora, considerando que Jó viveu nos dias de Moisés, o livro de Jó não deveria vir antes? Nós não começamos com um relato de sofrimento. Mas Rute não é também um relato de sofrimento? É um sofrimento com uma consequência [de felicidade], como disse R. Johanan: Por que seu nome era Rute? Porque dela saiu Davi, que deu nova plenitude ao Santo, bendito seja ele, com hinos e louvores.”

14 A expressão hebraica לִיִַחַ־תֶשֵֶׁאֵ é traduzida de várias maneiras, como “boa esposa” (NTLH), “esposa exemplar” (NVI) e “mulher virtuosa” (ARA).

Hebraica: duas em Provérbios (12.4; 31.10) e uma vez em Rute (3.11). Rute é a única mulher real (e não ideal) em todas as Escrituras a receber essa designação especial. E, assim, com base em seu posicionamento depois de Provérbios, parece que se pretende que Rute funcione como a ilustração da mulher ideal apresentada em Provérbios 31.

Neste momento, não estamos interessados em defender uma ou outra posição. Pelo contrário, a ideia aqui é ilustrar que a posição de um livro na Bíblia pode ter impacto na forma como o interpretamos. Seria o livro de Rute uma nota de rodapé cronológica para o livro de Juízes, uma introdução genealógica para Davi — “o suave salmista de Israel” (2Sm 23.1, TB) — ou a narrativa que ilustra a mulher virtuosa? A posição da peça no quebra-cabeça é importante. Ela molda a forma como interagimos tanto com sua mensagem quanto com sua função. Por esse motivo, vale a pena separarmos alguns momentos para descrevermos brevemente a forma final do Antigo Testamento hebraico e defender nossa preferência por tratarmos os livros do Antigo Testamento na ordem como foram listados na lista de conteúdo.

A disposição dos livros no nosso Antigo Testamento hoje difere levemente da disposição dos livros no Antigo Testamento hebraico. É importante observar, entretanto, que nosso Antigo Testamento e o Antigo Testamento hebraico contêm os mesmos livros. Eles são apenas agrupados e organizados de formas diferentes.

Na Bíblia Cristã, os livros do Antigo Testamento são organizados por gênero, cronologia e autoria. Como ilustra a tabela 1 (p. 35), o nosso Antigo Testamento contém quatro seções principais dentro das quais os livros são agrupados (mais ou menos) de acordo com seu gênero básico: lei, história, poesia e profecia. Os livros, em cada uma dessas seções, são posicionados ainda com base em questões de cronologia e autoria. Por exemplo, os cinco livros do Pentateuco foram escritos por Moisés (autoria) e aparecem em ordem cronológica. Os chamados Livros Históricos também aparecem em ordem aproximadamente cronológica. Nos Livros Poéticos, aqueles associados a Salomão estão agrupados (Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos), e a colocação de Lamentações depois de Jeremias é motivada pela tradição de que Jeremias escreveu Lamentações, mesmo que o autor, tecnicamente, seja anônimo.

A disposição dos livros do nosso Antigo Testamento chegou até nós a partir da tradução da Bíblia para o latim chamada de Vulgata Latina (cerca de 400 d.C.). Essa tradução para o latim foi usada na Igreja antes do surgimento das traduções para os idiomas falados durante a Reforma. A disposição dos livros na Vulgata pode ter sido

adotada em razão de uma tradução grega mais antiga chamada Septuaginta, mas é difícil determinar isso com certeza.15

ORDEM NA BÍBLIA CRISTÃ

Pentateuco

Gênesis

Exodo

Levítico

Números

Deuteronômio

Livros Históricos

Josué Juízes

Rute

1–2 Samuel

1–2 Reis

1–2 Crônicas

Esdras

Neemias

Ester

Salmos

Provérbios

Eclesiastes

Poesia

ORDEM NA BÍBLIA HEBRAICA

Lei

Gênesis

Êxodo

Levítico

Números

Deuteronômio

Josué Juízes

Samuel Reis

Isaías

Jeremias

Ezequiel

Livro dos Doze

Profetas

Profetas Anteriores

Escritos

Profetas Posteriores

Cântico dos Cânticos

Vida na Terra Profetas

Salmos

Provérbios

Rute

Cântico dos Cânticos

Eclesiastes

Isaías

Jeremias

Lamentações

Ezequiel

Daniel

Os Doze Profetas Menores

Tabela 1

Lamentações

Ester

Daniel

Esdras

Neemias

Crônicas

Vida no Exílio

15 Para saber mais sobre a estrutura e desenho do Antigo Testamento, veja Roger T. Beckwith, The Old Testament Canon of the New Testament Church and Its Background in Early Judaism (1985; reimpressão, Eugene: Wipf & Stock, 2008); Dempster, Dominion and Dynasty, p. 15-51; Andrew E. Steinmann, The Oracles of God: The Old Testament Canon (St. Louis: Concordia, 2000); Greg Goswell, “The Order of the Books in the Hebrew Bible”, JETS 51, nº 4 (2008): 673-88; e Goswell, “The Order of the Books in the Greek Old Testament”, JETS 52, nº 3 (2009): 449-66.

Em contraste, a Bíblia Hebraica inclui três grandes seções: Lei, Profetas e Escritos. Essas divisões são anteriores ao tempo de Cristo, de maneira que parece que ele estava familiarizado com elas em seus próprios dias, quando se referiu ao Antigo Testamento em Lucas 24.44 como “[a] Lei de Moisés, [os] Profetas e [os] Salmos”.16 Outra pista possível aparece em Mateus 23.35 (cf. Lc 11.51), onde Jesus se refere ao sangue de dois mártires, “desde o sangue do justo Abel até ao sangue de Zacarias”. Já se reconheceu que essa não é uma referência estritamente cronológica, mas uma referência canônica. Abel é o mártir que aparece no primeiro livro do Antigo Testamento (Gn 4), e Zacarias é o mártir que aparece no último livro (2 Cr 24). Juntas, essas duas referências de Jesus sugerem que o Antigo Testamento em seus dias continha três (e não quatro) divisões, começando com Gênesis e terminando com Crônicas (e não Malaquias). Como indicado anteriormente, a maneira como os livros são dispostos pode ter impacto sua interpretação. Portanto, devemos considerar as implicações para a disposição do Antigo Testamento nas categorias de Lei, Profetas e Escritos, além de avaliar como essa disposição se relaciona com o Novo Testamento. A figura 1 tenta ilustrar esse relacionamento sugerindo uma disposição pactual para a Bíblia Cristã.

Lei Profetas Escritos

Josué

Prólogo da Aliança

Gênesis

Figura 1

Êxodo

Levítico

Números

Deuteronômio

Mateus

Marcos Lucas

João

Aliança

Juízes

Samuel Reis

Isaías

Jeremias

Ezequiel

Os Doze

Atos dos Apóstolos

História da aliança

Salmos Lamentações

Jó Ester

Provérbios

Rute

Cântico dos Cânticos

Eclesiastes

Epílogo da Aliança

Daniel

Esdras

Neemias

Crônicas

Epístolas de Paulo 1, 2 Pedro

Hebreus 1, 2, 3

Tiago

Apocalipse

João

Judas

Vida na aliança

16 A designação Salmos para a terceira seção representa a prática judaica de nomear o todo de algo segundo o seu primeiro elemento. Por exemplo, o livro do Êxodo em hebraico é chamado “são estes os nomes”, pois essas são as primeiras palavras do livro. Hoje, chamamos essa terceira seção de “Escritos”. Não é incomum em alguns círculos se referir ao Antigo Testamento hebraico (ou às suas traduções) como o Tanakh. Essa designação ocorre quando se juntam as primeiras letras de cada um dos nomes hebraicos para essas três seções: Torah, Nevi’im e Kethuvim

A figura 1 tem o objetivo de demonstrar a construção canônica da Bíblia, Antigo e Novo Testamentos, nas categorias de Lei, Profetas e Escritos. O Antigo Testamento está sombreado em cinza, dando a entender as sombras das realidades (Cl 2.17; Hb 8.5; 10.1), e a maior parte dele aparece no registro superior dos blocos. O Novo Testamento aparece em branco, com a maior parte dele aparecendo no registro inferior dos blocos. Gênesis e Apocalipse servem como início e fim do todo. As identificações que aparecem com a descrição Aliança servem para explicar a natureza de cada uma das grandes divisões. Os livros da Lei são os livros da aliança. Os Profetas contêm o que, mais tarde, será descrito como a história da aliança, enquanto os Escritos abrangem questões relacionadas à vida na aliança. Em outras palavras, as categorias de Lei, Profetas e Escritos são categorias de aliança por natureza.17 A Bíblia, como documento da aliança, também tem a aliança em sua construção e desenho.18 A imagem do quebra-cabeça que dá sentido a cada peça com base em sua localização e função é a aliança. O significado do desenho pactual para o Antigo Testamento é refletido no fato de que o Novo Testamento parece ter sido disposto da mesma forma, como um espelho que reflete o Antigo Testamento. Portanto, as categorias de aliança (Lei), história da aliança (Profetas) e vida na aliança (Escritos) se aplicam igualmente ao Antigo e ao Novo Testamento, em cada uma de suas respectivas seções, como indicado na figura 1. Será útil considerarmos brevemente como cada uma dessas seções funciona nos dois testamentos.

17 De acordo com Rendtorff, “pode-se arriscar dizer: na primeira parte do cânon, Deus age; na segunda, Deus fala; e, na terceira parte do cânon, as pessoas falam com Deus e de Deus” (The Canonical Hebrew Bible, p. 6). Dempster propõe que a disposição da Bíblia Hebraica garante a seus leitores uma “estrutura narrativa abrangente” com comentários poéticos (Dempster, Dominion and Dynasty, p. 22). As obras de Rendtorff e Dempster são excepcionais em suas tentativas de caracterizar a importância da forma final da Bíblia Hebraica e sua importância para a interpretação (hermenêutica macrocanônica). Entretanto, as categorias de ação e fala (Rendtorff) e narrativa e comentário (Dempster) são abrangidas pelo arranjo pactual proposto aqui. 18 Horton argumenta acertadamente que a “estrutura arquitetônica particular que acreditamos serem fornecidas pelas próprias Escrituras é a aliança. Não se trata simplesmente do conceito de aliança, mas da existência concreta dos relacionamentos pactuais de Deus em nossa história, fornecendo o contexto dentro do qual reconhecemos a unidade das Escrituras em meio à sua impressionante diversidade.” Horton também defende que essa “estrutura é amplamente ocultada”, mas talvez estejamos agora começando a reconhecer essa grandiosa estrutura de aliança (Michael Horton, Introducing Covenant Theology [Grand Rapids: Baker, 2006], p. 13). Kline defendeu que “a canonicidade bíblica se mostra, desde o início, como sendo da linhagem da canonicidade de aliança” e que, “já que as Escrituras são aliança, a canonicidade bíblica, do início ao fim, pertence, no nível literário formal, à mais amplamente atestada categoria de palavras autoritativas de tratado. Toda a Escritura é pactual, e a canonicidade de toda a Escritura é pactual. O cânon bíblico é pactual” (Meredith G. Kline, The Structure of Biblical Authority, 2ª ed. [Eugene: Wipf & Stock, 1989], p. 37, 75).

O prólogo e o epílogo da

aliança

Os livros de Gênesis e Apocalipse são separados na Bíblia Cristã como o prólogo da aliança e o epílogo da aliança, a introdução e a conclusão do todo. Embora tenham sido escritos em épocas diferentes, por autores humanos diferentes, em culturas diferentes e idiomas diferentes, esses dois livros foram concebidos para se encaixar e moldar a mensagem da Bíblia Cristã. Cada promessa e aliança estabelecida no livro de Gênesis (criação, redenção, Noé, Abraão) encontra cumprimento e consumação no livro de Apocalipse.

O relacionamento literário e teológico próximo que esses dois livros compartilham ( protologia e escatologia) é demonstrado pela forma como Gênesis começa e Apocalipse termina. Esse relacionamento é expresso pelo dispositivo literário do quiasmo, que também funciona, em segundo lugar, como uma inclusio literária para o todo da Bíblia. Esse quiasmo é demonstrado no seguinte esboço:

a Criação do céu e da terra (Gn 1–2)

b Aliança de casamento: Adão e Eva — a noiva vem para um jardim-santuário do qual fluem rios de água para as nações (Gn 2)

c A destruição de Satanás é prometida (Gn 3)

c’ A de struição de Satanás é realizada (Ap 20)

b’ Aliança de casamento: Cordeiro e noiva — a noiva vem para uma cidade-santuário da qual fluem rios de água para as nações (Ap 21)

a’ Criação do novo céu e da nova terra (Ap 21–22)

Ao começar e terminar da mesma forma (mas ao contrário!), a Bíblia exibe um nível marcante de unidade em desenho e propósito. Essa realidade ilustra o papel de um único autor divino trabalhando em conjunto com inúmeros instrumentos humanos que participaram do processo de escrita. Esse quiasmo também parece funcionar como uma inclusio canônica,19 fornecendo evidência interna para um cânon fechado.

19 Inclusio é um mecanismo literário usado para marcar o início e o fim de algo por meio da repetição. Exemplos disso aparecem em muitos dos chamados salmos de aleluia (e.g., Sl 106; 113; 117.12; 135; 146–150).

Lei: aliança

Há quatro livros de aliança no Antigo Testamento (Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio)20 e quatro livros de aliança no Novo Testamento (Mateus, Marcos, Lucas e João). Em cada Testamento, os livros de aliança são emoldurados pelo nascimento e morte do mediador da aliança e contêm os relatos de suas vidas e ensinamentos no contexto da administração da aliança. No Antigo Testamento, a moldura é abrangente, começando com o nascimento de Moisés em Êxodo 2 e terminando com sua morte em Deuteronômio 34. No Novo Testamento, a moldura aparece dentro de cada livro individual (é distributiva). Por exemplo, em Mateus, o nascimento de Jesus é relatado no capítulo 1, enquanto sua morte, no capítulo 27. Esse padrão é repetido de maneiras diferentes nos outros Evangelhos.

Além dos relacionamentos estruturais maiores que existem entre os livros da aliança do Antigo e Novo Testamentos, inúmeros elementos internos também conectam esses livros. Por exemplo, tanto Moisés quanto Jesus compartilham uma narrativa de nascimento em que nascem sob a ameaça de morte por um governante estrangeiro e devem fugir para o Egito para escapar (cf. Êxodo 1; Mateus 2). Além disso, os dois entregam a lei de um monte, experimentam transfigurações, realizam milagres e, como mediadores da aliança, sofrem com a rebelião constante do seu povo. De muitas maneiras, as narrativas do Evangelho do Novo Testamento trabalham para retratar Jesus como a figura de um segundo Moisés.21

Além dessas características marcantes de correspondência, há também aspectos importantes de descontinuidade. Por exemplo, em Êxodo 32.30-34, Moisés oferece sua vida ao Senhor em nome dos israelitas, porque o pecado deles provocou a ameaça de morte. Entretanto, esse ato de substituição é negado a Moisés. Mas, 20 Embora seja uma parte do Pentateuco junto com Êxodo–Deuteronômio, o livro de Gênesis tem sido separado dos outros livros nessa seção canônica (a Lei). No nível literário, essa divisão é alcançada por meio da intrusão poética e da cena-tipo. O livro de Gênesis termina com a bênção poética dos doze patriarcas por Jacó em Gênesis 49 (intrusão poética) e, depois, com a morte do abençoador em Gênesis 50 (cena-tipo). Essa combinação literária é repetida no final de Deuteronômio, com a bênção poética das doze tribos (patriarcas) por Moisés em Deuteronômio 33, seguida pelo relato de sua morte em Deuteronômio 34. Dessa forma, demonstra-se que a Lei ou Pentateuco tem duas partes: (1) Gênesis e (2) Êxodo–Deuteronômio. Assim, a identificação de Gênesis como um prólogo pactual distinto tem base na construção literária da Lei.

21 Veja Kline, “The Old Testament Origins of the Gospel Genre”, em The Structure of Biblical Authority, p. 172-203, e Dale C. Allison Jr., The New Moses: A Matthean Typology (Mineápolis: Fortress, 1993), p. 137-290.

quando se trata de Jesus sob a Nova Aliança, seu pedido de contornar esse caminho para a salvação é negado (cf. Mt 26.39), e ele se torna o substituto definitivo para o povo de Deus, carregando a maldição do pecado deles por meio de sua própria morte. Outro exemplo inclui a forma como essas narrativas de aliança terminam. Na Antiga Aliança, a narrativa termina com a morte do mediador da aliança, Moisés. Com Jesus na Nova Aliança, entretanto, a morte do mediador da aliança não é a palavra final. Cada uma das narrativas da Nova Aliança atinge seu auge na vitória de Jesus sobre a morte por meio de sua ressurreição. É importante entender que essas situações de descontinuidade não quebram o relacionamento entre os livros da aliança no Antigo e no Novo Testamentos. Pelo contrário, elas foram concebidas para destacar a pessoa e obra de Jesus por seu contraste como o Mediador de uma aliança melhor (cf. Hb 3.3; 7.22).

Profetas: história da aliança

Os livros dos Profetas contêm a história do povo de Deus vivendo sob suas administrações pactuais e a interpretação profética dessa história. No Antigo Testamento, os Profetas aparecem em duas seções, os Profetas Anteriores e os Profetas Posteriores. Os Profetas Anteriores consistem nos livros de Josué, Juízes, Samuel e Reis. Esses livros relatam a história do povo de Deus da Antiga Aliança e seu assentamento na Terra Prometida, desde a ocupação em Josué até o exílio em Reis. O conteúdo apresentado nessa história é caracterizado por descrições da fidelidade de Deus às suas promessas pactuais e a infidelidade de Israel a essa aliança. Esse aspecto da fidelidade de Deus à aliança funciona como a moldura literária para os Profetas Anteriores e, como tal, é programático para a interpretação desse conteúdo, como demonstram os seguintes textos do primeiro e do último livros dos Profetas Anteriores:

Nenhuma promessa falhou de todas as boas palavras que o Senhor falara à casa de Israel; tudo se cumpriu. (Js 21.45)

Bendito seja o Senhor, que deu repouso ao seu povo de Israel, segundo tudo o que prometera; nem uma só palavra falhou de todas as suas boas promessas, feitas por intermédio de Moisés, seu servo. (1 Rs 8.56)

Os temas correspondentes da fidelidade de Deus e infidelidade de Israel já aparecem em Deuteronômio 29–31, que serve como esquema para o conteúdo apresentado nos Profetas Anteriores. Aqui, o padrão de ocupação (Dt 30.15-16; 31.13, 20), infidelidade (29.25-26; 31.16, 20-21, 27-29), exílio (29.27-28; 30.17-18; 31.17-18) e retorno (30.1-10) é estabelecido como prefácio que modela a caracterização de Israel nos Profetas Anteriores.

Os chamados Profetas Posteriores consistem em Isaías, Jeremias, Ezequiel e o Livro dos Doze (i.e., o que as Bíblias Cristãs normalmente chamam de Profetas Menores).22 Em certo nível, esse conteúdo constitui a interpretação profética autorizada e inspirada da história de Israel sob a aliança. “Assim”, como observa Rendtorff, “a palavra profética se torna um comentário sobre a história de Israel no tempo dos reis.”23

Mais uma vez, esse conteúdo lança luz sobre a fidelidade de Deus à sua aliança, sobre a infidelidade de Israel que resultou na sua expulsão da terra, bem como sobre a esperança de um retorno do exílio e da restauração da bênção da aliança.

Os Profetas Posteriores foram chamados para servir como representantes de Deus na aliança, como advogados pactuais que trabalham no processo pactual do Senhor contra seu povo infiel, Israel. Em outras palavras, os Profetas Posteriores funcionam como os advogados de acusação de Deus. A Lei (Êxodo–Deuteronômio) contém as cláusulas da aliança que estipulam e governam a vida do povo de Deus. Ela representa o padrão pelo qual o povo deveria viver. Os Profetas Anteriores (Josué–Reis) fornecem as evidências históricas que documentam a fidelidade do Senhor à aliança, junto com a infidelidade generalizada de Israel. Essas realidades não apenas moldam o conteúdo apresentado nessas seções, mas auxiliam nossa compreensão de como usá-las no ensino e pregação.

Assim como Deuteronômio 29–31 serve como um esquema programático para o conteúdo que aparece nos Profetas Anteriores, Deuteronômio 32 tem a mesma função para os Profetas Posteriores. Deuteronômio 32, o cântico de Yahweh, aparece na

22 O Livro dos Doze é contado como um único livro na Bíblia Hebraica, assim como Samuel, Reis e Crônicas são, cada um, contados como um único livro.

23 Rendtorff, The Canonical Hebrew Bible, p. 7.

forma de uma ação judicial da aliança24 e representa o testemunho profético preliminar contra o povo de Deus por sua infidelidade. Além disso, ele estabelece o conteúdo literário e teológico dos Profetas Posteriores. Em outras palavras, Deuteronômio 32 representa a lente interpretativa pela qual compreendemos e interpretamos a seção que vai de Isaías a Malaquias. Não é por acaso que o cântico de Yahweh em Deuteronômio 32 e todo o corpus da literatura profética comecem (cf. Is 1.2) com a convocação dos céus e da terra para prestarem testemunho contra Israel na execução da ação judicial de Yahweh contra seu povo. Esse cântico inclui um testemunho da fidelidade de Yahweh à aliança (Dt 32.3-4, 7-14), da infidelidade de Israel (32.5, 15-18), do juízo ou promulgação das maldições da aliança (32.19-25) e, então, apresenta uma reviravolta surpreendente, na qual a ação judicial é “quebrada”, e o povo de Deus, restaurado (32.36-43). Essa restauração acontece por um ato de expiação pelo qual o Senhor “se vinga de seus inimigos” e “faz expiação por sua terra e povo” (32.43, tradução do autor). É o mesmo padrão de juízo e restauração que os Profetas Posteriores exemplificam em sua antecipação das realidades da Nova Aliança.

O Novo Testamento inclui um único livro que aborda a história da aliança, o livro de Atos. Esse livro também contém o relato da história inicial do povo de Deus sob a Nova Aliança, junto com a interpretação profético-apostólica dessa história.25

Se, nos Profetas Anteriores, o objetivo do povo de Deus era ocupar a terra e estabelecer o nome de Deus em Jerusalém (cf. Dt 12.5, 11, 21; 14.23; 16.2, 6, 11; 26.2), esse objetivo passa a ser inverso no livro de Atos, onde o povo de Deus é direcionado a sair 24 A forma da ação judicial de aliança é derivada da forma de aliança em si: identificação do juiz, testemunho de inocência, acusação, testemunhas, julgamento e chamado ao arrependimento. Para saber mais sobre esse tópico, veja Herbert B. Huffmon, “The Covenant Lawsuit in the Prophets”, JBL 78, nº 4 (1959): 285-95; James Limburg, “The Root ביִר and the Prophetic Lawsuit Speeches”, JBL 88, nº 3 (1969): 291-304; G. E. Mendenhall, “Samuel’s ‘Broken Rib’: Deuteronomy 32.1-43”, em No Famine in the Land: Studies in Honor of John L. McKenzie, ed. James W. Flanagan e Anita Weisbrod Robinson (Missoula: Scholars Press, 1975), p. 63-73; Kirsten Nielsen, Yahweh as Prosecutor and Judge: An Investigation of the Prophetic Lawsuit (Rib-Pattern), trad. por F. Cryer, JSOTSup 9 (Sheffield: JSOT Press, 1978); G. Ernest Wright, “The Lawsuit of God: A Form-Critical Study of Deuteronomy 32”, em Israel’s Prophetic Heritage: Essays in Honor of James Muilenberg, ed. Bernhard W. Anderson e Walter J. Harrelson (Nova York: Harper, 1962), p. 26-46.

25 Além dos contornos mais gerais de função e conteúdo de aliança, elementos adicionais podem servir para conectar esse corpus de literatura bíblica. Um exemplo assim pode ser a correspondência entre o relato narrativo de Acã e sua família em Josué 7 e o de Ananias e Safira em Atos 5. Nos dois casos, a ética pactual do reino é demonstrada na morte dos violadores da aliança.

de Jerusalém para a Judeia e, depois, para os confins da terra, a fim de prestar testemunho do nome de Deus entre todas as nações.

Embora não seja uma unidade distinta como os Profetas Posteriores, o livro de Atos contém em si vários discursos programáticos que funcionam como a interpretação profético-apostólica da história registrada nesse livro. Os maiores exemplos incluem o discurso de Pedro em Atos 2, o discurso de Estêvão em Atos 7 e o discurso de Paulo em Atos 13. Também é válido mencionar que o discurso de Estêvão funciona como a última ação judicial pactual na Bíblia. Foi aqui que a liderança religiosa judaica (o Sinédrio) recebeu a mesma declaração de juízo que recaiu sobre a geração do deserto depois de adorar o bezerro de ouro: “povo (homens) de dura cerviz” (cf. Êx 32.9; 33.3, 5; 34.9; At 7.51). Esse foi o povo que não conseguiu entrar no descanso de Deus e possuir suas promessas em virtude da sua falta de fé, de sorte que pereceu no deserto. Estêvão pronuncia o mesmo juízo sobre o Sinédrio. Então, pelo martírio, Estêvão é identificado com os profetas que os pais de seus algozes perseguiram da mesma forma (At 7.51-53, 59-60). Ainda que ligeiramente diferente em concepção, os Profetas Anteriores e Posteriores ocupam a mesma categoria de história da aliança e compartilham da mesma função do livro de Atos, o livro de história da aliança do Novo Testamento.

Escritos: vida na aliança

Os livros dessa terceira e última categoria do cânon pactual são os chamados de vida na aliança. Esses livros nos ensinam a pensar e viver pela fé, à luz da aliança à qual pertencemos. São livros mais “práticos” na Bíblia e incluem alguns dos livros mais populares utilizados para pregação e ensino na Igreja hoje.

Há 12 livros nessa seção final do Antigo Testamento hebraico, de Salmos a Crônicas. Esses livros parecem ter sido organizados em duas subseções: os que se referem à vida na terra (Salmos, Jó, Provérbios, Rute, Cântico dos Cânticos e Eclesiastes) e os que se referem à vida no exílio (Lamentações, Ester, Daniel, Esdras–Neemias e Crônicas). A sequência na qual muitos desses livros aparecem pode ser motivada pelo princípio pedagógico da exposição e ilustração. Por exemplo, o tipo mais comum de salmo no livro de Salmos é o de lamento, e é por causa disso que Jó vem na sequência, como ilustração do que é experimentar o sofrimento na vida e expressar esse sofrimento por meio do lamento. Ou considere o fato de que a narrativa de sabedoria de Rute segue

Provérbios 31, a exposição da “mulher virtuosa”. A única mulher histórica na Bíblia a receber essa designação explícita é Rute, a ilustração da “mulher virtuosa”. Pode também ser significativo que o Cântico dos Cânticos apareça junto com Provérbios 31 e o livro de Rute. Na verdade, será defendido mais tarde que o Cântico dos Cânticos funciona como o equivalente de Provérbios 31 no que tange à sua função básica de treinamento em sabedoria. Essa subseção dos Escritos termina com Eclesiastes, talvez explicando a “vaidade” ou loucura de uma vida sem sabedoria, uma vida vivida “sob o sol”, isto é, “sem Deus”.

A segunda subseção nos Escritos (vida na aliança) começa com o livro de Lamentações, que convoca o povo de Deus no exílio a uma vida de fidelidade, aguardando e tendo esperança da salvação do Senhor (cf. Lm 3.25-31). Lamentações é seguido pelos livros de Ester e Daniel e apresenta o relato de duas pessoas que viveram em fidelidade no exílio, sob as circunstâncias mais difíceis e desafiadoras. Ester e Daniel servem como exemplos para o povo de Deus, ilustrando como é viver uma vida de fé no exílio, enquanto estrangeiros e peregrinos na terra (cf. Hb 11.13; 1Pe 2.11).

Essa seção no Antigo Testamento termina com Esdras–Neemias e Crônicas. Esses livros foram organizados de tal forma a caracterizar o retorno de Israel do exílio como uma realidade aquém da restauração profética antecipada (e.g., Ed 3.12; Ag 2.6-9). Do decreto de Ciro em Esdras 1.1-4 ao decreto de Ciro em 2 Crônicas 36.2223, o retorno prometido do exílio não exibiu a restauração completa do templo ou da dinastia de Davi. Destarte, as genealogias de Crônicas começam a busca pelo rei davídico a partir da tribo de Judá (1Cr 2–4) e pelo sacerdote arônico a partir da tribo de Levi (1Cr 6). Esse livro também destaca a obra de planejamento e construção do primeiro templo (1Cr 22–2Cr 7) e a celebração da Páscoa que prenunciaria um novo êxodo (2Cr 30, 35), guiado por alguém que iria diante do povo de Deus em uma nova conquista (2Cr 36.23).

Só quando encontramos as genealogias do Novo Testamento, em Mateus e Lucas, é que as genealogias de Crônicas encontram seu cumprimento esperado na pessoa de Jesus. Ele é o rei davídico da tribo de Judá (e.g., Mt 1.1; 12.23; Rm 1.3; 2Tm 2.8), o Sumo Sacerdote eterno (e.g., Hb 5.1-10), o Cordeiro pascal (Jo 1.29, 36), o novo êxodo (Lc 9.31), assim como aquele que guiará o povo de Deus na batalha da conquista final (Ap 19). De muitas formas, o livro de Crônicas funciona como o livro de Apocalipse, trazendo toda a Palavra de Deus no Antigo Testamento para um

foco nítido, destacando pessoas, instituições e temas importantes. Ele funciona como a articulação canônica ideal que conecta o Antigo e o Novo Testamentos. Como o livro de Gênesis, ele começa com Adão e inclui genealogias importantes. Contudo, é o único livro na Bíblia Cristã além de Mateus a começar com uma genealogia. Há pouca dúvida de que o livro de Crônicas serve como a conclusão perfeita para as Escrituras do Antigo Testamento (cf. Lc 11.51), prenunciando o que logo aconteceria nos relatos de abertura dos Evangelhos do Novo Testamento e mesmo depois. No Novo Testamento, as epístolas (Romanos–Judas) servem à mesma função pactual básica que os Escritos do Antigo Testamento. Elas foram concebidas para treinar o povo de Deus para a vida na Nova Aliança quanto à maneira como pensamos (teologia) e vivemos (ética). As epístolas de Paulo são um bom exemplo. Elas são normalmente divididas em duas partes principais: indicativa e imperativa. Na primeira parte (indicativa), Paulo descreve as implicações teológicas da Nova Aliança à luz da pessoa e obra de Cristo (e.g., Rm 1–11). Na segunda parte (imperativa), Paulo descreve as implicações práticas — ou éticas — da vida na Nova Aliança. Esse método de apresentação não é estranho à literatura sapiencial do Antigo Testamento, uma escola de pensamento na qual Paulo foi treinado como fariseu. No livro de Provérbios, por exemplo, a primeira seção (Pv 1–9) apresenta aos leitores uma teologia da sabedoria em oposição à loucura. Na segunda seção (Pv 10–31), os leitores encontram as implicações práticas — ou éticas — da vida de sabedoria. Com base nas observações apresentadas aqui, parece razoável concluir que a correspondência entre os livros de vida na aliança no Antigo e Novo Testamentos são intencionais e fornecem aos leitores lentes hermenêuticas macrocanônicas pelas quais devemos entender e aplicar esse conteúdo de forma adequada na vida da Igreja.

CONCLUSÃO

Compreendemos que a Bíblia tem (1) um centro teológico, (2) uma estrutura temática e (3) uma estrutura pactual. Essa perspectiva tripla para a teologia bíblica fornece unidade e abrange a diversidade. Quando formos perguntados sobre o conteúdo da Bíblia, podemos responder com confiança que ela fala sobre Jesus e o reino de Deus. Quando formos perguntados sobre a natureza da Bíblia ou como ela funciona, nossa resposta é simples: ela funciona com base na aliança, nas categorias de

aliança (Lei), história da aliança (Profetas) e vida na aliança (Escritos), tanto no que concerne ao Antigo quanto ao Novo Testamento.26

Neste capítulo introdutório, trabalhamos para descrever o contexto bíblico mais amplo que ajudará a dar sentido a cada livro do Antigo Testamento que será estudado nos capítulos subsequentes, seguindo intencionalmente a ordem dos livros apresentada no Antigo Testamento hebraico. Essa é a tradição mais antiga e é a tradição validada por Jesus e pelos autores do Novo Testamento. Vimos também que os livros do Novo Testamento foram agrupados e organizados com base no padrão da organização hebraica dos livros do Antigo Testamento, e não segundo a organização da Bíblia Cristã! Portanto, a construção da Bíblia Cristã em sua estrutura macrocanônica exibe um “projeto inteligente” que aponta para seu autor divino supremo e molda o significado e a mensagem final do livro como um todo.

Esse contexto macrocanônico nos ajuda a compreender o quadro geral, isto é, como o Antigo e o Novo Testamentos se encaixam e como as partes de cada testamento se relacionam umas com as outras. Ele também forma a maneira como interpretamos e aplicamos cada um dos diferentes livros, em cada uma das diferentes seções, em cada um dos diferentes testamentos.27

Também observamos como Gênesis e Crônicas se encaixam como o início e o fim do Antigo Testamento hebraico. Os dois livros começam com a figura de Adão e contêm importantes listas genealógicas que trabalham para rastrear e identificar a semente messiânica da mulher que seria vencedora e cumpriria todas as promessas da aliança de Deus, promovendo a consumação do reino de Deus. Crônicas, no entanto, também se encaixa com Mateus, o primeiro livro do Novo Testamento. Eles são os dois únicos livros na Bíblia Cristã que começam com genealogias. Além disso, o rei e sacerdote procurado em Crônicas é encontrado somente na chegada da apresentação genealógica de Jesus no Novo Testamento.

26 Assim argumenta Rendtorff: “Por isso a variedade de vozes dentro da Bíblia Hebraica ganha sua estrutura bem específica ao longo da disposição do cânon” (The Canonical Hebrew Bible, p. 8).

27 Dempster, da mesma forma, explica que “o cânon fornece um contexto literário para todos os textos, criando um texto a partir de muitos. O fato de que o cânon hebraico é estruturado com base em uma sequência narrativa com comentário significa que o cânon não ‘achata’ o texto em uma uniformidade unidimensional; ao contrário, ele estimula evolução, diversidade e crescimento dentro de uma estrutura abrangente, na qual as várias partes podem se relacionar com o todo literário” (Dominion and Dynasty, p. 42-43).

Outrossim, pode ser útil observarmos que as três seções do Antigo Testamento hebraico — aliança (Lei), história da aliança (Profetas) e vida na aliança (Escritos) — são unidas nas costuras.28 Por exemplo, os Profetas e Escritos do Antigo Testamento começam com afirmações que expressam sua dependência da lei ao destacarem, de maneira singular, a importância protológica da meditação na “lei do Senhor”, “dia e noite” (cf. Js 1.8; Sl 1.2). Além disso, a Lei e os Profetas também concluem com a expectativa de um profeta como Moisés e Elias, ainda que muito maior (cf. Dt 34.1012; Ml 4.4-6; Mt 17.3-4; Mc 9.4-5; Lc 9.30-33). Essa ligação canônica pactual fornece evidências de que essa disposição não é acidental, mas intencional, instrutiva e hermenêutica. Os Profetas e os Escritos estão baseados na Lei, que são os documentos da aliança, mas esse conteúdo também é escatológico por natureza, dedicando-se a identificar o Profeta definitivo que dará início ao dia do Senhor.

Por fim, é importante compreendermos que essa disposição é, em última instância, cristológica. Jesus é a semente da mulher que veio esmagar a semente da serpente, e ele é o descendente de Abraão que cumpre todas as promessas da aliança (Gênesis; prólogo da aliança). Jesus também é o melhor Mediador da aliança, o verdadeiro e melhor templo, bem como o verdadeiro e melhor sacrifício. Jesus veio para manter e cumprir a lei de Deus (Êxodo–Deuteronômio; aliança). Jesus Cristo é o verdadeiro e melhor Israel, total e completamente obediente à lei de Moisés, aquele que alcançou a justiça que não poderíamos alcançar por nós mesmos. Ele é a semente de Davi segundo a carne, o Rei do reino de Deus. Jesus Cristo também é o verdadeiro e melhor Profeta. Ele não apenas executou a ação judicial profética definitiva, mas recebeu a sua punição por aqueles que receberiam sua justiça merecida. Ele não estava limitado à fórmula profética do mensageiro do Antigo Testamento, “assim diz o Senhor”, mas falava como o próprio Yahweh: “em verdade vos digo” (Josué–Malaquias; história da aliança). Jesus Cristo é a verdadeira e melhor sabedoria, o louvor definitivo a Deus, a própria Sabedoria de Deus (Salmos–Crônicas; vida na aliança). Ele é o caminho, a verdade e a vida (Jo 14.6). Se você entender o Antigo Testamento, deve abraçar Jesus, seu reino e a natureza de aliança de sua Palavra e obra.

28 Dempster observou: “Além do mais, os compiladores finais do texto bíblico garantiram que o texto devia ser compreendido como uma unidade. Não há apenas grandes agrupamentos de livros, mas ‘encaixes’ editoriais que unem os grandes agrupamentos de livros uns aos outros. Portanto, tanto o ponto teológico como o literário são propostos ao mesmo tempo” (Dominion and Dynasty, p. 32).

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Capítulo 1 Gênesis

INTRODUÇÃO

O nome do primeiro livro da Bíblia Hebraica deriva da palavra inicial do texto hebraico, תיִשֶׁאֵרְבְּ Essa palavra significa “no princípio” e é um nome apro. priado, já que o livro trata dos primórdios: o início do universo; o início do tempo, matéria e espaço; o início da humanidade; o início do pecado; o início da redenção; e o início de Israel. Portanto, ao deliberar a respeito de Gênesis, estamos essencialmente nos envolvendo em protologia, o estudo das primeiras coisas. O fato de o cosmos ter um início implica que também tem um fim e que tudo está se movendo no sentido de uma consumação (o estudo dessas últimas coisas é chamado de escatologia). As Escrituras, portanto, apresentam uma história linear, um movimento do início à conclusão.

Os estudiosos geralmente tentam distinguir entre essa visão hebraica da história e a visão de outras culturas do Oriente Médio antigo. Muitos defendem que as culturas pagãs da época acreditavam em uma história cíclica, ensinando que a natureza está presa em uma sequência infinita de nascimento, vida, morte e renascimento. Portanto, o mundo não vai a lugar algum; está apenas em um ciclo natural ininterrupto. Na realidade, esse contraste é simplista demais. Os antigos estavam, na verdade, bem cientes da história, o que o grande volume de relatos históricos desses povos comprova. Os antigos egípcios, assírios e babilônios eram habilidosos e proficientes na preservação

de documentos históricos, anais e cronologias.29 O contraste entre as duas concepções de universo realmente se resume à questão de qual é o fundamento da história. Os judeus tinham uma cosmovisão centrada em Deus como o Senhor e supervisor da história. Tudo que acontece no cosmos se desenrola segundo os planos de Deus; ele é quem move a história de um princípio até um clímax final (Is 41.4; 43.1-15; 44.6; 48.12). Ele é soberano e se assenta no trono da história. As outras culturas do Antigo Oriente Próximo não tinham tal concepção teológica.

QUESTÕES DE PANO DE FUNDO

Autoria

Nos últimos 150 anos, a questão da formação e desenvolvimento do livro de Gênesis e do restante do Pentateuco, na verdade, dominou os estudos do Antigo Testamento. Pesquisas sobre autoria, data e local da composição têm estado na vanguarda dos estudos do Antigo Testamento. Embora as pessoas tenham feito essas perguntas ao longo da história do judaísmo e do cristianismo, talvez o primeiro a tratar seriamente dessas questões tenha sido Jean Astruc (1684–1766 d.C.), um professor de medicina da Universidade de Paris. Astruc determinou que alguém reuniu quatro documentos originais para formar o Pentateuco. Ele observou que certos nomes para Deus dominavam partes diferentes da literatura, e esse se tornou um fator para determinar o que pertencia a qual fonte. Ele também acreditava que as duplicidades — ou seja, um segundo relato do mesmo incidente — demonstravam as fontes diferentes. Embora Astruc provavelmente acreditasse que Moisés tenha sido o autor de cada uma das quatro fontes, seus estudos forneceram a base para a crítica textual do texto bíblico que logo se seguiria.

Portanto, o que deu início à crença de que Gênesis foi escrito não por um, mas por vários autores cujas fontes os redatores (i.e., editores) juntaram ao longo do tempo? Talvez o ímpeto mais importante para essa noção tenha sido o pensamento não de um estudioso bíblico, mas de um filósofo. Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770–1831) elaborou uma cosmovisão influente, segundo a qual todas as coisas na realidade estão mudando ou em processo. Tudo está se desenvolvendo dos níveis mais

29 Veja Pritchard, ANET; William K. Simpson, ed., The Literature of Ancient Egypt: An Anthology of Stories, Instructions, Stelae, Autobiographies, and Poetry, trad. Robert K. Ritner et al., 3ª ed. (New Haven: Yale University Press, 2003); D. Winton Thomas, Documents from Old Testament Times, Harper Torchbooks, TB 85 (Nova York: Harper & Row, 1958); e muitos outros.

baixos aos mais altos de perfeição. Esse processo ocorre por meio da dialética, que move as coisas de um estado (tese) ao seu oposto (antítese) e, finalmente, alcança uma síntese maior entre as duas. Ele se repete para que estados superiores de existência venham a ocorrer. Esse é um processo natural que afeta todas as áreas da vida: cultura, sistemas sociais, sistemas políticos, biologia, economia e religião. É uma visão evolutiva da existência.

Um dos colegas de Hegel, um estudioso bíblico chamado Wilhelm Vatke (1806–1882), pegou e ampliou a filosofia de Hegel para o estudo do Antigo Testamento e, em particular, para a formação do Pentateuco.30 Isso marcou uma grande reviravolta, visto que “a aplicação da filosofia hegeliana ao estudo do Antigo Testamento levou [Julius] Wellhausen [1844–1918] a estabelecer a hipótese documental moderna do Pentateuco, o que culminou na morte da teologia do Antigo Testamento”.31 Ao construir sobre essas pressuposições fundamentais de Astruc, Hegel e outros, os estudiosos bíblicos subsequentes teorizaram que o Pentateuco era, de fato, uma compilação de inúmeras fontes reunidas por editores posteriores. Entretanto, eles não concordaram sobre as fontes e sobre como elas foram compiladas. Por exemplo, os adeptos da hipótese suplementar defendem que havia um documento central do Pentateuco ao qual os redatores acrescentaram vários fragmentos ao longo dos séculos. Por outro lado, outros defendem que o Pentateuco não tem um só documento central, mas consiste em uma massa de fragmentos de várias fontes que foram compilados e editados (essa é a chamada hipótese fragmentária).

A principal teoria da fonte desenvolvida no século XIX foi a Teoria Graf-Wellhausen, também conhecida como a hipótese documental. Essa teoria propôs quatro fontes básicas para o Pentateuco, chamadas de J, E, D e P:

1. J é a fonte Javista (ou Yahwista). Essa é uma fonte que usa fundamentalmente o nome Javé (ou seja, Yahweh) para se referir a Deus. A fonte J é considerada a mais antiga e pode ser vista em Gênesis 2.4–4.26, assim como em passagens de Êxodo e Números. Os criadores da hipótese pensaram que

30 Wilhelm Vatke, Die Biblische Theologie (Berlim: Bethke, 1835).

31 Ralph L. Smith, Old Testament Theology: Its History, Method, and Message (Nashville: Broadman, 1993), p. 32.

ela derivava do período da monarquia unida durante os reinados de Davi e Salomão.

2. E é a fonte Eloísta. Ela emprega o nome Elohim para Deus e vem de um período posterior à fonte J. Um redator posterior, chamado de RJE, une as duas fontes.

3. D se refere à fonte Deuteronomista. Esse conteúdo foi escrito ainda depois dos dois primeiros e era normalmente visto como oriundo da época do rei Josias, na segunda metade do século VII a.C. Outro redator, chamado RD, uniu esse conteúdo com J e E para criar um documento.

4. P é a fonte Sacerdotal (Priestly, no inglês) e a última a ser composta. Ela inclui grande parte do conteúdo sagrado de culto e sacrifícios, além de questões relacionadas ao sacerdócio. Estudiosos que adotam a hipótese documental acreditam que a fonte P foi escrita mais tarde, devendo ser identificada durante os períodos de exílio e pós-exílio.

Embora essas sejam as quatro fontes principais do Pentateuco, essa posição também argumenta que inúmeros fragmentos menores, como Gênesis 14, foram inseridos nesses documentos primários.

Pouquíssimos estudiosos hoje aceitam a hipótese documental tal como foi originalmente formulada; a questão da autoria se tornou muito mais complexa. Há, na realidade, pouco consenso entre os estudiosos em relação a quem escreveu o que e quando, muito embora eles continuem usando o acrônimo JEDP. Além disso, muitos estudiosos argumentam que cada uma dessas quatro grandes fontes resultaram de vários editores e redatores que reuniram muitas outras fontes. O que fica claro é que grande parte dos estudiosos do Antigo Testamento nega a historicidade do conteúdo do Pentateuco e alega que o conteúdo que temos é resultado de séculos de evolução literária.32

32 Para uma análise adicional, veja Carl E. Amerding, The Old Testament and Criticism (Grand Rapids: Eerdmans, 1983); Duane A. Garrett, Rethinking Genesis: The Sources and Authorship of the First Book of the Pentateuch (Grand Rapids: Baker, 1991); Isaac M. Kikawada e Arthur Quinn, Before Abraham Was: The Unity of Genesis 1-11 (Nashville: Abingdon, 1985); e Richard N. Soulen, Handbook of Biblical Criticism, 2ª ed. (Atlanta: John Knox, 1981).

Análise literária

Nas três últimas décadas, estudiosos de uma variedade de perspectivas têm requerido uma ênfase na forma final do texto como um todo literário. Na vanguarda dessa atenção, Brevard Childs argumentou que a exegese deveria ser baseada na forma final e canônica do texto bíblico.33 Essa perspectiva levou muitos estudiosos a mudarem a sua ênfase, deixando de trabalhar apenas na crítica da fonte, mas descobrindo os vários níveis pelos quais o Pentateuco alcançou a sua forma final. À frente dessa tarefa está Robert Alter, que escreveu uma obra verdadeiramente inovadora intitulada A Arte da Narrativa Bíblica. 34 Nessa obra, Alter define um campo de estudo bíblico chamado de análise literária.

A análise literária lida com o que Alter chama de “o uso artístico da linguagem” em um gênero literário particular.35 Isso inclui convenções da escrita hebraica tais como estrutura, jogos de palavras, figura, som, sintaxe e muitos outros mecanismos que aparecem na forma final do texto. Nas palavras do próprio Alter, ele define assim a análise literária:

Por análise literária, refiro-me às múltiplas variedades de atenção detalhadamente minuciosa ao uso artístico da linguagem, ao jogo mutável de ideias, convenções, tom, som, imagens, sintaxe, ponto de vista narrativo, unidades composicionais e muito mais; o tipo de atenção disciplinada, em outras palavras, que, por meio de todo um espectro de abordagens críticas, iluminou, por exemplo, a poesia de Dante, as peças de Shakespeare, os romances de Tolstoy.36

Essa abordagem literária gerou muitos frutos nos estudos bíblicos e permitiu que os estudiosos vissem mais uma vez as qualidades literárias da forma final de um texto.

33 Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture (Filadélfia: Fortress, 1979). Também na vanguarda dessa perspectiva está James Muilenburg, “Form Criticism and Beyond”, JBL 88, nº 1 (1969): 1-18.

34 Robert Alter, The Art of Biblical Narrative (Nova York: Basic Books, 1981).

35 Ibid., p. 12.

36 Ibid., p. 12-13.

Por exemplo, quando críticos da fonte se envolvem em um texto como Gênesis 38, o relato de Judá e Tamar, eles o compreendem como uma mistura de documentos-fonte dominada especialmente por J e E, e muitos não veem conexão alguma entre essa história e o relato da vida de José. Por exemplo, von Rad argumenta, em seu comentário de Gênesis, que “todo leitor atento pode ver que a história de Judá e Tamar não tem conexão alguma com a história estritamente organizada de José, em cujo início ela está inserida agora”.37 Speiser concorda: “A narrativa é uma unidade completamente independente. Não tem conexão alguma com o drama de José, que ela interrompe”.38 Gênesis 38, portanto, é uma simples interpolação, provavelmente inserida pelo autor javista.

A análise literária, entretanto, demonstra algo diferente. Ela pergunta: por que a história foi colocada aqui? E conclui, nesse caso, que o texto de Gênesis 38 foi tecido com arte e maestria no contexto da história de José. Por exemplo, Sprinkle, resumindo Alter, observa que o mesmo tema ocorre nos capítulos 38 e 37:

Assim como José é separado de seus irmãos ao “descer” para o Egito, Judá se separa de seus irmãos ao “descer” para se casar com uma mulher cananeia.

Jacó é forçado a prantear a suposta morte de seu filho, e Judá é forçado a prantear a morte de dois de seus filhos. [...] Judá enganou Jacó; então, Tamar (em justiça poética) engana Judá. [...] Judá usou um bode (seu sangue) para enganar Jacó; então, o preço prometido de um cabrito para a meretriz tem papel em seu próprio engano.39

A história de Gênesis 38 também tem conexões temáticas com o relato subsequente, servindo como contraponto à história da esposa de Potifar. Judá se casa com uma cananeia e, depois da morte de sua esposa, tem relações sexuais com uma mulher que ele acredita ser uma prostituta. José, ao contrário, não é vítima da tentação sexual.

37 Gerhard von Rad, Genesis: A Commentary, trad. John H. Marks, OTL (Filadélfia: Westminster, 1961), p. 351.

38 E. A. Speiser, Genesis: A New Translation with Introduction and Commentary, AB 1 (Garden City: Doubleday, 1964), p. 299.

39 Joe M. Sprinkle, “Literary Approaches to the Old Testament: A Survey of Recent Scholarship”, JETS 32, nº 3 (1989): 302.

Portanto, enquanto Judá sucumbe à sedução das cananeias, José se recusa a ceder às artimanhas da egípcia.

A análise literária é essencial no estudo do livro de Gênesis; pois, embora Gênesis inclua vários gêneros, tais como genealogia, poesia, oração e assim por diante, o gênero dominante é a narrativa. Ainda assim, como a narrativa hebraica pode exibir o uso “habilidoso” da linguagem em vários estágios, a análise literária de Gênesis pode se tornar bem complexa. Para o propósito desta introdução, consideraremos três estágios básicos da análise, passando do mais simples ao mais complexo, que servirá como ponto de partida para o leitor.

Estágio 1: Leitwort (“palavra guia ou principal”)

Definição: “O termo alemão Leitwort se refere a uma palavra ou raiz que aparece repetidamente ao longo de uma passagem e é um dos componentes mais comuns da arte da narrativa no AT. O papel de uma Leitwort é destacar e desenvolver o tema principal de uma narrativa.”40

Exemplo de Gênesis: no relato em que Jacó rouba a bênção de Esaú em Gênesis 27, duas Leitwörter (o plural alemão de Leitwort) definem o propósito temático da narrativa. As palavras que ocorrem repetidamente são דִיִַצַ (“caça”, sete vezes como substantivo e quatro vezes como seu verbo cognato, “caçar”) e םיִִמִַעְַטְַמִ (“comida saborosa”, seis vezes). Waltke observa que “Rebeca, o próprio Isaque e o narrador dizem que Isaque ‘aprecia comida saborosa’. Essa repetição deixa clara a mensagem da história: a cobiça de Isaque distorceu seu gosto espiritual. Ele se entregou a uma sensualidade indulgente.”41

Estágio 2: Leitphrase (“expressão guia ou principal”)

Definição: A palavra alemã Leitphrase se refere à repetição de uma expressão ou frase que domina o texto, e não simplesmente de uma única palavra.

40 John D. Currid e L. K. Larson, “Narrative Repetition in 1 Samuel 24 and 26: Saul’s Descent and David’s Ascent”, em From Creation to New Creation: Essays on Biblical Theology and Exegesis, ed. Daniel M. Gurtner e Benjamin L. Gladd (Peabody: Hendrickson, 2013), p. 51-62.

41 Bruce K. Waltke, An Old Testament Theology: An Exegetical, Canonical, and Thematic Approach, com Charles Yu (Grand Rapids: Zondervan, 2007), p. 116-17.

Exemplo de Gênesis: em Gênesis 1, a expressão “houve tarde e manhã, o [número] dia” aparece seis vezes (1.5, 8, 13, 19, 23, 31). Essa Leitphrase fornece a estrutura temporal para todo o relato da criação.

Às vezes, uma passagem bíblica pode ser mais complicada, incluindo os dois estágios de Leitwort e Leitphrase. Gênesis 39.1-6, por exemplo, apresenta o relato do serviço de José a Potifar, seu mestre egípcio, e contém várias Leitwörter: לֹכֹּ (“tudo”, cinco vezes), תִיִַבְּ (“casa”, cinco vezes), דיִ (“mão”, quatro vezes), e ַחַ יִלצַמִ (“prosperar”, duas vezes). Esse trecho também inclui uma Leitphrase: “O Senhor era com José” (duas vezes). A complexidade dessas formas literárias se torna aparente quando se considera uma história posterior, no capítulo que descreve o serviço de José a um carcereiro egípcio (39.19-23). Esse relato descreve as mesmas palavras-chave usadas no primeiro: “tudo” (três vezes), “casa” (quatro vezes), “mão” (duas vezes), e “prosperar” (uma vez). Além disso, a expressão-guia “o Senhor era com José” aparece duas vezes. Essas repetições destacam um eco (que me lembra da grande citação de Mark Twain: “A história não se repete, mas ela rima”); o padrão recorrente demonstra que José é próspero independentemente do que o seu mestre terreno coloque em suas mãos, pois o Senhor é com ele. Esse paradigma se repete em essência quando o Faraó, mais tarde, coloca toda a casa do Egito nas mãos de José (Gn 41.37-45).

Estágio 3: Leitmotif (“tema principal”)

Definição: O termo alemão Leitmotif identifica um relato (que Alter também chama de cena-tipo) que é repetido, mais ou menos, em diferentes contextos.

Exemplo de Gênesis: em Gênesis, o tema “ela é minha irmã” aparece três vezes (12.10-20; 20.1-18; 26.6-11). Nas duas primeiras ocasiões, Abraão diz a um governante estrangeiro que sua esposa, Sara, é, na verdade, sua irmã. Na terceira vez, Isaque diz o mesmo a respeito de sua esposa, Rebeca. Todas as três ocasiões são exemplos dos patriarcas tentando se salvar de um possível perigo apresentado por governantes estrangeiros. Os estudiosos normalmente atribuem essa repetição de narrativa à duplicação de fontes. Em outras palavras, autores diferentes empregaram a mesma história para episódios e propósitos diferentes. Na realidade, esse raciocínio é deficiente, uma vez que o Leitmotif é a própria essência da narrativa bíblica. Trata-se de uma das principais maneiras como o escritor bíblico redige seu conteúdo. A reverberação ou eco recorrente do tema “ela é minha irmã” conecta essas narrativas de uma maneira

significativa por meio da utilização de táticas de engano similares — funcionou duas vezes para Abraão e uma vez para seu filho.

Outro exemplo de Leitmotif em Gênesis é um que começa ali e ecoa ao longo de toda a Bíblia. A cena da “mulher estéril” retrata uma mulher israelita incapaz de ter filhos, e, então, por algum meio extraordinário, ela concebe e dá à luz um filho. O descendente, então, cresce e se torna um líder ou libertador do povo de Deus. O tema aparece primeiro em Gênesis 11.27-30, onde Sara, a esposa de Abraão, é estéril. Isaque, é claro, nasce de maneira sobrenatural do casal já idoso. Essa cena se repete em Gênesis 25.20-21 (Rebeca e Isaque) e em 29.31 (Raquel e Jacó). O tema da “mulher estéril” continua pelo Antigo Testamento com as histórias de outras mulheres estéreis, como a mãe de Sansão (Jz 13.2) e Ana, a mãe de Samuel (1 Sm 1.2). Essa cena-tipo alcança seu clímax no nascimento virginal de Jesus do ventre de Maria no Novo Testamento — ele, por óbvio, é o libertador definitivo do povo de Deus.

ESTRUTURA E ESBOÇO

Estrutura literária de Gênesis

Gênesis pode ser dividido em três grandes seções: (1) a criação do mundo (1.1–2.3); (2) a história primordial do mundo de Adão a Abraão (2.4–11.26); e (3) a história dos patriarcas (11.27–50.26). Depois de narrar o episódio da criação, o autor fornece um relato altamente estruturado que abrange a história de Adão a José, sinalizando novas e significativas seções de conteúdo com a recorrente fórmula toledoth. Essa fórmula em hebraico (תוֹדְלוֹתּ) significa literalmente “as gerações de” e está por trás do cabeçalho comum: “Essas são as gerações de...”, expressão que aparece 11 vezes em Gênesis (2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10, 27; 25.12, 19; 36.1, 9; 37.2).

A palavra תוֹדְלוֹתּ é derivada da raiz hebraica דליִ, que significa “dar à luz, parir”. Naturalmente, a fórmula muitas vezes antecede uma genealogia que, geralmente, também inclui narrativa. Sua primeira aparição em 2.4 se refere à criação dos céus e da terra, bem como dos objetos ou elementos subsequentes que surgem a partir da palavra falada. A próxima ocorrência se relaciona a Adão e ao povo que descende dele. O livro de Gênesis é, assim, estruturado segundo uma ênfase genealógica.

Estrutura teológica de Gênesis

A mensagem básica da Bíblia, com frequência, é definida como Criação, Queda e Redenção. Isso está, em essência, correto. O que muitas vezes passa despercebido é que esses três distintivos são encontrados no livro do Gênesis e, em particular, em seus três primeiros capítulos. Gênesis 1–3, na realidade, serve como um microcosmo para a mensagem fundamental da Bíblia inteira. Passemos a considerar cada ensino em sua ordem.

MENSAGEM E TEOLOGIA

Criação

Já no início do Antigo Testamento, o leitor é imediatamente apresentado a Deus na totalidade essencial do seu ser. O autor exclui qualquer prefácio. O leitor é levado a Deus e a Deus somente; então, Gênesis declara: “No princípio, Deus...” (Gn 1.1). O público deve entender que o relato da criação trata principalmente de Deus, não da criação ou da humanidade. Ele é teocêntrico, não antropocêntrico. E, nessa passagem de Gênesis, Deus se faz conhecido pelas obras de sua vontade criativa, o que o salmista reconheceu mais tarde: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos” (Sl 19.1). É também importante observar que, logo no início, o Antigo Testamento não fornece provas da existência de Deus. A Bíblia pressupõe o próprio ser de Deus; isso não precisa ser provado. As Escrituras repousam sobre essa mesma verdade: Deus é.

Deus não apenas existe, mas também cria. A tabela 2 mostra como o narrador relata sua obra criativa em Gênesis 1 para cada dia de acordo com uma estrutura repetida.

1. Anúncio

“E disse Deus...” (1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26)

2. Ordem “Haja...” (1.3, 6, 9, 11, 14, 20, 24, 26)

3. Relato

“E assim se fez.” (1.3, 7, 9, 11, 15, 24, 30)

4. Avaliação “E viu Deus que isso era bom.” (1.4, 10, 12, 18, 21, 25, 31)

5. Estrutura temporal “Houve tarde e manhã, o [primeiro, segundo, etc.] dia.” (1.5, 8, 13, 19, 23, 31)

Tabela 2

Esse padrão tem quatro implicações teológicas. Em primeiro lugar, a obra criativa de Deus foi espontânea; ele falou, e o universo veio a existir. Esse mero decreto verbal demonstra a onipotência esmagadora e maravilhosa de Deus (Sl 33.6-9). Em segundo lugar, a obra criativa de Deus foi ex nihilo, ou seja, surgiu do nada. Todas as três dimensões do universo — espaço, tempo e matéria — vieram à existência pela palavra de Deus (Hb 11.3). Em terceiro lugar, a criação foi uma expressão da vontade de Deus, e ele a provocou e cumpriu livremente, sem qualquer compulsão externa (Ap 4.11). Finalmente, o paradigma da criação reforça a doutrina da soberania de Deus. O Senhor é Criador e Rei, e todas as coisas estão sujeitas ao seu governo, pois ele fez todas as coisas (Sl 24.1-2).

Embora o relato da criação de Gênesis 1 seja centrado em Deus e em sua obra, ele também define o conteúdo da criação. O versículo 1 do texto o define como “os céus e a terra”. Os judeus não tinham uma palavra única para descrever o universo em sua totalidade, de maneira que, quando queriam expressar o conceito de toda a realidade, usavam essa expressão. Trata-se de um merisma, dois opostos que formam o todo (cf. Sl 139.8).

A expressão é uma totalidade de polaridades, indicando que Deus criou tudo, inclusive os céus, a terra e tudo que há neles, sobre eles e entre eles (cf. Cl 1.16).

O narrador sublinha o conteúdo geral da obra de criação de Deus em Gênesis em uma estrutura altamente estilizada (talvez formando mesmo uma “moldura”), construindo três paralelos dentro de um desenho de sete dias. A tabela 3 mostra essa estrutura.

Reinos/Domínios

Dia 1: Luz (1.3-5)

Dia 2: Mar, céu (1.6-8)

Dia 3: Terra (1.9-13)

Tabela 3

Reis/Governadores

Dia 4: Luzeiros (1.14-19)

Dia 5: Peixes, aves (1.20-23)

Dia 6: Criaturas da terra (1.24-31)

Dia 7: Sábado (2.1-3)

Os seis dias da criação incluem dois conjuntos de três dias em paralelo. A primeira tríade (dias 1–3) descreve o reino sendo criado, ao passo que a segunda tríade (dias 4-6) retrata a criação dos governantes desses reinos. Os dias 1, 2 e 3 correspondem

diretamente aos dias 4, 5 e 6, respectivamente. Em virtude dessa repetição e estrutura detalhadas, alguns estudiosos argumentam que o relato é poético.42 Além de sua estrutura, entretanto, Gênesis 1 tem muito pouco do que se classificaria como poesia hebraica. De fato, tem todos os indicadores de que foi escrito como uma narrativa hebraica. Contudo, devemos admitir que, embora não seja poesia, também não é uma prosa comum e ordinária. É uma narrativa, mas com estilo elevado. Portanto, C. John Collins oferece talvez a melhor descrição do gênero de Gênesis 1 quando chama de “narrativa de prosa exaltada”.43

Os teólogos muitas vezes descrevem a criação da humanidade no sexto dia como a “coroa da criação”, já que a humanidade é a última criação durante os seis dias. Além disso, a humanidade é a única entidade criada imago Dei, ou seja, à imagem de Deus (Gn 1.26-27). A palavra hebraica para “imagem” é םֶלֶצַ e aparece 16 vezes no Antigo Testamento. Originalmente, a palavra significava “algo cortado de um objeto”, como, por exemplo, um pedaço de argila tirado de uma escultura.44 Nesse caso, existe uma semelhança concreta entre o objeto e a imagem. Assim, a maioria de suas ocorrências no Antigo Testamento se refere a ídolos que representam um deus fisicamente (e.g., 2Rs 11.18). A palavra também é usada em alusão à estátua de um rei que ele estabelece em uma terra que conquistou, simbolizando sua soberania sobre aquela terra (e.g., Dn 3.1). Esse uso ajuda a demonstrar que, a respeito da criação da humanidade, ela representa o governo de Deus sobre a terra.

Os seres humanos não são apenas criados à imagem de Deus (imago Dei), mas também para agirem como ele (imitatio Dei). Essa não é uma questão apenas de caráter, mas de função e atividade. Em Gênesis 1–2, vemos que a humanidade 42 Meredith G. Kline diz: “A exegese indica que o próprio esquema da semana da criação é uma figura poética e que os vários retratos do relato da criação são colocados dentro da estrutura de trabalho de seis dias não cronologicamente, mas por tópicos” (“Genesis”, em The New Bible Commentary: Revised, ed. Donald Guthrie, J. A. Motyer, e Francis Davidson, 3ª ed. [Downers Grove: InterVarsity Press, 1970], p. 82). Em escritos posteriores, Kline recuou dessa afirmação e chamou o gênero de Gênesis 1 de “semipoético” (“Because It Had Not Rained”, WTJ 20, nº 2 [1958]: 156). Veja, e.g., Meredith G. Kline, “Space and Time in the Genesis Cosmogony”, Perspectives on Science and Christian Faith 48, nº 1 (1996): 2-15; Lee Irons e Meredith G. Kline, “The Framework View”, em The Genesis Debate: Three Views on the Days of Creation, ed. David G. Hagopian (Mission Viejo: Crux, 2000), p. 217-56, 279-303.

43 C. John Collins, Genesis 1-4: A Linguistic, Literary, and Theological Commentary (Phillipsburg: P&R, 2006), p. 44.

44 Ernest Klein, A Comprehensive Etymological Dictionary of the Hebrew Language for Readers of English (Nova York: Macmillan, 1987), p. 548.

deve imitar a Deus de três maneiras. Para preparar o cenário, Gênesis 1.2 descreve o estado da terra como וּהֹ תּ (“sem forma”) e וּהֹ בְּ (“vazia”). Nos três primeiros dias da criação (1.1-10), Deus controla a ausência de forma e cria um mundo ordenado. Ele realiza isso por meio da palavra, ao dar nome e separar diferentes partes da criação. Em Gênesis 2, o homem faz o mesmo, controlando e dominando a criação, à medida que cultiva o jardim (2.15) e, especialmente, dá nome aos animais (2.1920). Seu trabalho é a criatividade inteligente, assim como o trabalho inicial de Deus. Em segundo lugar, nos últimos três dias de criação, Deus preenche os céus com um exército estrelado e enche a terra com vida animada. A humanidade segue o padrão divino ao encher a terra com sua progenitura por meio da reprodução (1.28), assim como ao enchê-la com a produção por meio do cultivo dela (2.15). Finalmente, no último dia da criação, Deus descansa de sua atividade de controle e preenchimento.

Certamente está implícito que a humanidade faria o mesmo à medida que trabalhasse por seis dias e descansasse no sábado. Isso é confirmado mais tarde pelas leis do sábado (veja Êx 20.8-11, que liga o sábado à criação).

A criação é um Leitmotif que ecoa por toda a Bíblia. Em Gênesis 9, por exemplo, vemos Deus vindo até Noé depois do dilúvio e, essencialmente, renovando a ordem divina dada a Adão na criação. Em outras palavras, a comissão e bênção divina que Deus deu a Adão é repetida a Noé, que é, assim, um segundo Adão. Então, em Gênesis 9.1, Deus ordena a Noé que seja fecundo e se multiplique, usando a mesma expressão empregada em Gênesis 1.28. De maneira significativa, o relacionamento humano com os animais é um ponto central nas duas histórias (1.26; 9.2). Os dois relatos também destacam a ideia do homem à imagem de Deus, um conceito que ocorre apenas nesses dois lugares no livro de Gênesis (1.27; 9.6). Finalmente, a provisão de alimento para a humanidade é também um aspecto importante das duas narrativas (1.29; 9.3), e a história de Noé faz referência direta a Gênesis 1.29. O fato é que Gênesis 9 é um relato de recriação, ou seja, um segundo mandamento que tem como modelo o mandamento original dado à humanidade no jardim.

O mandamento da criação de Gênesis 1 ecoa novamente em Êxodo 1. No versículo 7 do segundo texto, o autor explica que os judeus foram muito ativos na reprodução no Egito: “Mas os filhos de Israel foram fecundos, e aumentaram muito, e se multiplicaram, e grandemente se fortaleceram, de maneira que a terra se encheu deles.” Todos os cinco verbos nesse versículo espelham a linguagem da criação. O

escritor leva o público de volta para o mandamento cultural dado em Gênesis 1.28 e 9.7, demonstrando que os judeus estão cumprindo o preceito de serem fecundos, multiplicarem-se e encherem a terra. Israel é, de certo modo, outro Adão tentando cumprir o mandamento cultural de Gênesis 1.

Outro exemplo da criação como Leitmotif nas Escrituras é a criação e preparação da terra para que o povo de Deus habite nela. Lemos em Gênesis 1.9-10 como Deus divide as águas, faz surgir a terra (ץֶראֵ “terra”) e, então, fornece abundantes recursos para sustentar seu povo. O Antigo Testamento repete esse padrão de separação das águas e preparação da terra outras duas vezes. Êxodo 14.15-16 retrata Deus dividindo as águas do caos, dirigindo seu povo na travessia do Mar Vermelho em solo seco e, então, levando-o para uma nova terra, onde ele suprirá suficientemente todas as suas necessidades. O eco sublinha que a terra é uma bênção para o povo de Deus: Deus a cria e prepara; depois, guia seu povo até ela. Esse padrão aparece de novo no livro de Josué, onde Deus divide as águas do Rio Jordão, leva seu povo a atravessá-lo em solo seco e coloca os israelitas em uma terra onde o leite e o mel manam (3.13-17). O vocabulário repetido nesses relatos — “amontoar-se” (Js 3.13, 16; cf. Êx 15.8) e “terra seca” (Js 3.17; cf. Êx 14.21) — confirma que essa é de fato uma cena-tipo. Aqui, mais uma vez, Deus preparou uma terra para o seu povo, um novo Jardim do Éden, e está colocando seu povo nessa habitação por meio da divisão das águas.

Queda

Gênesis 3.1-7 é a descrição da Queda da humanidade pelo pecado. A derrocada da humanidade é um processo complexo e envolve uma combinação de fatores: a tentação e a mentira da serpente, a resposta distorcida da mulher, a vontade humana de desobedecer e o apelo da árvore aos sentidos físicos dos primeiros seres humanos. Primeiro, a serpente (ou seja, o próprio Diabo ou Satanás; cf. Ap 20.2) é descrita como “sagaz”, uma palavra que reflete sua falsidade e malícia (Gn 3.1). Isso logo fica evidente quando a serpente aborda a mulher no jardim e lhe pergunta astutamente acerca dos mandamentos de Deus. Segundo, quando a mulher responde à serpente, mostra sua ignorância a respeito dos mandamentos de Deus. O mandamento do Senhor ao homem foi claro e direto em Gênesis 2.16-17: os seres humanos podiam comer livremente de todas as árvores do jardim, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Se comessem daquela árvore, eles certamente morreriam. Terceiro,

a mulher responde distorcendo a palavra que Deus tinha revelado. Em sua resposta à serpente (3.2-3), ela exagera a proibição (“nem tocareis nele” [no fruto]), minimiza os privilégios (“podemos comer”, em vez de “comerás livremente”) e minimiza a pena (“para que não morrais”, em vez de “certamente morrerás”). Quarto, a serpente se aproveita da ignorância quanto à palavra de Deus e pronuncia uma mentira: “é certo que não morrereis” (3.4; cf. Jo 8.44). E, por fim, como a proibição é descartada, o apelo prático e estético da árvore atrai Eva. Os dois primeiros seres humanos, então, partilham do fruto que Deus lhes havia proibido.

A desobediência do homem ao mandamento de Deus tem consequências de longo alcance, como demonstra claramente o restante do capítulo 3. Os seres humanos são, antes de tudo, separados de Deus em razão do seu pecado. Eles passam a ter medo, em vez de comunhão com ele; assim, são afastados de Deus. Depois, descobrem que estão nus e se cobrem (3.7). Eles têm vergonha em lugar de integridade; assim, são afastados um do outro. Eles são retirados do jardim; assim, são afastados dele (3.17-19). Por fim, são afastados da vida eterna (3.22).

A Queda também é um Leitmotif que reverbera ao longo das Escrituras. Em particular, ela geralmente prefigura a história da nação de Israel. Deus chamou um povo e o libertou da terra do Egito através do Mar Vermelho e, então, os trouxe para a terra de Canaã, ocasião na qual dividiu o Rio Jordão. Como já vimos, esses dois episódios são considerados eventos de recriação baseados em Gênesis 1. A terra que é dada ao seu povo é uma “uma terra boa e ampla, terra que mana leite e mel” (Êx 3.8), um autêntico Jardim do Éden (Gn 13.10; Is 51.3; Ez 36.35; Jl 2.3). Se Israel mantiver a palavra do Senhor, será abençoado por ele e permanecerá na Terra Prometida (Dt 28.1-14); mas, se desobedecer, Deus o expulsará da terra (Dt 4.26-27). No desfecho final, Israel foi expulso da Terra Prometida em razão de sua desobediência profunda e repetida à palavra de Deus.

Redenção Gênesis 3.14-19 é uma profecia dita diretamente pelo Senhor, e, no geral, ela esclarece a história vindoura da humanidade. Deus anuncia uma ordem pós-Queda para o universo que encontra sua essência no versículo 15, onde Deus proclama que “[porá] inimizade entre ti e a mulher”. O substantivo “inimizade” é o tópico principal do versículo, uma vez que aparece como a primeira palavra no texto hebraico.

O termo significa simplesmente “ser inimigo de”. Como substantivo, aparece cinco vezes no Antigo Testamento e, em cada ocasião, denota uma intenção hostil, a ponto de redundar em assassinato (cf. Nm 35.21-22; Ez 25.15; 35.5). A primeira parte do conflito se dá entre a serpente (“ti”) e a mulher — essa discórdia, evidentemente, começou antes no capítulo. Na sequência, um segundo estágio do conflito é definido: “entre a tua descendência e o seu descendente” (Gn 3.15). O termo hebraico para “descendente” é normalmente utilizado em referência a linhagem, descendência ou semente. A tradução grega do Antigo Testamento (chamada de Septuaginta) normalmente traduz essa palavra como “esperma”, que reflete a ideia de posteridade. Aqui somos apresentados ao conceito da teologia das duas sementes, na qual o tema do conflito pode ser identificado ao longo de toda a história da humanidade, até o fim dos tempos (Ap 12.13-17).

O conflito alcançará seu clímax em uma batalha entre os dois indivíduos: a serpente (“tu”) e outra figura (“este”). Conclui-se, corretamente, que esta última figura é o Messias. O escritor menciona o “este” primeiro na linha talvez para demonstrar sua primazia e grandeza no confronto. Na batalha, o indivíduo referido pelo pronome “este” desfere um golpe na cabeça da serpente, uma ferida mortal, enquanto recebe apenas um golpe no seu calcanhar, certamente não fatal. Assim, Deus promete nesse versículo que enviará um Redentor para esmagar o inimigo.45 Os leitores podem entender o restante das Escrituras como um desdobramento da profecia de Gênesis 3.15. A Redenção é prometida nesse versículo, e a Bíblia traça o desenvolvimento desse tema da Redenção até sua conclusão.

A estrutura teológica de Gênesis 1–3 como Criação, Queda e Redenção é espelhada na conclusão escatológica da Bíblia. O livro de Apocalipse inverte a ordem da sequência. As seções iniciais da visão de João se concentram na obra redentora do Messias (e.g., Ap 5.5-6; 7.9-10). Isso é seguido pelo juízo e derrota de Satanás (e.g., 45 Certamente nem todos concordam com a tese de que esse versículo é messiânico. Alguns argumentam que a palavra “este”, na verdade, se refere ao descendente citado anteriormente no versículo, de forma que poderia facilmente se referir a Israel, e não ao Messias. Veja Claus Westermann, Genesis 1-11: A Commentary (Mineápolis: Augsburg, 1984), p. 355; von Rad, Genesis, p. 90; e Martin H. Wouldstra, “Recent Translations of Genesis 3.15”, CTJ 6, nº 2 (1971): 194-203. Foram publicadas outras obras importantes que dão um peso grande à interpretação messiânica. Veja T. Desmond Alexander, “Messianic Ideology in the Book of Genesis”, em The Lord’s Anointed: Interpretation of Old Testament Messianic Texts, ed. Philip E. Satterthwaite, Richard S. Hess e Gordon J. Wenham (Carlisle: Paternoster, 1995), p. 19-39, e C. John Collins, “A Syntactical Note (Genesis 3.15): Is the Woman’s Seed Singular or Plural?”, TynBul 48, nº 1 (1997): 139-48.

Ap 12.13-17; 20.1-6) e sua queda no lado de fogo e enxofre (Ap 20.7-10). Os últimos capítulos de Apocalipse descrevem novos céus e uma nova terra, uma ordem recriada baseada no Jardim do Éden de Gênesis 1–2.46 Inclusa nesse retrato escatológico está uma exuberante existência semelhante a um jardim, pelo qual o rio da vida corre e no qual está a árvore da vida (Ap 22.1-5). Além disso, enquanto a instituição do casamento humano foi estabelecida na criação original, esse cenário de recriação contém as bodas do Cordeiro com seu povo, que é sua noiva (Ap 19.6-9; 21.9).

46 Para um estudo fascinante dessa ideia e muitos outros ecos, veja G. K. Beale, The Temple and the Church’s Mission: A Biblical Theology of the Dwelling Place of God, NSBT 17 (Downers Grove: InterVarsity Press, 2004).

EXCURSO: GÊNESIS 1–11 E A LITERATURA DO ANTIGO ORIENTE PRÓXIMO

Um dos grandes dilemas na interpretação da literatura pré-abraâmica de Gênesis é seu relacionamento com os escritos das culturas vizinhas do Antigo Oriente Próximo. Os dois grandes eventos desses primeiros capítulos de Gênesis são a criação e o dilúvio. Relatos de histórias similares são encontrados no corpus literário de inúmeras nações, tais como Egito, Babilônia, Assíria e Ugarite. De forma simplificada, a questão é que muitos desses contos pagãos têm inúmeros paralelos com as narrativas bíblicas, alguns bem detalhados. Não há dúvida de que existe uma relação entre os escritos de Gênesis e os das culturas vizinhas, mas a questão é: qual é a natureza e a abrangência dessa relação?47 Como exemplo, vamos considerar o dilúvio relatado em Gênesis 6 – 9 e outros relatos de enchentes oriundos do Antigo Oriente Próximo. 48 Histórias mitológicas de uma grande enchente são encontradas em muitas das várias culturas do Antigo Oriente Próximo. O evento de um dilúvio

47 A literatura recente sobre essa questão inclui Peter Enns, Inspiration and Incarnation: Evangelicals and the Problem of the Old Testament (Grand Rapids: Baker, 2005); Jeffrey J. Niehaus, Ancient Near Eastern Themes in Biblical Theology (Grand Rapids: Kregel, 2008); e John N. Oswalt, The Bible among the Myths: Unique Revelation or Just Ancient Literature? (Grand Rapids: Zondervan, 2009).

48 Para uma análise mais detalhada, veja John D. Currid, Against the Gods: The Polemical Theology of the Old Testament (Wheaton: Crossway, 2013), p. 47-63.

massivo é tão bem conhecido que, em algumas culturas, como a da cidade de Ugarite, o relato da enchente se tornou um paradigma para textos escolares e copistas. Além disso, histórias de enchente não são relegadas a um período particular, mas aparecem em uma variedade de culturas entre o primeiro e o terceiro milênio a.C. A referência mais antiga a uma grande enchente talvez seja A Lista de Reis da Suméria , que data do século XXII a.C. 49 Versões dessa enchente foram encontradas na Suméria, Assíria, Babilônia, Ugarite e Egito.

A história da enchente do épico mesopotâmico de Gilgamesh, por exemplo, é, em alguns aspectos, quase idêntica à narrativa bíblica.50 Começa com um alerta divino de condenação iminente. O herói da enchente recebe a ordem de construir um barco, o que ele faz. Então, ele enche o barco com sua família e animais. Os deuses enviam chuvas torrenciais que destroem a humanidade. O nível da enchente baixa, e a arca se prende no Monte Nisir. Utnapishtim, o herói, envia pássaros para ver se a terra havia secado. Depois que todos desembarcam da arca, Utnapishtim faz um sacrifício aos deuses, os quais o abençoam. “Não apenas muitos dos detalhes são paralelos (ao relato bíblico), mas a estrutura e fluxo das histórias são os mesmos. Essa semelhança avassaladora não pode ser explicada como resultado de mero acaso ou invenção simultânea.”51 Há uma relação clara entre essas histórias, mas precisamos definir a natureza dessa conexão.

Muitos historiadores bíblicos simplesmente supõem que o relato escriturístico do dilúvio não tem nenhuma diferença fundamental em relação às narrativas míticas pagãs. S. R. Driver comenta: “Não pode haver dúvida de que a verdadeira origem da narrativa bíblica se encontra na história babilônica do dilúvio”.52 De acordo com essa posição, os escritores hebraicos essencialmente

49 Thorkild Jacobsen, The Sumerian King List (Chicago: University of Chicago Press, 1939); e Pritchard, ANET, p. 265-66

50 Veja Alexander Heidel, The Gilgamesh Epic and Old Testament Parallels, 2ª ed. (Chicago: University of Chicago Press, 1949).

51 Currid, Against the Gods, p. 55.

52 Samuel R. Driver, The Book of Genesis, 6ª ed. (Londres: Methuen, 1907), p. 103.

pegaram emprestado de seus vizinhos um mito de dilúvio bem conhecido e, então, “[o] acomodaram ao espírito do monoteísmo judeu”.53 Assim, os autores hebreus se tornaram, nas famosas palavras de um historiador, “culpados de plágio grosseiro”.54

À medida que se leva em conta a relação entre o relato do dilúvio na Bíblia e os relatos das nações vizinhas, é importante reconhecermos que existem grandes diferenças entre eles. E essas distinções não são apenas questão de detalhes; elas existem no nível mais profundo de cosmovisão, teologia e fé. Por exemplo, todas as histórias diluvianas do Antigo Oriente Próximo, exceto a narrativa hebraica, são politeístas. Esses muitos deuses, com frequência, agem humanamente, ou seja, com os mesmos desejos, erros e necessidades que os seres humanos. Há uma notável falta de moralidade entre os deuses — eles, muitas vezes, parecem mesquinhos, egocêntricos e depravados. Ao contrário, o relato bíblico retrata um Deus que controla soberanamente todo o episódio do dilúvio, do início ao fim. Ele é reto e justo.

Bruce Waltke conclui que a “diferença mais radical nos dois relatos é que a Bíblia atribui à história um conceito de aliança”.55 A aliança é um contrato vinculativo e um relacionamento entre Deus e a humanidade, que foi iniciado e é administrado por ele. A aliança destaca o relacionamento pessoal de Deus com seu povo e seu compromisso com ele (Gn 9.8-17).

Ainda assim, como se explicam os muitos paralelos que existem entre o relato bíblico do dilúvio e os mitos diluvianos do Antigo Oriente Próximo?

Uma possibilidade é que a tradição bíblica não depende diretamente dos outros relatos. Talvez eles sejam versões independentes de uma história e tradição muito mais antiga. Talvez sejam duas tradições separadas que surgem de uma enchente real e histórica. Escrevi em outro texto:

53 Driver, The Book of Genesis, p. 107.

54 Veja Friedrich Delitzsch, Babel and Bible: Two Lectures Delivered before the Members of the Deutsche Orient-Gesellschaft in the Presence of the German Emperor, Crown Theological Library 1 (Nova York: Putnam, 1903).

55 Waltke, Old Testament Theology, p. 291.

Se as histórias bíblicas são verdadeiras, seria surpreendente não encontrarmos nenhuma referência a essas verdades na literatura extrabíblica. E, de fato, no mito do Antigo Oriente Próximo, vemos algumas sementes de verdade histórica. Entretanto, autores pagãos vulgarizaram ou corromperam essas verdades — eles distorceram o fato, revestindo-o com politeísmo, magia, violência e paganismo. O fato se tornou mito. Vendo desse ângulo, as referências comuns parecem apoiar, em vez de negar, a historicidade do relato bíblico.56

Outra possibilidade distinta é que os escritores hebreus, bem cientes e familiarizados com os mitos diluvianos pagãos, escreveram para questionar e impugnar essas outras histórias. Em outras palavras, eles usaram, consciente e subversivamente, as polêmicas com aqueles outros relatos para insultá-los e mostrar que se trata de fraudes. Polêmicas desse tipo servem para enaltecer o Senhor como o único Deus verdadeiro e para expor os deuses pagãos como meros charlatães e impostores.

56 John D. Currid, Ancient Egypt and the Old Testament (Grand Rapids: Baker, 1997), p. 32.

Gênesis 12–50 e a história do período patriarcal

Em Gênesis 9–11, o autor bíblico enfatiza a iniquidade da humanidade, demonstrando que ela age da mesma forma como procedia antes do dilúvio. A linhagem de Cam está em grande rebelião contra Deus, e, em Babel, os seres humanos desobedecem aos mandamentos de Deus e tentam se estabelecer como os únicos governantes da terra. Esse é o princípio do humanismo. O Senhor, entretanto, começa a preparar uma nova nação para levar sua palavra à humanidade e, com esse propósito em vista, escolhe Abraão para ser o pai de sua descendência escolhida.

Muitos historiadores bíblicos colocam o período patriarcal na primeira metade do segundo milênio a.C.57 Contudo, certamente nem todos os estudiosos concordam com essa cronologia. Por exemplo, Gosta Ahlstrom comenta:

57 Veja, por exemplo, Kenneth A. Kitchen, On the Reliability of the Old Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 2003), p. 313-72.

Fica bem claro que o narrador das histórias de Gênesis não tinha um conhecimento acurado da pré-história dos israelitas. Isso também não era necessário, visto que seu propósito não era escrever história. O ambiente e os costumes sociais que encontramos nesses textos, assim como os muitos povos com os quais os patriarcas tiveram contato, refletem um período bem posterior.58

Essa afirmação reflete uma hermenêutica dominante de desconfiança que existe entre muitos estudiosos. Benjamin Mazar, por exemplo, acusa o academicismo contemporâneo de ir longe demais na tentativa de encontrar “corroboração antiga dos relatos patriarcais”.59 Porém, a realidade é, no fim das contas, que as narrativas dos patriarcas se encaixam melhor no ambiente cultural da Idade do Bronze Médio II (2000–1550 a.C.) na antiga Palestina.60 O excurso sobre “Arqueologia e Gênesis” explora um pouco das áreas de investigação que dão suporte a essa cronologia.

58 Gosta W. Ahlstrom, The History of Ancient Palestine (Mineápolis: Fortress, 1993), p. 186. Veja também John Van Seters, In Search of History: Historiography in the Ancient World and the Origins of Biblical History (New Haven: Yale University Press, 1983); e Benjamin Mazar, “The Historical Background of the Book of Genesis”, JNES 28, nº 2 (1969): 73-83.

59 Mazar, “Historical Background”, p. 76.

60 Para uma tabela das idades da antiguidade, veja John D. Currid, Doing Archaeology in the Land of the Bible (Grand Rapids: Baker, 1999), p. 19.

EXCURSO: ARQUEOLOGIA E GÊNESIS

As cidades mencionadas nas histórias patriarcais de Gênesis, tais como Babel, Hebrom, Jerusalém e Siquém, foram ocupadas durante a Idade do Bronze Médio II. Hebrom, por exemplo, está localizada em Tel Hebrom, aproximadamente 30 km ao sul de Jerusalém. Durante a Idade do Bronze Médio II, comportou um grande assentamento que abrangia cerca de 25.000 m2. A cidade era fortificada e continha alguns grandes complexos de edificações. Um texto cuneiforme desse período descoberto em Hebrom indica que a cidade era um grande centro administrativo e talvez a capital da região.

Siquém foi fundada no início da Idade do Bronze Médio IIA (2000–1800 a.C.). O local continha um grande agrupamento urbano com uma

construção monumental que alguns identificaram como um templo. Entretanto, provavelmente não se tratava de uma estrutura religiosa, mas da residência ou palácio do chefe local. Como a maioria dos assentamentos durante esse período, Siquém não tinha muros nem fortificações. Contudo, na Idade do Bronze Médio IIB–C (1800–1550 a.C.), Siquém começou a se fortificar. Escavações descobriram um centro urbano próspero na época.61

Todos os locais listados acima estão localizados no que é chamado a “coluna” da região montanhosa central de Canaã, que vai de Siquém, ao norte, até Hebrom, ao sul. Os patriarcas usavam normalmente essa rota (Gn 12.6; 13.18; 35.27).

A descrição do modo de vida dos patriarcas em Gênesis 12–50 é congruente com o que sabemos sobre a Idade do Bronze Médio II. Esse foi um período de urbanização, mas também de grandes migrações de pessoas por todo o Antigo Oriente Próximo. Os patriarcas eram, antes de tudo, pastoralistas. “O pastoralismo é uma categoria de subsistência, ou seja, define o meio de sustento. Eles eram guardiões de manadas e rebanhos. Eram também seminômades. Não eram sedentários, mas faziam movimentações sazonais com seus rebanhos e manadas para encontrar água adequada, pastagem suficiente e boas condições climáticas... Eles não viviam em cidades, mas normalmente acampavam do lado de fora delas.”62

Embora os patriarcas Abraão, Isaque e Jacó nunca tenham sido mencionados em quaisquer textos extrabíblicos, suas histórias refletem com precisão a época da Idade do Bronze Médio II.63 Assim testificam milhares de tabuletas

61 Para ter acesso a um bom estudo das obras que temos desse período, veja Amihai Mazar, Archaeology of the Land of the Bible, 10,000-586 B.C.E. (Nova York: Doubleday, 1990), p. 174-231.

62 John D. Currid e David P. Barrett, Crossway ESV Bible Atlas (Wheaton: Crossway, 2010), p. 69.

63 Alguns tentaram identificar o nome Abrão no relevo triunfal de Sisaque I em Karnak. Os anéis 71-72 parecem trazer escrito “Forte de Abrão” como o nome de um lugar. A que “Abrão” se refere, entretanto, é incerto. Ligá-lo ao patriarca Abraão é um exagero. A identificação do lugar com o patriarca tem uma longa história, e ela aparece primeiro em Wilhelm Spiegelberg, Aegyptologische Randglossen zum Alten Testament (Estrasburgo: Schlessier und Schweikhardt, 1904), p. 14.

descobertas no sítio de Mari, na Mesopotâmia ocidental, que datam da primeira metade do século XVIII a.C., durante a Idade do Bronze Médio II. Os arquivos de Mari incluem principalmente textos econômicos, legais e administrativos, mas também refletem os costumes culturais, políticos e sociológicos do período. O contexto descrito pelas tabuletas de Mari tem muitos paralelos com as narrativas dos patriarcas encontradas em Gênesis.

Poderíamos citar muitos exemplos. Tanto Mari quanto Gênesis retratam uma sociedade dimórfica, na qual existe uma dicotomia entre chefes tribais, como Abraão, e poderosos centros urbanos ou cidades-estados. As duas literaturas exibem essa dicotomia nos costumes de trocas econômicas entre os habitantes das cidades e os nômades, o conceito de “forasteiros residentes” e a prática comum dos nômades de acampar nas vizinhanças de grandes cidades.

A estrutura social é organizada em um sistema de três níveis: família estendida, clã e tribo. Esses textos também têm outros costumes bem semelhantes, tais como o recenseamento, as leis de herança, juramentos de aliança e a importância das genealogias. Além disso, as literaturas das duas culturas mencionam até mesmo muitos dos mesmos nomes pessoais e de lugares, como as cidades de Harã e Naor.

Arqueólogos fizeram outra importante descoberta de arquivos em Nuzi — um sítio localizado perto do Rio Tigre, na Mesopotâmia —, que teve seu auge na metade do segundo milênio a.C. Até o momento, o arquivo contém cerca de cinco mil tabuletas. Esses textos, assim como os documentos de Mari, são dedicados fundamentalmente a questões sociais, econômicas e administrativas. Muitos deles são negócios de rotina e textos legais. Eles, no entanto, lançam uma luz considerável sobre os costumes do período patriarcal em Gênesis. Por exemplo, o corpus de Nuzi inclui um relato de um homem trocando seus direitos de herança por uma ovelha, da mesma forma como Esaú vendeu seu direito de primogenitura a Jacó em Gênesis 25.29-34. Além disso, os textos de Nuzi consideram que a bênção é obrigatória e irrevogável, e isso ajuda a explicar por que Isaque não pôde revogar a bênção que dera a Jacó, mesmo que tenha sido dada sob falsos pretextos (Gn 27.30-33). Era também

costume em Nuzi que um casal sem filhos homens adotasse um filho como herdeiro, de forma que, em troca da herança, o filho adotado cuidaria do casal em sua velhice e se certificaria de que eles receberiam um sepultamento apropriado. Se um filho nascesse do casal depois de realizada a adoção, grande parte da herança seria revertida ao filho de sangue. Essas práticas, é claro, são resquícios da adoção de Eliézer de Damasco como herdeiro da casa de Abraão, em razão da esterilidade de Sara (Gn 15.2-5).

De acordo com as leis de Nuzi, os ídolos do lar (terafins) tinham um papel vital no processo de herança, pois quem possuísse essas imagens era considerado o herdeiro legal. Não surpreende, então, que Labão tenha ficado em pânico com a perda de seus ídolos do lar quando Jacó fugiu de junto dele para Canaã (Gn 31.33-35). Labão, na realidade, estava mais preocupado com o paradeiro de seus ídolos do que com seus parentes e rebanhos.

Podemos considerar outros textos também. Os Textos de Execração do Egito, começando no reinado de Sesóstris III (1878–1841 a.C.), refletem um cenário em Canaã muito parecido com o que lemos nas histórias patriarcais de Gênesis. Isso está em concordância com a Idade do Bronze Médio II em Canaã.

José no Egito

A Idade do Bronze Médio II foi um momento de migração por todo o Antigo Oriente Próximo (veja o excurso “Arqueologia e Gênesis” acima). Os egípcios estavam tão preocupados com isso que construíram um grande canal que corria de Pelúsio, no Mar Mediterrâneo, até o Lago Timsah, logo a leste do Wadi Tumilat.64 O canal tinha 20 metros de largura no fundo e 70 metros de largura no nível da superfície. Os egípcios utilizavam o canal, em certa medida, para a irrigação, mas, fundamentalmente, para defesa e contenção, ou seja, para manter os asiáticos fora e os escravos dentro. Além disso, o faraó Amenemés I (1991–1962 a.C.) ordenou que fosse construída uma série de fortalezas 64 Amihai Sneh, Tuvia Weissbrod e Itamar Perath, “Evidence for an Ancient Egyptian Frontier Canal: The Remnants of an Artificial Waterway Discovered in the Northeastern Nile Delta May Have Formed Part of the Barrier Called ‘Shur of Egypt’ in Ancient Texts”, American Scientist 63, nº 5 (1975): 542-48; e William H. Shea, “A Date for the Recently Discovered Eastern Canal of Egypt”, BASOR 226 (1977): 31-38.

egípcias na fronteira oriental do Egito para conter a migração asiática. A migração asiática para o Egito foi o contexto da história de José em Gênesis 37–50.

A narrativa de José se encaixa bem no ambiente cultural egípcio do início à metade do segundo milênio a.C. No começo da história, José foi trazido ao Egito e ali vendido pelos midianitas (Gn 37.28). O Egito teve uma grande casta de escravos estrangeiros em qualquer período de sua história antiga, e muitos chegaram por meio de um próspero comércio de escravos. Na verdade, vieram tantos escravos da Ásia (i.e., Canaã, Hati e Mesopotâmia) que a palavra egípcia para “asiático” se tornou sinônimo de “escravo”. José foi vendido por 20 moedas de prata, um preço comum para um escravo do sexo masculino entre cinco e 20 anos de idade durante a primeira metade do segundo milênio a.C.65

Depois de José ter sido falsamente acusado de molestar a esposa de Potifar, foi colocado na prisão. A prisão era uma punição desconhecida no código de leis do Antigo Oriente Próximo, inclusive na legislação bíblica. Entretanto, ela é bem atestada em documentos egípcios, e, portanto, a história ecoa corretamente a cultura do Egito antigo. O enredo do episódio que diz respeito à esposa de Potifar não é exclusivo na literatura do Antigo Oriente Próximo. Esse tema da “sedutora rejeitada”, na verdade, ocorre no Egito antigo em um texto chamado “O Conto dos Dois Irmãos”.66 Um irmão acusa o outro de forçar uma relação sexual com sua esposa. A esposa, na realidade, é a enganadora, e ela joga a culpa da situação em seu cunhado, que, como José, recusou seus avanços. A história termina de forma diferente, entretanto, com o marido matando seu irmão e, depois de descobrir a verdade, sua esposa.67

Após muito tempo de prisão, José é liberto e elevado a uma alta posição no governo do Egito em razão de sua habilidade dada por Deus de interpretar sonhos e, de maneira mais importante, os sonhos de Faraó. Ao interpretar os sonhos de Faraó, José profetizou um tempo vindouro de grande fome no Egito, o que permitiu que os egípcios se preparassem para o desastre. Como observei em outro texto: “Pelo menos desde o Império Médio, os egípcios acreditavam que os sonhos eram um meio usado pelos deuses para revelar o futuro aos humanos. Na verdade, os egípcios

65 Esse é o mesmo preço citado no Código de Hamurábi, leis 116, 214 e 252. Ele foi escrito no século XVIII a.C.

66 John A. Wilson, “The Story of the Two Brothers”, em Pritchard, ANET, p. 23-25.

67 Veja Currid, Against the Gods, p. 65-73.

colecionavam escritos dos presságios que se davam por meio de sonhos. A estrutura e o conteúdo desses presságios são bem similares aos relatos de sonhos na história de José. É tentador pensar que José estava realmente derrotando os egípcios em seu próprio território.”68

Faraó, então, coloca José “sobre toda a terra do Egito” (Gn 41.41). Ele era provavelmente o vizir do Egito, cujos deveres são esclarecidos em um documento da Tumba de Rekhmire, da metade do segundo milênio a.C. O vizir era o “grande mordomo de todo Egito”, e todas as atividades da nação estavam sob seu escopo. Rekhmire foi vizir sob Tutmés III e serviu como supervisor do tesouro, chefe de justiça, chefe de polícia, ministro da guerra, secretário de agricultura, secretário do interior, além de ter acumulado outras posições. Depois de Faraó, o vizir era, com frequência, o líder mais poderoso do Egito.

O autor de Gênesis dedica muito tempo à análise da vida de José. Isso pode ser adequadamente descrito como um conto, uma “curta história longa” ou uma “longa história curta”. Por que o escritor dá tanto espaço (Gênesis 37, 39–50) para essa história? Seu propósito maior parece ser demonstrar como todo Israel acabou por parar na terra do Egito. Isso, então, lança o fundamento para o maior ato redentor de Deus no Antigo Testamento: a libertação de Israel da terra da escuridão e a condução do povo para a Terra Prometida.

Com base em tudo o que foi dito, deve ficar claro que a ampla maioria do conteúdo da narrativa patriarcal se enquadra na primeira metade do segundo milênio a.C.

Os detalhes dessas narrativas que talvez reflitam uma data posterior — como a menção aos filisteus (e.g., Gn 21.32) — são, no esquema maior das coisas, muito poucos em número e apenas representam uma atualização do conteúdo por parte do autor bíblico.69

A centralidade da aliança

O relacionamento que Deus tem com seu povo no livro de Gênesis é definido por um conceito de aliança ou tratado. No Antigo Oriente Próximo, pessoas, líderes e nações

68 Currid e Barrett, Crossway ESV Bible Atlas, p. 75. A coleção mais importante de presságios de sonhos do Egito é o Papiro Chester Beatty III, que pode datar do século XIX a.C. Veja Alan H. Gardiner, Hieratic Papyri in the British Museum, 3ª série, Chester Beatty Gift (Londres: British Museum, 1935).

69 Para ter acesso a um desenvolvimento adicional dessa ideia, veja Kitchen, On the Reliability of the Old Testament, p. 368-72.

formalizavam relacionamentos usando um juramento que seguia uma estrutura particular e que, normalmente, era escrito.70 No Antigo Oriente Próximo, empregavam-se dois tipos de formas pactuais: as que governavam relacionamentos entre partes iguais e aquelas que especificavam relacionamentos entre não iguais. O segundo tipo de aliança se dava entre um soberano ou suserano (a parte superior) e um vassalo (a parte inferior). Muitos dos tratados existentes eram entre um rei e seus súditos. Bem mais da metade dos tratados entre suseranos e vassalos descobertos pela arqueologia provém do Império Hitita do segundo milênio a.C., enquanto outros datam a partir do primeiro milênio a.C., incluindo os hititas, assírios, egípcios e outros.

Em Gênesis, a forma de aliança suserano/vassalo determina o relacionamento entre Deus e seu povo. Dentro dessa estrutura, o suserano, como parte mais poderosa, assume a maior parte da responsabilidade pelas cláusulas do tratado. Embora o vassalo também tenha certas obrigações, ele, em razão de suas capacidades e recursos limitados, não é responsabilizado na mesma extensão e grau que o suserano. O suserano ou soberano, em virtude de sua posição, é também quem inicia o pacto. O juramento entre as duas partes é, predominantemente, de vida ou morte. Em razão de todos esses elementos comuns, esse tipo de aliança foi adequadamente definido como “um laço de sangue soberanamente administrado”.71

A aliança é um pacto que Deus faz com seu povo ao longo da história segundo o qual ele será o Deus deles, ao passo que eles serão seu povo (chamado de “Princípio Emanuel”, ou seja, a promessa de que “Deus [estaria] conosco”). A Igreja hoje está em aliança com Deus, pois Jesus assegurou uma Nova Aliança com seu povo por meio de sua vida, morte e ressurreição (Mt 26.28). A Nova Aliança, entretanto, é a manifestação final do conceito de aliança nas Escrituras. Esse conceito começa com a aliança que estava em operação no Jardim do Éden, antes da Queda do homem no pecado, a qual chamamos de pacto de obras (Os 6.7). Depois da Queda, no livro de Gênesis, Deus renova e restabelece a aliança (o pacto da graça) com Noé, com Abraão,

70 Para para ter acesso a uma introdução a esse estudo, veja Meredith G. Kline, Treaty of the Great King: The Covenant Structure of Deuteronomy: Studies and Commentary (Grand Rapids: Eerdmans, 1963); Meredith G. Kline, The Structure of Biblical Authority (Grand Rapids: Eerdmans, 1972); Kenneth A. Kitchen, Ancient Orient and Old Testament (Chicago: InterVarsity Press, 1966); Dennis J. McCarthy, Treaty and Covenant: A Study in Form in the Ancient Oriental Documents and in the Old Testament (Roma: Pontifical Biblical Institute, 1978); George E. Mendenhall, “Covenant Forms in Israelite Tradition”, BA 17, nº 3 (1954): 50-76.

71 O. Palmer Robertson, The Christ of the Covenants (Grand Rapids: Baker, 1980), p. 4.

com Isaque e com Jacó. Mais tarde na história bíblica, o Senhor renova a aliança com Moisés, com Josué e com Davi como os mediadores da aliança entre Israel e Deus. É importante que a Igreja moderna entenda que a aliança tem origem em Gênesis, desenvolve-se no Antigo Testamento e encontra seu cumprimento final na vinda do seu Mediador, Jesus Cristo.72 Dessa forma, a Igreja pode ver que as mesmas promessas que Deus fez a Abraão e aos outros patriarcas são as promessas que ele fez a seu povo hoje.

A aliança com Noé

Em Gênesis 6.18, o Senhor diz a Noé: “Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança”. A graça de Deus vem até Noé na forma de aliança. Essa é a primeira vez que a palavra “aliança” (תיִרְּׅב) é usada na Bíblia, embora, como já mencionamos, esse relacionamento baseado na aliança entre Deus e a humanidade já estava em ação no jardim. Na verdade, a linguagem de aliança com Noé reflete de perto aquela da aliança que existiu no Éden. Devemos observar que essa aliança com Noé foi iniciada e estabelecida por Deus antes do dilúvio cair sobre a terra.

Depois do dilúvio, Deus reafirma a aliança com Noé (Gn 9.8-17). Um elemento comum de qualquer tratado do Antigo Oriente Próximo entre um suserano e um vassalo é que a parte real deveria iniciar e estabelecer o acordo vinculativo.73 Esse é o caso aqui, como Deus diz: “Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência” (9.8). A aliança estabelecida é contínua, como reflete o versículo 11, onde o verbo “estabelecer” (םוּק) significa a manutenção e renovação da atividade inicial.74 Assim como muitas alianças do Antigo Oriente Próximo, o suserano fornece um sinal físico para o vassalo que simboliza a realidade do relacionamento pactual. Sinais tais como trocar as sandálias (cf. Rt 4.7), partir animais ao meio (Gn 15.9-10) e assinar garantias são bem conhecidos da literatura. O sinal aqui é um “arco nas nuvens” (cf. Gn 9.13), o que, provavelmente, é uma referência ao arco-íris.

O termo hebraico para “arco” normalmente se refere a uma arma de uso comum no Antigo Oriente Próximo. As mitologias pagãs empregavam, com frequência, o arco

72 William J. Dumbrell, Covenant and Creation: An Old Testament Covenant Theology (Exeter: Paternoster, 1984).

73 William J. Dumbrell, “The Covenant with Noah”, RTR 38, nº 1 (1979): 1-9. 74 Speiser, Genesis, p. 58-9.

para representar os deuses entrando em batalha contra outros deuses ou humanos. Na lenda mesopotâmica da criação, depois que Marduque destrói Tiamate e os deuses do caos usando um arco, os deuses penduram seu arco nos céus, e ele se torna uma constelação.75 Podemos ver um paralelo aqui. Na história de Noé, Deus pendura seu arco nos céus talvez para indicar o fim da hostilidade, o início da paz e a renovação da aliança com a humanidade.76

A aliança com Abraão

Em Gênesis 15, depois que Abraão se estabeleceu na terra de Canaã, o Senhor lhe aparece em uma visão para estabelecer uma aliança com ele. A inauguração formal do tratado começa com Deus fazendo uma declaração de autoidentificação: “Eu sou o Senhor” (15.7). Em muitos documentos de aliança do segundo milênio a.C., os reis iniciavam os tratados da mesma forma, isto é, com uma afirmação de autoidentificação.77 Deus, então, recapitula brevemente a história do seu relacionamento com Abraão e lhe promete a terra de Canaã como posse. Segue-se uma cerimônia de aliança na qual o Senhor ordena que Abraão junte alguns animais, parta-os ao meio e os coloque em duas fileiras separadas, mas paralelas. Abraão organiza um típico ritual do Antigo Oriente Próximo para a ratificação da aliança (cf. Jr 34.15-20).

O propósito do ritual é invocar uma maldição. As partes estão, na verdade, convidando Deus para cortá-los em dois, como os animais, se não cumprirem as suas promessas feitas na aliança. No Antigo Oriente Próximo, “animais são um substituto óbvio para os seres humanos em maldições cerimoniais”.78 Destarte, o destino dos animais aponta para o que recairia sobre os seres humanos caso violassem a aliança.

No meio da cerimônia, Deus faz uma promessa a respeito do futuro da posteridade de Abraão. Eles serão escravizados por 400 anos, serão resgatados e, por fim, obterão a posse da terra de Canaã. Essa profecia essencialmente estabelece a nação de Israel, dando-lhe identidade nacional no contexto do tratado de aliança.

75 Pritchard, ANET, p. 69.

76 Bernard F. Batto, “The Covenant of Peace: A Neglected Ancient Near Eastern Motif”, CBQ 49, nº 2 (1987): 187-211.

77 Para um exemplo, veja Pritchard, ANET, p. 203

78 George E. Mendenhall, “Puppy and Lettuce in Northwest-Semitic Covenant Making”, BASOR 133 (1954): 29.

Por fim, nas alianças do Antigo Oriente Próximo, à semelhança da que encontramos em Gênesis, as duas partes da aliança deviam caminhar por entre as partes cortadas dos animais. Testemunhamos aqui, entretanto, que apenas Deus, em uma teofania de fogo (ou manifestação visível de Deus), passa pelo meio dos pedaços (Gn 15.17). Ele está assumindo total responsabilidade pelas promessas de bênçãos e maldições da aliança. Entretanto, “não é correto dizer que Gênesis 15.18 contém apenas uma promessa, mas nenhuma obrigação (para Abrão). As obrigações foram construídas na formação da aliança, e, sem obrigação de lealdade, não haveria promessa”. 79 Assim, exige-se que Abraão seja um guardião leal da aliança, e Deus, ao passar sozinho no meio dos animais, garante que Abraão será cumpridor da aliança.

Enquanto Gênesis 15 descreve a inauguração da aliança abraâmica, Gênesis 17 declara a instituição do selo da aliança, aquele que Abraão e sua posteridade levariam na própria carne. Esse capítulo também acrescenta detalhes ao pacto anterior: por exemplo, destaca, em um nível maior, a natureza eterna e vinculativa da aliança e da posse da terra. Ele também indica as obrigações de Abraão no tratado — mais especificamente, todos os membros masculinos de sua casa deveriam ser circuncidados.

A circuncisão não é uma invenção hebraica, tampouco foi usada exclusivamente pelo povo de Deus. Por exemplo, os egípcios usavam a circuncisão desde suas eras mais antigas; várias cenas das tumbas do Antigo Reinado (cerca de 2575–2134 a.C.)

retratam a prática. No Egito, ela parece ter sido um sinal de pureza ritual e era uma exigência “para homens que fossem servir nos templos”.80 A singularidade da circuncisão para os israelitas é o fato de que ela simboliza a inclusão na comunidade da aliança estabelecida pelo Senhor.

A aliança com Isaque

Depois da morte de Abraão, o Senhor aparece a Isaque em uma teofania (Gn 26.16), assim como fizera com seu pai. Nessa pequena seção, as promessas da aliança que Deus tinha feito a Abraão são agora repetidas para Isaque. Ele recebe a promessa de uma posteridade inumerável (cf. 15.5; 22.17), tanto quanto as estrelas

79 Arvid S. Kapelrud, “The Covenant as Agreement”, SJOT 1 (1988): 33.

80 Jack M. Sasson, ed., Civilizations of the Ancient Near East (Nova York: Scribner, 1995), 1.378.

do céu; a promessa de uma terra por herança (cf. 15.7, 18-21); e a promessa de que as nações seriam abençoadas por meio dele (cf. 12.3; 18.18). No centro dessa declaração pactual, está o Princípio Emanuel, ou seja, a promessa de Deus de que “serei contigo” (26.3; cf. 17.8). Esse episódio, portanto, constitui uma renovação pactual — a aliança que Deus fez com Abraão é agora aplicada à semente prometida de Abraão, isto é, o seu filho Isaque.

A aliança com Jacó

Depois que Jacó foge de Esaú para salvar a vida e vai para a terra de Padã-Arã, o Senhor aparece a ele no caminho, em um sonho teofânico. O texto descreve a imagem que ele vê assim: “e eis era posta na terra uma escada cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela. E eis que o Senhor estava em cima dela...” (Gn 28.12-13a, ARC). A palavra hebraica para “escada” (םָלָֻּסֻ) aparece apenas aqui no Antigo Testamento e deriva do substantivo הָללסֻ, que significa “pilha”.81 Talvez seja relacionada à palavra acádica simmiltu, que significa “degraus”. A imagem do sonho faz parte de uma série de degraus que conduzem a uma entrada — ou portão — que dava acesso à cidade celestial.

Essa teofania em um sonho confirma Jacó como o verdadeiro herdeiro de Abraão e o beneficiário da aliança. Deus fala com Jacó e lhe faz promessas bem similares às feitas a Abraão em Gênesis 13.14-17. De fato, grande parte da fraseologia das duas conversas é exatamente a mesma.82 Deus promete que tornará os descendentes de Jacó numerosos como o pó da terra, garante que lhes deu a terra de Canaã, que todas as famílias da terra serão abençoadas por meio de Jacó e seus descendentes, bem como que está com Jacó e sua descendência (28.13-15). Jacó chama o lugar de Betel, que significa “casa de Deus” (28.19).

Mais adiante na perícope referente a Jacó, o Senhor lhe ordena que volte para Betel, onde, em outra teofania, ele se revela ao patriarca (Gn 35.9). Mais uma vez, ele fala com Jacó e diz essencialmente o mesmo que falara a Abraão em Gênesis 17.1-8. A tabela 4 mostra as semelhanças.

81 Francis Brown, Samuel Rolles Driver e Charles Augustus Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament (Oxford: Clarendon, 1906), p. 700.

82 Zeev Weisman, “National Consciousness in the Patriarchal Promises”, JSOT 31 (1985): p. 55-73.

Elemento em Gênesis 35 Paralelo em Gênesis 17

1. Introdução: “Eu sou o Deus Todo-Poderoso” (35.11) 17.1

2. “sê fecundo e multiplica-te” (35.11) 17.2, 6

3. “uma nação e multidão de nações sairão de ti” (35.11) 17.4-6

4. “reis procederão de ti” (35.11) 17.6

5. “a terra” (35.12) 17.8

6. “à tua descendência” (35.12) 17.8

Tabela 4

Como disse em outro texto, a “conclusão que tiramos aqui é que as promessas pactuais a Abraão são renovadas em sua totalidade a Jacó. A mudança de nome de Jacó (Gn 35.10) para Israel significa também que as promessas de Deus estão para acontecer por intermédio da pessoa de Jacó: ele é a semente prometida por meio da qual o povo de Deus deve vir, uma descendência que encontra seu clímax na pessoa do Messias.”83

A realidade é que o conceito de aliança define o relacionamento de Deus com seu povo não apenas no livro de Gênesis, mas ao longo de toda a Bíblia. A natureza reveladora da aliança e suas promessas ao longo do restante da Bíblia é um dos grandes temas teológicos unificadores das Escrituras. Ela destaca verdadeiramente a homogeneidade da mensagem da Bíblia.

EM DIREÇÃO AO NOVO TESTAMENTO

O livro de Gênesis lança os fundamentos para uma compreensão e interpretação adequada de toda a Bíblia. Se a Igreja precisa ter uma boa e completa visão das doutrinas bíblicas básicas que envolvem tópicos como pecado, juízo, salvação, o caráter de Deus, o Messias e inúmeros outros assuntos relevantes e centrais, ela deve começar com o estudo de Gênesis. Muitas das doutrinas são encontradas de forma embrionária em 83 John D. Currid, Genesis, vol. 2, Genesis 25.19-50.26, EP Study Commentary (Darlington: Evangelical Press, 2003), p. 165.

Gênesis e precisam ser identificadas ao longo do restante da Bíblia à medida que se desenvolvem e se desdobram.

Embora essa ideia seja simples, na realidade, ela recebe pouca atenção nos estudos bíblicos hodiernos.84 Por exemplo, quando se lê sobre eclesiologia — e, em particular, sobre presbíteros —, é surpreendente quão pouca atenção os autores prestam ao ofício de presbítero (ancião) no Antigo Testamento. É importante que se trabalhe a protologia quando se consideram ideias e temas bíblicos. Assim, se quisermos discernir o papel adequado do trabalho na vida do crente, deveríamos estudar o mandamento para o trabalho dado por Deus a Adão no Jardim do Éden. Esse mandamento cultural é tão relevante hoje como foi no primeiro ambiente humano.

O Novo Testamento, em sua história, teologia e doutrina, não surge em um vácuo; ele se desenvolve a partir dos ensinamentos do Antigo Testamento. Esse método de interpretação espelha o de Jesus, que, por exemplo, quando perguntado sobre a natureza do casamento, respondeu citando Gênesis 2.

Além de estabelecer os fundamentos para a compreensão do restante da Bíblia, Gênesis também prenuncia o evento central das Escrituras: a vida, morte e ressurreição de Cristo. Já mencionamos a palavra profética dada em Gênesis 3.15, que fala de um descendente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente e resgataria a humanidade. O próprio Novo Testamento, com frequência, se refere ou alude a Gênesis ao explicar os caminhos do Evangelho. Da apresentação dos patriarcas como modelo de fé nas promessas de Deus em Hebreus 11 à conexão explícita que Cristo faz entre a preservação divina de Noé no dilúvio e a preservação do seu povo quando o juízo vier (Mt 24.36-44), Gênesis inclui muitas imagens que prefiguram o Evangelho. Uma das mais significativas é a imagem do pecado de Adão no jardim, o que trouxe morte sobre todas as pessoas. O apóstolo Paulo comenta que Adão era um tipo daquele que haveria de vir (Rm 5.14). Esse segundo Adão, Jesus Cristo, traz vida para seu povo, e não morte. Como Paulo comenta ainda: “Todavia, não é assim o dom gratuito como 84 Considere as seguintes obras importantes de Graeme Goldsworthy: According to Plan: The Unfolding Revelation of God in the Bible (Leicester: InterVarsity Press, 1991); Gospel and Kingdom: A Christian Interpretation of the Old Testament, nova ed. (Carlisle: Paternoster, 1994); e, para uma aplicação dessa metodologia na pregação, Preaching the Whole Bible as Christian Scripture: The Application of Biblical Theology to Expository Preaching (Grand Rapids: Eerdmans, 2000). Sobre pregação a partir do Antigo Testamento, veja também Dale Ralph Davis, The Word Became Fresh: How to Preach from Old Testament Narrative Texts (Fearn: Mentor, 2006).

a ofensa; porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos” (Rm 5.15).

Poderíamos explorar mais desses paralelos, mas a mensagem é clara: Gênesis lança os fundamentos para a Bíblia como um todo, tanto como um prólogo histórico e teológico quanto como uma sombra do Evangelho que seria tornada visível na pessoa e obra de Jesus Cristo.

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