SÉRIE COMENTÁRIOS BÍBLICOS
JOÃO CALVINO
Coríntios
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1Coríntios - Série Comentários Bíblicos João Calvino Título do Original: Calvin’s Commentaries: The First Epistle of Paul the Apostle to the Corinthians Edição baseada na tradução inglesa de T. A. Smail, publicada por Wm. B. Eerdmans Publishing Company, Grand Rapids, MI, USA, 1964, e confrontada com a tradução de John Pringle, Baker Book House, Grand Rapids, MI, USA, 1998. • Copyright © Editora Fiel 2013 Primeira Edição em Português 2013 • Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte. A versão bíblica utilizada nesta obra é a Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil (SBB) •
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Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago Santos Tradução: Rev. Valter Graciano Martins Revisão: Editora Fiel Capa: Edvânio Silva Diagramação: Rubner Durais ISBN: 978-85-8132-169-1
Sumário
Prefácio à edição em português..............................................9 Dedicatória...............................................................................13 Segunda Dedicatória...............................................................17 Análise da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios .........21 Capítulo 1 Versículos 1 a 3..............................................................33 Versículos 4 a 9..............................................................41 Versículos 10 a 13..........................................................48 Versículos 14 a 20..........................................................58 Versículos 21 a 25..........................................................72 Versículos 26 a 31..........................................................78 Capítulo 2 Versículos 1 a 2..............................................................87 Versículos 3 a 5..............................................................89 Versículos 6 a 9..............................................................93 Versículos 10 a 13........................................................102 Versículos 14 a 16........................................................107 Capítulo 3 Versículos 1 a 4............................................................115 Versículos 5 a 9............................................................120 Versículos 10 a 15........................................................128 Versículos 16 a 23........................................................137
Capítulo 4 Versículos 1 a 5............................................................147 Versículos 6 a 8............................................................156 Versículos 9 a 15..........................................................161 Versículos 16 a 21........................................................172 Capítulo 5 Versículos 1 a 5............................................................181 Versículos 6 a 8............................................................189 Versículos 9 a 13..........................................................192 Capítulo 6 Versículos 1 a 8............................................................201 Versículos 9 a 11..........................................................212 Versículos 12 a 20........................................................218 Capítulo 7 Versículos 1 a 2............................................................229 Versículos 3 a 5............................................................233 Versículos 6 a 9............................................................238 Versículos 10 a 17........................................................247 Versículos 18 a 24........................................................256 Versículos 25 a 28........................................................262 Versículos 29 a 35........................................................267 Versículos 36 a 38........................................................276 Versículos 39 a 40........................................................282 Capítulo 8 Versículos 1 a 7............................................................285 Versículos 8 a 13..........................................................296 Capítulo 9 Versículos 1 a 12..........................................................303
Versículos 13 a 22........................................................314 Versículos 23 a 27........................................................326 Capítulo 10 Versículos 1 a 5............................................................335 Versículos 6 a 12..........................................................343 Versículos 13 a 18........................................................354 Versículos 19 a 24........................................................362 Versículos 25 a 33........................................................368 Capítulo 11 Versículos 1 a 16..........................................................375 Versículos 17 a 22........................................................391 Versículos 23 a 29........................................................401 Versículos 30 a 34........................................................421 Capítulo 12 Versículos 1 a 7............................................................429 Versículos 8 a 13..........................................................435 Versículos 14 a 27........................................................442 Versículos 28 a 31........................................................449 Capítulo 13 Versículos 1 a 3............................................................455 Versículos 4 a 8............................................................459 Versículos 9 a 13..........................................................466 Capítulo 14 Versículos 1 a 6............................................................473 Versículos 7 a 17..........................................................479 Versículos 18 a 25........................................................489 Versículos 26 a 33........................................................499 Versículos 34 a 40........................................................508
Capítulo 15 Versículos 1 a 10..........................................................517 Versículos 11 a 19........................................................529 Versículos 20 a 28........................................................537 Versículos 29 a 34........................................................548 Versículos 35 a 50........................................................559 Versículos 51 a 58........................................................571 Capítulo 16 Versículos 1 a 7............................................................583 Versículos 8 a 12..........................................................588 Versículos 13 a 22........................................................592
Prefácio à Edição em Português
As cartas de Paulo à igreja de Corinto formam uma importante parte do cânon no Novo Testamento. Os problemas que surgiram naquela igreja, de ordem doutrinária, prática e litúrgica, deram ensejo ao apóstolo de responder com orientações cujo valor, relevância e aplicação transcendem, em muito, os limites daquela época e lugar, chegando aos nossos dias como a inspirada Palavra de Deus. A semelhança entre a situação da igreja de Corinto e as igrejas evangélicas no Brasil na primeira metade do século XXI é surpreendente. Junto com a vitalidade e o crescimento numérico, ambas compartilham desafios similares: divisões internas, liderança despreparada, falta de disciplina, questões relacionadas com o papel das mulheres na igreja e do uso dos dons espirituais nos cultos, além da infiltração de heresias perniciosas, como a negação da ressurreição dos mortos. Por estes motivos, entre outros, 1 e 2 Coríntios estão entre as cartas paulinas mais relevantes para os nossos dias. E, naturalmente, bons comentários que nos ajudem a entendê-las mais e melhor são muito bem vindos.
10 • Comentário de 1 Coríntios
É o caso do comentário que o leitor tem em mãos. João Calvino publicou este comentário em 1546, quando era pastor da igreja reformada de Genebra. O comentário fazia parte de uma série de outros cuja base era suas pregações expositivas nos livros do Novo Testamento. Quando nos lembramos de que este ano em particular foi de grandes preocupações e aflições para o Reformador – as ameaças de Carlos V contra a Reforma e uma acusação de heresia contra Calvino por dois pastores (alcoólatras) de Genebra – ficamos admirados de como, apesar de tudo isto, Calvino encontrou tempo e paz de espírito para preparar e publicar um comentário deste porte. Os comentários de Calvino, apesar de terem sido escritos a cerca de 450 anos atrás continuam entre os mais vendidos, lidos e consultados pelos estudiosos da Bíblia. Isto se deve a vários fatores que fizeram de Calvino um dos melhores exegetas das Escrituras na longa história da Igreja Cristã. Primeiro, sua confiança inabalável nas Escrituras como a Palavra autoritativa e infalível de Deus, o que o conduzia a sondar de maneira respeitosa os seus mistérios. Segundo, sua preparação pessoal. Calvino conhecia as línguas originais da Bíblia, era versado nos Pais da Igreja, estava familiarizado com os teólogos e intérpretes que vieram antes dele, além de uma vasta educação literária e filosófica decorrente de sua formação humanista. Terceiro, Calvino amava a brevidade e a clareza, duas características indispensáveis de qualquer autor que queira realmente ser lido e compreendido. É impressionante como ele consegue com poucas palavras nos transmitir de maneira profunda e clara o significado da mente do apóstolo Paulo ao escrever esta carta aos coríntios. Quarto, Calvino não se perde em discussões fúteis e inúteis. Mesmo quando ele trata de aplicações contemporâneas dos princípios que descobre nas palavras do apóstolo Paulo, ele o faz de tal forma que o leitor moderno consegue encontrar aplicações para seus próprios dias.
Prefácio à Edição em Português • 11
Quinto, o sistema teológico de Calvino – que mais tarde veio a ser chamado de calvinismo por seus discípulos – funcionava como fator de coerência e integração em seu pensamento, orientando seu pensamento e organizando suas ideias, de maneira que seus comentários refletem uma unidade e coesão interna surpreendentes. É muito fácil para quem escreve comentários se contradizer num ponto ou noutro ao analisar diferentes passagens. A coesão do pensamento de Calvino livrou-o deste perigo a maior parte do tempo. Por último, Calvino escreveu comentários não com o objetivo de contribuir, de maneira acadêmica, para que os estudiosos de sua época satisfizessem sua curiosidade sobre passagens difíceis de 1Coríntios. Não, ele escreveu com coração pastoral, com o objetivo de aplicar as verdades desta carta às consciências de seus leitores. Por este motivo, suas explicações com frequência são entremeadas com conceitos teológicos que desaguam em considerações práticas. O comentário de Calvino em 1Coríntios satisfaz mente e coração. Por estes motivos, além da minha dívida teológica a João Calvino, é que me sinto profundamente honrado em escrever este prefácio. Augustus Nicodemus Lopes, Ph.D. São Paulo, Novembro de 2013.
Dedicatória
Ao mui ilustre varão, Tiago, senhor da Borgúndia, de Falais e de Breda etc.1
Neste meu comentário, esforcei-me por fazer uma exposição desta epístola de Paulo, a qual não é menos difícil do que [em extremo] valiosa. Muitos me têm solicitado este comentário; na verdade, há muito tempo que fazem insistente apelo por sua publicação. Agora que está publicado, tão-somente desejo que o mesmo venha igualmente satisfazer suas esperanças e anseios. Não digo isto com o fim de granjear alguma recompensa para meu trabalho na forma de louvor, porquanto tal ambição deve ficar longe dos servos de Cristo; mas o que desejo é gerar benefício para todos, e não posso alcançar tal objetivo se ele não for aceitável. Tenho deveras labutado com a máxima fidelidade e diligência para que, sem qualquer importunidade, a obra seja do mais elevado valor para a Igreja de Deus. Quanto mais êxito tiver, mais meus leitores julgarão de acordo com a real praticidade da obra. De qualquer forma, creio que consegui fazer com que este comentário seja de inusitada ajuda na conquista de uma completa 1 Após 1551, esta dedicatória foi suprimida das edições do comentário, em decorrência da disputa que suscitou-se entre Calvino e o senhor de Falais sobre Balsec. Mantemo-la aqui porque a segunda dedicatória faz alusão ao incidente.
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compreensão do pensamento de Paulo. Certamente, meu honorável senhor, estou certo de que vós achareis plenamente compreensível, e até mesmo indispensável, que vos aconselhe a não permitir-vos que fiqueis excessivamente afeiçoado a mim. Mesmo que tal aconteça, não obstante terei vosso veredito na mais elevada conta, a fim de que eu possa considerar meu trabalho como tendo atingido seu mais elevado sucesso, se porventura tiver alcançado vossa inestimável aprovação. Além do mais, ainda que vo-lo dediquei, não foi só na esperança de ele vos agradar, mas por muitas outras razões, das quais a mais importante é que vossa vida pessoal confirme perfeitamente um dos temas da carta de Paulo. Pois enquanto no presente tempo há tantos que convertem o evangelho numa filosofia fria e acadêmica, acreditando que têm feito tudo quanto deles é requerido, e feito devidamente, embora acenem suas cabeças em assentimento ao que têm dito, vós, por outro lado, para nós sois um conspícuo exemplo desse poder vivo sobre o qual Paulo insiste tanto. O que pretendo dizer é que quando olhamos para vós, compreendemos o que significa esse vigor espiritual que, afirma Paulo, jorra do evangelho. Naturalmente, não faço menção dessas coisas para vossa satisfação pessoal, senão que acredito ser de grande importância do ponto de vista do exemplo [cristão]. Vós pertenceis à primeira classe da nobreza, obtivestes e usufruístes de elevada e ilustre posição na vida, e sois prendado com qualidades e riquezas (posições que se acham atualmente todas enxameadas de corrupções!). Ora, certamente seria algo por si mesmo importante se vós, em tais circunstâncias, não só levásseis uma vida disciplinada e temperada, mas também conservásseis vossa família sob controle mediante uma adequada e saudável disciplina. De fato tendes levado ambos estes [deveres] ao pleno cumprimento. Pois vosso comportamento tem sido tal, que a todos tem sido uma clara evidência de que não há em vós o menor traço de egoísmo. Sempre que foi necessário que mantivésseis vosso esplendor, o fizestes de tal forma que estabeleceu-se um moderado padrão de vida, e jamais houve qualquer rasgo de mesquinhez ou de avareza;
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e, todavia, sempre bem a descoberto, evitastes mais do que buscastes um magnificente estilo de vida. Tende-vos mostrado tão cortês e considerado, que todos foram forçados a louvar vosso despretencioso comportamento. De fato não há a mais leve evidência de orgulho ou de arrogância que viesse a gerar ofensa em alguém. No que tange a vossa família, é-nos suficiente dizer, numa palavra, que tem sido ela conduzida de tal maneira como para refletir a mente de seu senhor e de seu modo de vida, precisamente como um espelho reflete a imagem de alguém. Tal coisa por si só teria dado ao povo um claro e notável exemplo de virtude a ser imitada. Mas há algo que considero ainda mais importante. Tendes sido erroneamente acusado diante do Imperador pelos embustes de homens ímpios, e que, por nenhuma outra razão senão o fato de que imediatamente o reino de Cristo começa a fazer progresso em alguns lugares, os leva à demência e frenesi. Mas (e eis o que é mui importante) tendes mantido uma coragem que nada tem a ver com debilidade, e agora estais vivendo como num exílio de vossa terra natal, com uma grande porção de estima como tivestes anteriormente, quando a honráveis com vossa presença. Não pretendo mencionar outros fatores, visto que seria tedioso adicionar algo mais. Na verdade, os cristãos devem sempre considerar como algo mais que comum e costumeiro, não só deixar estados, castelos e desprezar, em comparação a ele [Cristo], tudo quanto é tido como mui precioso na terra. Entretanto, quase todos nós somos negligentes e indiferentes a pactos, de modo que a virtude particular é especialmente merecedora de nossa admiração. Portanto, no tempo em que podemos vê-lo tão nitidamente em vós, só desejo que tal fato possa despertar muitas pessoas, de modo que queiram imitar tal atitude, e, em vez de continuarem para sempre escondendo-se em seu confortável aconchego, possam um dia sair em público trazendo toda a centelha do espírito cristão que porventura tenham. Ora, quando os homens vos atacam trazendo freqüentemente novas acusações contra vós, fazem notório que são violentos inimigos da
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religião, e nada ganharão disto senão fazer-se mais e mais detestáveis, favorecendo mui contundentemente a mentira. Com certeza alguns, em seu são juízo, acreditam que os tais são cães raivosos, visto que procuram estraçalhar-vos, e então, ao perceberem que não podem abocanhar-vos, vingam-se ladrando contra vós. É bom que assim façam a certa distância, pois então não conseguirão causar-vos nenhum dano. Mas, ainda que os maus feitos dos ímpios resultem na perda de muitas de vossas possessões, em nada diminuem da glória real com que os crentes vos consideram. Mas, como cristão que sois, deveis ter uma visão mais ampla que esta. Pois não estais satisfeito com nada mais senão com a glória celestial, a qual vos é guardada com Deus, e que será trazida à luz assim que nossa natureza externa perecer. Mui ilustre senhor, e nobre família, adeus. Que o Senhor Jesus vos guarde a salvo perenemente, para a expansão de seu Reino; e que ele mesmo vos conserve sempre vitorioso sobre Satanás e sobre toda a hoste de seus inimigos. Genebra, 24 de janeiro de 1546
Segunda Dedicatória
Saudação a um fidalgo, mais excelente por suas virtudes do que por seu nobre nascimento, senhor Galliazo Carracciolo, filho único e legítimo herdeiro do Marquês de Vico. Quando este comentário foi pela primeira vez publicado, eu não tinha conhecimento ou não estava totalmente familiarizado com o homem cujo nome anteriormente apareceu nesta página, e agora sou obrigado a suprimi-lo. Certamente, não me sinto temeroso de que venha ele a acusar-me de leviandade ou de queixar-se de mim por ter subtraído dele o que outrora lhe dera; pois, tendo ele deliberadamente procurado não só manter-se tão longe quanto possível de mim, pessoalmente, e também por deixar de entender-se com nossa igreja, ficou sem qualquer justificativa para protestar. Entretanto, é com relutância que renuncio minha costumeira prática e elimino de meus escritos o nome de alguém; e lamento muito que tal pessoa tenha caído da elevada posição que eu lhe tenha dado, o que significa que ela deixou de dar bom exemplo a outrem, precisamente como eu esperava dele. Porém, visto que a cura deste mal não se acha em minhas mãos, então que tal pessoa, no que me diz respeito, fique em total olvido, pois ainda agora
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sinto-me ansioso por calar-me sobre ela, e portanto sem mais trazer qualquer prejuízo a sua reputação. Mas, no que concerne a vós, mui honrado senhor, eu teria que encontrar algum pretexto para então substituir o outro nome pelo vosso, embora não me aventurei a tomar tal liberdade, confiando em vossa insuspeitável bondade e amor para comigo, o que é notoriamente conhecido de todos os nossos amigos. Voltando a mencionar meus desejos, gostaria deveras de ter-vos conhecido há dez anos atrás, porque não teria tido motivo algum para fazer agora tal mudança. E esta se presta agora tanto para o bem quanto para servir de exemplo à Igreja como um todo, não só pelo fato de que não vamos sentir que sofremos alguma perda ao esquecermo-nos daquele que se afastou de nós, mas porque seremos compensados, em vós, por um exemplo ainda mais rico, e deveras preferível, em todos os sentidos. Porque, ainda que não estais correndo após os aplausos do povo, vivendo satisfeito em ter Deus como vossa única testemunha; e ainda que não tenho nenhuma intenção de cantar-vos louvores, todavia meus leitores não devem ser deixados completamente em trevas acerca do que lhes é proveitoso e benéfico saber. Sois um homem nascido numa família nobre; gozais de grande prestígio e de grandes riquezas; fostes abençoado com uma esposa da mais nobre origem e da mais elevada virtude, com muitos filhos, com paz e harmonia em vosso lar; na verdade tendes sido abençoado em todas as circunstâncias de vossa vida. Mas para que passásseis para o campo de Cristo, deixastes espontaneamente vossa terra natal, abandonastes propriedades férteis e aprazíveis, esplêndida herança e uma casa tanto deleitosa quanto espaçosa; privastes-vos de um habitual e magnificente estilo de vida; separastes-vos de pai, esposa, filhos, parentela e congêneres; e após dizer adeus a tantas atrações mundanas, e sentindo-vos feliz com nossas depauperadas circunstâncias, adotastes nosso frugal modo de vida, o padrão de gente simples, assim vos tornastes um de nós. Enquanto relato todas estas coisas a outros, não posso de modo algum esquecer-me dos benefícios que pessoalmente recebo. Pois em-
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bora eu exponha vossas virtudes ante os olhos de meus leitores, aqui, como num espelho, para que possam imitá-las, ser-me-ia deprimente, tendo-as diante de meus próprios olhos, não para ser mais profundamente influenciado, à luz do fato de que as vejo mui claramente todos os dias. Mas, visto que realmente sei de experiência própria o quanto vosso exemplo significa para o fortalecimento de minha própria fé e devoção, e visto que todos os filhos de Deus que estão aqui reconhecem, juntamente comigo,que têm extraído extraordinário benefício desse vosso exemplo, considerei, quanto a mim, fazê-lo notório, para que um círculo cada vez mais amplo de pessoas pudesse usufruir da mesma bênção. Outrossim, seria estultície falar detalhadamente em louvor de um homem, cuja natureza e temperamento são tão despidos de ostensividade quanto se pode imaginar, e, ainda mais, proceder assim na presença de estranhos e em lugares longínquos. Portanto, se tantas pessoas, que nada sabem de vossa vida pregressa, por viverem distantes de vós, têm este admirável exemplo diante de si e se prepararam para deixar seu comodismo, ao qual são tão inclinadas, e imitar vosso exemplo, serei amplamente recompensado pelas coisas que tenho escrito. Os cristãos, realmente, devem sempre considerar como algo mais do que meramente comum e costumeiro, não só deixar estados, castelos e posições nobres, sem pesares, se porventura é impossível seguir a Cristo de outra forma; mas também estar sempre prontos e dispostos a desprezar, em comparação a ele [Cristo], tudo quanto é reputado como por demais precioso sobre a terra. Todos nós, porém, somos por demais negligentes, ou, antes, tão indiferentes que, enquanto muitos acenam suas cabeças em formal assentimento ao ensino do evangelho, raramente um em cem, talvez possuidor de um insignificante sítio, permitirá ser arrancado dele por causa do evangelho. A não ser em meio à mais profunda relutância, dificilmente alguém se persuadiria a renunciar a menor vantagem que seja, o que revela quão longe estão os homens de sentir-se preparados a renunciar a própria vida, como devem fazê-lo. Acima de tudo, meu desejo é que todos se espelhem em
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vosso espírito de renúncia, a primeira de todas as virtudes. Pois sois a pessoa mais bem indicada a testificar de mim, e eu de vós, quão pouco deleite encontramos no companheirismo daqueles que, ao deixarem sua terra natal, acabam revelando nitidamente que trouxeram consigo as mesmas perspectivas que alimentavam lá. Porém, visto que é melhor para meus leitores refletirem sobre estas coisas em sua própria mente, em vez de verbalizá-las, eu agora me ponho em oração ao Deus que até aqui vos tem encorajado através do portentoso poder de seu Espírito, visando a que vos muna ele perenemente de invencível disposição. Pois estou bem cônscio do modo como Deus vos disciplinou com muitas e duras lutas, porém, com notável percepção, percebestes que severas e renhidas hostilidades ainda permanecem diante de vós. E visto que muitas experiências vos têm ensinado quão realmente necessário é que do céu se vos estenda uma [benfazeja] mão, deveis prontificar-vos a juntar-vos a mim em fervente oração a Deus pelo dom da perseverança. Quanto a mim, particularmente, orarei a Cristo, nosso Rei, a quem o Pai conferiu suprema autoridade, e em cujas mãos foram colocados todos os tesouros das bênçãos espirituais, rogando-lhe que vos guarde em segurança, a fim de que venhais a permanecer longo tempo conosco para a expansão de seu Reino; e para que ele prossiga a usar-vos na obtenção da vitória sobre Satanás e seus seguidores. 24 de janeiro de 1556 (dez anos após a primeira publicação deste comentário)
Análise da Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios
Esta carta é de diversas formas valiosa; pois ela contém tópicos1 especiais e de grande importância. Em proporção que forem sendo desenvolvidos, sucessivamente em sua ordem, a discussão por si só os esclarecerá à medida da necessidade para sua compreensão. E de fato isso se dará de forma muito clara nesta mesma avaliação. Tentarei apresentar este tema de forma breve, porém, ao mesmo tempo, pretendo fornecer um sumário completo do mesmo, sem, contudo, perder algum de seus pontos principais. É bem notório o fato de que Corinto era uma rica e famosa cidade da Acaia. Quando L. Mummius a destruiu (em 146 a.C.), ele o fez simplesmente porque sua vantajosa situação o levou a suspeitar do lugar. Mas um povo de tempos posteriores a reconstruiu pela mesma razão que ele (L. Mummius) a destruiu,2 quando as mesmas vantagens topográficas a levaram a ser restaurada num curto espaço de tempo. Visto estar ela situada nas proximidades do Mar Egeu, de um lado, e do Mar 1 “Bonnes matieres, et points de doctrine” – “Bons temas e pontos de doutrina.” 2 2 Estrabo descreve Mummius como “μεγαλαφρων μαλλον ἠ φιλοτεχνος” – “um homem mais magnânimo do que amante das artes.”
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Jônio, do outro, e visto que ela ficava no istmo que liga a Ática e o Peloponésio, então idealmente se adequava à importação e exportação de mercadorias. Em Atos, Lucas nos conta que, após ter Paulo ensinado ali durante um ano e meio, ele foi obrigado, em virtude do comportamento ultrajante dos judeus, a viajar dali para a Síria. Durante a ausência de Paulo, falsos apóstolos se infiltraram na região. Não vieram (em minha opinião) com o fim de perturbar a Igreja obviamente com um ensinamento heterodoxo, ou intencionalmente, por assim dizer, causar dano ao ensinamento. Há três razões para seu surgimento. Primeiramente, se orgulhavam de sua oratória brilhante e ostensiva, ou, diria alguém, convencidos por sua linguagem vazia e bombástica, passaram a tratar com desprezo a simplicidade de Paulo e inclusive do próprio evangelho. Em segundo lugar, movidos por sua ambição, almejavam dividir a Igreja em várias facções. Finalmente, indiferentes a tudo, exceto em desfrutar das boas graças que almejavam que o povo tivesse deles, entraram em cena com o fim de fazer seu jogo em prol do aumento de sua própria reputação, antes que promover o reino de Cristo e o bem-estar do povo. Por outro lado, visto que Corinto se achava dominada pelos vícios com os quais as cidades comerciais geralmente são infestadas, ou, seja, a luxúria, a arrogância, a vaidade, os prazeres, a cobiça insaciável, o egoísmo desenfreado – tais vícios tinham penetrado também a própria Igreja de tal modo que a disciplina se tornou grandemente deteriorada. Mais seriamente ainda, já se achava presente a apostasia da sã doutrina, de modo tal que um dos fundamentos da fé, a ressurreição dos mortos, estava sendo posta em cheque. E ainda que se achasse em meio a tanta corrupção de toda espécie, estavam contentes consigo mesmos, como se tudo quanto em relação a eles estivesse em perfeita ordem. Tais são os subterfúgios que Satanás geralmente emprega. Se ele não consegue impedir a expansão do ensino, ele se chega solerte e secretamente com o fim de desferir seu golpe mortal sobre ele [o ensino]. Se ele não consegue suprimi-lo por meio de mentiras que o contradigam, e impedi-lo
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de vir a público, então lhe prepara covas ocultas para sua destruição. Finalmente, se ele não pode alienar dele as mentes humanas, num golpe incisivo, ele as leva a abandoná-lo gradativamente. Ora, tenho boas razões para crer que aqueles indignos correligionários, que trouxeram sofrimento à igreja corintiana, não eram inimigos declarados da verdade. Sabemos que Paulo não ignora as falsas doutrinas em outras cartas. As cartas aos Gálatas, aos Colossenses, aos Filipenses e a Timóteo são todas breves; porém, em todas elas não só ataca violentamente os falsos apóstolos, mas, ao mesmo tempo, ele igualmente realça as formas em que prejudicavam a Igreja. E ele estava perfeitamente certo, pois os crentes não só devem ser admoestados acerca daqueles de quem devem se precaver, mas devem também perceber o mal contra o qual precisam sempre estar em guarda. Portanto, não posso acreditar que numa carta longa como esta ele pretendesse manter em silêncio o que executa tão assiduamente em outras cartas muito mais breves. Além disso, ele trata com muitas faltas dos coríntios, algumas das quais, sem dúvida, totalmente triviais, então parece que ele não pretendia omitir algo sobre aqueles que ele chamou para reprovar. E se esse não era o caso, então ele estava desperdiçando um amontoado de palavras ao juntar-se em debate com aqueles prepostos mestres ou chilreantes oradores. Ele condena sua ambição; ele os responsabiliza em transformar o evangelho numa filosofia artificial; ele nega que tenham eles o poder do Espírito para produzir resultados, porque, em sua preocupação com linguagem vazia e bombástica, só estavam indo no encalço de “letra morta”; todavia, não há uma só palavra sobre ensino corrupto. Portanto, estou plenamente certo de que não faziam nenhuma depreciação pública das substância do evangelho, em qualquer aspecto; porém, visto que um desorientado e apaixonado desejo por proeminência os abrasava, acredito que tinham engendrado um novo método de ensino, o qual não se compatibilizava com a simplicidade de Cristo; e assim esperavam que isso os fizesse objetos da admiração do povo. Isto é o que inevitavelmente acontece com todos aqueles que não desistem de
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preocupar-se consigo mesmos e se engajem na obra do Senhor sem absolutamente quaisquer entraves. O primeiro passo, para servirmos a Cristo, é esquecer-nos de nós mesmos e pensar tão-só na glória do Senhor e na salvação dos homens. Além do mais, ninguém jamais estará aparelhado para o ensino se antes não for absorvido pelo poder do evangelho, de modo a falar não tanto com seus lábios, mas com seu próprio coração. Portanto, o que sucede no caso daqueles que nunca nasceram de novo, pelo Espírito de Deus, nunca experimentaram o poder do evangelho em seus próprios corações, e não têm qualquer idéia do que significa ser nova criação! (cf. 2Co 5.17). Sua pregação é morta, quando deveria ser viva e produtora de resultados; e para que se sobressaíssem aos olhos públicos, eles mesmos dissimulavam o evangelho, vestindo-o de diferentes indumentárias, de modo que viesse ele a assemelhar-se às filosofias do mundo. Fazer isso em Corinto era algo fácil para o tipo de pessoas que estamos considerando aqui. Pois os mercadores são facilmente levados pela aparência externa; e não só se permitiam trapacear pelas mesmas trapaças que aplicavam a outrem, mas, de certa forma, também gostavam disso. Além disso, possuíam ouvidos sensíveis, de modo que não suportavam censura por demais severa, resultando que, se se deparassem com os mestres tão maleáveis e prontos a deixá-los alegremente impunes, se valiam de recompensas e bajulação. Concordo que isso se dá em toda parte, mas é mais comum em cidades comerciais e ricas. Ao contrário, Paulo, que em outros aspectos era um homem sublime e se sobressaía em razão das admiráveis qualidades que possuía, não obstante fez-se insignificante exteriormente, no tocante às graças exteriores estava sempre contente, jamais se irrompendo com ostentação nem procurando tocar sua própria conduta. De fato, em razão de seu coração estar sempre e verdadeiramente sob a influência do Espírito, não havia nele a menor sombra de ostentação, sendo incapaz de proferir bajulação nem se preocupava em agradar a homens. Ele só tinha um propósito diante de si, a saber, que ele e todos os demais, estando à disposição, Cristo pudesse reinar. Já que os
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coríntios se inclinavam mais pelo ensino engenhoso do que benéfico, então não poderiam saborear o evangelho. Já que viviam tão ansiosos por novidades, então Cristo, para eles, se achava fora de moda. Em todo caso, se não tivessem ainda, realmente, caído em tais erros, pelo menos já estavam naturalmente inclinados para as coisas sedutoras desta espécie. Portanto, era fácil para os falsos apóstolos atrair a atenção entre eles e adulterar o ensino de Cristo. Pois certamente é ele adulterado quando sua natural pureza é corrompida e, por assim dizer, pintada com diferentes cores, sendo ele posto no mesmo nível de qualquer filosofia mundana. Portanto, a fim de agradar o paladar dos coríntios, adicionavam condimentos a seu ensino, resultando disso que o genuíno sabor do evangelho era destruído. Agora estamos em posição de entender por que Paulo foi induzido a escrever esta carta. Agora podemos sumariar o argumento, apresentando breves notas sobre cada um dos capítulos em ordem cronológica. Paulo inicia o primeiro capítulo congratulando-se com eles (coríntios), e com isso os encoraja a prosseguirem como começaram. Desta forma ele os apazigua de antemão antes de prosseguir, de modo a estarem mais dispostos a receber seu ensino. Mas imediatamente ele fere uma nota mais severa, fazer a transição para reprovar, quando se refere aos desacordos que ora afligiam sua igreja. Desejando curar este mal, ele insta com eles que voltassem do orgulho para a humildade. Pois ele dispensa toda a sabedoria do mundo, estabelecendo em seu lugar unicamente a pregação da Cruz. Ao mesmo tempo também os humilha individualmente, ao dizer-lhes que observassem bem a classe de pessoas a quem o Senhor, geralmente, tem adotado e conduzido a seu rebanho. No segundo capítulo, ele cita o exemplo de sua própria pregação, a qual, humanamente falando, era pobre e insignificante, porém era notável em razão de possuir o poder do Espírito. E ele prossegue desenvolvendo a idéia de que o evangelho contém sabedoria celestial e secreta. É algo que nem a habilidade natural do homem, ainda que perspicaz e penetrante, nem seus sentidos físicos podem compreen-
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der; algo sobre o qual o argumento humano não pode gerar convicção; algo que não carece de linguagem floreada nem de ilustrações. É tão-somente por meio da revelação do Espírito que ele chega a ser compreendido pela mente humana, e vem a ser selado em seus corações. Finalmente, conclui que não é só a pregação do evangelho que é extremo oposto da sabedoria humana, visto que ela consiste na humilhação da Cruz, mas também que o mero juízo humano não pode determinar qual é seu real valor. Paulo procede assim a fim de desviá-los da confiança mal colocada em seu próprio entendimento, o qual gera errônea valorização de tudo. No início do terceiro capítulo ele faz aplicação do que lhes afirmou anteriormente. Pois Paulo lamenta que, sendo eles carnais, dificilmente se sujeitariam a aprender ainda mesmo os princípios rudimentares do evangelho. Desta forma ele realça que o desprazer pela Palavra, o que era tão forte neles, não era oriundo de algum defeito inerente à Palavra mesma, e, sim, da ignorância deles; e, ao mesmo tempo, ele lhes dirige uma admoestação implícita, ou, seja, que os coríntios necessitam de ter suas mentes renovadas, e assim possam começar a avaliar as coisas com propriedade. E então ele mostra o lugar que deve ser dado ao ministro do evangelho. A honra devida a eles não deve subtrair em nada da glória que é devida a Deus; pois há um só Senhor, e todos eles são seus servos; somente Deus tem o poder em suas mãos, e é ele quem confere os resultados; e todos os coríntios não passam de simples instrumentos de Deus. Ao mesmo tempo mostra que ele deve ter como alvo a edificação da igreja. Aproveita a oportunidade para explicar o correto e adequado método para realizar um bom trabalho de edificação, a saber, tomar Cristo como o único fundamento, e adequar a estrutura toda a esse fundamento. E aqui, tendo afirmado de passagem que ele era um hábil mestre-de-obra, exorta aos que são deixados para a continuação da obra a que conservem o edifício de conformidade com o fundamento em todos os meandros de sua conclusão.
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Ele ainda insiste com os coríntios a não permitirem que sejam maculados pelos ensinos corruptos, visto que são templos de Deus. E nessa parte conclusiva do capítulo, ele novamente reduz a nada o orgulho da sabedoria humana, de modo que somente o conhecimento de Cristo seja mantido em evidência entre os crentes. No início do quarto capítulo, ele explica qual é o ofício de um genuíno apóstolo, e, rejeitando seus juízos corruptos que os impedem de reconhecê-lo como genuíno apóstolo, apela para o dia do Senhor. Então, percebendo que o desprezavam em virtude de sua humilde aparência, ele mostra que de fato tal coisa se constitui mais em honra para ele do que em desonra. Ele prossegue citando instâncias de sua própria experiência, a qual revela que ele não se preocupava com sua própria glória, ou com seu próprio sustento material, mas que fizera fielmente o trabalho de Cristo e nada mais. No devido curso ele enfatiza a maneira como os coríntios devem honrá-lo (isto é, vv. 14-16). Na parte conclusiva do capítulo, ele lhes recomenda Timóteo, até que ele mesmo vá. E ao mesmo tempo anuncia que em sua chegada ele deixará plenamente claro que não dá o menor valor a toda a bazófia com que os falsos apóstolos cantavam seus próprios louvores. No quinto capítulo Paulo os chama à razão pelo fato de terem tolerado em silêncio uma união incestuosa entre um homem e sua madrasta. E francamente lhes diz que, em vez de serem tão vangloriosos, uma enormidade tal como esta deveria fazê-los pender suas frontes, envergonhados. Ele muda daquela instrução geral para o efeito, ou, seja, que ofensas como essas seriam punidas com excomunhão, para que a tolerância em relação ao pecado seja rechaçada, e que as impurezas sejam limitadas a uma só pessoa e não venham a propagar-se ainda mais afetando o restante. O sexto capítulo contém duas partes principais. Na primeira, ele condena a prática deles (coríntios) em provocar aborrecimento uns aos outros, trazendo com isso grande descrédito ao evangelho, ao levarem suas disputas aos tribunais que eram presididos pelos incrédulos.
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Na segunda parte, ele condena a tolerância com a promiscuidade sexual, a qual alcançara um nível tal que era considerada quase como uma coisa normal de se fazer. De fato, ele começa com uma grave nota de ameaça e então prossegue produzindo argumentos em apoio da admoestação que ele apresenta. O sétimo capítulo contém uma discussão sobre a virgindade, o matrimônio e o celibato. Tanto quanto podemos agrupar do que Paulo diz, os coríntios se tornaram fortemente influenciados pelas noções supersticiosas de que a virgindade era uma projeção, quase uma virtude angelical, de tal forma que desprezavam o matrimônio como se este fosse algo impuro. Para corrigir este conceito equivocado, Paulo ensina que cada pessoa deve saber qual é seu dom particular; e neste sentido não deve fazer algo que não se sinta capacitada para fazer; pois nem todos são chamados para o mesmo estado. Conseqüentemente, ele realça quem pode abster-se do matrimônio, e que seu objetivo era abster-se dele. Em contrapartida, ele aconselha aos que vão se casar e qual é a genuína base do matrimônio. No oitavo capítulo, ele os proíbe de se envolverem com os adoradores de ídolos e seus sacrifícios impuros, ou de praticarem alguma coisa que de alguma forma pudesse causar injúria a alguém com consciência fraca. Eles se escusavam sob o pretexto de que quando se associavam aos adoradores idólatras, jamais o faziam com idéias errôneas em suas mentes, visto que em seus próprios corações reconheciam um só Deus, o qual, naturalmente, os fazia olhar para os ídolos como coisas indignas de fabricação humana. Paulo desfaz tal escusa com base no fato de que cada um de nós deve preocupar-se com seus irmãos, e, por outro lado, havia muitas pessoas fracas, cuja fé seria destruída por tal insinceridade. No nono capítulo, ele torna patente que não está exigindo deles nada mais do que exige de si mesmo, de modo a não dar a impressão de estar sendo injusto em impor-lhes um princípio que ele mesmo não pudesse praticar. Então lembra-os de como voluntariamente se refreou de usar da liberdade que o Senhor lhe concedera, para não causar
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ofensa a alguém; e como, no tocante a coisas neutras, adotara ele diferentes atitudes, por assim dizer, a fim de acomodar-se a todos os tipos de pessoas. Lembra-os desses dois fatos para que aprendessem por intermédio de seu exemplo, ou, seja, que ninguém deve concentrar-se demasiadamente em si mesmo, de modo tal que não se empenhasse em adaptar-se a seus irmãos para a promoção de sua edificação. Em razão de os coríntios estarem muitíssimos satisfeitos consigo mesmos, como disse no começo, Paulo inicia o décimo capítulo usando os judeus como exemplo para adverti-los a não enganar-se a si mesmos com um falso senso de segurança. Pois ele mostra que, se estão envaidecidos em razão de coisas externas e dos dons de Deus, os judeus, igualmente, possuíam razões semelhantes para ostentar-se. No entanto, tais coisas provaram ser de nenhum préstimo, notadamente em seu caso, porquanto fizeram mau uso das bênçãos que receberam. Após despertá-los com tais advertências, Paulo volta rapidamente ao tema que vinha tratando inicialmente (ou, seja, o culto idólatra, v. 14), e mostra quão inconsistente é para aqueles que participam da Ceia do Senhor tomar parte na mesa de demônios; pois esta é uma infeliz e intolerável forma de corromper-se. Finalmente, ele conclui que devemos adequar-nos com outros em todas as nossas ações, de modo a não causar ofensa a ninguém. No capítulo onze, ele procura expurgar as reuniões de culto deles de certas práticas nocivas, as quais dificilmente era possível observar com decência e ordem, e ele afirma-lhes que nessas reuniões deve-se observar grande dignidade e discrição, pois ali nos achamos diante de Deus e dos anjos. Porém, sua crítica principal é dirigida contra a administração corrupta da Ceia pelos coríntios. Mas, além disso, ele apresenta o método para corrigir os abusos que solertemente haviam entrado; a saber, chamá-los de volta para nossa instituição original feita pelo próprio Senhor, como o único padrão seguro e permanente para a sua correta administração. Porém, visto que muitos deles estavam fazendo mau uso dos dons espirituais visando a seus próprios objetivos, no capítulo doze ele trata
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do propósito para o qual Deus no-los concedeu, e trata igualmente da forma correta e adequada de seu uso, a saber, que para servirmos uns aos outros, devemos crescer juntos no único corpo de Cristo. Ele ilustra seu ensino esboçando uma analogia com o corpo humano. Embora o corpo possua membros distintos, todos eles com funções distintas, todavia existe neles um arranjo tão bem equilibrado e uma interdependência [communio] tal que o que tem sido atribuído aos membros individuais é empregado em benefício de todo o corpo. Portanto, ele conclui que o amor é nosso melhor guia nesta conexão. E assim ele persiste neste tema, mais extensamente no capítulo treze, fazendo uma explanação mais ampla de seu significado. Porém, ele se resume nisto: o amor [caritas] deve ser o fator controlador de/em tudo. Ele aproveita a presente oportunidade para fazer uma digressão e cantar os louvores do amor, de modo a torná-lo ainda mais persuasivo e levar as pessoas a desejar possuí-lo, e também a estimular os coríntios a pô-lo em prática. No capítulo quatorze, ele começa apresentando detalhes mais precisos sobre como os coríntios tinham fracassado no uso dos dons espirituais. E já que estavam pondo uma ênfase tão grande na ostentação, ele os ensina que sua preocupação devia ser que em tudo houvesse edificação. Esta é a razão por que ele prefere a profecia a todos os demais dons, visto ser ele mais benéfico; enquanto que, para os coríntios, as línguas eram mais valiosas, simplesmente com base em sua pompa vazia. Ele ainda estabelece a ordem apropriada para se fazerem as coisas. Ao mesmo tempo, ele condena o erro na exibição ruidosa de línguas estranhas para o benefício de ninguém; pois significava que, enquanto havia progresso no ensino e nas exortações, aos quais sempre se deve dar prioridade, eles estavam sendo prejudicados. Em seguida, ele proíbe que as mulheres ensinem publicamente, como sendo algo inconveniente. No capítulo quinze, ele ataca um dos mais perniciosos erros. Ainda que dificilmente seja crível que este assalto fosse sobre todos os coríntios, todavia tal ação granjeou um ponto-chave nas mentes de
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alguns deles, na medida precisa em que o remédio era claramente necessário. Mas tudo indica que Paulo, propositadamente, retarda a menção deste assunto para o final da carta; pois se ele tivesse iniciado com ele, ou se tivesse voltado a ele imediatamente depois de começado, a conclusão deles seria que estavam sendo todos condenados. Ele, pois, mostra que a esperança da ressurreição é tão necessária que, se ela for extinta, então todo o evangelho cairá em completa ruína. Tendo estabelecido a esperança pelo uso de poderosos argumentos, ele prossegue mostrando as bases sobre as quais ela descansa, e como [a ressurreição] se dará (cf. vv. 35-58). numa palavra, ele realiza uma plena e cuidadosa discussão deste assunto. O capítulo dezesseis constitui-se de duas partes. Na primeira, ele encoraja os coríntios a prestarem socorro aos irmãos de Jerusalém em suas necessidades. Eles estavam, naquela época, sendo duramente premidos pela fome e cruelmente tratados nas mãos dos incrédulos. Os apóstolos haviam dado a Paulo a tarefa de animar as igrejas gentílicas a prover recursos para eles [de Jerusalém]. Paulo, pois, os instrui a pôr de lado o que gostariam de dar, e assim pudessem enviar a Jerusalém imediatamente [porém, veja-se 16.3]. Ele traz a carta à sua conclusão com uma exortação cordial e com saudações de alegria. Podemos deduzir daqui, como disse no início, que esta carta está saturada do mais prestimoso ensino, pois ela contém várias discussões de um bom número de temas gloriosos.
Capítulo 1
1. Paulo, chamado para ser apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus, e Sóstenes, nosso irmão, 2. à igreja de Deus que está em Corinto, aos que são santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos, com todos os que em todos os lugares invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso: 3. graça seja a vós, e paz da parte de Deus e do Senhor Jesus Cristo.
1. Paulus, vocatus apostolus Jesu Christ per voluntatem Dei, et Sosthenes frater, 2. Ecclesiæ Dei quæ est Corinthi, sanctificatis in Christo Jesu, vocatis sanctis, una cum omnibus qui invocant nomen Domini nostri Jesu Christi in quovis loco tam sui quam nostri:1 3. Gratia vobis et pax a Deo Patre nostro, et Domino Jesu Christi.
1. Paulo, chamado para ser apóstolo. Dessa forma Paulo procede em quase todas as introduções a suas Epístolas com vistas a garantir autoridade e aceitação para sua doutrina. Em primeiro lugar ele se assegura da condição que lhe fora designada por Deus, de ser apóstolo de Cristo e enviado por Deus; em segundo lugar ele testifica de sua afeição para com todos aqueles a quem escreve. Cremos muito mais prontamente em alguém que consideramos estar genuinamente afeiçoado para conosco e que fielmente promove nosso bem-estar. Portanto, nesta saudação ele reivindica autoridade para si ao falar de si mesmo como apóstolo de Cristo, e deveras chamado por Deus, ou, seja, separado pela vontade de Deus. Ora, duas coisas são requeridas daquele que deve ser ouvido na Igreja, e que vai ocupar a cadeira de mestre; pois o mesmo deve ser 1 “Le leur et le nostre”, ou “le Seigneur (di-ie) et de eux et de nous.” – “Tanto deles, quanto nosso”, ou, “o Senhor (digo) tanto deles, quanto nosso.”
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chamado por Deus para esse ofício e deve ser fiel no cumprimento de seus deveres. Paulo aqui alega que ambas se aplicam a ele. Pois o título apóstolo implica que os atos conscientemente individuais por parte de um embaixador de Cristo [2Co 5.19], e que proclama a pura doutrina do evangelho. Mas para que ninguém assuma para si esta honra sem ser chamado para a mesma, ele acrescenta que não se precipitou temerariamente para ela, mas que fora designado2 por Deus para tal incumbência. Aprendamos, pois, a levar em conta ambos esses fatores quando quisermos saber a quem devamos considerar como ministro de Cristo: que o mesmo seja chamado e seja fiel ao cumprimento de seus deveres. Visto que ninguém pode, por direito, assumir para si a designação e condição de ministro, a não ser que o mesmo seja chamado, assim não é suficiente que uma pessoa seja chamada, se também não cumprir os deveres de seu ofício. Pois o Senhor não escolhe ministros para que sejam ídolos mudos, nem para que exerçam tirania sob o pretexto de sua vocação, nem para que tomem seus próprios caprichos por sua lei. Ao contrário, Deus ao mesmo tempo estabelece que tipo de homens devam ser eles, e os põe sob suas leis; em suma, ele os escolhe para o ministério; ou, em outros termos, para que, em primeiro lugar, não sejam ociosos; e, em segundo lugar, para que se mantenham dentro dos limites de seu ofício. Portanto, visto que o apostolado depende da vocação [divina], se alguém deseja ser reconhecido como um apóstolo, então que prove que o é de fato e de verdade; não só isso, mas que tudo faça para que os homens confiem nele e dêem atenção a sua doutrina. Pois já que Paulo conta com essas base para estabelecer sua autoridade, pior que a insolência seria a conduta do homem que quisesse assumir tal posição sem comprovação! Entretanto, é preciso observar que não basta que alguém reivindique a posse de um título de alguma vocação para o ofício, mas que também seja fiel no cumprimento de seus deveres, a menos que 2 “Constitué, ordonné, et establi.” – “Designado, ordenado e estabelecido.”
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realmente comprove ambas [as alegações]. Pois amiúde sucede que aqueles que mais se vangloriam de seus títulos são precisamente pessoas que na verdade nada possuem; como, por exemplo, os falsos profetas da antigüidade que reivindicavam com grande arrogância que haviam sido enviados pelo Senhor. E hoje, que outra coisa fazem os romanistas senão grande bulha sobre a “ordenação divina, a sucessão inviolavelmente sacra provinda dos próprios apóstolos”,3 enquanto que, depois de tudo, parece serem eles completamente destituídos de todas as coisas sobre as quais tanto se exaltam? Aqui, pois, o que se requer não é tanto de vanglória, mas de realidade. Ora, visto ser comum, para o bom e para o mau, assumir o título, devemos fazer um teste para que se descubra quem de fato pode e quem não pode ter o direito ao título apóstolo. Quanto a Paulo, Deus atestou sua vocação por meio de muitas revelações e então a confirmou por meio de milagres. A fidelidade tinha de ser avaliada da seguinte forma: se ele estava ou não proclamando a pura doutrina de Cristo. Quanto à dupla vocação, a de Deus e a da Igreja, vejam-se minhas Institutas (4.3.II). Apóstolo. Ainda que este título, de acordo com sua etimologia, tenha um sentido geral, e às vezes seja empregado para denotar todos os ministros4 indistintamente, não obstante pertence, como uma designação particular, aos que eram separados pela designação do senhor com o fim de publicar o evangelho ao mundo inteiro. Mas era 3 “Et aujour d’huy, qu’est ce qu’entonnent à plene bouche les Romanisques, sinon ces grous mots, Ordination de Dieu, La saint et sacrée sucession depuis le temps mesme des Apostres.” – “E, em nossos dias, o que os romanistas gritam com bocas escancaradas senão aqueles grandes temas: Ordenação de Deus – A santa e sacra sucessão dos apóstolos até nossos dias?” 4 Αποστολος (um apóstolo), derivado de αποστελλειν (enviar), significa literalmente mensageiro. O termo é empregado pelos escritores clássicos para denotar o comandante de uma expedição, ou um delegado ou embaixador. (Veja-se Heródoto, v.38.) No Novo Testamento, ele é em vários casos empregado em um sentido geral para denotar um mensageiro. [Veja Lc 11.49; Jo 13.16; Fp 5.38.] Em um caso é aplicado a Cristo mesmo (Hb 3.1). Mais freqüentemente, contudo, é aplicado aos mensageiros extraordinários que eram (para usar as palavras de Leigh em seu Critica Sacra) “os legados (a latere)” de Cristo, de sua parte.”
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importante que Paulo fosse incluído naquele número, e isso por duas razões: primeiro, porque muito mais deferência era atribuída a eles do que aos demais ministros do evangelho; e, segundo, porque unicamente eles, estritamente falando, possuíam a autoridade de instruir todas as igrejas. Pela vontade de Deus. Enquanto o apóstolo costumava reconhecer de bom grado sua dívida irresgatável a Deus pelas muitas coisas boas que dele recebera, ele agia assim particularmente com referência a seu apostolado, para que pudesse remover de si qualquer aparência de presunção. E não há dúvida de que, como a salvação provém da graça, assim também a vocação para o ofício de apóstolo provém da graça, como preceitua Cristo nestas palavras: “Não fostes vós que me escolhestes a mim; pelo contrário, eu vos escolhi a vós outros” [Jo 15.16]. Entretanto, Paulo ao mesmo tempo indiretamente dá a entender que todos quantos tentaram subverter seu apostolado, ou de alguma forma fizeram-lhe oposição, estavam contendendo contra uma ordenação divina. Porquanto Paulo, aqui, não se vangloria futilmente de títulos honoríficos, senão que intencionalmente defende seu apostolado de suspeitas maliciosas. Porque, visto que sua autoridade tinha de ser suficientemente bem estabelecida em relação aos coríntios, não havia necessidade de se fazer menção da vontade de Deus especificamente, caso os homens injustos não estivessem tentando, por meios indiretos, minar aquela honrosa posição divinamente outorgada por Deus. E Sóstenes, nosso irmão. Este é o mesmo Sóstenes que era líder judaico da sinagoga em Corinto, e de quem Lucas faz menção em Atos 18.17. A razão de seu nome ser incluído aqui é para que os coríntios tivessem uma merecida consideração por aquele de quem conheciam o ardor e firmeza no evangelho. Portanto, há uma honra ainda maior para ele, ou, seja, de ser denominado irmão de Paulo, do que, como antes, ser presidente da sinagoga. 2. À igreja de Deus que está em Corinto. Talvez pareça algo estranho dar Paulo aqui o título Igreja de Deus a esse grupo de pessoas que
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se achava infestado de tantas falhas, sobre o qual Satanás exercia uma influência mais poderosa que a de Deus. Certamente seu intuito não era bajular os coríntios, pois ele fala sob a diretriz do Espírito de Deus, o qual não costuma bajular. Mas,5 no meio de tanta vileza, que aparência de igreja é mais apresentada? Minha resposta é como segue: Visto que o Senhor dissera: “Não temas, eu tenho muitas pessoas nesta cidade” [At 18.9], mantendo esta promessa em sua mente, ele conferiu a poucas pessoas piedosas a grande honra de reconhecê-las como igreja no meio de uma vasta multidão de pessoas ímpias. Demais, a despeito de que muitos vícios tinham solertemente se introduzido, bem como várias corrupções tanto na doutrina quanto na conduta, alguns emblemas da genuína Igreja permaneciam em evidência. Entretanto, devemos prestar muita atenção a esta passagem, para que neste mundo não esperemos existir uma igreja sem uma mancha ou mácula, nem precipitadamente neguemos este título a alguma sociedade na qual nem tudo satisfaça nossos padrões ou aspirações. Porquanto é uma perigosa tentação imaginar alguém que não existe igreja onde a perfeita pureza se acha ausente. Pois a pessoa que se sente dominada por tal noção, necessariamente deve separar-se de todos os demais e olhar para si como o único santo no mundo, ou deve fundar sua própria seita em sociedade com uns poucos hipócritas. Sobre que base, pois, tinha Paulo reconhecido uma igreja em Corinto? Sem dúvida foi porque viu em seu seio a doutrina do evangelho, o batismo e a Ceia do Senhor, marcas pelas quais uma igreja deve ser julgada. Pois, embora alguns começassem a nutrir dúvidas acerca da ressurreição, contudo tal erro não permeou todo o corpo, e assim o nome e a realidade da Igreja não são por isso afetados. Ainda que alguns defeitos já tivessem surgido na administração da Ceia, a disciplina e a conduta já tivessem declinado tanto, a simplicidade do evangelho já estivesse denegrida e já tivessem se entregado à ostentação e à pompa, e em decorrência da ambição de seus ministros 5 “Mais (dira quelqu’un).” – “Mas (alguém diria).”
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já estivessem fragmentados em vários partidos, não obstante, em virtude de haverem retido a doutrina fundamental – o Deus único era adorado por eles e invocado no nome de Cristo –, depositavam em Cristo sua dependência para a salvação e sustentavam um ministério que não estava de todo corrompido. Por essas razões a Igreja continuava ainda em existência entre eles. Conseqüentemente, onde quer que o culto divino tenha sido preservado incorrupto, e aquela doutrina fundamental de que já falei ainda persiste ali, podemos sem hesitação concluir que nesse caso a Igreja existe. Santificados em Cristo Jesus, chamados para serem santos. Ele faz menção das bênçãos com as quais Deus os adornara, como à guisa de reprimenda, porque, na prática, nem sempre se mostravam agradecidos. Pois o que pode ser mais deprimente do que rejeitar um apóstolo, por cujo ministério haviam sido separados como porção peculiar de Deus? Entrementes, aqui ele mostra, por estes dois qualificativos, que estão incluídos entre os verdadeiros membros da Igreja, e que por direito pertencem a sua comunhão. Pois se o leitor não se revelar como cristão pela santidade de vida, então certamente não estará capacitado a esconder-se na Igreja e ainda não pode pertencer-lhe.6 Portanto, todos quantos desejam ser reconhecidos entre o povo de Deus devem ser santificados em Cristo. Demais, a palavra santificação denota separação. Isso se dá conosco quando somos regenerados pelo Espírito para novidade de vida, para servirmos, não ao mundo, mas a Deus. Porque, enquanto por natureza somos impuros, o Espírito nos consagra a Deus. Porque isso realmente se concretiza quando somos enxertados no corpo de Cristo, fora do qual nada mais há senão corrupção, e visto que o Espírito nos diz que só somos santificados em Cristo, quando, através dele, aderimos a Deus, e nele somos feitos “novas criações” (2Co 5.17). 6 “Tu te pourras bien entretenir en l’Eglise tellement quellement, estant meslé parmi les autres.” – “Podeis muito bem ter uma permanência na Igreja, de algum modo, estando entremeados entre outros.”
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O que segue – chamados para serem santos – o entendo no seguinte sentido: “Assim fostes chamados em santidade.” Mas isso pode ser considerado de duas formas. Primeiro, podemos entender Paulo como que dizendo que a causa da santificação é a vocação divina, porque Deus mesmo os escolheu; em outras palavras, depende de sua graça, e não da excelência do homem. O significado alternativo é o seguinte: é consistente com nossa profissão [de fé] que sejamos santos, porque esse é o desígnio da doutrina do evangelho. Ainda que o primeiro significado pareça adequar-se melhor ao contexto, faz pouca diferença de que forma o leitor o considere, quando os dois significados estão em estreita harmonia entre si, pois nossa santidade emana da fonte da eleição divina, e é também a meta de nossa vocação. Portanto, devemos sustentar criteriosamente que de modo algum é por nossos próprios esforços que somos santos, mas é pela vocação divina; porque é tão-somente Deus que santifica aos que por natureza eram impuros. E certamente creio que, mui provavelmente, quando Paulo aponta, como se o fizesse com seu dedo, para a fonte da santidade, amplamente aberta, é para subir ainda mais, ou, seja, para o gracioso beneplácito de Deus mesmo, pelo qual também a missão de Cristo quanto a nós se originou. Além disso, assim como somos chamados por meio do evangelho para a vida irrepreensível [Fp 2.15], é necessário que isso se torne uma realidade em nós, a fim de que nossa vocação venha a ser eficaz. Mas alguém objetará dizendo que tal coisa não era comum entre os coríntios. Minha resposta é que os pusilânimes não se acham inclusos neste número, porque aqui Deus simplesmente começa sua obra em nós, e paulatinamente a leva à consumação. Respondo ainda que Paulo deliberadamente olha antes para a graça de Deus em ação neles, e não para os próprios defeitos deles, de modo a fazê-los sentir-se envergonhados de sua negligência em não fazerem o que lhes foi requerido. Com todos os que o invocam. Este é outro qualificativo também comum a todos os crentes. Porque, visto que invocar o nome de Deus
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é um dos principais exercícios da fé, portanto é por este dever que os fiéis devem ser principalmente julgados. Note-se também que ele diz que Cristo é invocado pelos fiéis; e é assim que sua divindade é reconhecida, porquanto a invocação é uma das primeiras evidências do culto divino. Daí, a invocação, neste contexto, à guisa de sinédoque7 (κατὰ συνεκδοχήν), significa uma plena profissão de fé em Cristo, assim como em muitas passagens da Escritura ela é geralmente tomada para abranger todo o culto divino. Alguns o explicam como sendo só a profissão [de fé], mas isso parece pobre demais e está em desacordo com sua aceitação usual na Escritura. Ora, tenho posto estas pequenas palavras nostri (nosso) e sui (deles) no genitivo, entendendo-as como uma referência a Cristo. Enquanto outros, tomando-as como uma referência a lugar, traduzem-nas no ablativo. Ao agir assim, tenho seguido a Crisóstomo. Esta tradução, provavelmente, parecerá abrupta, porque as palavras em todo lugar aparecem no centro, porém não há nada de abrupto nesta construção no grego paulino. Minha razão para preferir esta tradução à da Vulgata é que se o leitor a explicar com uma referência a lugar, a frase adicional não só será desnecessária, mas também irrelevante. Pois a que lugar Paulo chamaria seu? Eles o consideram como a indicar a Judéia; porém, em que áreas? Então, a que lugar Paulo estaria se referindo como sendo habitado por outros? Afirmam que significa todos os outros lugares do mundo; mas isso também não é bem apropriado. Em contrapartida, o significado que tenho atribuído é bem mais apropriado; porque, depois de fazer menção a “os que em todo lugar invocam o nome de Cristo, nosso Senhor”, ele adiciona: “deles e nosso”, a fim de tornar plenamente claro que Cristo é sem a menor sombra de dúvida o Senhor comum de todos os que o invocam, sejam eles judeus ou gentios. Em todo lugar. Paulo adicionou isso contrariando sua prática usual, pois em suas outras cartas ele menciona, na saudação, somente 7 Sinédoque, figura de linguagem por meio da qual a parte é tomada pelo todo.
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aqueles a quem ele endereça as cartas. Entretanto, tudo indica que ele desejava antecipar as calúnias de certos ímpios, como a impedi-los de alegar que ele estava adotando uma atitude extremada e forte em relação aos coríntios, reivindicando para si uma autoridade que não ousaria assumir em relação a outras igrejas. Logo se fará evidente que ele tinha sido também injustamente cumulado com censura de que estava a construir ‘ninhos’8 para si mesmo, como se quisesse fugir da luz, ou clandestinamente se excluísse do restante dos apóstolos. Portanto, a fim de expressamente rebater tal mentira, ele intencionalmente se põe num posto de comando, donde pudesse tornar sua voz ouvida forte e difusamente. 3. Graça seja a vós e paz. Os leitores poderão encontrar uma exposição desta oração no início de meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm 1.7]. Porquanto não gostaria de sobrecarregá-los com repetições.
4. Dou sempre graças a meu Deus a respeito de vós, pela graça de Deus que vos foi concedida em Cristo Jesus; 5. que em todas as coisas fostes enriquecidos por ele, em toda palavra e em todo conhecimento; 6. assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós; 7. de maneira que não vos venha faltar nenhum dom; esperando pela vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, 8. que também vos confirmará até o fim, para serdes irrepreensíveis no dia de nosso Senhor Jesus Cristo. 9. Deus é fiel, através de quem fostes chamados à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor.
4. Gratias ago Deo meo semper de vobis propter gratiam Dei, quæ data vobis est in Christo Jesu. 5. Quia in omnibus ditati estis in ipso, in omni sermone,9 et in omni cognitione. 6. Quemadmodum testimonium Christi confirmatum fuit in vobis. 7. Ut nullo in dono destituamini, exspectantes revelationem Domini nostri Jesu Christi. 8. Qui etiam confirmabit vos usque in finem inculpatos, in diem Domini nostri Jesu Christi. 9. Fidelis Deus, per quem vocati estis in communionem Filii ipsius Jesu Christi Domini nostri.
8 “Nids et cachettes.” – “Ninhos e esconderijos.” 9 Parole’, ou ‘éloquence’. – ‘Enunciação’ ou ‘eloqüência’.
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4. Dou sempre graças a meu Deus. Após mostrar, na saudação, que sua autoridade repousa sobre a função que lhe fora designada, Paulo agora busca granjear a aceitação para sua doutrina, expressando seu afeto por eles. Agindo assim, de antemão abranda suas mentes, para que pudessem ouvir pacientemente sua reprovação.10 Ele deveras os persuade a confiar em seu amor: primeiro, regozijando-se com as bênçãos com que foram contemplados, como se ele mesmo as recebesse; e, em segundo lugar, ao declarar que seu coração lhes era favorável e que nutria por eles boa esperança quanto ao futuro. Além disso, ele caracteriza suas congratulações, de modo que os coríntios não tivessem nenhuma ocasião para vangloriar-se, visto que ele aponta para Deus como a fonte donde emana todas as bênçãos que haviam recebido, todo o louvor deve ser-lhe dirigido, já que tudo era fruto de sua graça. Em outros termos, Paulo está dizendo: “Congratulo-me convosco com toda sinceridade, porém de modo a atribuir louvor somente a Deus.” Já expliquei, em meu comentário à Epístola aos Romanos [Rm 1.8], o que Paulo quis dizer quando denomina Deus de meu Deus. Além do mais, como Paulo não pretendia lisonjear os coríntios, por isso não os enaltece por motivos falsos. Porque, embora nem todos merecessem tal louvor, e embora tivessem corrompido muitos dos dons excelentes de Deus por meio de ambição, contudo não podia ignorar os próprios dons deles, como se fossem de pouco valor, os quais, em si mesmos, mereciam o mais elevado apreço. Finalmente, porque os dons do Espírito são concedidos para a edificação de todos, ele tinha boas razões para considerá-los como dons comuns a toda a Igreja.11 Vejamos, porém, o que Paulo recomenda neles. Por conta da graça etc. Graça é um termo geral, porque ela abrange toda espécie de bênçãos, as quais eles tinham obtido por meio do evangelho. Pois a palavra graça significa, aqui, não o favor de Deus, 10 O mesmo ponto de vista do desígnio de Paulo aqui é apresentado por Teodoreto: “Visto que ele está para censurá-los, suaviza de antemão o órgão de audição para que o remédio a ser aplicado seja recebido o mais favoravelmente possível.” 11 “Que chacun ha en son endroit.” – “Que cada um tem severamente.”
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mas, à guisa de metonímia12 (μετωνυμικω̑ς), os dons que graciosamente Deus derramou sobre os homens. Portanto, Paulo prossegue especificando os casos particulares quando diz: “em tudo fostes enriquecidos”, e explica tudo como sendo a doutrina e Palavra de Deus. Pois os cristãos devem ser plenificados com essas riquezas, as quais devem também receber de nós as mais elevadas honras e o mais elevado apreço, à medida que forem sendo desconsideradas pelo povo como um todo. Preferi conservar o termo in ipso (nele) em vez de mudá-lo para per ipsum (por ele), porque, em minha opinião, é mais expressivo e vigoroso. Pois somos enriquecidos em Cristo porque somos membros de seu corpo e fomos enxertados nele; e ainda mais, visto que fomos feitos um com ele, ele compartilha conosco tudo quanto recebeu do Pai. 6. Assim como o testemunho de Cristo foi confirmado em vós. A tradução de Erasmo é diferente: “por meio dessas coisas, o testemunho de Cristo foi confirmado entre vós”, significando: pelo conhecimento e pela Palavra. As palavras têm em si uma ressonância distinta, e se não forem torcidas, o significado é simplesmente este: Deus selou a verdade de seu evangelho entre os coríntios, com o propósito de confirmá-la. Ora, isso pode ser feito de duas maneiras – ou por meio dos milagres, ou por meio do testemunho interno do Espírito Santo. Crisóstomo parece tê-lo entendido como uma referência aos milagres, porém considero-o em um sentido mais amplo. Antes de tudo, é certo que o evangelho deve ser propriamente confirmado, em nossa experiência pessoal, por meio da fé, porque, tão logo é ele recebido por nós, pela fé, então realmente “por sua vez certifica que Deus é verdadeiro” [Jo 3.33]. E embora eu admita que os milagres devam ser de valor para sua confirmação, não obstante uma origem mais elevada deve ser buscada, a saber: que o Espírito de Deus é o penhor [arrha] e selo. Por isso, explico estas palavras da seguinte maneira: que os coríntios exceliam em conhecimento, porquanto desde o princípio Deus fez seu 12 Figura de linguagem por meio da qual um termo é expresso por outro – a causa pelo efeito, o efeito pela causa etc.
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evangelho produzir frutos neles. Demais, ele não fez isso de uma única forma, mas o fez pela operação interna do Espírito e pela excelência e variedade dos dons, pelos milagres e por todas as demais coisas que cooperam. Ele chama o evangelho de o testemunho de Cristo ou concernente a Cristo, porque toda a soma dele é desvendar Cristo a nós, “em quem estão ocultos todos os tesouros do conhecimento” [Cl 2.3]. Se alguém prefere considerá-lo num sentido ativo, em razão de o autor primário do evangelho ser Cristo, de modo que os apóstolos nada mais são senão testemunhas secundárias, ou menos importantes, não discordarei dele. Contudo, para mim a primeira explicação é mais satisfatória. Admito que, logo depois [cf. 2.1], “o testemunho de Deus” deve, além de toda controvérsia, ser considerado num sentido ativo, porquanto o sentido passivo seria inadequado. Entretanto, aqui o caso é diferente; outrossim, esta passagem corrobora minha opinião, porque imediatamente ele adiciona seu significado: nada saber senão Cristo [cf. 2.2]. 7. De maneira que não vos venha faltar nenhum dom Ὑ στερεισθαι significa estar em falta de algo que você realmente necessita. Portanto, Paulo quer dizer que os coríntios eram ricos em todos os dons de Deus, e deveras não careciam de nada. É como se dissesse: “O Senhor não só vos considerou dignos da luz do evangelho, mas também vos proveu ricamente de todas as graças que auxiliam os crentes a fazerem progresso no caminho da salvação.” Pois ele intitula dons [charismata] aquelas graças espirituais que são, por assim dizer, os meios de salvação para os santos. Em contrapartida, pode-se objetar que os crentes nunca são tão ricos que não se sintam carentes, em certa extensão, de graças, de modo que sempre se vêem forçados a ter “fome e sede” [Mt 5.6]. Pois, quem não está longe da perfeição? Minha resposta é a seguinte: visto que são suficientemente providos dos dons necessários, e sempre que estão necessitados, o Senhor vem oportunamente satisfazê-los, Paulo, pois, atribui-lhes tais riquezas. Pela mesma razão, ele acrescenta: “aguardando a manifestação”, significando que ele não está
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pensando neles como quem possui tais riquezas, nada restando para desejar-se, senão que possuem somente o que lhes bastará até que tenham alcançado a perfeição. Entendo o gerúndio, aguardando, neste sentido: “durante o tempo em que estais esperando.” Assim, temos o seguinte significado: “Portanto, neste ínterim não tendes carência de nenhum dom, enquanto estiverdes aguardando o dia da perfeita revelação, mediante a qual Cristo, nossa sabedoria, se fará plenamente manifesto.” 8. Que também vos confirmará. O relativo [que], aqui, não se aplica a Cristo, e, sim, a Deus, mesmo quando o nome de Deus seja o antecedente mais remoto. Porque o apóstolo prossegue expressando sua alegria, e como lhes disse previamente o que sentia sobre eles, portanto agora mostra que nutre esperança quanto ao futuro deles; e isso em parte para fazê-los sentir-se ainda mais certos de sua afeição por eles, e em parte também para exortá-los, por seu próprio exemplo, a nutrirem a mesma esperança. É como se dissesse: “Ainda que estejais num estado de alarma por estardes esperando a salvação que ainda está por vir, não obstante deveis estar certos de que o Senhor jamais vos abandonará, mas que, ao contrário, completará o que começou em vós, de modo que, quando esse dia chegar, quando todos nós compareceremos diante do tribunal de Cristo [2Co 5.10], possamos, pois, ser encontrados irrepreensíveis.” Irrepreensíveis. Paulo ensina, em suas Epístolas aos Efésios e aos Colossenses, que o fim de nossa vocação é para vivermos de maneira pura e livres de mancha na presença de Deus [Ef 1.4; Cl 1.22]. Entretanto, devemos observar que tal pureza não se completará em nós imediatamente; ao contrário, para nosso próprio bem, devemos continuar exercitando a prática diária da penitência, e prosseguir sendo purificados dos pecados [2Pe 1.9], os quais nos fazem passíveis do castigo divino, até que, finalmente, sejamos despidos, juntamente com “o corpo de morte” [Rm 7.14], de toda a impureza do pecado. Acerca do dia do Senhor falaremos no capítulo 4.
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9. Deus é fiel. Quando a Escritura fala de Deus como sendo fiel, com freqüência significa sua perseverança e sua constante uniformidade de caráter [perpetuum temorem], de modo que tudo o que Deus começa, ele sempre leva a sua consumação.13 Paulo mesmo diz que “a vocação de Deus é irrevogável” [Rm 11.29]. Portanto, em minha opinião, o que esta passagem significa é que Deus é inabalável em seu propósito. Sendo este o caso, ele não zomba de nós quando nos chama, mas que cuidará de nós para sempre.14 Conseqüentemente, visto experimentarmos as bênçãos de Deus no passado, tenhamos bom ânimo e esperemos que ele aja sempre assim no futuro. Paulo, porém, volve sua atenção para um ponto mais elevado, pois seu argumento é que os coríntios não podem ser lançados fora, porque uma vez foram chamados pelo Senhor “à comunhão com Cristo”. Entretanto, a fim de compreendermos que valor tem este argumento, notemos antes de tudo que cada um deve ver em sua própria vocação a evidência de sua eleição. Portanto, embora nem sempre alguém possa julgar com a mesma certeza acerca da eleição de uma outra pessoa, todavia podemos sempre decidir, julgando com base no amor, que tantos quantos são chamados, é para a salvação que são chamados; eu quero dizer tanto eficaz quanto frutiferamente. Paulo estava dirigindo estas palavras a pessoas em quem a Palavra de Deus havia formado raízes, e em quem alguns frutos se despontavam como resultado. Alguém poderia objetar, dizendo que muitos dos que uma vez receberam a Palavra, mais tarde apostatam. Minha resposta é que só o Espírito é a fiel e infalível testemunha da eleição de cada pessoa, e que sua perseverança depende desse fato. Responderia ainda que, não obstante, esse fato não impedia Paulo de estar persuadido, no tribunal do amor, de que a vocação dos coríntios seria uma firme e inabalável 13 Calvino provavelmente se refere às seguintes passagens (entre outras): 1 Tessalonicenses 5.24; 2 Tessalonicenses 3.3; Hebreus 10.23. 14 “La vocation donc qu’il fait d’un chacun des siens, n’est point un jeu, et en les appellant il ne se mocque point, ainsi il entretiendra et pour suyura son œuvre perpetuellement.” – “A vocação, portanto, que ele faz de cada um dos seus não é mera diversão; e ao chamá-los ele não está a brincar, mas incessantemente manterá e dará curso a sua obra.”
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prova, já que ele via entre eles os emblemas do beneplácito paternal de Deus. Além disso, tais emblemas de forma alguma visavam a produzir um mero senso de segurança carnal; pois as Escrituras com freqüência nos advertem quanto a nossa real fraqueza, mas simplesmente visa a confirmar nossa confiança no Senhor. Ora, isso era necessário a fim de que suas mentes não se vissem desnorteadas ao descobrirem tantas falhas, como mais adiante ele as poria diante de seus olhos. Tudo isto pode ser sumariado da seguinte forma: “Os cristãos sinceros devem nutrir boas esperanças acerca de todos quantos têm tido acesso ao caminho inconfundível da salvação, e perseveram em seu curso, ainda que ao mesmo tempo sejam assediados por muitas enfermidades. Desde o tempo em que é iluminado [Hb 10.32] pelo Espírito de Deus, no conhecimento de Cristo, cada um de nós, na verdade, é plenamente convencido de que foi adotado pelo Senhor na herança da vida eterna. Pois a vocação eficaz deve ser para os crentes a evidência da adoção divina. Não obstante, nesse ínterim devemos todos nós andar “em temor e tremor” (Fp 2.12). Farei posterior referência a este assunto no capítulo 10. À comunhão. Em vez disso, Erasmo traduziu à participação [consortium]. A Vulgata traz sociedade [societatem]. Eu, contudo, preferi comunhão (communionem), porque expressa melhor a força da palavra grega κοινωνιας.15 Porque todo o propósito do evangelho consiste em que Cristo se fez nosso e somos enxertados em seu corpo. Mas quando o Pai nos dá Cristo como nossa possessão, também se nos comunica em Cristo, e por causa disso realmente alcançamos a participação de cada bênção. O argumento de Paulo, portanto, é como segue: Visto que fomos trazidos à comunhão com Cristo através do evangelho, o qual recebemos pela fé, não há razão para temermos o
15 Calvino, depois de falar de ser Cristo apresentado por Paulo como “a nós oferecido no evangelho com toda abundância de bênçãos celestiais, com todos seus méritos, toda sua justiça, sabedoria e graça, sem exceção”, observa: “E o que está implícito pela comunhão (κοινωνια) de Cristo o qual, segundo o mesmo apóstolo [1Co 1.9], nos é oferecido no evangelho – todos os crentes sabem.”
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risco de morte,16 já que fomos feitos participantes daquele [Hb 3.14] que ressuscitou dos mortos, o Vitorioso sobre a morte. Em suma, quando o cristão olha para si mesmo, ele só vê motivo para tremor, ou, melhor, só vê desespero. Mas pelo fato de ter sido chamado à comunhão com Cristo, ele não deve pensar de si mesmo, no tocante à certeza da salvação, de nenhuma outra forma senão como membro de Cristo, tornando assim suas todas as bênçãos de Cristo. Dessa forma, ele se assegurará da esperança da perseverança final (como é chamada) como algo certo, caso ele se considere membro de Cristo, aquele que não pode jamais fracassar.
10. Ora, rogo-vos, irmãos, pelo nome de nosso Senhor Jesus Cristo, que falem todos a mesma coisa, e que não haja divisões entre vós, senão que sejais perfeitamente unidos na mesma mente e no mesmo parecer. 11. Meus irmãos, me foi anunciado acerca de vós, pelos que são da casa de Cloe, de que há contendas entre vós. 12. Ora, quero dizer com isso que cada um de vós afirma: Eu sou de Paulo; e eu de Apolo; e eu de Cefas; e eu de Cristo. 13. Cristo está dividido? Foi Paulo crucificado em favor de vós? Ou fostes batizados em nome de Paulo?
10. Observo autem vos, fratres, per nomen Domini nostri Jesu Christi, ut idem loquamini omnes, et non sint inter vos dissidia: sed apte cohæreatis in una mente et in una sententia.17 11. Significatum enim mihi de vobis fuit, fratres mei, ab iis qui sunt Chloes, quod contentiones sint inter vos. 12. Dico autem illud,18 quod unusquisque vestrum dicat, Ego quidem sum Pauli, ego autem Apollo, ego autem Cephæ, ego autem Christi. 13. Divisusne est Christus? numquid pro vobis crucifixus est Paulus? aut vos in nomen Pauli baptizati estis?
10. Ora, rogo-vos, irmãos. Até aqui Paulo esteve tratando os coríntios com mansidão, porquanto sabia o quanto eles eram sensíveis. 16 “La mort et perdition.” – “Morte e perdição.” 17 “Et en une mesme volonte”, ou “et mesme avis”. – “E na mesma disposição”, ou “e no mesmo critério.” 18 “Et ie di ceci”, ou “Or ce que ie di c’est qu’un chacun.” – “E isto eu digo”, ou “Ora, o que digo é isto: que cada um.”
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Contudo agora, após preparar suas mentes para receberem correção, agindo como um bom e experiente cirurgião que toca a ferida gentilmente quando um doloroso medicamento precisa ser aplicado, então Paulo passa a tratá-los com mais severidade. Não obstante, mesmo aqui ele usa uma boa dose de moderação, como veremos mais adiante. Eis a substância do que ele está para dizer: “Minha ardente esperança é que o Senhor não vos tenha concedido em vão tantos dons, sem antes querer conduzir-vos à salvação. Por outro lado, deveis também sofrer aflições para impedir-vos que graças tão excelentes sejam poluídas por vossos vícios. Portanto, esforçai-vos para que vos concordeis uns com os outros, pois eu tenho boas razões de pedir-vos que haja concordância entre vós, porquanto tenho sido informado de que a desarmonia que há entre vós equivale mesmo a hostilidade; que as facções e o partidarismo são fomentados entre vós de tal forma que estão destroçando a genuína unidade da fé. “Visto, porém, que, neste caso, uma simples exortação pode às vezes não ser tão persuasiva, Paulo volta a rogos enérgicos, pois ele os conjura, em nome de Cristo, a quem amam, a que promovam a harmonia. Que todos faleis a mesma coisa. Ao estimulá-los à harmonia, Paulo emprega três formas distintas de expressão. Primeiramente, ele solicita que a concordância entre eles fossem em termos tais, que tivessem todos uma só voz. Em segundo lugar, ele exige a remoção do mal pelo qual a unidade é espicaçada e destruída. Em terceiro lugar, ele desvenda a natureza da genuína harmonia, a saber, que a harmonia recíproca fosse na mente e na vontade. O que Paulo põe como segundo é de fato o primeiro em ordem, a saber, que nos guardemos das divisões, porque, quando somos [precavidos], então alguma outra coisa virá, ou, seja, a harmonia. Então, finalmente uma terceira coisa certamente resultará, a qual é mencionada em primeiro lugar aqui, a saber: que todos falemos como se tivéssemos uma só voz; e isso deveras é muitíssimo desejável, como fruto da harmonia cristã. Portanto, observemos bem: nada é mais inconsistente por parte dos cristãos do que o cultivo do antagonismo entre si. Pois o princípio
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mais importante de nossa religião é este: que vivamos em harmonia uns com os outros. Demais, a segurança da Igreja repousa sobre esta concordância e dela depende. Vejamos, porém, o que Paulo requer da unidade cristã. Se alguém almeja distinções mais refinadas, ele deseja que, antes de tudo, sejam eles unidos numa só mente [pensamento]; em seguida, num só parecer [juízo]; em terceiro lugar, ele deseja que os coríntios declarem verbalmente sua concordância. Entretanto, visto que minha tradução difere um pouco da de Erasmo, devo, de passagem, chamar a atenção de meus leitores para o uso que Paulo faz de um particípio aqui, o qual significa coisas que são adequada e apropriadamente enfeixadas.19 Pois o verbo καταρτιζεσθαι, do qual o particípio κατηρτισμένος se origina, significa, propriamente, ‘estar amarrado’ e ‘estar unido’, da mesma forma que os membros do corpo humano se acham jungidos uns aos outros numa simetria admiravelmente perfeita.20 Para parecer [sententia], Paulo tem γνώμην. Considero-o, porém, aqui como uma referência à vontade, de modo que há uma completa divisão da alma, sendo a primeira sentença (numa só mente) uma referência à fé, e a segunda (num só parecer), ao amor. Portanto, a unidade cristã será estabelecida em nosso meio, não só quando estamos em estreita harmonia quanto à doutrina, mas também quando estamos em harmonia em nossos esforços e dis19 “Et assemblés l’une à l’autre.” – “E associadas umas às outras.” 20 O verbo καταρτιζω propriamente significa: reparar, readaptar ou restaurar a sua condição original o que fora desordenado ou quebrado; e nesse sentido se aplica à reparação de redes, navios, muros etc. [veja-se Mt 4.21; Mc 1.19]. Podemos com plena propriedade entender o apóstolo fazendo aqui alusão à reparação de um navio que fora quebrado ou danificado, e como a informar que uma igreja, quando dispersa por divisões, não é, por assim dizer, um mar confiável, e deve ser cuidadosamente reparada, antes que possa estar preparada para os propósitos de comércio, comunicando às nações da terra as “genuínas riquezas”. Entretanto, a alusão, mais provavelmente, é como se Calvino estivesse pensando nos membros do corpo humano, os quais são tão admiravelmente ajustados uns aos outros. Merece nota o fato de que Paulo faz uso de um derivativo do mesmo verbo (κατάρτισις) em 2 Coríntios 13.9, sobre o qual Beza observa “que a intenção do apóstolo é que, enquanto os membros da Igreja estavam todos, por assim dizer, deslocados e desconjuntados, agora uma vez mais seriam enfeixados em amor, e tudo fariam para fazer perfeito o que estava defeituoso entre eles, quer na fé, quer na conduta.”
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posições, e assim nos tornamos de uma só mente em todos os aspectos. Neste mesmo sentido, Lucas testifica da fidelidade da Igreja Primitiva, dizendo que todos tinham “um só coração e uma só alma” [At 4.32]. Certamente que isso será sempre encontrado onde o Espírito de Cristo reina. Ao dizer-lhes que falassem a mesma coisa, ele notifica ainda mais plenamente o fruto da unidade, quão completa deve ser a concordância, a saber, que não haja qualquer divergência nem mesmo em palavras. Certamente que isso é algo muito difícil, porém mesmo assim é indispensável entre os cristãos, de quem se tem requerido que tenham não só uma única fé, mas também uma única confissão. 11. Me foi anunciado acerca de vós. Visto que as observações gerais às vezes surtem pouco efeito, Paulo então notifica que o que ele está dizendo de fato também se aplica particularmente a eles. Portanto, ele faz esta aplicação a fim de que os coríntios soubessem que não foi sem motivo que ele fez menção da harmonia. Pois ele mostra que não só se afastaram da santa unidade,21 mas que também entraram em controvérsias, as quais se tornaram mais sérias22 do que diferenças de opinião. Em caso de ser ele acusado de ser por demais crédulo em dar ouvidos tão prontamente a informações inverídicas,23 ele fala bem dos que lhe passaram tais informações. Provavelmente fossem tidos na mais elevada consideração, visto que Paulo não hesitou em citá-los como testemunhas competentes contra a Igreja toda. Ainda que não seja de todo certo se Cloe é o nome de lugar ou de mulher, parece-me 21 “La sancte union qui doit estre les Chrestiens.” – “Aquela santa unidade que deve haver entre os cristãos.” 22 “Bien plus dangereuses.” – “Muito mais perigosas.” 23 Beza observa que o verbo aqui empregado, δηλοω (declarar) contém uma significação mais forte do que σημαινω (insinuar), assim como há uma diferença de sentido entre as palavras latinas declarare (declarar) e significare (insinuar), exemplo esse que é fornecido em uma carta de Cícero a Lucrécio: “tibi non significandum solum, sed etiam declarandum arbitror, nihil mihi esse potuisse tuis literis gratius.” – “Creio que não se deve simplesmente insinuar-lhe, mas declarar que nada poderia ser-me mais agradável do que suas cartas.” A palavra enfática, εδηλωθη (foi declarado), parece ter sido usada pelo apóstolo para comunicar mais plenamente à mente dos coríntios que ele não lhes transmitira uma mera notícia.
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mais provável, porém, que fosse o nome de uma mulher.24 Portanto, em minha opinião é que foi uma família bem familiarizada com Paulo que lhe falou deste distúrbio na Igreja de Corinto, com o propósito de que dele proviesse a cura. Mas concluir, como fazem muitos, seguindo a opinião de Crisóstomo, que Paulo evitou o uso de nomes reais com o intuito de evitar que fossem molestados, parece-me absurdo. Pois ele não diz que alguns membros particulares da família o informaram; ao contrário, faz menção de todos eles, o que não deixa lugar a dúvida de que estavam bem dispostos a ser citados nominalmente. Além do mais, para que suas mentes não se exasperassem por indevida severidade, ele mitigou a reprovação falando de uma maneira como se quisesse angariar o respeito; e ele procedeu assim não para amenizar seu problema, mas para fazê-los ainda mais dóceis e entender melhor a gravidade de seu mal. 12. Ora, o que eu quero dizer é que cada um de vós. Alguns acreditam que haja aqui um caso de imitação (μιμησις), como se Paulo estivesse aqui repetindo as palavras reais dos coríntios. Ora, ainda que os manuscritos variem na avaliação da partícula ὅτι, sou de opinião que ela é a conjunção porque, em vez do pronome relativo que, de modo que temos aqui simplesmente uma explicação da sentença anterior, como segue: “A razão por que digo que há controvérsias entre vós, é porque cada um de vós se põe a gloriar-se no nome de um homem. Mas alguém poderá objetar que essas afirmações não fornecem em si mesmas qualquer indicação de controvérsias. Minha resposta é que onde as divisões predominam na religião, outra coisa não sucede senão que o que se acha na mente dos homens logo se irrompe em franco conflito. Pois enquanto nada é mais eficaz para manter-nos unidos, e não há nada que mais une nossas mentes, conservando-as em paz, do que a harmonia na 24 Alguns chegaram à conclusão que por τω̑ν Χλόης (os de Cloe) o apóstolo quer dizer pessoas que estavam em florescente condição na religião; de χλόη, erva verde (Heródoto, iv.34, Eurípedes, Hipp. 1124). Certo escritor supõe Paulo querendo dizer seniores (anciãos), derivando a palavra χλόη de jlb, idoso. Entretanto, tais conjeturas são claramente mais engenhosas que sólidas. É verdade que o nome Χλόη (Cloe) era freqüente entre os gregos como um nome feminino. É mais natural entender por τω̑ν Χλόης, os de Cloe, como equivalente a των Χλοης σικειων – os da casa de Cloe.
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religião, todavia, se por alguma razão suscita-se desarmonia em conexão com ela, o resultado inevitável é que os homens são imediatamente instigados a digladiar-se de forma ferrenha, e não existe outro campo onde as controvérsias sejam mais ferozes.25 Portanto, Paulo é justificado em apresentar como evidência suficiente de controvérsias o fato de que os coríntios estavam criando seitas e facções. Eu sou de Paulo etc. Ele agora menciona nominalmente os servos fiéis de Cristo – Apolo, que fora seu sucessor em Corinto, e também o próprio Pedro. Então adiciona seu próprio nome ao deles, com receio de que pudesse, de alguma forma, parecer estar fazendo mais por sua própria causa do que pela causa de Cristo. Todavia, é improvável que houvesse alguns partidos que estivessem atacando um desses três ministros em particular, em detrimento dos outros dois, visto que se achavam limitados, em seu ministério, por um acordo sagrado.26 Mas, como sugere mais tarde (1Co 3.4ss), ele transferiu para si e para Apolo o que era aplicável aos demais. Ele procedeu assim a fim de que pudessem ter mais facilidade em avaliar o próprio problema, dissociado da avaliação dos personagens envolvidos. Mas alguém poderia apontar para o fato de que Paulo também menciona, aqui, aqueles que publicamente confessavam que “eram de Cristo”. Isto também reclamava censura? Respondo que nesta forma a expressão mais clara é dada para a situação realmente negativa que se desenvolve de nosso erro em prestarmos nossa devoção aos homens. Se tal acontece, então Cristo deve necessariamente governar só uma parte da igreja, e os crentes não têm outra alternativa senão separar-se dos demais, isso se não desejam negar a Cristo. Entretanto, como este versículo é torcido de várias maneiras, o único caminho certo é decidirmos mais exatamente o que Paulo quer 25 “Et n’y a en chose quelconque debats si grans ni tant à craindre que sont ceux-là.” – “E em nenhum departamento há disputas tão fortes, ou tão terríveis como aquelas.” 26 “Autrement veu que ces trois estoyent d’un sainct accord ensemble en leur ministere, il n’est point vray-semblable, qu’il y eust aucunes partialitéz entre les Corinthiens pour se glorifier en l’un plustost qu’en l’autre.” – “De outra forma, visto que aqueles três estavam unidos em seu ministério por um laço sacro, não é provável que houvesse alguns partidos entre os coríntios que estivessem preparados a gloriar-se neles mais que em outros.”
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dizer aqui. Seu objetivo é dizer que na Igreja a autoridade pertence unicamente a Cristo, de modo que todos nós somos dependentes dele; que unicamente ele é chamado Senhor e Mestre entre nós, de modo que o nome de quem quer que seja se exibe como rival de Cristo. Portanto, Paulo condena aqueles que atraem seguidores após eles [At 20.30], a ponto de dividir a Igreja em seitas, porque ele os condena como inimigos que destroem nossa fé. Conseqüentemente, Paulo não permite que os homens exerçam tal preeminência na Igreja, que usurpem a supremacia de Cristo. Os homens, pois, não devem ser honrados de tal maneira que venham a prejudicar, mesmo que seja um ínfimo grau, a dignidade de Cristo. É verdade que existe certo grau de honra que é devida aos ministros de Cristo, e que eles são igualmente mestres em seu devido lugar; mas é preciso ter sempre em mente que a qualificação que pertence a Cristo deve ser mantida intocável, ou, seja, que ele continuará sendo, não obstante, o único e verdadeiro Mestre, e deve ser contemplado como tal. Por essa razão, o alvo dos bons ministros é este: servir a Cristo, todos eles de forma idêntica, reivindicando para ele o domínio, a autoridade e a glória exclusivos; lutar sob sua bandeira; obedecê-lo acima de tudo e de todos e submeter os outros a seu domínio. Se alguém se deixa influenciar pela ambição, ele conquista seguidores, sim, não para Cristo, mas para si próprio. Portanto, eis aqui a fonte de todos os males, eis aqui a mais danosa de todas as enfermidades, eis aqui a peçonha mais letal em todas as igrejas: quando os ministros se devotam mais a seus próprios interesses do que aos interesses de Cristo. Em suma, a unidade da Igreja consiste primordialmente nesta única coisa: que todos nós dependemos unicamente de Cristo, e que, portanto, os homens sejam tidos e permaneçam em posição inferior, para que nada venha a prejudicar Cristo, um mínimo sequer, em sua posição de preeminência. 13. Cristo está dividido? Este mal intolerável provinha das diversas divisões prevalecentes entre os coríntios. Porquanto Cristo é o único que reina na Igreja. E já que o propósito do evangelho é que sejamos reconciliados com Deus por intermédio de Cristo, é necessário, antes de tudo, que estejamos todos seguros e unidos nele. Somente
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uma pequena parte dos coríntios, mais sábios que os outros,27 continuava a reconhecer Cristo como seu Mestre, enquanto todos os demais se orgulhavam de ser cristãos. E assim Cristo estava sendo feito em pedaços. Pois é mister que todos sejamos mantidos juntos dele e sob ele como nossa Cabeça. Pois se vivermos divididos em diversos corpos, também dissolveremos o [corpo] dele. Gloriarmo-nos em seu nome em meio a desavenças e partidos é rasgá-lo em pedaços. Na verdade, tal coisa não pode ser feita, pois ele jamais perderá a unidade e a harmonia, porque “ele não pode negar a si mesmo” [2Tm 2.13]. Paulo, pois, colocando esta situação absurda diante dos coríntios, se propõe a levá-los a entender que estavam alienados de Cristo em razão de suas divisões. Pois Cristo só reina em nosso meio quando ele constitui os elos que nos ligam a ele numa unidade sacra e inviolável. Foi Paulo crucificado por vós? Mediante duas poderosas considerações, Paulo mostra quão vil28 é arrebatar a Cristo de seu lugar de honra como única Cabeça da Igreja, único Mestre, único Senhor; ou extrair alguma parte da honra que lhe pertence e transferi-la para os homens. A primeira razão é que fomos redimidos por Cristo com base no princípio de que não estamos sob nossa própria jurisdição. Paulo usa este mesmo argumento em sua Epístola aos Romanos [14.9], quando diz: “Pois para este fim foi que Cristo morreu e ressuscitou, para que pudesse ser Senhor tanto dos vivos quanto dos mortos.” Portanto, vivamos para ele e morramos para ele, porque lhe pertencemos para sempre. Novamente nesta mesma Epístola [7.23], ele escreve: “Fostes comprados por preço; não vos torneis escravos de homens.” Portanto, visto que os coríntios haviam sido adquiridos pelo sangue de Cristo, eles estavam, em certo sentido, renunciando as bênçãos da redenção, já que estavam transformando outras pessoas em seus líderes. Eis aqui uma notável doutrina que merece especial atenção: “que não temos a liberdade de pôr-nos sob a sujeição de seres humanos,29 já que somos herança do Senhor.” 27 “Mieux avisez que les autres.” – “Melhor avisados do que outros.” 28 “Combien c’est vne chose insupportable.” – “Quão insuportável coisa é.” 29 “Addicere nos hominibus in servitutem” – “de nous assuiettir aux hommes en seruitude.” – “Entregar-nos a homens, ao ponto de nos tornarmos seus escravos.” Calvino mui pro-
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Portanto, Paulo aqui acusa os coríntios da mais grave ingratidão, visto que estavam alienando-se desta Cabeça por cujo sangue haviam sido redimidos; contudo, talvez agissem assim inadvertidamente. Além do mais, esta passagem milita contra a ímpia invenção dos papistas, a qual usam em apoio de seu sistema de indulgências. Pois do sangue de Cristo e dos mártires eles engendraram o falso tesouro da Igreja, o qual, ensinam eles, é distribuído pelas indulgências. Assim pretendem que, por sua morte, os mártires30 meritoriamente ganharam algo para nós aos olhos de Deus, para que pudéssemos recorrer a essa fonte e obter a remissão de nossos pecados. Certamente negarão que os mártires nos redimem. Todavia, nada é mais claro do que um fato proceder do outro. É uma questão de poderem os pecadores reconciliar-se com Deus; é uma questão de obterem eles o perdão; é uma questão de fazerem eles expiação pelas ofensas. Gloriam-se de que tudo isso é feito em parte pelo sangue de Cristo e em parte pelo sangue dos mártires. Portanto, fazem dos mártires os participantes de Cristo na conquista de nossa salvação. Paulo, porém, aqui está negando energicamente que alguém mais, além de Cristo, tenha sido crucificado em nosso favor. De fato, os mártires morreram para nosso benefício, mas (no dizer de Leo)31 foi para dar-nos o exemplo de firmeza, e não para adquirir-nos o dom da justiça. vavelmente tinha em mente o celebrado sentimento de Horácio (Epist. i.1.14): “Nullius addictus jurare in verba magistri.” – “Obrigado a jurar fidelidade a nenhum senhor”, enquanto impõe o sentimento por uma poderosa consideração, à qual o poeta pagão era totalmente estranho. 30 “Du sang de Christ, et des martyrs tous ensemble.’ – “Do sangue de Cristo e de todos os mártires juntos.” 31 Leo, ad Palæstinos, Ep. 81. A passagem supramencionada é citada livremente nas Institutas. “Ainda que a morte de muitos santos fosse preciosa aos olhos do Senhor [Sl 116.15], contudo nenhum inocente assassinado era a propiciação do mundo. Os justos recebiam coroas, porém não as davam; e a fortaleza dos crentes produzia exemplos de paciência, não dons de justiça. Pois suas mortes eram para si mesmos; e nenhum deles, ao morrer, pagava a dívida de outro, com a exceção de Cristo nosso Senhor, em quem unicamente todos somos crucificados, todos mortos, sepultados e ressurretos.” Leo, de cujos escritos foi extraída esta admirável passagem, foi um bispo romano que viveu no quinto século, e foi um dos mais eminentes homens de sua época. Ele foi o mais zeloso defensor das doutrinas da graça, em oposição ao pelagianismo e outras heresias.
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Ou fostes batizados em nome Paulo? Seu segundo argumento é extraído da profissão do batismo. Pois nos alistamos sob sua bandeira, em cujo nome somos batizados. Desta forma somos unidos32 a Cristo, em cujo nome nosso batismo é celebrado. Daqui se segue que os coríntios podem ser acusados de perfídia e apostasia, caso se rendam em sujeição aos homens. Note-se aqui que a natureza do batismo é como um bônus de contrato33 de mútua obrigação, pois como o Senhor, por meio deste símbolo, nos recebe em sua família, e nos introduz no seio de seu povo, e assim penhoramos nossa fidelidade a ele de que jamais teremos qualquer outro senhor espiritual. Conseqüentemente, como Deus, de sua parte, faz um pacto de graça conosco, no qual promete a remissão de pecados e uma nova vida, assim também, de nossa parte, fazemos um voto de empreendermos guerra espiritual, por meio da qual lhe prometemos ser seus perenes vassalos. Paulo aqui não trata da primeira parte, visto que o contexto não o requer; ao tratar do batismo, porém, a segunda parte não poderia ficar omitida. De fato, Paulo não está propriamente acusando os coríntios de deserção, por terem abandonado a Cristo e se voltado para os homens; está, porém, realçando o próprio fato de que, não se mantendo firmes em Cristo, e tão-somente em Cristo, se constituíram em transgressores do pacto. Suscita-se uma pergunta: o que significa ser batizado em nome de Cristo? Minha resposta é que essa maneira de se expressar significa não só que o batismo se acha fundamentado na autoridade de Cristo, mas também que ele repousa em seu poder, e em certo sentido consiste nisso; e finalmente que todo o efeito dele depende do fato de o nome de Cristo ser invocado nele. Pode-se suscitar, porém, outra pergunta: por que Paulo diz que os coríntios haviam 32 “Obligez par serment.” – “Atados por juramento.” 33 “Syngrapha (o termo empregado por Calvino) era um contrato ou vínculo, formalmente endossado entre duas partes, assinado e selado por ambas, e uma cópia dada a cada uma.” Cic. Verr. i.36. Dio. xlviii.37. Deriva-se de um termo grego, συγγραφὴ (um instrumento ou obrigação legal). Heródoto, i.48; e Demóstenes, cclxviii.13.
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sido batizados em nome de Cristo, quando o próprio Cristo ordenara [Mt 28.19] que os apóstolos batizassem em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo? Minha resposta é que, ao tratarmos do batismo, nossa primeira consideração consiste em que Deus o Pai, tendo-nos introduzido, por sua imerecida mercê, em sua Igreja, recebe-nos, por meio da adoção, à comunhão de seus filhos. Em segundo lugar, visto que nenhuma união com ele nos é possível a não ser por meio da reconciliação, é indispensável que Cristo nos restaure ao favor do Pai, por meio de seu sangue. Em terceiro lugar, visto que somos consagrados a Deus pelo batismo, precisamos também da intervenção do Espírito Santo, cuja função é transformar-nos em novas criaturas. Realmente, sua obra especial é lavar-nos no sangue de Cristo; mas, visto que só obtemos a misericórdia do Pai, ou a graça do Espírito, tão-somente por meio de Cristo, temos boas razões para denominá-lo o próprio objeto [scopum] do batismo, e associamos o batismo com seu nome em particular. Todavia, isso de forma alguma suprime os nomes do Pai e do Espírito. Pois quando desejamos falar brevemente da eficácia do batismo, mencionamos só o nome de Cristo. Quando, porém, desejamos ser mais precisos, então devemos também incluir os nomes do Pai e do Espírito. 14. Dou graças a Deus porque não batizei a nenhum de vós, salvo Crispo e Gaio; 15. para que ninguém diga que fostes batizados em meu próprio nome. 16. E batizei também a casa de Estéfanas; além destes, não me lembro se batizei algum outro. 17. Porque Cristo não me enviou a batizar, mas a pregar o evangelho; não em sabedoria de palavras, para que a cruz de Cristo não ficasse sem efeito. 18. Porque a pregação da cruz, para os que perecem, é loucura; mas para nós, que somos salvos, é o poder de Deus.
14. Gratias ago Deo meo, quod neminem baptizaverim vestrûm, nisi Crispum et Gaium: 15. Ne quis dicat, quod in meum nomen baptizaverim. 16. Baptizavi autem et Stephanæ familiam; præterea nescio, num quem alium baptizaverim. 17. Non enim misit me Christus ut batizarem, sed ut evangelizarem: non in sapientia sermonis, ne inanis reddatur crux Christi. 18. Nam sermo crucis iis, qui pereunt, stultitia est; at nobis qui salutem consequimur, potentia Dei est.
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19. Pois está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios; E reduzirei a nada a prudência dos prudentes. 20. Onde está o sábio? onde está o escriba? onde está o inquiridor deste mundo? Não tornou Deus em loucura a sabedoria do mundo?
19. Scriptum est enim; (Ies. xxix.14); perdam sapientiam sapientum, et intelligentiam intelligentum auferam e medio. 20. Ubis sapiens? ubi scriba? ubi disputator hujus saeculi? nonne infatuavit Deus sapentiam mundi hujus?
14. Dou graças a Deus. Nestas palavras, ele censura acremente a perversidade dos coríntios, o que o levou a abster-se, até certo ponto, de algo tão santo e honroso, que é a administração do batismo. Realmente Paulo teria agido dentro de seus direitos, e em consonância com a natureza de seu ofício, caso tivesse ele batizado um grande número de pessoas. Ele, porém, se alegra de haver acontecido o contrário e de estar consciente de que assim se deu pela providência divina, para que não houvesse nele ocasião de orgulho, ou para que não se assemelhasse aos homens ambiciosos que estavam à espreita de seguidores. Mas, o que aconteceria se Paulo tivesse batizado muitos? Não teria havido nenhum erro nisso; mas (como eu já disse) há envolvido nisso uma severa censura contra os coríntios e seus apóstolos, visto que um servo do Senhor se alegrava em abster-se de uma obra, igualmente boa e valiosa, com o fim de evitar que viesse a converter-se na causa de prejuízo para os coríntios. 17. Porque Cristo não me enviou etc. Paulo levanta uma possível objeção contra si mesmo, a saber, que ele não cumprira o que deveria ter feito à luz do fato de que Cristo ordenara a seus apóstolos que batizassem e ensinassem. Portanto, ele replica que esse não era o principal departamento de seu ofício, pois a tarefa de ensinar lhe fora imposta como sendo primordial, à qual ele deveria devotar-se. Pois quando Cristo diz aos apóstolos: “Ide, pregai e batizai” [Mt 28.19; Mc 16.15], ele anexa o batismo ao ensino simplesmente como adição ou apêndice. De modo que o ensino é mantido sempre em primeiro lugar.
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Entretanto, duas coisas se devem notar aqui. A primeira é que o apóstolo, aqui, não nega que tivesse uma ordem para batizar. Pois as palavras, Ide, batizai, aplicam-se a todos os apóstolos, e ele teria sido presunçoso se batizasse alguém sem ter autoridade para fazê-lo. O que ele faz aqui é simplesmente realçar a tarefa para a qual fora chamado. A segunda questão é esta: ele aqui de forma alguma deprecia a dignidade e o efeito do batismo, como pensam alguns. Porquanto Paulo aqui não está tratando da eficácia do batismo, e nem faz tal comparação com o fim de denegrir sua eficácia. Visto, porém, que o dom de ensinar pertencia a uns poucos, enquanto que a muitos se permitia batizar, e também visto que muitos podiam ser ensinados de uma só vez, enquanto que o batismo podia ser administrado a um só indivíduo de cada vez, Paulo, que excedia na habilidade de ensinar, persistiu na obra que lhe pareceu mais necessária, enquanto que deixara a outros o que podiam melhor fazer. Além disso, se os leitores considerarem todas as circunstâncias, mais atentamente, verão que subjaz aqui uma ironia34 implícita, pois tacitamente ferroa os que buscavam um pouco de glória à expensa do labor de outros, sob o pretexto de administrar uma cerimônia religiosa. Pois o labor de Paulo na edificação daquela igreja tinha sido incrível. Certamente que mestres despreocupados vieram depois dele, os quais atraíram discípulos para seu partido por meio da aspersão de água.35 Portanto, Paulo lhes confere o título de honra (honoris), e assevera que está contente em ficar com o trabalho oneroso [onere].36 Não em sabedoria de palavras. Há aqui um exemplo de antecipação, por meio do qual ele refuta uma dupla objeção. Pois esses pretensos mestres poderiam responder que Paulo, que não possuía o dom da eloqüência, se ostentava de forma ridícula ao alegar que o departamento docente lhe fora confiado. Por essa razão ele diz, à guisa de concessão, 34 Ironie, c’est à dire, mocquerie.” – “Ironia, isto é, zombaria.” 35 “Seulement en les arrousant d’euau: c’est à dire, baptizant.” – “Simplesmente por aspergi-los com água, ou, seja, batizando-os.” 36 “Toute la charge et la pesanteur du fardeau.” – “Toda a carga e peso do fardo.”
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que não fora formado para ser orador,37 que pudesse ostentar elegância de palavras, mas que era ministro do Espírito, um servo que, com fala ordinária e sem polimento, nada possuía da sabedoria do mundo. Ora, para que ninguém objetasse, dizendo que ele corria atrás de glória através de sua pregação, assim como tantos outros faziam quando batizavam, ele responde de forma breve dizendo que, visto que o método de ensinar, que ele seguia, era despido de todo brilhantismo, e não revelava qualquer laivo de ambição, então não podia ser suspeito a esse respeito. Portanto, se não estou equivocado, podemos prontamente deduzir qual era o principal aspecto da controvérsia que Paulo manteve com os maus e infiéis ministros de Corinto, a saber, uma vez que se achavam dominados pela ambição, procuravam angariar a admiração do povo para si, insinuando-se ante o povo por meio da exibição de palavras e simulação [larva] de sabedoria humana. Deste mal principal surgem outros dois. (1) Que por meio do que podemos chamar dissimulação (por assim dizer), a simplicidade do evangelho era deformada e Cristo era vestido, por assim dizer, de uma nova e estranha vestimenta, de modo que o puro e genuíno conhecimento dele estava oculto dos olhos. Além do mais, (2) visto que a mente dos homens38 estava voltada para o brilhantismo e excelência de palavras, para as especulações engenhosas, para a fútil exibição de sublimidade superior da doutrina, a eficácia do Espírito desvanecia e nada era deixado senão a letra morta. A majestade de Deus, que resplandece no evangelho, era apagada, e no lugar só era visível a púrpura e a pompa infrutífera. Conseqüentemente, com o fim de desnudar tais corrupções do evangelho, Paulo faz aqui uma transição para o método de sua pregação. Ele assevera que sua forma de pregar é correta e legítima, ainda que seja, ao mesmo tempo, diametralmente aposta à ostentação daqueles indivíduos interesseiros.39 É como se ele dissesse: “Eu sei como muitos daqueles 37 “Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.” 38 “Ces vaillans docteurs.” – “Aqueles mestres valentes.” 39 Vn Rhetoricien ou harangueur.” – “Um retórico ou declamador.”
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mestres ‘boa-vida’ gostam de vos lisonjear com sua linguagem pomposa. Quanto a mim, confesso que minha pregação é feita num estilo destituído de polimento, deselegante e sem qualquer erudição, mas também me glorio dela. Pois era preciso ser assim, esse foi o método prescrito por Deus.” Por sabedoria de palavras ele não quer dizer prestidigitação verbal (λογοδαιδαλία),40 o que não passa de mera fala vazia, mas verdadeira eloqüência, que consiste em habilidosa escolha de assuntos, em arranjo pomposo e excelência de estilo. Ele declara que não possuía nada disso; na verdade, em sua pregação não havia nada de conveniente nem v antajoso. Para que a cruz de Cristo não fique sem efeito. Como Paulo costumava pôr com freqüência o nome de Cristo em contraste com a orgulhosa sabedoria carnal, assim ele agora planta a cruz de Cristo bem no centro, a fim de destronar toda a arrogância e superioridade dessa sabedoria. Pois toda a sabedoria dos crentes está concentrada na luz de Cristo. E existe algo mais desprezível que uma cruz? Portanto, aquele que é verdadeiramente sábio nas coisas de Deus precisa necessariamente inclinar-se para a ignomínia da cruz. Isso só se fará, antes de tudo, renunciando seu próprio entendimento das coisas, bem como toda a sabedoria do mundo. Aliás, Paulo está ensinando aqui não só que espécie de homens devem ser os discípulos de Cristo, e qual a vereda do aprendizado devem trilhar, mas também qual o método de ensino deve ser usado na escola de Cristo. “A cruz de Cristo se tornaria sem efeito”, diz ele, “se minha pregação fosse adornada com eloqüência e brilhantismo.” Ele usou aqui a cruz de Cristo para o benefício da redenção, a qual deve ser buscada no Cristo crucificado. Ora, a doutrina do evangelho, que nos chama para o desfruto desse benefício, deve lembrar a natureza da cruz, de modo que, em vez de ser gloriosa, seja, ao contrário, desprezível e indigna aos olhos do mundo. O significado, pois, consiste em que, se Paulo tivesse lançado mão de sutileza e de linguagem pom40 O termo λογοδαιδαλία propriamente denota linguagem engenhosamente inventada. É composto de λογος (fala) e Δαιδαλος (Dædalus), um artista engenhoso de Atenas, celebrado por sua habilidade em estatuário e arquitetura. Daí tudo quanto era habilidosamente inventado passou a chamar dedaliano.
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posa de um filósofo, em seu trato com os coríntios, o poder da cruz de Cristo, na qual descansa a salvação dos homens, teria sido sepultado, porque ele [o poder da cruz] não pode nos atingir desta maneira. Aqui se propõem duas perguntas: Primeiramente, se Paulo aqui condena, em todos os aspectos, a sabedoria de palavras, como algo que se opõe a Cristo; e, segundo, se ele tem em mente o fato de que a eloqüência e a doutrina do evangelho são invariavelmente opostas, então ambas não podem conviver em harmonia, e que a pregação do evangelho é contaminada, caso o mais leve matiz de eloqüência41 for usado para adorná-la. À primeira questão respondo que é totalmente irracional presumir que Paulo condenasse peremptoriamente aquelas artes que, evidentemente, são esplêndidos dons de Deus, dons esses que servem como instrumentos, por assim dizer, a auxiliarem os homens na concretização de seus importantes propósitos. Portanto, visto que nessas artes nada existe de superstição, mas que são detentoras de sólida erudição,42 e se acham fundamentadas em princípios justos; e visto que são úteis e adequados às transações comuns da vida humana, assim não pode haver dúvida de que sua origem se radica no Espírito Santo. Além disso, a utilidade que se deriva e se experimenta delas deve ser atribuída exclusivamente a Deus. Portanto, o que Paulo diz aqui não deve ser considerado como um desdouro dessas artes, como se fossem desfavorável à piedade [cristã]. A segunda questão é um pouco mais difícil, pois ele diz que a cruz de Cristo será sem efeito se houver nela qualquer mescla da sabedoria de palavras. Minha resposta é que nossa atenção deve estar focalizada naqueles a quem Paulo se dirige. Pois os ouvidos dos coríntios sofriam comichões, com tola avidez, ao som de discursos rebuscados.43 Por41 “Eloquence et rhetorique.” – “Eloqüência e retórica.” 42 “Vne bonne erudition, et sçauoir solide.” – “Bom aprendizado e sólida sabedoria.” 43 “Les Corinthiens auoyent les oreilles chatouilleuses, et estoyent transportez d’vn fol appetit d’auoir des gens qui eussent vn beau parler.” – “Os coríntios tinham coceira nos ouvidos [2Tm 4.3], e se deixavam levar por tola ansiedade de ver pessoas que tinham bom gosto em vestir-se.”
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tanto, careciam de ser chamados de volta à ignomínia da cruz mais do que outras pessoas, para que aprendessem a abraçar a Cristo como ele é, sem qualquer adorno, e ao evangelho em sua simplicidade, livre de todo e qualquer adorno falso. Ao mesmo tempo reconheço que, em alguma medida, este conceito tem uma validade permanente, a saber, que a cruz de Cristo perde seu efeito não meramente em virtude da sabedoria do mundo, mas também da elegância lingüística. Pois a proclamação de Cristo crucificado é simples e sem adorno; e por isso não deve ser obscurecida por falsos ornamentos de linguagem. A prerrogativa do evangelho é humilhar a sabedoria do mundo de tal maneira que, despojados de nosso próprio entendimento, nos tornemos plenamente dóceis, e não pretendamos saber, ou mesmo desejar conhecer algo que não seja aquilo que o próprio Senhor ensina. No que respeita à sabedoria humana, teremos ocasião de avaliar mais detidamente, mais adiante, em que aspectos ela é oposta a Cristo. Quanto à eloqüência, chamarei a atenção para ela de forma abreviada, até onde a passagem o permite. Percebemos que desde o início Deus ordenou questões como esta: que o evangelho fosse administrado com simplicidade, sem qualquer auxílio da eloqüência. Não poderia aquele que modelou a língua dos homens para que fosse eloqüente, ser ele mesmo eloqüente caso assim o quisesse? Embora ele pudesse agir assim, contudo não quis que assim fosse. Por que ele não quis agir dessa forma, descubro duas razões mais específicas. A primeira é esta: para que a majestade de sua verdade pudesse resplandecer com a máxima nitidez, e a simples eficácia de seu Espírito, sem auxílios externos, pudesse penetrar as mentes humanas. A segunda razão é esta: para que ele pudesse treinar mais eficazmente nossa obediência e docilidade, e ao mesmo tempo nos instruir no caminho da genuína humildade. Pois o Senhor a ninguém mais admite em sua escola senão os pequeninos.44 Portanto, as únicas pessoas capacitadas com sabedoria celestial são aquelas que 44 “Les humbles.” – “Os humildes.”
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vivem contentes com a pregação da cruz, por mais indignas possam aparentar, e que não nutrem nenhum desejo de ver Cristo por trás de uma máscara [larratum]. Por isso a doutrina do evangelho tem de ser ministrada para servir ao propósito de despir os crentes de toda arrogância e orgulho. O que fazer, porém, se alguém em nossos dias, discursando com algum grau de elegância, adornar a doutrina do evangelho com faiscante eloqüência? Ele mereceria, por essa conta, ser rejeitado como se estivesse poluindo ou obscurecendo a glória de Cristo? Minha resposta, antes de tudo, é que a eloqüência não se acha de forma alguma em conflito com a simplicidade do evangelho quando, isento de menosprezo pelo evangelho, não só lhe dá o lugar de honra e se põe em sujeição a ele, mas também lhe presta um serviço como uma empregada faz a sua patroa. Pois, como diz Agostinho, “Aquele que deu Pedro, o pescador, também deu Cipriano, o orador”. Ele quis dizer com isso que ambos os homens provêm de Deus, ainda que um deles, sendo muito superior ao outro em dignidade, seja totalmente despido de atavismo verbal; enquanto que o outro, se assenta aos pés do primeiro, se distingue pela fama de sua eloqüência. Não devemos condenar nem rejeitar o gênero de eloqüência que não almeja cativar cristãos com um requinte exterior de palavras, nem intoxicar os ouvintes com deleites fúteis,45 nem fazer cócegas em seus ouvidos com sua suave melodia, nem envolver a cruz de Cristo com sua fútil exibição, à semelhança de um véu. Senão que, ao contrário, seu alvo é trazer-nos de volta à original simplicidade do evangelho e pôr em relevo a pregação da cruz e nada mais, humilhando-se voluntariamente, e finalmente cumprindo, por assim dizer, seus deveres de arauto,46 para obter a atenção daquelas pessoas simples, comuns e sem cultura, que não desfrutam de nenhum atrativo senão do poder do Espírito. 45 “Ni à offusquer de sa pompe la croix de Christ, comme qui mettroit vne nuée au deuant.” – “Nem turvar a cruz de Cristo com sua fútil exibição, como se fosse atrair uma nuvem sobre ela.” 46 “Brief, à seruir comme de trompette.” – “Em suma, para servir de trombeta.”
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Em segundo lugar, respondo que o Espírito de Deus também possui uma eloqüência peculiarmente sua. Ela brilha com aquele esplendor que lhe é natural, fazendo uso de uma palavra mais excelente, intrínseca (como dizem), superior aos pretensos ornamentos retóricos. Os profetas possuíam esta eloqüência, particularmente Isaías, Davi e Salomão. Moisés também possuía uma pitada dela. Ainda mais: mesmo nos escritos dos apóstolos, ainda que não tão polidos, não obstante há tênues centelhas dela se exibindo ocasionalmente ali. Daí, a eloqüência que está em conformidade com o Espírito de Deus é de tal forma natural que nem é bombástica nem ostentosa, nem ainda produz um forte volume de ruídos que equivalem a nada. Antes é sólida e eficaz, e possui mais substância do que elegância. 18. Porque a palavra da Cruz. Nesta primeira sentença, ele faz uma concessão. Porque, visto ser fácil objetar que o evangelho comumente é considerado com desdém, se ele vem a ser conhecido numa forma despida e insignificante, Paulo espontaneamente o admite. Mas quando ele acrescenta que esse é o ponto de vista daqueles que estão a perecer, significa que pouquíssimo valor se deve pôr em sua opinião. Pois quem iria querer condenar o evangelho às custas de sua perdição? Portanto, esta expressão deve ser entendida nestes termos: “A pregação da cruz é considerada loucura por aqueles que estão a perecer, justamente porque ela não possui qualquer atavio de sabedoria humana que o recomende. Seja como for, em nossa opinião, não obstante, a sabedoria de Deus está vividamente irradiando-se dela.” Paulo, contudo, indiretamente está censurando o juízo pervertido dos coríntios, os quais se deixavam facilmente fascinar-se por palavras sedutoras de mestres megalomaníacos, e ainda olhavam com desdém para o apóstolo que era dotado com o poder de Deus para a salvação deles, e procediam assim simplesmente porque ele se devotava à proclamação de Cristo. Em meu comentário aos Romanos [1.16] expliquei de que maneira a proclamação da cruz é o poder de Deus para a salvação. 19. Pois está escrito. Ao usar o testemunho de Isaías, Paulo prova ainda mais quão errônea é a idéia de que a veracidade do evangelho
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seria tomada com preconceito com base no fato de que os sábios deste mundo o vêem com descaso, para não dizer com zombaria. Pois é evidente, à luz das palavras dos profetas, que a opinião deles é reputada como nada sendo aos olhos de Deus. As palavras acima são tomadas de Isaías 29.14, onde o Senhor ameaça que se vingará da hipocrisia do povo com esse gênero peculiar de castigo, ou, seja: que “a sabedoria dos sábios perecerá” etc. Ora, isso se aplica à situação com que Paulo está lidando, da seguinte forma: “Não é novo nem fora do comum que homens, que parecem em outros aspectos ser eminentes pela sabedoria, formem juízos totalmente absurdos. Pois o Senhor tem por hábito de punir desta maneira a arrogância daqueles que confiam em sua própria habilidade natural e pretendem ser seus próprios guias e os de outras pessoas. Foi assim que ele, certa vez, destruiu a sabedoria dos líderes de Israel. Se tal sucedeu àquele povo, cuja sabedoria as demais nações tiveram ocasião de admirar, o que virão a ser as demais? Entretanto, devemos comparar as palavras do profeta com as de Paulo, e examinar toda a questão ainda mais estreitamente. Deveras o profeta usa verbos neutros quando diz que “a sabedoria perecerá e a prudência se desvanecerá”, quando Paulo os transpõe para a forma ativa, fazendo Deus o sujeito, contudo concordam perfeitamente em significado. Pois Deus demonstra que ele executará esta grande maravilha, para que todos sejam postos em espanto. Assim, “a sabedoria perece”, mas é através do ato destruidor do Senhor; “a sabedoria se desvanece”, mas é pelo ato do Senhor em cobri-la e extingui-la. Ora, o segundo verbo, αθετει̑ν, o qual Erasmo traduz por reiicere [rejeitar], é ambíguo e às vezes é tomado no sentido de extinguir (delere), ou riscar (expungere), ou obliterar [obliterare]. Este é o sentido em que prefiro tomá-lo, para fazê-lo corresponder à palavra do profeta: desvanecer ou estar oculto [desaparecer]. Ao mesmo tempo, há outra razão que teve uma influência mais forte em mim,47 a saber, a idéia de rejeição não se 47 “Combien que j’aye vne raixon encore plus valable, qui m’a induit à changer ceste translation.” – “Ao mesmo tempo, tenho uma razão ainda mais forte que me tem induzido a alterar esta tradução.”
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harmonizava com o tema, como logo se fará evidente. Consideremos, pois, o significado. O profeta quer provar mui claramente que eles [os judeus] não mais teriam governadores com qualificações legítimas para governar bem, porque o Senhor os privará de perfeito juízo e de inteligência. Pois assim como em outras passagens [Is 6.10] ele ameaça a todas as pessoas com cegueira, também aqui com relação aos líderes; é precisamente como se ele fosse arrancar os olhos físicos. Seja como for, uma grande dificuldade surge da circunstância de que os termos sabedoria e prudência são considerados por Isaías em bom sentido, enquanto Paulo os cita com um propósito completamente diferente, como se a sabedoria dos homens fosse condenada por Deus como sendo perversa, e sua prudência rejeitada como sendo mera vaidade. Concordo que ela é explicada dessa forma, visto, porém, ser indubitável que os oráculos do Espírito Santo não são pervertidos pelos apóstolos para assumirem outros significados estranhos a seu real desígnio, prefiro afastar-me da opinião comum dos intérpretes, do que acusar Paulo de distorcer a verdade. E também em outros aspectos o significado natural das palavras do profeta não se adequa mal com a intenção de Paulo. Pois se mesmo os sábios se tornam insensatos quando o Senhor retira um espírito justo, que confiança deve ser depositada na sabedoria humana? Além disso, visto que a maneira usual de Deus vingar-se é golpeando com cegueira aos que se acham presos a seu próprio entendimento e são excessivamente sábios a seus próprios olhos, e não surpreende que homens carnais se levantem contra Deus na tentativa de fazer sua eterna verdade ser substituída por suas temeridades, tornam-se insensatos e vêm a ser fúteis em suas imaginações. Agora percebemos com que pertinência Paulo faz uso deste testemunho. Isaías declara que a vingança de Deus que recai sobre todos quantos serviram a Deus com suas próprias invenções seria que “a sabedoria desapareceria de seus sábios”. Paulo faz uso deste testemunho de Isaías com vistas a provar que a sabedoria deste mundo é inútil e sem valor quando se exalta contra Deus.
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20. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Esta nota de sarcasmo é adicionada com o propósito de ilustrar o testemunho do profeta. Paulo por certo não tomou esta expressão de Isaías, como comumente se imagina, mas é uma expressão de seu próprio pensamento. Pois a passagem de Isaías [33.18], a que as pessoas se referem, não tem absolutamente nenhuma similitude ou relação com a presente abordagem. Porque, visto que Isaías está ali prometendo aos judeus o livramento do juízo de Senaqueribe a fim de mostrar-lhes muito mais claramente quão grande é essa bênção divina, ele então prossegue lembrando-lhes a condição ignóbil daqueles que são oprimidos pela tirania de estrangeiros. Diz que eles viviam num constante estado de agitada incerteza, quando pensam em si mesmos como sendo ameaçados por escribas e tesoureiros, pelos que pesavam os tributo e por contadores de torres. Mais que isso, ele diz que os judeus tinham vivido em situações tão críticas, que eram movidos à gratidão pela simples lembrança delas. Portanto, é um equívoco imaginar que esta expressão foi tomada do profeta.48 O termo mundo não deve ser tomado em conexão meramente com o último termo, mas também com os outros dois. Ora, pela expressão, sábios deste mundo, ele quer dizer os que não derivam sua sabedoria da iluminação do Espírito por meio da Palavra de Deus, mas, revestida com mera e profana sagacidade, repousa na segurança que ela propicia. Geralmente se concorda que o termo escribas significa mestres. Porque, visto que rps, saphar, entre os hebreus, significa narrar ou contar, e o substantivo derivado dela, rps, sepher, significa livro ou volume, empregam o termo myrp]ws, sopherim, para denotar os homens eruditos e os que são amigos dos livros. Por essa razão também sopher regis às vezes é usado para denotar um chanceler ou secretário. Então os gre48 “As palavras de Paulo em 1 Coríntios 1.20 não constituem, como alguns imaginavam, uma citação das palavras deste versículo” [Is 33.18]. “Os únicos pontos de concordância entre elas são meramente a ocorrência de γραμματεὺς, e a repetição da interrogativa που̑. Não é impossível, contudo, que a estrutura de uma passagem esteja sugerida na outra.” – Henderson sobre Isaías.
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gos, seguindo a etimologia da palavra hebraica, traduziam γραμματεις para escribas.49 Paulo, apropriadamente, chama investigadores50 aos que revelam perspicácia em lidar com problemas difíceis e questões intrincadas. Portanto, falando em termos gerais, ele destroça todas as habilidades naturais dos homens, ao ponto de não valerem nada no reino de Deus. E não é sem boas razões que ele fala tão veementemente contra a sabedoria humana. Pois nenhuma palavra pode descrever quão difícil é eliminar das mentes humanas sua mal direcionada confiança na carne, para que não arroguem para si mais do que lhes é devido. Entretanto, seria ir além dos limites se, confiando, mesmo em mínimo grau, em sua própria sabedoria, se aventurarem a formar opiniões a seu próprio respeito. Não tornou Deus louca a sabedoria do mundo? Por sabedoria, Paulo quer dizer, aqui, tudo quanto o homem pode compreender, não só por sua própria habilidade mental e natural, mas também pelo auxílio da experiência, escolaridade e conhecimento das artes. Porquanto, ele contrasta a sabedoria do mundo com a sabedoria do Espírito. Segue-se que qualquer conhecimento que uma pessoa venha a possuir, sem a iluminação do Espírito Santo, está incluído na sabedoria deste mundo. Ele afirma que Deus tornou ridículo tudo isso, ou condenou como loucura. Deve-se entender de duas maneiras como isso é feito. Pois qualquer conhecimento e entendimento que uma pessoa porventura possua não tem o menor valor se não repousar na verdadeira sabedoria; e não é de mais valor para apreender o ensino do que os olhos de um cego para distinguir as cores. Deve-se prestar cuidadosa atenção 49 A frase hebraica mencionada ocorre em 2 Reis 12.10, ilmh rps, o escriba do rei. É traduzida pela Septuaginta ὁ γραμματεύς του̑ βασιλέως. O termo grego correspondente, γραμματεύς, é empregado pelos escritores clássicos para denotar um clérigo ou secretário (Demosth. 269.19). Os notários (γραμματεις) “tinham a custódia da lei e dos registros públicos que tinham por dever escrever e repetir para o povo e senado quando assim requerido.” – Potter’s Grecian Antiquities, Vol. I, p. 103. 50 Calvino aqui evidentemente tem diante dos olhos o significado original de συζητητης, que se deriva de συν e ζητεω (inquirir juntos) e chegou naturalmente a significar alguém que se entrega a argumentos ou disputas. O termo era aplicado aos sofistas sutis, ou os que disputavam nas academias gregas.
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a ambas as questões, ou, seja: Primeiramente, que o conhecimento de todas as ciências não passa de fumaça à parte da ciência celestial de Cristo; e, segundo, que o homem com toda sua astúcia é demais estúpido para entender, por si só, os mistérios de Deus. Precisamente como um asno é incapaz de entender a harmonia musical. Paulo mostra a disposição para o orgulho devorador existente naqueles que se vangloriam na sabedoria deste mundo, ao ponto de desprezarem a Cristo e a toda a doutrina da salvação, imaginando que serão felizes meramente por aderirem às coisas deste mundo. Também golpeia a arrogância daqueles que, confiando em sua própria capacidade, tentam escalar o próprio céu. Há também uma solução fornecida, ao mesmo tempo, para a pergunta: Como é possível que Paulo lance por terra, desta forma, todo gênero de conhecimento que existe fora de Cristo, e calcar aos pés, por assim dizer, o que bem se sabe ser o principal dom de Deus neste mundo? Pois o que há de mais nobre do que a razão humana, por meio da qual excelemos aos demais animais? Quão sumamente merecedoras de honra são as ciências liberais, as quais refinam o homem de tal forma que o fazem verdadeiramente humano! Além disso, que extraordinários e seletos frutos eles produzem! Quem não atribuiria o mais sublime louvor a fim de exaltar a prudência51 estadista (sem falar em outras coisas), por meio da qual estados, impérios e reinos são mantidos? Creio que uma solução para esta pergunta é a seguinte: é evidente que Paulo não condena peremptoriamente, seja o discernimento dos homens, seja a sabedoria granjeada pela prática e a experiência, seja o aprimoramento da mente através da cultura; mas o que ele diz é que todas essas coisas são inúteis para a obtenção da sabedoria espiritual. E certamente é loucura para todos quantos presumem que podem escalar o céu, confiando em sua própria perspicácia ou com o auxílio da cultura; em outros termos, é loucura pretender investigar os mistérios 51 “La prudence civile, c’est à dire la science des lois.” – “Prudência civil, isto é, a ciência das leis.”
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secretos do reino de Deus52 [ x 19.21], ou forçar caminho para o conhecimento deles, pois eles se acham ocultos à percepção humana. Portanto, tomemos nota do fato de que devemos limitar-nos às circunstâncias do presente caso, ou, seja, que Paulo aqui ensina acerca da futilidade da sabedoria deste mundo, a saber: que ela permanece no nível deste mundo, e que de forma alguma alcança o céu. É também verdade, em outro sentido, que fora de Cristo cada ramo do conhecimento humano é fútil, e o homem que se acha bem estabelecido em cada aspecto da cultura, mas que prossegue igualmente ignorante de Deus, não possui nada. Além do mais, deve-se também dizer, com todas as letras, que estes excelentes dons divinos – perspicácia mental, agudeza da razão, ciências liberais, conhecimento idiomático – tudo isso, de uma forma ou de outra, se corrompe, sempre que cai nas mãos dos ímpios.
21. Visto que, na sabedoria de Deus, o mundo não o conheceu por sua sabedoria, foi do agrado de Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação. 22. Visto que os judeus pedem sinais, e os gregos buscam sabedoria, 23. para os que são chamados, porém, tanto judeus como grego, 24. [pregamos] Cristo, o poder de Deus, e a sabedoria de Deus. 25. Porque a loucura de Deus é mais sábia que os homens; e a fraqueza de Deus é mais forte que os homens.
21. Quoniam enim in sapientia Dei non cognovit mundus per sapientiam Deum, placuit Deo per stultitiam prædicationis salvos facere credentes. 22. Siquidem et Judaæ signum petunt et Græci sapientiam quærunt. 23. Nos autem prædicamus Christtum crucifixum, Judæis quidem scandalum, Græcis autem stultitiam: 24. Ipsis autem vocatis, tam Judæis, quam Græcis, Christum Dei potentiam, et Dei sapientiam. 25. Nam stultitia Dei sapientior est hominibus, et infirmitas Dei robustior est hominibus.
21. Visto que o mundo não conheceu. A ordem correta das coisas era precisamente esta: que o homem, contemplando a sabedoria de Deus em suas obras, pelo auxílio da luz do entendimento que lhe 52 Veja-se Institutas, vol. i, pp. 323, 324.
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fora fornecida pela natureza (ingenita sibis injenii luce), pudesse chegar a uma familiaridade com ele. Mas em razão desta ordem ter-se invertido pela perversidade do homem, a vontade de Deus, antes de tudo, é tornar-nos loucos a nossos próprios olhos, antes de começar a instruir-nos no conhecimento da salvação [2Tm 3.15]. Daí em diante, como evidência de sua sabedoria, ele põe diante de nossos olhos aquilo que tem certa aparência de loucura. A ingratidão dos homens mereceu esta inversão das coisas. Paulo descreve como sabedoria de Deus as belezas do mundo todo, as quais são esplêndida evidência de sua sabedoria, pois elas se nos afiguram de maneira demasiadamente clara. Portanto, nas coisas que ele criou, Deus mantém diante de nós nítido espelho de sua esplendorosa sabedoria. Em resultado, qualquer indivíduo que desfrute de pelo menos uma leve fagulha de bom senso, e atenta para o mundo e para outras obras divinas, se vê dominado por ardente admiração por Deus. Se os homens chegassem a um genuíno conhecimento de Deus pela observação de suas obras, certamente viriam a conhecer Deus de uma forma sábia, ou daquela forma de adquirir sabedoria que lhes é natural e adequada. Mas porque o mundo todo não aprendeu absolutamente nada do que Deus revelou de sua sabedoria nas coisas criadas, ele, pois, passou a instruir os homens de outra maneira. Deve-se atribuir a nossa própria culpa o fato de não alcançarmos um conhecimento salvífico de Deus antes de sermos esvaziados de nosso próprio entendimento. Paulo faz uma concessão ao chamar o evangelho de loucura da pregação, pois esta é precisamente a luz na qual ele é considerado por aqueles “sábios insensatos” (μωροσόφοις) que, intoxicados por falsa confiança,53 não temem subjugar a inviolável verdade de Deus a sua própria e medíocre censura. E, além do mais, não há dúvida de que a razão humana não acha nada mais absurdo do que a notícia de que Deus se tornou um homem mortal; que a vida está sujeita à morte; que a justiça foi velada sob a aparência de pecado; que a fonte de bênção 53 “Et outrecuidance.” – “E presunção.”
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ficou sujeita à maldição; que por esses meios os homens podem ser redimidos da morte e tornar-se participantes da bendita imortalidade; que podem obter a vida; que, sendo o pecado destruído, a justiça volta a reinar; e que a morte e a maldição podem ser tragadas. Não obstante, sabemos que o evangelho é, nesse ínterim, a sabedoria oculta [1Co 2.7] que excede os céus e suas alturas, e diante do qual até mesmo os anjos ficam pasmos. Esta é uma passagem muito excelente, e dela podemos ver nitidamente quão profunda é a obtusidade da mente humana que, em meio à luz, nada percebe. Pois é uma grande verdade que este mundo se assemelha a um teatro no qual o Senhor exibe diante de nós um surpreendente espetáculo de sua glória. Entretanto, quando tais cenas se descerram diante de nossos olhos, nos revelamos cegos como pedras, não porque a revelação seja obscura, mas porque somos “alienados no entendimento” (mente alienati, Cl 1.21), significando que não só a inclinação, mas também a habilidade nos são falhas. Porque, a despeito de Deus se nos revelar publicamente, todavia é só pelos olhos da fé que podemos contemplá-lo, tendo em mente que recebemos só uma leve noção de sua natureza divina, mas o bastante para pôr-nos na posição de seres sem justificativa [Rm 1.20]. Conseqüentemente, visto que Paulo aqui diz que Deus não pode ser conhecido pelo prisma das coisas que ele criou, devemos entender com isso que não se pode obter o conhecimento absoluto de Deus. Para que ninguém apresente pretexto em prol de sua ignorância, os homens fazem progresso na escola universal da natureza ao ponto de serem afetados com alguma consciência da deidade, porém não têm idéia do que seja a natureza de Deus. Ao contrário, seu pensamento se dissolve em nada [Rm 1.21]. Dessa forma a luz brilha nas trevas [Jo 1.5]. Portanto, segue-se que os homens não vivem no erro por mera ignorância, a fim de ficarem isentos da acusação de menosprezo, negligência e ingratidão. Portanto procede que “todos têm conhecimento de Deus” [Deum novisse], porém “não lhe dão glória” [Rm 1.21]; e que, em contrapartida, ninguém, à luz da mera natureza, jamais fez tanto progresso que chegasse a conhecer a Deus [Deum
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cognosceret]. Alguém poderia apresentar os filósofos como exceção a essa regra; replico, porém, que é especialmente em seu caso que há um conspícuo exemplo de nossa fraqueza. Pois não se pode encontrar sequer um que constantemente não tenha se afastado daquele princípio de conhecimento que já mencionei, vagueando54 pelos meandros de especulações ilusórias. São na maioria das vezes mais tolos do que espertos! Quando Paulo diz que “os que crêem são salvos”, isso corresponde ao versículo 18, ou, seja, que “o evangelho é o poder de Deus para a salvação” [Rm 1.16]. Além disso, ao contrastar os crentes, cujo número é diminuto, com um mundo cego e louco, Paulo está nos lembrando de que nos equivocamos quando nos sentimos perturbados ante o pequeno número dos salvos, visto que, pela ação de Deus, eles foram divinamente separados “para a salvação”. 22, 23. Visto que os judeus pedem sinais. Isso explica as sentenças anteriores, ou, seja, Paulo está mostrando de que maneira a pregação do evangelho é considerada uma loucura. Ao mesmo tempo ele não só explica, mas também expande, dizendo que os judeus fazem mais que reputar o evangelho como sendo de pouco valor, eles, além disso, o detestam. “Os judeus”, diz Paulo, “querem, através dos milagres, ter a evidência do poder divino ante seus olhos. Os gregos amam aquilo que possui o encanto da sutileza e se deleitam na engenhosidade humana. Nós, na verdade, pregamos o Cristo crucificado, e, à primeira vista, não há nada de extraordinário nisso senão fraqueza e loucura. Portanto, ele não passa de pedra de tropeço para os judeus quando o vêem aparentemente esquecido por Deus. Quando os gregos ouvem qual foi o método da redenção, acreditam ouvir uma fábula.” Em minha opinião, Paulo quer dizer pelo termo gregos não simplesmente os pagãos ou gentios, mas todos aqueles que eram educados nas ciências liberais, ou que eram de projeção em razão de sua inteligência superior. Ao mesmo tempo, à guisa de sinédoque, todos os outros estão igualmente incluídos aqui. Entre judeus e gregos, contudo, ele traça uma distin54 “Extreuagantes.” – “Extravagantes.”
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ção, dizendo que os primeiros, furiosos contra Cristo movidos por um zelo irracional pela lei, trovejavam em tormenta de fúria contra o evangelho, como os hipócritas costumam fazer quando estão lutando por suas próprias crenças equivocadas [superstitionibus]. Os gregos, em contrapartida, intumescidos de orgulho, desprezavam-no como sendo algo insípido. O fato de Paulo descobrir culpa nos judeus por serem eles tão ansiosos em querer sinais, não significa que, em si mesmo, seja errôneo desejá-los. Mas ele mostra onde estavam errados, à luz dos seguintes pontos: (1) em sua repetida insistência em exigir milagres, estavam, em certo sentido, prensando Deus sob suas leis; (2) através do embotamento de seu entendimento, queriam manter contato palpável55 com Deus por meio de milagres públicos; (3) sendo hipnotizados pelos próprios milagres, olhavam para eles com estupor; (4) em suma, nenhum milagre poderia satisfazê-los, mas a cada dia aguardavam, ansiosos, ver um novo. Ezequias não é censurado só porque prontamente consentiu ser confirmado por meio de um sinal [2Rs 19.29; 20.8]. Inclusive Gideão não foi reprovado, embora solicitasse um duplo sinal [Jz 6.37, 39]. No entanto, em contrapartida, Acaz é condenado por recusar o sinal que o profeta lhe ofereceu [Is 7.12]. Em que os judeus, pois, estavam errados quando pedem milagres? Estava nisto: não os buscavam para um bom propósito; não punham nenhum limite a suas exigências; não faziam bom uso deles. Pois enquanto a fé deve ser auxiliada pelos milagres, sua única preocupação era permanecer o máximo possível em sua descrença. Embora seja ilícito prescrever leis para Deus, expandiam sua monstruosa e irrefreada libertinagem. Enquanto os milagres devem nos conduzir a uma maior familiaridade com Cristo e com a graça espiritual de Deus, para os judeus não passava de obstáculos. Por essa razão também Cristo os repreende, dizendo: “Uma geração perversa busca sinais” [Mc 8.12]. Porquanto não havia 55 Não pode haver dúvida de que Calvino se refere aqui a uma expressão usada por Paulo em seu discurso aos atenienses [At 17.27]: “se porventura, tateando, o pudessem achar.” A alusão é a um cego que anda tateando em seu caminho. A mesma palavra é empregada por Platão: “Neste aspecto, muitos me parecem estar tateando como se estivessem no escuro.”
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limites para sua curiosidade e suas persistentes exigências; e tão logo obtinham milagres, nenhum benefício viam neles. 24. Tanto gregos como judeus. Paulo mostra, através desta antítese, quão pessimamente é Cristo recebido, e que isso não era devido a alguma falha dele, nem pela natural inclinação do gênero humano, mas que sua causa consiste na depravação daqueles que não foram iluminados por Deus. Pois nenhuma pedra de tropeço impede os eleitos de Deus de irem a Cristo com o fim de encontrarem nele a certeza da salvação. Paulo contrasta poder com pedra de tropeço que advém da humildade de Cristo, e confronta sabedoria com loucura. A essência disso, pois, é a seguinte: “Eu sei que nenhuma coisa, a não ser sinais, pode exercer algum efeito na obstinação dos judeus, e que na realidade só um fútil gênero de sabedoria pode aplacar o desdenhoso menosprezo dos gregos. Não devemos, contudo, dar demasiada importância a este fato, visto que não importa o quanto nosso Cristo ofende os judeus com a humildade de sua cruz e é tratado com o máximo desprezo pelos gregos; não obstante, ele é para todos os eleitos, de todas as nações, o poder de Deus para a salvação, para remover essas pedras de tropeço, e a sabedoria de Deus para afastar toda e qualquer dissimulação [larvam] no campo da sabedoria.”56 25. Porque a loucura de Deus. Quando Deus trata conosco, de certa forma parece agir de maneira absurda só pelo fato de não exibir sua sabedoria; não obstante, o que aparenta ser absurdo excede em sabedoria a toda a engenhosidade humana. Além do mais, quando Deus oculta seu poder e parece agir como se fosse frágil, o que se imagina ser fragilidade é, não obstante, mais forte do que todo o poder humano. Devemos, contudo, observar sempre, ao lermos estas palavras, que existe aqui uma concessão, como já fiz notar um pouco antes.57 Pois alguém pode notar mui claramente quão impróprio é atribuir a Deus, seja loucura, seja fraqueza; mas era indispensável, 56 “Pour oster et faire esvanoir ceste vaine apparence, et masque de sagesse.” – “Para remover e fazer desaparecer aquela fútil exibição e máscara de sabedoria.” 57 Veja-se página XXX.
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por meio dessas expressões irônicas, rebater a insone arrogância da carne, a qual não hesita espoliar a Deus de toda sua glória.
26. Irmãos, vede que vossa vocação não inclui muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem muitos nobres são chamados. 27. Deus, porém, escolheu as coisas loucas do mundo para confundir as sábias; e Deus escolheu as coisas fracas do mundo para confundir as que são poderosas; 28. e as coisas insignificantes do mundo, e as coisas que são desprezadas, sim, Deus escolheu as coisas que não são para reduzir a nada as coisas que são; 29. para que nenhuma carne se glorie em sua presença. 30. Vós, porém, sois dele em Cristo Jesus, o qual foi feito para nós sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção. 31. Para que, como está escrito, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor.
26. Videte (vel, videtis) vocationem vestram, fratres, quod non multi58 sapientes secundum carnem, non multi potentes, non multi nobiles: 27. Sed stulta mundi elegit Deus, ut sapientes pudefaciat: et infirma mundi elegit Deus, ut patefaciat fortia: 28. Et ignobilia mundi et contempta elegit Deus, et ea quæ non erant, ut quæ erant aboleret; 29. Ne glorietur ulla caro coram Deo. 30. Ex ipso vos estis59 in Christo Jesu, qui factus est nobis sapientia a Deo, et justitia, et sanctificatio, et redemptio.60 31. Ut (quemadmodum scriptum est) Qui gloriatur, in Domino glorietur (Jer. ix.24).
26, 27. Olhai para vossa própria vocação. Em razão de haver dúvida sobre o modo do verbo grego βλέπετε, o indicativo adequar-se ao contexto tão bem quanto o imperativo, deixo ao leitor a liberdade de decidir segundo sua preferência. Entretanto, o significado é obviamente o mesmo em ambos os modos, pois ao usar o indicativo – “vós vedes”–, Paulo estaria chamando-os a testemunharem, por assim dizer, algo óbvio, e estaria confrontando-os, por assim dizer, com algo imediato. Em 58 “Que vous n’estes point beaucoup.” – “Que não sois muitos.” 59 “Or c’est de luy que vous estes.” – “Agora é dele que sois.” 60 “Redemption, ou rançon.” – “Redenção ou resgate.”
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contrapartida, porém, ao usar o imperativo, ele estaria incitando-os, como se estivessem desatentos, a considerarem este mesmo fato. Chamados pode ser tomado coletivamente como a companhia dos chamados, mais ou menos assim: “Vede o tipo de pessoas, em vossa assembléia, a quem o Senhor tem chamado.” Sou, porém, mais inclinado a deduzir que a forma de sua vocação é por indicação. E este é um argumento mais forte, porque segue-se daí que, se menosprezam a humildade da cruz, então, em certo sentido, estão anulando sua própria vocação; pois em seu chamado Deus tinha mantido seu método de excluir toda honra, poder e glória humanos. Portanto, Paulo tacitamente acusa-os de ingratidão, porque, olvidando tanto a graça de Deus, como a si próprios, tratavam o evangelho de Cristo com escárnio. Entretanto, duas coisas devem ser observadas aqui. Primeiro, ele desejava usar o exemplo dos coríntios para confirmar a verdade do que dissera. Segundo, ele desejava adverti-los de que deviam estar completamente despidos de todo orgulho, caso estivessem prestando adequada atenção ao gênero de procedimento que o Senhor seguira ao chamá-los. Paulo diz que Deus “expôs a sabedoria e a nobreza de nascimento à humilhação”, e “destruiu as coisas que são”. Ambas as expressões são mui adequadas, pois a força e a sabedoria se desvanecem quando expostas ao descrédito, e o que possui existência deve ser destruído. Ele quer dizer que Deus preferiu chamar o pobre e o tolo, o de nascimento obscuro, diante do grande, do sábio e de nobre nascimento. Se Deus não tivesse posto a todos no mesmo nível, nada teria sido suficiente para abater a arrogância humana. Daí, aqueles que pareciam eminentes, ele lançou por terra, a fim que o mesmo fosse realmente reduzi-lo a nulidade. Entretanto, alguém seria insensato se deduzisse desse fato que Deus dessa maneira estava aviltando a glória da carne, a fim de que o grande e o sábio fossem excluídos da esperança da salvação. É por isso que alguns irresponsáveis não só transformaram isso em pretexto para triunfarem sobre os grandes, como se Deus os houvera abandonado, mas inclusive os desprezaram como se estivessem muito abaixo
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deles. Lembremo-nos, contudo, de que isso foi dito aos coríntios, ou, seja, que eles, embora não desfrutassem de nenhuma posição importante no mundo, no entanto eram soberbos, ainda quando não tivessem razão de o ser. Portanto, ao expor os fortes, os sábios e os grande ao ridículo, Deus não exalta os fracos, os indoutos e os indignos, senão que reduz a todos eles a um nível comum. Portanto, que todos quantos são desprezíveis aos olhos do mundo pensem bem nisto: “Quão modestos deveríamos ser diante do fato de que os que são tidos em alta estima pelo mundo são reduzidos a nada!61 Se a radiância do sol é eclipsada, qual é a sorte das estrelas? Se a luz das estrelas é extinta, o que se espera dos objetos opacos? O desígnio dessas observações consiste nisto: que aqueles que foram chamados pelo Senhor, ainda que destituídos de qualquer valor aos olhos do mundo, não podiam abusar dessas palavras de Paulo enfunando suas cristas! Ao contrário, tendo em mente a exortação de Paulo em Romanos 11.20 – “por sua incredulidade foram quebrados, e mediante a fé tu estás em pé” – podiam andar prudentemente na presença de Deus com temor e humildade. Em contrapartida, Paulo não diz aqui que nenhum nascido em “berço de ouro” ou poderoso seria chamado por Deus, e, sim, que haveria poucos deles. E nos fornece o motivo disso: que o Senhor, ao preferir os desprezíveis aos grandes, estaria destroçando o orgulho humano. O mesmo Deus, pelos lábios de Davi, exorta os reis a beijarem a Cristo62 [Sl 2.12]; e igualmente anuncia pelos lábios de Paulo [1Tm 2.1-4] que ele deseja que todos os homens sejam salvos, e que seu Cristo é exibido a todos os homens, tanto ao insignificante quanto ao grande, tanto ao rei quanto ao cidadão comum. Ele mesmo nos deu prova real disso: os pastores são os primeiros a ser chamados a Cristo; em seguida vêm os filósofos; pescadores incultos e menosprezados desfrutam de um espaço mais honroso; porém, mais tarde, seguem os 61 “Dieu ne permet de presumer d’eux mesmes.” – “Deus não lhes permite confiança em si mesmos.” 62 “A faire hommage à Christ.” – “A fazer homenagem a Cristo.”
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reis e seus conselheiros, os senadores e oradores são também recebidos em sua escola. 28. As coisas que não são. Ele usa termos afins em Romanos 4.17, porém com um sentido distinto. Pois nessa passagem, descrevendo a vocação universal dos crentes, ele diz que não somos nada antes de sermos chamados. E isso deve ser entendido como sendo uma referência à realidade aos olhos de Deus, mesmo quando parecemos ser algo importante aos olhos dos homens. Contudo, o nada (οὐδενεια) de que Paulo fala deve ser considerado como uma referência à opinião dos homens. Isso é evidente à luz da sentença correspondente, na qual ele diz que isso é feito a fim de que as coisas que são sejam reduzidas a nada. Pois nada existe senão na aparência, porque na realidade todos nós somos nada. Portanto, devemos entender “as coisas que são” no sentido de “as coisas que aparecem”; de modo que esta passagem corresponde a estas afirmações: “Ele ergue do pó o desvalido; e do monturo, o necessitado” [Sl 113.7]; “O Senhor levanta os abatidos” [Sl 146.8]; e outros de natureza semelhante. Destas citações fica perfeitamente em evidência que as pessoas são demasiadamente insensatas quando presumem existir algum mérito ou dignidade nos homens anterior à eleição divina. 29. Para que nenhuma carne se glorie. Mesmo que aqui, e em muitas passagens da Escritura, o termo carne signifique toda a humanidade, todavia nesta passagem ele contém uma conotação particular, porque o Espírito, ao falar do gênero humano em termos de desdém, abate seu orgulho; como em Isaías 31.3: “Pois os egípcios são carne, não espírito.” Eis um sentimento digno de ser lembrado: que nada nos é deixado em que podemos com razão nos gloriar. Por esta razão Paulo adiciona a frase: “na presença de Deus.” Porque na presença do mundo muitos se deleitam, por breve momento, num falso esplendor, o qual, contudo, rapidamente se desvanece como a fumaça. Ao mesmo tempo, por meio desta expressão todo gênero humano guarda silêncio quando tem acesso à presença de Deus; como diz Habacuque: Que toda carne esteja em silêncio diante de Deus [Hc
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2.20]. Portanto, que tudo quanto mereça algum louvor, seja considerado como procedente de Deus. 30. Mas vós sois dele em Cristo Jesus. No caso de concluírem que alguns de seus ditos não se aplicam a eles, Paulo então mostra como tais ditos têm a ver com eles sim, no sentido em que não têm vida senão em Deus. Pois a expressão vós sois é enfática, como se quisesse dizer: “Vossa origem está em Deus, que chama as coisas que não são [Rm 4.17], passando por alto as coisas que parecem ser. Vossa existência [substentia] está de fato alicerçada em Cristo, de modo que não deveis ter motivo algum para serdes soberbos.” E ele está falando não meramente de nossa criação, mas daquela existência [essentia] espiritual na qual nascemos de novo pela graça de Deus. O qual foi feito para nós sabedoria de Deus. Visto que há muitos que, quando não querem afastar-se deliberadamente de Deus, não obstante buscam algo fora de Cristo, como se ele só não abrangesse em si todas as coisas,63 Paulo nos diz, de passagem, quão grandes são os tesouros com que Cristo está munido; e ao agir assim ele procura descrever, ao mesmo tempo, nosso modo de existência [modus susbsistendi] em Cristo. Pois quando Paulo chama Cristo nossa justiça, uma idéia correspondente deve ser entendida, a saber: que em nós nada mais há do pecado; e o mesmo ocorre com os demais termos nesta oração. Pois aqui ele atribui a Cristo quatro títulos que somam toda sua perfeição e todos os benefícios que nos advêm dele [Cristo]. Primeiro. Paulo afirma que Cristo foi feito nossa sabedoria. Com isso quer dizer que alcançamos a plenitude da sabedoria em Cristo, porque o Pai se revelou plenamente nele para nós, de modo que não podemos desejar saber coisa alguma fora dele. Existe uma expressão semelhante em Colossenses 2.3: “em quem todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos.” Diremos algo mais sobre isso no próximo capítulo. Segundo. Ele afirma que Cristo foi feito nossa justiça. Com isso 63 “Toute plenitude.” – “Toda plenitude.” [Cl 1.9]
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quer dizer que em seu Nome fomos aceitos por Deus, porque ele fez expiação por nossos pecados por meio de sua morte, e sua obediência nos é imputada para justiça. Porque, visto que a justiça da fé consiste na remissão de pecados e na livre aceitação, nós obtemos ambas através de Cristo. Terceiro. Ele o chama nossa santificação. Com isso quer dizer que nós, que por natureza somos imundos, nascemos de novo pela ação do Espírito, para a santidade, para que tenhamos condição de servir a Deus. Daqui deduzimos também que não podemos ser previamente justificados pela exclusiva instrumentalidade da fé, se concomitantemente não vivermos em santidade. Porquanto esses dons da graça vão juntos como que atados por uma vínculo indestrutível, de modo que, se alguém tentar separá-los, em certo sentido estará fragmentando a Cristo. Conseqüentemente, que aqueles que almejam ser justificados pela livre bondade de Deus, através de Cristo, reconheçam que tal coisa não pode absolutamente ser concretizada, a menos que, ao mesmo tempo, se apegue a ele para a santificação; em outros termos, ele deve nascer de novo pela instrumentalidade do Espírito, para a irrepreensibilidade e pureza de vida. Os homens descobrem falhas em nós, porque, ao pregarmos a graciosa justiça da fé, evidentemente estamos afastando os homens das boas obras. Mas esta passagem os refuta de forma clara, mostrando que a fé está jungida à regeneração assim como o perdão de pecados está em Cristo. Por outro lado, note-se que, enquanto os dois ofícios de Cristo se acham unidos, todavia são distintos um do outro. Portanto, não temos a liberdade de confundir o que Paulo expressamente distingue, o que seria um grave erro. Quarto. Ele ensina que Cristo nos foi dado para a redenção. Com isto quer dizer que somos libertados, por sua graciosa bondade, de toda a escravidão do pecado e de toda a miséria que flui deste. Assim, a redenção é o primeiro dom de Cristo que teve início em nós, e o último a ser consumado ou completado. Pois a salvação começa quando somos desembaraçados do labirinto do pecado e da morte. Nesse ínte-
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rim, contudo, suspiramos pelo dia da ressurreição final, ansiando pela redenção, como é expresso em Romanos 8.23. Mas se alguém pergunta como Cristo nos é dado para a redenção, respondo: “Porque ele se fez um resgate.” Finalmente, de todas as bênçãos que são aqui enumeradas, devemos buscar não a metade, ou meramente uma parte, mas a plenitude. Porquanto Paulo não diz que ele nos foi dado como forma de enchimento, ou para suprir a justiça, a santidade, a sabedoria e a redenção; senão que ele atribui exclusivamente a Cristo a plena realização da totalidade. Ora, visto que o leitor raramente encontrará outra passagem na Escritura que forneça uma descrição mais clara de todos os ofícios de Cristo, ela pode também propiciar-nos a melhor compreensão da força e natureza da fé. Portanto, visto que Cristo é o próprio objeto da fé, todos quantos sabem quais são os benefícios que Cristo nos confere, ao mesmo tempo aprenderam a entender o que a fé significa. 31. Aquele que se gloria, glorie-se no Senhor. Note-se o propósito de Deus em nos dar generosamente tudo em Cristo – para que não aleguemos qualquer mérito para nós mesmos, mas para que lhe tributemos todo o louvor. Porque Deus não nos despoja com vistas a deixar-nos nus, mas de antemão nos veste com sua glória, porém com esta única condição: sempre que desejarmos gloriar-nos, que então nos desviemos de nós mesmos. Em suma, o homem reduzido a nada em sua própria estima, sabendo que a bondade não provém de nenhuma outra fonte senão só de Deus, deve ele renunciar todo anseio por sua própria glória, e com toda sua energia aspirar e almejar exclusivamente a glória de Deus. E isso se faz ainda mais evidente à luz do contexto da passagem do profeta de quem Paulo emprestou este texto. Pois ali o Senhor, depois de despir a todo gênero humano do direito de gloriar-se em sua força, sabedoria e riquezas, nos ordena a gloriar-nos somente no conhecimento dele [Jr 9.23, 24]. Mas ele deseja ser conhecido [cognosci] por nós de tal maneira que saibamos [sciamus] que ele é quem exerce a retidão, a justiça e a misericórdia. Pois este conhecimento produz em nós imediata confiança nele e temor
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a ele. Portanto, se uma pessoa realmente tem sua mente tão bem regulada, não reivindicando para si nenhum mérito, então seu desejo é tão-somente exaltá-lo; se tal pessoa descansa satisfeita em sua graça; e põe toda sua felicidade em seu amor paternal; e, por fim, se sente feliz tão-somente em Deus, então tal pessoa realmente “se gloria no Senhor.” Sinceramente digo isso, pois mesmo os hipócritas sobre falsas bases se glóriam nele, como declara Paulo [Rm 2.17], quando, ensoberbecidos com seus dons, ou presumidos em sua ímpia confiança na carne, ou mercadejam sua Palavra, contudo usam seu Nome como proteção sobre si.