JORNADA NO IMPÉRIO Traduzido do original em inglês:
THE WOLF FROM SCOTLAND THE STORY OF ROBERT REID KALLEY PIONEER MISSIONARY
Copyright © Evangelical Press ISBN N o. 85-99145-15-0 Primeira edição em português © 2006 Editora Fiel Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução deste livro, no todo ou em parte, sem a permissão escrita dos Editores. Tradução: Maurício Fonseca dos Santos Junior Revisão: Marilene Paschoal Ana Paula Eusébio Pereira Francisco Wellington Ferreira Diagramação: Christiane de Medeiros dos Santos Capa: Edvanio Silva Direção de Arte: Rick Denham
EDITORA FIEL DA MISSÃO EVANGÉLICA LITERÁRIA Caixa Postal 81 12201-970 São José dos Campos - SP
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enhor, Tu conheces todas as minhas fraquezas, toda a minha insensatez, meus pecados, minha completa incapacidade. Mas aqui estou. Oh! toma-me; faze de mim segundo a tua vontade; envia-me onde quiseres, faze comigo o que teus olhos vêem ser o melhor, e apenas deixa-me sentir que Tu estás comigo, que Tu me amas e me usas, e Tu serás glorificado pelas tuas obras feitas através de mim!” Dedicatória do Dr. Kalley, após sua conversão
D R . R OBERT R EID K ALLEY
ÍNDICE PREFÁCIO ......................................................................................... 7 INTRODUÇÃO .................................................................................... 11 PRÓLOGO ........................................................................................ 13 1 COMO TUDO COMEÇOU ............................................................... 15
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PARTE 1 - MADEIRA A CHEGADA EM MADEIRA ............................................................ 25 O CHAMADO DE DEUS ................................................................ 31 TEMPO DE PLANTAR E DE COLHER ............................................... 39 A TEMPESTADE SE APROXIMA ...................................................... 49 NASCE UMA IGREJA ..................................................................... 63 A TEMPESTADE DESABA .............................................................. 69 RENASCIDA DAS CINZAS .............................................................. 81
INTERLÚDIO 9 UMA PAUSA E UMA PESSOA ......................................................... 93
10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23
PARTE 2 - BRASIL A ESCOLHA É FEITA ................................................................... 105 A TERRA DA CRUZ SEM CRISTO .................................................. 111 UMA PORTA ABERTA .................................................................. 121 GERNHEIM ................................................................................. 127 VENHA E AJUDE-NOS .................................................................. 133 OPOSIÇÃO E ENCORAJAMENTO .................................................... 139 EXPANSÃO ALÉM DO RIO ............................................................ 149 TRABALHOS COROADOS COM SUCESSO ........................................ 157 UM NOVO AJUDANTE E UM NOVO LAR ....................................... 167 LIDANDO COM OS PROBLEMAS .................................................... 173 UMA PAUSA BEM MERECIDA ...................................................... 181 ATIVIDADE RENOVADA NO RIO .................................................... 189 ALICERÇANDO A IGREJA NO RECIFE .............................................. 199 ÚLTIMOS DIAS NO BRASIL .......................................................... 213
PARTE 3 - MISSÃO CUMPRIDA 24 CAMPO VERDE .......................................................................... 221 25 NOVIDADES DO BRASIL .............................................................. 227 26 MISSÃO CUMPRIDA .................................................................... 237 EPÍLOGO .................................................................................... 243 APÊNDICE 1 ............................................................................... 249 APÊNDICE 2 ............................................................................... 251 APÊNDICE 3 ............................................................................... 253
PREFÁCIO A
lgum tempo atrás, a Sociedade Evangélica das Igrejas Congregacionais me pediu que escrevesse uma biografia do Dr. Robert Reid Kalley, missionário pioneiro em Madeira e no Brasil. Neste último país, sob sua inspirada orientação, uma igreja nacional desenvolveuse, tendo uma forma abrasileirada de igreja congregacional em toda a sua administração. Não era algo simplesmente importado da Inglaterra ou dos Estados Unidos, e sim tão natural ao Brasil quanto as florestas tropicais da Amazônia. Para o Dr. Kalley isto já era uma grande conquista. Compilar esta biografia foi um trabalho de grande amor, desde que me tornei mais um de uma longa linhagem de “herdeiros” espirituais e eclesiásticos dos árduos trabalhos de Dr. Kalley. No Brasil, pude conhecer intimamente alguns dos contemporâneos do doutor: Pastor Fanstone, que colocou os fundamentos da Igreja Pernambucana em Recife; Dona Albertina, uma enteada do vendedor ambulante de livros cristãos que trouxe o evangelho para Pernambuco; Viana, que se lembrava de quando era criança e sentava-se no colo da Sra. Kalley na escola dominical; Manoel de Souza Andrade, o mais idoso estadista da Igreja Pernambucana, que traçou suas raízes espirituais à visita de Dr. Kalley ao Recife; a família Braga, filho e neto do
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patriarca José Fernandes Braga. Muito do que hoje sei a respeito do Dr. Kalley e sua esposa, Sarah, aprendi em conversas com essas pessoas. Sinto-me em débito com as obras de outras pessoas – O Apóstolo da Madeira, do Dr. Michael P. Testa, e o manuscrito ainda não publicado do Reverendo Manoel Porto Filho, O Apóstolo em Três Continentes – A Epopéia das Ilhas da Madeira, sendo que ambas as obras estão em português e extremamente bem documentadas. Alguns sentirão que eu deveria ter citado minhas fontes com detalhes, como fizeram estes dois notáveis escritores, mas sinto-me escrevendo para o público em geral, e constantes referências e notas de rodapé, ainda que sejam essenciais aos estudiosos, podem ser uma distração, e até mesmo algo irritante, para os leitores comuns. Também devo confessar minha imensa dívida com a Canning Library, em Londres, por ter me emprestado importantes livros que, provavelmente, eu não acharia em nenhum outro lugar, e igualmente com a Igreja Evangélica Congregacional Fluminense por me dar acesso à sua extensa biblioteca. E, com relação a isto, sou especialmente grato à bibliotecária, Dona Esther Monteiro, por sua competência e paciência em tornar disponível para mim um rico material sobre Kalley. Quando estava escrevendo, tentei sempre conservar em mente que estava escrevendo não somente para leitores brasileiros, mas também para britânicos, e que estes, em sua maior parte, ignoram completamente o que diz respeito à Madeira e ao Brasil. Madeira é conhecida apenas como uma atração turística, e até mesmo sua localização no globo é desconhecida! O Brasil, o maior dos países do terceiro mundo, com seus múltiplos problemas, é um pouco mais conhecido devido à proeminência que tem recebido na mídia. Ao público geral, no entanto, seu passado é algo encoberto pela névoa do tempo; de forma que faço freqüente menção aos eventos históricos mais relevantes. Confesso ter sucumbido à tentação de introduzir alguns breves relatos sobre os cooperadores dos Kalleys, tanto os da Madeira quanto os brasileiros. Sem a dedicação e sacrifício deles, o doutor e sua esposa poderiam nunca ter atingido o que conseguiram. Acredito que eles
PREFÁCIO
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gostariam de dar total crédito a estes ajudantes na história da vida deles. É impossível narrar este capítulo da história das “missões estrangeiras” sem fazer qualquer referência à perseguição sofrida pelo casal de missionários e seus convertidos. Escrevo com conhecimento e experiência pessoais da violência resultante de tal fanatismo religioso – tendo sido levado em custódia pela polícia, ameaçado de expulsão do país como alguém “indesejado”, apedrejado, tendo de passar às pressas por entre uma multidão irada e hostil, etc. – uma série completa de perseguições. A situação mudou drasticamente logo após o Segundo Concílio do Vaticano e, desde então, continua mudando devido ao apoio dos clérigos que defendem a Teologia da Libertação na Igreja Católica Brasileira. Os protestantes não são mais chamados “hereges”; são “irmãos separados”. Finalmente, devo agradecer sinceramente a todos aqueles que têm me encorajado a escrever e a completar este trabalho, e de uma forma muito especial devo agradecer à minha esposa, Brenda, com quem estou em grande dívida por seus comentários construtivos e por seu árduo trabalho digitando meu manuscrito. W. B. Forsyth Wiveliscombe. Dezembro de 1988
Finalmente, Jornada no Império (The Wolf from Scotland) foi publicado em português, no Brasil. Isto é algo que eu desejava há muito tempo, mas faltavam os recursos financeiros para realizá-lo. Agradeço a iniciativa da Editora Fiel em assumir a responsibilidade total pela publicação do livro. Espero que este livro seja uma bênção para muitos e que esta edição faça parte das celebrações do 150º aniversário da chegada do Dr. Kalley ao Brasil. W. B. Forsyth dezembro de 2005
INTRODUÇÃO M
adeira e Brasil! O que estes dois países têm em comum? Ambos foram descobertos e colonizados pelos portugueses e, de acordo com os decretos do pacto colonial, deveriam ser também cristianizados. No século dezesseis, ambos eram parte do vasto território de Portugal. Há também uma grande ligação entre eles na história do trabalho missionário: Dr. Robert Reid Kalley foi o pioneiro “fundador de igrejas” tanto em Madeira quanto no Brasil. O Dr. Robert Reid Kalley (1809-1888) é desconhecido para a maioria, até mesmo para aqueles mais versados na história das missões – um fato bastante surpreendente, quando muitos dos missionários contemporâneos dele são homens bem conhecidos e grandemente estimados. William Carey foi para a Índia em 1793 e Robert Morrison para a China em 1807. Adoniram Judson navegou até a Birmânia em 1812, e John Williams para a Polinésia em 1817. Robert Moffat deixou sua terra e seguiu para a África em 1816, seguido por David Livingstone em 1841. Estes, e muitos outros, eram nomes familiares nos círculos missionários nas igrejas, e foram aclamados por toda a nação como homens de grandes realizações. Livingstone foi enterrado na Capela de Westminster! O Dr. Kalley, igualmente notável, permaneceu desconhecido e foi enterrado num canto qualquer de um
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cemitério em Edimburgo, que é raramente visitado, e tudo o que ele conseguiu realizar no campo missionário permanece não reconhecido até os dias de hoje. Por quê? Muitas razões podem ser apresentadas para esta relegação ao esquecimento, mas entre elas, duas são de maior importância. Primeiro, temos o fato de que ele não foi para um local que fosse considerado genuinamente como campo missionário – uma terra pagã como a “África em trevas” ou a Índia, China, Birmânia ou os mares do sul. Estes eram países pagãos, habitados por idólatras, seguidores de falsos cultos, que andavam na escuridão e, por isso mesmo, precisavam urgentemente da luz do evangelho. Por outro lado, Madeira e Brasil, e também todas as outras colônias portuguesas, eram considerados “cristãos”, domínios da “Santa Madre Igreja”, e como tal não precisavam da “conversão protestante”. Uma segunda razão porque o Dr. Kalley permaneceu no anonimato é que ele não representava uma igreja ou sociedade missionária. Ele era independente; não trabalhou sob o patrocínio de uma igreja especificamente, nem era dependente da qualquer sociedade missionária para seu sustento. O Dr. Kalley era um homem de recursos; na linguagem de seus dias, um missionário aristocrata. Ele, portanto, não teve a publicidade que uma sociedade missionária poderia lhe ter dado; também deve ser dito que ele mesmo nunca buscou ou desejou o reconhecimento público. Na verdade, ele evitava isso. Isto nos leva a um terceiro fator – a personalidade do próprio homem. Ele mesmo se ocultava, colocando-se em segundo plano; era um homem de profunda humildade. Como Moisés, Dr. Kalley era “muito manso”; um leão, quando os interesses do Senhor e seu reino estavam em jogo; porém, “humilde e manso de coração”, quando interesses de natureza simplesmente pessoal eram ameaçados. Era bem conhecido e muito admirado apenas por um limitado círculo de amigos; fora deste círculo, era desconhecido e toda a sua dignidade não era reconhecida. Quem, então, era Dr. Robert Reid Kalley? O que se segue é uma tentativa de tornar conhecidos a vida e o trabalho de um dos grandes pioneiros de Deus no Brasil e de dar ao doutor a honra devida.
PREFÁCIO
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PRÓLOGO N
o segundo domingo de agosto de 1846, uma missa aconteceu na rústica capital da ilha da Madeira, Funchal, em honra à padroeira, Nossa Senhora do Monte. Era um evento anual, mas naquele ano a excitação entre os devotos foi extremamente exaltada. A catedral estava lotada e a multidão se aglomerava até mesmo na praça em frente. Do altar, o cônego da catedral discursava para a multidão, incitando-a a ter atitudes mais violentas. O clima começava a ficar bastante tenso. Havia murmurinhos nervosos (o veneno do ódio fanático) crescendo em volume, conforme o discurso se aproximava de seu final. A multidão impaciente esperava o sinal para agir. Do lado de fora, na praça, o sinal foi dado: um foguete zuniu no ar e explodiu com um barulho que podia ser ouvido por toda a cidade; e suas reverberações foram realmente ecoadas por todo o país. O dia de São Bartolomeu, em Madeira, havia chegado. Liderados pelo cônego, ainda em suas vestimentas sacerdotais, a multidão lançava-se para a praça da catedral e continuava seguindo pelas ruas estreitas em direção ao subúrbio de Santa Luzia. Frases ensaiadas eram cantadas por todos: “Longa vida à Nossa Senhora do Monte”; “Morte aos calvinistas”; “Longa vida à Santa Madre Igreja”; “Morte aos leitores da Bíblia”; “Morte a Kalley – o Lobo da Escócia”.
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O que Kalley fizera para atrair sobre si a fúria da Igreja Católica e a violência da multidão? Nada havia no início de sua vida e em sua formação que pudesse indicar o quão honrada, e muitas vezes turbulenta, sua vida seria.
CAPÍTULO 1
COMO TUDO COMEÇOU O
Dr. Kalley nasceu em Mount Florida, Glasgow, em 8 de setembro de 1809. Era o filho de Robert Kalley, um rico e bem sucedido mercador, e de sua esposa, Jane Reid Kalley. Sua irmã Jane havia nascido apenas um ano antes. Seus pais eram membros da Igreja da Escócia, e àquela igreja o jovem Robert Reid foi apresentado em 16 de outubro de 1809. Antes que Robert completasse um ano de idade seu pai faleceu, e dois anos depois sua mãe casou-se com David Kay, também viúvo e com quatro filhos. Alguns anos depois, em 1815, a mãe de Robert também veio a falecer, mas tanto Jane quanto Robert foram muito bem tratados na casa de seu padrasto, o duas vezes viúvo Sr. Kay. Eles e os filhos de Kay eram uma grande e feliz família. Anos mais tarde, o próprio Robert confessou o quanto ele devia a seu padrasto: “Quando eu era jovem ele foi um verdadeiro pai para mim: perseverou comigo, dando-me uma educação moral e espiritual através de seu exemplo e preceitos – juntamente com muita oração”. Robert freqüentou primeiro a Rennie School, depois foi para a Glasgow Grammar School e, finalmente, com apenas dezesseis anos, foi matriculado no curso de Artes na Glasgow University. Seus estudos incluíam retórica, latim e grego avançados – as línguas que o colocariam
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numa posição vantajosa, mais tarde, em sua vida. A respeito de sua educação, ele escreveu: “Quando eu era jovem, minha educação tinha o propósito de preparação para o ministério na Igreja da Escócia, visto que meu avô havia sido o patrono da comarca onde fica sua propriedade, e o salário de um ministro era um valor considerável (350 libras por ano). Mas, tornando-me um infiel ao ir à faculdade, não podia suportar o pensamento de ser obrigado a pregar aquilo que eu considerava nada mais que um monte de mentiras. Portanto, desisti completamente da idéia de ser um ministro da Palavra e fui estudar medicina”. Ele matriculou-se no Laboratório Farmacêutico ligado à Glasgow Royal Infirmary, recebendo seu diploma em 1o de setembro de 1827. Dois anos mais tarde, especializou-se em Farmácia e Cirurgia pela Glasgow Faculty of Medicine and Surgery. Porém, foi alguns anos depois, em 1838, que conseguiu seu diploma na Glasgow University e tornou-se um “Doutor em Medicina”. Seus estudos confirmaram sua descrença. Mais tarde, ele confessou que, quando olhava, pelo microscópio, para todas aquelas maravilhas invisíveis aos olhos nus ou, então, quando, pasmado, observava os céus através de um telescópio, vendo a vastidão do universo, simplesmente não conseguia ver Deus em todas estas coisas. Ele não acreditava na existência de um ser Eterno, Criador e Sustentador do universo. Deste período, ele escreveu: “Pensei, então, que o cristianismo era apenas uma desilusão, e fazer uma confissão de acreditar nisso era o suficiente para provar que um homem certamente é ou um tolo ou um patife”. Em 1829, como um jovem graduado, ganhou experiência servindo como médico em navios que navegavam de Glasgow para Bombaim e para o Extremo Oriente. Pouco se conhece sobre as viagens que fez neste período, mas sabe-se que um dos portos que visitou foi na Ilha da Madeira. Ele escreveu: “Passei por lá durante minha viagem para as Índias Orientais (1831)… e, se alguém me dissesse que no futuro eu seria preso lá (em Funchal) por ter distribuído Bíblias e ensinado as suas doutrinas, eu, provavelmente, pensaria nisto como o mais improvável que poderia ser preconcebido a meu respeito”. Visitar Madeira era uma mera rotina para os marinheiros, mas para o Dr. Kalley foi algo que teria uma grande influência na história
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de sua vida. Depois, foi chamado para outra viagem, mas recusou, felizmente, como se verificou mais tarde, visto que o navio no qual deveria ter ido perdeu-se no meio de uma tempestade. Esta foi a segunda vez que escapou da morte. Certa vez, quase morrera afogado, ainda garoto, quando nadava junto de outros meninos, no rio Clyde. Naquela ocasião, ele se encontrava em dificuldades e foi salvo por alguém que passava por ali.
PASSOS RUMO À FÉ O Dr. Kalley começou a emergir do conhecimento incompleto a partir do momento em que se estabeleceu como médico em Kilmarnock, Ayrshire, em 1832, onde, apesar de sua juventude, logo conseguiu ter uma reputação de excelente cirurgião. Socialmente ele também tinha sucesso. Era extrovertido e um amante dos esportes – muito popular em todas as festas, de forma que logo recebeu o apelido de “o médico dançarino de Kilmarnock”. Era ainda um ateísta e fazia questão de mostrar isto a todos, mas sua nova experiência como médico iria penetrar naquilo que ele considerava ser inquestionável – sua autoconfissão como pagão. Certa vez, um paciente o impressionou muito; era um homem humilde e muito pobre, embora fosse rico em fé, e ele testemunhou para o doutor a respeito da graça salvadora de Jesus Cristo. Não havia dúvidas a respeito da sinceridade daquele homem e da realidade de sua fé em Cristo. Outra impressão mais forte ainda foi deixada no doutor pelo testemunho de uma paciente, uma mulher também muito pobre, morrendo de câncer. Sua fé triunfante no meio de tanta miséria e dor impressionou o jovem médico mais do que ele queria admitir. Ela suportou suas provações de pobreza e dor não meramente com serenidade, mas com regozijo! O quarto onde ela estava poderia estar precisando das coisas mais básicas, mas para o doutor, quando fazia suas freqüentes visitas, o quarto parecia ter uma qualidade etérea, algo que sua mente científica não podia explicar. O Senhor que está nos céus fazia sua presença e glória ser uma realidade para sua humilde serva, no momento das terríveis dores. O seu testemunho balançou os
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alicerces da descrença do Dr. Kalley. Poderia realmente haver um Deus? “Leia o Livro”, ela pedia insistentemente; “está tudo no Livro”. Poderia ser Cristo e todas aquelas coisas verdadeiras? Ele começou a estudar as Escrituras diligentemente, num esforço para descobrir o segredo da vitória daquela mulher sobre a destruição que a doença produzia, o desamparo da pobreza e, ultimamente, a própria morte. A fé não veio de forma fácil ou dramática; ela foi se desenvolvendo lentamente. Ele foi ajudado a seguir os passos rumo à fé por um livro, Night Thoughts on Life, Death and Immortality (Meditações Vespertinas sobre a Vida, Morte e Imortalidade), famoso nos dias em que foi publicado e escrito por Edward Young (1683-1765). Este livro era resultado de tragédia e sofrimento; o autor havia perdido a esposa e sua enteada, o que o deixou desolado. O Dr. Kalley confessou que o capítulo da “Nona Noite”, intitulado “Consolação”, “compeliume a confessar a existência de algo eterno”. O texto desta parte do livro argumenta logicamente: “O que sou eu? E de onde vim? Apenas sei que existo e nada mais; e uma vez que existo, só posso concluir que sou algo eterno”. A meia-irmã de Kalley, Mary, uma cristã comprometida, ao se corresponder com seu irmão, recomendou fortemente que ele lesse os trabalhos de autores com uma perspectiva mais evangélica. Foi um livro de uma categoria muito diferente que o impeliu em direção a uma fé mais completa – Fulfilled Prophecy (Profecia Cumprida), escrito pelo Dr. Keith. Vestígios de dúvida sobre a fé cristã e preocupação quanto ao que ele considerava ser a ingenuidade dos cristãos professos ainda obscureciam sua mente. “Mas, enquanto eu lia as predições a respeito dos judeus”, escreveu ele, “e o cumprimento literal de todas elas, deparei-me com um argumento razoável em favor da revelação”. Isto o levou a uma investigação ainda mais intensa das profecias, especialmente Deuteronômio, e, então, a uma pesquisa nas outras áreas da evidência cristã, o que resultou em uma convicção “de que o ateu é mais crédulo que o cristão”. Anos depois, em 1845, ele falou à Assembléia Geral da Igreja Livre da Escócia nos seguintes termos: “Eu era um ateu, e me deleitava na frieza, na escuridão, na sensação de declarar abertamente minha
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descrença. Quando descobri, digo-o para a minha satisfação, que há um Deus e que este livro [apontando para a Bíblia] vem de Deus, senti que todo cristão é chamado para entrar naquele campo de serviço no qual ele pode usar, para a glória de Deus, os variados talentos com que cada um foi dotado pelo próprio Deus. Quanto a mim, tinha de pensar seriamente de que forma um médico cristão como eu poderia melhor servir o Filho de Deus”.
CONVERSÃO E CHAMADO MISSIONÁRIO Todo o estilo de vida do Dr. Kalley havia mudado completamente. Ele se tornou um membro ativo da Igreja da Escócia em 1833, tendo sido admitido para a comunhão. Mas, não estando plenamente satisfeito em apenas pertencer a uma igreja, ele tomou a iniciativa de ajudar aqueles que mais necessitavam de auxílio. Reuniu um grupo de rapazes pobres de seu dispensário e os ensinava nas noites de domingo e quintafeira. Ele datava sua genuína conversão daquele período (1834). A igreja estabelecida parecia não lhe dar muito encorajamento para continuar com este trabalho. Um grupo de ministros o condenou por “intromissão em um trabalho que ele, como médico cristão, não tinha o direito de fazer, reunindo um grupo de rapazes pobres e ignorantes para ensinar-lhes as Escrituras”. A ajuda, no entanto, viria de ministros de igrejas, muitos dos quais mais tarde abandonariam a igreja estabelecida durante o Rompimento. Assim foram os anos que levaram a este Rompimento. A Igreja da Escócia estava no meio de um caloroso e pungente debate, principalmente quanto à questão da interferência e do amparo do Estado em oposição a um tipo de igreja mais livre e democrática – um debate que culminaria num cisma devastador. Centenas de clérigos e leigos, liderados pelo Dr. Thomas Chalmers, se levantaram e saíram da Assembléia Geral para formar a Igreja Livre da Escócia. A situação era desoladora e muito triste para o jovem convertido. Toda esta experiência influenciaria sua vida mais tarde em relação a como administrar uma igreja. Ao mesmo tempo, o movimento missionário estrangeiro estava
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crescendo. Notícias dos esforços pioneiros de Robert Morrison, a fim de levar o evangelho à China, mexeram com o entusiasmo do jovem médico sobre evangelização. Próximo ao tempo de sua conversão, as notícias da morte solitária de Morrison, em Canton, chegaram ao Reino Unido. Que vida proveitosa ele tivera! Morrison obtivera sucesso em lançar as bases sobre as quais outros iriam construir, e realmente construíram, quando a China abrisse suas portas para a pregação do evangelho, oito anos depois. Em 1818, Morrison tinha terminado a tradução da Bíblia em chinês e três anos mais tarde produziu um dicionário. Estas são as duas pedras angulares do esforço missionário – a Bíblia e a língua. Se a situação da Igreja da Escócia entristecia o Dr. Kalley, as favoráveis perspectivas oferecidas no serviço missionário em outros países o animavam e atraíam. Em uma revista publicada pela Sociedade Missionária de Londres, ele leu um apelo solicitando médicos missionários. Para ele, aquele apelo era algo pessoal, e o chamado era irresistível. Uma única consideração agora era importante em seus pensamentos –- a insistente demanda do próprio Senhor: “Ide por todo o mundo e pregai o evangelho”, com a seguinte promessa: “E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século”. O Dr. Kalley enviou um requerimento à Sociedade Missionária da Igreja da Escócia pedindo para servir na China. A Sociedade expressou seu pesar: “Não nos parece certo entrar em qualquer campo de trabalho [missionário] que não seja aqueles nos quais a Igreja da Escócia já está envolvida”. Nada, porém, o desanimava, e ele fez um novo requerimento, desta vez, para a Sociedade Missionária de Londres (SML), em 1837. A SML precisava urgentemente de um médico missionário na China, tornando o seu pedido mais que bem-vindo. Ele teve de viajar muitas vezes para Londres, a fim de ser entrevistado pelo Comitê de Diretores, e, finalmente, foi aceito para o serviço na China. A minuta do Comitê de 7 de novembro de 1837 diz: “Foi decidido que o Dr. Robert Reid Kalley, da Igreja da Escócia, Kilmarnock, indicado pelo pastor e Reverendo John Ward, ministro da Igreja Congregacional de lá, seja aceito como missionário assistente e médico para o trabalho na China”. O Comitê deu-lhe permissão para ficar na Escócia até 1839, “a fim de serem incrementados seus conhecimentos, tanto médicos quanto
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teológicos”. Ele vendeu imediatamente sua casa e sua clínica em Kilmarnock para o Dr. Miller, seu futuro cunhado, e matriculou-se na Glasgow University para completar seus estudos de acordo com os desejos da Sociedade. Dr. Miller, que se casou com Jane Kalley, encarregou-se de continuar com as aulas aos garotos pobres de Kilmarnock.
UMA PORTA É FECHADA Então, um grande obstáculo surgiu. O Dr. Kalley noivou com uma jovem conhecida sua há muitos anos e cujo excelente caráter cristão e testemunho já o haviam impressionado, mesmo quando ele ainda era incrédulo. Seu nome era Margareth Crawford, de Paisley. O doutor escreveu muito entusiasmado para a SML a respeito dela – sua dedicação a Cristo e à sua causa; sua aptidão para o trabalho missionário, ótima educação, larga experiência como secretária na empresa de seu pai; sua extrovertida e alegre disposição; seu vívido interesse em missões; sua mente treinada e disciplinada que a capacitaria a escrever, ensinar ou, até mesmo, engajar-se em outros trabalhos que o campo missionário demandasse. Havia, no entanto, um grande obstáculo: sua saúde era frágil. Seu médico, porém, havia feito um bom relatório a respeito de sua situação, dizendo que, embora não fosse robusta, ela havia, desde a infância, gozado de boa saúde. Havia também outro fator que o Dr. Kalley pode não ter considerado seriamente: ela havia sido criada em circunstâncias muito confortáveis – o que nem sempre era o melhor tipo de preparação para as dificuldades do campo missionário! O pastor dela também escreveu uma excelente carta de referência: ela fora apresentada ainda criança à igreja, por ele; havia participado de suas aulas para jovens e, vale citar: “Eu tenho tido boas oportunidades de verificar suas habilidades e caráter. Ela possui talentos naturais muito respeitáveis e desde sua juventude tem se conduzido com grande retidão. Ela foi desde cedo iniciada no conhecimento das Sagradas Escrituras, é evangélica em suas atitudes e, eu acredito, decididamente piedosa. Seu coração tem sido levado, há algum tempo, em direção ao trabalho missionário, para
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o qual eu a considero muito bem preparada” (Paisley, 27 de janeiro de 1838). A SML, no entanto, não estava impressionada. As regras da missão estipulavam que nenhum candidato aceito para o serviço missionário poderia iniciar qualquer relacionamento com vistas a casamento, sem a aprovação e permissão expressa do Comitê. E esta regra havia sido violada. Em correspondência com a missão, o Dr. Kalley expressou seus profundos sentimentos por qualquer problema ou inconveniência que seu noivado pudesse ter causado e reembolsou a missão por qualquer custo proveniente de seu pedido e aprovação para o serviço. A SML não tinha outra alternativa a não ser aceitar sua resignação. A minuta da missão, datada de 30 de janeiro de 1838, termina com uma graciosa nota: “Se alguma vez ele sentiu ser sua obrigação servir no campo missionário sob o patrocínio da SML, então uma atenção especial deve ser dada a qualquer pedido que ele possa fazer”. O jornal Glasgow Herald, em sua edição de 26 de fevereiro de 1838, trazia o seguinte anúncio: “Casado em Oaksham House, Paisley, no dia 22 deste mês, Ilmo. Sr. Robert R. Kalley, cirurgião, com Margareth, filha mais velha do falecido Ilmo. Sr. John Crawford, de Paisley”. Outro fator importuno logo surgiu. Pouco tempo antes do casamento, Margareth pegou um resfriado que logo se desenvolveu em pneumonia, e descobriu-se que era o início de uma tuberculose, doença com a qual ela teria de lutar até o fim de sua vida. A porta para o serviço missionário na China estava agora completamente fechada, mas o Dr. Kalley nutria a esperança de que esta situação não perduraria por muito tempo. Ainda assim, a China recebeu uma grande ajuda de seu ministério. Em janeiro de 1838, ele foi convidado para falar numa reunião da Sociedade Missionária da Igreja da Escócia, na qual falou sobre a necessidade urgente de se alcançar o Extremo Oriente com o evangelho. Conforme ele falava, um jovem rapaz sentiu o chamado para se oferecer ao serviço missionário. Aquele jovem rapaz era William Chalmers Burns, que, em 1846, finalmente chegou à China com o apoio da Sociedade Missionária Presbiteriana Inglesa e iluminou um caminho na China pelo qual outros poderiam seguir.
PARTE 1
MADEIRA
CAPÍTULO 2
A CHEGADA EM MADEIRA O
Dr. Kalley, devido ao amor e à lealdade por sua esposa, deu à saúde dela total prioridade. Durante os meses de verão tornou-se evidente que ela deveria ser poupada do rigoroso inverno escocês. Seu marido não podia pensar num clima melhor para ela que o de Madeira, a melhor das ilhas, “a Pérola do Atlântico”, “um jardim flutuante”, e o lugar ideal para se recuperar depois de uma grave doença. Realmente, um panfleto daquela época declarava: “Madeira é um refúgio para doentes de muito bom gosto!” As altas montanhas protegem o sotavento da ilha dos ventos gelados do nordeste. O porto de Funchal localiza-se em um anfiteatro natural aos pés destas montanhas, um lindo e magnífico local, a capital da ilha. Em outubro de 1838, os Kalleys iniciaram a viagem de navio de Greenock para Funchal, com a intenção de passar o inverno ali. Estavam acompanhados da mãe de Margareth e suas duas irmãs, uma das quais também estava doente e precisando de um clima mais ameno. Não pensavam em fixar residência permanente na ilha, mas o Dr. Kalley também não pensava em aceitar qualquer emprego na Escócia. Ali, lhe fora oferecido um cargo importante, o qual poderia
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assumir após os poucos meses de convalescença em Madeira. Entretanto, ele recusou. A China ainda era seu objetivo principal, mesmo que no futuro mais imediato tivesse de permanecer em Madeira. Mal sabiam eles que passariam oito anos na ilha e muito menos que o ministério deles lá resultaria no que o Dr. Andrew Bonar chamou de “o maior acontecimento na história moderna das missões”.
A ILHA DA MADEIRA Madeira foi descoberta por João Gonçalves Zarco, em 1419, um dos intrépidos marinheiros da famosa escola de navegação em Sagres, Portugal, fundada e supervisionada pelo Príncipe Henrique, o Navegador (1349-1460). A tradição diz que o Príncipe Henrique ouviu sobre a “ilha paradisíaca” de uma forma extraordinária. Um lendário casal inglês, Robert e Ann, foi impedido por seus pais de continuar com seu romance. Eles decidiram fugir do país e embarcar para o continente. Porém, fortes tempestades tiraram o navio de seu curso, e eles finalmente foram parar na costa da ilha de Madeira. Eles haviam descoberto um paraíso, tão maravilhosas eram as belezas naturais: montanhas, florestas, flores, pássaros, etc. Junto dos marinheiros eles exploraram o interior da ilha, mas, ao retornarem para a costa, descobriram que o barco deles havia sido carregado por uma tempestade. Os marinheiros então iniciaram o árduo trabalho de preparar algum tipo de embarcação que fosse própria para o alto-mar, mas o romance do jovem casal foi de vida curta. Ambos morreram em pouco tempo, um logo após o outro, e foram enterrados pelos marinheiros num lugar que agora é o porto de Machico. A tripulação finalmente se lançou ao mar, mas foram logo capturados por piratas bárbaros. Porém um deles conseguiu escapar das mãos dos piratas e chegou a Portugal. Ele informou o Príncipe Henrique da descoberta, e como resultado, a expedição de Zarco foi montada. Zarco não encontrou qualquer habitante na ilha; apenas densas florestas cobriam as grandes montanhas vulcânicas. Ele decidiu dar um nome bem descritivo à ilha, Madeira. Um outro desses exploradores do mar também tinha ligações bem próximas com Madeira. Cristóvão
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Colombo casou-se com uma mulher de família madeirense e por alguns anos chegou inclusive a morar lá, no Porto Santo. A posição geográfica da ilha, que se tornaria a principal rota de navios da Europa para as Américas Central e do Sul, África e Extremo Oriente, fez dela algo de extrema importância estratégica. Ela se tornou um porto de parada obrigatória para todos os navios, pois era a última oportunidade para comprar suprimentos. Na virada do século dezenove, até cinqüenta ou sessenta navios podiam ancorar ao mesmo tempo no porto protegido na Baía de Funchal, para comprar produtos frescos, água e até mesmo vinho. A ilha para a qual os Kalleys estavam indo era realmente solo estrangeiro, mas com uma forte presença britânica. Portugal é o mais antigo aliado da Inglaterra, sendo que a aliança data do casamento de Phillipa, filha de John de Gaunt, com João, rei de Portugal, em 1387. No século dezenove, Madeira era, sem sombra de dúvidas, uma colônia comercial do Reino Unido; um século antes, ela tinha quase se tornado uma colônia britânica de fato! Quando Charles II casou-se, em 1662, com Catarina de Bragança, uma princesa portuguesa, recebeu um dote de 500.000 libras, juntamente com Tangier e – de imensa importância para a Grã-Bretanha – a ilha de Bombaim, que se tornou a pedra fundamental na construção do Império Indiano. Registros mostram que Madeira foi também considerada para ser inclusa no dote! Caso isso tivesse ocorrido, teria sido uma valiosa adição para as colônias britânicas. Logo após a fundação de Funchal em 1508, a Grã-Bretanha havia forjado fortes relações comerciais com Madeira. No século dezoito, a Fábrica Inglesa, uma corporação de homens de negócio britânicos, havia se tornado o fator mais importante na economia da ilha da Madeira. A Fábrica Inglesa dominava todo o comércio da ilha – açúcar, vinho, tecidos, bordados, trabalhos de vime, velas e carregamentos em geral. Ela quase constituía um Estado dentro de outro Estado, com seu próprio clube, igreja, capelão, médicos, hospital, cemitério e programas de caridade, incluindo pensão para os exilados em necessidade, juntamente com tratamento médico e sepultamento gratuitos. A Fábrica Inglesa era muito restrita. Ninguém poderia se tornar um membro da corporação “a menos que tivesse um
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estabelecimento comercial respeitável, por seis anos ininterruptos”! Durante as Guerras Napoleônicas, a importância estratégica da ilha da Madeira era tão vital para os interesses britânicos, especialmente para a Marinha, que uma força militar britânica, com milhares de homens, ocupou a ilha como uma medida de precaução, primeiramente durante os anos de 1801 e 1802, depois entre 1808-1814, quando Napoleão invadiu a Península Ibérica.
OS KALLEYS CHEGAM EM MADEIRA A entrada para Funchal era bastante conhecida pelo Dr. Kalley, mas para sua esposa e sua família deve ter sido uma experiência emocionante. Um escritor contemporâneo descreve a chegada à ilha da seguinte maneira: “A aproximação à Madeira pelo mar era comovente. Depois que o navio contornava o Cabo de Garajua, a vista da cidade de Funchal era gradualmente descoberta. Os pontos brancos aumentavam até que alguém os pudesse identificar como sendo as casas locais. As dos ricos, com torres usadas para avistar os navios e pavimentos superiores com grades, eram facilmente distinguidas das casas das pessoas mais pobres. Muito mais acima, quase no topo do monte, podia ser visto, entre as folhas das árvores, as duas torres brancas da Igreja da Nossa Senhora do Monte… para o oeste, o forte militar espanhol, o Forte Pico (1632)… para o leste, o Forte de Santiago… bem em frente, atrás da praia de seixos, o edifício São Lourenço, uma mistura de estilos arquitetônicos que servia para os múltiplos usos de palácio, fortaleza, quartel e residência do governador… no meio da praia, havia algo ímpar, o Pilar de Banger, uma coluna construída por um homem inglês, John Light Banger (17261798), para segurar as cordas de ancoragem dos navios mercantes”. Tudo isto, junto a uma paisagem de beleza majestosa – as imensas montanhas do centro da ilha. Não havia um cais que servisse de ancoradouro; os navios fundeavam na própria baía. Os Kalleys iriam ser transferidos do navio para pequenos barcos que eram remados em direção à praia e, então, carregados pela parte rasa até a margem. Ao desembarcar, eles se sentiriam membros de uma colônia
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consideravelmente grande de seus conterrâneos – residentes, convalescentes e turistas – um enclave britânico com arredores muito agradáveis. As casas, lojas e todos os prédios davam à cidade um sabor genuinamente português. Ruas íngremes, com pavimentação de pedras arredondadas, geralmente estreitas, mas algumas ruas um pouco mais largas, abrindo em praças e ocasionalmente em alamedas. Com o mesmo clima temperado praticamente o ano todo e sua agradável aparência, Funchal era o lugar ideal para se viver, ainda que por um breve período. Os Kalleys e os Crawfords alugaram uma casa, localizada num largo terreno, no Vale Formoso, com vista para a cidade. Uma vez que havia tantos inválidos e convalescentes na comunidade britânica, possivelmente mais de 300, o Dr. Kalley se encontrava sobrecarregado de trabalho. Logo, ele estava completamente ocupado dando conselhos médicos e tratamento, e, como um cristão comprometido, sentia-se constrangido a cuidar de suas almas também. Seus dons como evangelista pessoal encontraram bom uso. A Igreja da Inglaterra estava bem estabelecida em Funchal e por longas décadas teve cultos regulares para os britânicos. O prédio da igreja era de construção recente, tendo sido erguido em 1822 pela Fábrica Inglesa, e era notável por seu estilo de arquitetura. As leis portuguesas proibiam uma igreja protestante de ter aparência externa como de um prédio eclesiástico. A igreja era, portanto, circular, um estilo depois adotado pelos Cavaleiros do Santo Sepulcro. Havia um capelão também, o Sr. Lowe. Quanto aos presbiterianos escoceses, eles apenas pagavam, de forma quase que mecânica, um tributo ao dia do Senhor e à Igreja Escocesa e pensavam que nada mais seria requerido. Para muitos deles, a observância rigorosa do dia do Senhor como haviam conhecido na Escócia não era mais necessária para viver na ilha da Madeira. Para o doutor, tal atitude era o sinal visível de uma doença interna. Ele observava rigorosamente o Dia do Senhor, pelo motivo correto. Para ele, este dia não era apenas um peso enfadonho sem qualquer sentido, um jugo para ser descartado assim que as circunstâncias permitissem; mas era, verdadeiramente, o Dia do Senhor, e como tal deveria ser santificado, separado; um dia para a adoração na casa de Deus, com o povo de Deus; um dia de descanso e renova-
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ção, quando a rotina diária era suspensa e reduzida ao mínimo. Não eram as regras da diretoria da igreja, nem os costumes da sociedade contemporânea que orientavam a vida do Dr. Kalley, e sim a obediência e lealdade ao Senhor, que santificou o dia. No primeiro domingo em Funchal, o doutor foi ao culto na Igreja Anglicana, mas achou a adoração tão formal e tediosa para a alma que decidiu nunca mais voltar lá. No domingo seguinte, conduziu o culto em sua própria casa para sua família e os servos portugueses. Logo descobriu entre seus conterrâneos alguns que estavam desejosos de se encontrar para estudar a Bíblia e orar, e, como resultado disso, no início de dezembro, começaram a realizar cultos, ainda que informalmente, numa casa particular, de acordo com as tradições escocesas.