O Que Posso Fazer Com Minha Culpa? - R. C. Sproul

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O Que Posso fazer com

Minha Culpa ?



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CRuCiaiS N o.

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O Que Posso fazer com

Minha Culpa ?

R .C. Sproul


O que posso fazer com minha culpa? Traduzido do original em inglês What can I do with my guilt?, por R. C. Sproul Copyright © 2010 by R. C. Sproul

Publicado por Reformation Trust Publishing a division of Ligonier Ministries 400 Technology Park, Lake Mary, FL 32746 Copyright©2012 Editora FIEL. 1ª Edição em Português 2013

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

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Diretor: James Richard Denham III. Presidente emérito: James Richard Denham Jr. Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Francisco Wellington Ferreira Revisão: Elaine Regina Oliveira dos Santos Diagramação: Rubner Durais Capa: Gearbox Studios ISBN: 978-85-8132-148-6


Sumário Um – Culpa e Sentimentos de Culpa....................................... 7 Dois – Lidando com a Culpa................................................. 29 Três – O Perdão que Cura.................................................... 43



Capítulo um

Culpa e Sentimentos de Culpa

d

urante a minha carreira como professor de seminário, tenho sido chamado, frequentemente, a ministrar cursos sobre apologética cristã. O vocábulo apologética vem da palavra grega apologia, que significa “produzir uma resposta”. Portanto, a disciplina de apologética cristã não se preocupa com a justificativa do cristianismo,, como a palavra poderia sugerir. Em vez disso, o seu alvo é prover uma defesa racional das afirmações da verdade do cristianismo e responder objeções que pessoas levantam contra a fé. Isto pode ser uma realização muito abstrata e filosófica.


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Quando me engajo em apologética, converso frequentemente com pessoas que não são cristãos evangélicos; algumas delas são indiferentes, enquanto outras são francamente hostis ao cristianismo. Por essa razão, quando tenho essas discussões, deparo-me, muitas vezes, com perguntas sobre várias afirmações da verdade. Eu penso que, como Francis Schaeffer costumava dizer, dar respostas honestas a perguntas honestas, na medida em que somos capazes, é a responsabilidade do cristão. Por essa razão, procuro dar o meu melhor quando faço isso. No entanto, em discussões com céticos e com pessoas que são filosoficamente hostis ao cristianismo, há determinado momento em que cesso minhas tentativas de dar respostas e faço uma pergunta especialmente perspicaz. Eu digo: temos discutido as abstrações, os argumentos racionais para a existência de Deus e coisas assim. Deixemos de lado essas coisas, apenas por um instante, e responda-me isto: o que você faz com a sua culpa? Esta pergunta provoca, frequentemente, uma mudança dramática no tom da discussão. Ela toca em algo que é uma questão intuitiva para muitas pessoas, algo que as afeta em um nível existencial; por isso, leva a discussão para além do âmbito do abstrato. Na maioria das ocasiões, a pessoa com quem estou conversando não fica irada quando faço 8


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esta pergunta. Às vezes, a pessoa dirá que não tem culpa ou que culpa é um termo inventado por pessoas religiosas. Entretanto, geralmente a pessoa trata a pergunta com seriedade e tenta explicar como está lidando com a culpa. Isto, eu penso, é evidência de que todo ser humano sabe o que é culpa. Em algum nível e em algum momento de sua vida, todo ser humano tem de lidar com a culpa. C u lpa : Um a R e al id ade O bjet iva O que é culpa? Em primeiro lugar, temos de dizer que culpa não é subjetiva, e sim objetiva, porque ela corresponde a um padrão ou realidade objetiva. Isso me leva à mais simples definição de culpa que posso formular: culpa é aquilo em que uma pessoa incorre quando transgride uma lei. Entendemos como isto opera no sistema de justiça criminal. Se alguém quebra uma lei, uma norma que foi aprovada pelo governo, e essa pessoa é detida por ter quebrado a lei, ela pode ter de comparecer a um tribunal. A pessoa pode dizer que não é culpada; e, nesse caso, ela tem direito a um julgamento, que é, frequentemente, um julgamento por meio de um júri1. Nesse julgamento, as evi1 NE: O autor refere-se ao sistema de justiça norte americano. No Brasil, somente os casos de homicídio são julgados por júri popular. 9


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dências são apresentadas, e as testemunhas são ouvidas. No final, os membros do júri chegam a um veredito. Eles decidem se, em sua opinião, a pessoa é, de fato, culpada de transgredir a lei que ela é acusada de violar. Há muitos tipos de julgamentos, tipos de argumentos que são usados e níveis de evidência. Há alguns anos, parecia que todos os Estados Unidos estavam fascinados pelos dois julgamentos de O. J. Simpson – um julgamento criminal e um julgamento civil – que apresentaram diferentes leis de evidência, diferentes diretrizes para se chegar a um veredito, e assim por diante. Mas, em qualquer tipo de julgamento, a pergunta é esta: a pessoa é culpada? Em outras palavras, o suspeito cometeu o erro? Ele transgrediu a lei? Leis são uma realidade inevitável em nosso mundo. Há regras impostas por nossos pais. Há regras impostas pelos professores e pelos empregadores. Há leis aprovadas pelos estados e pelo governo federal. Todos nós estamos sujeitos a regras e leis. Podemos discordar de algumas das leis ou mesmo da própria ideia de haver leis. Talvez não tivemos a oportunidade de votar nas leis às quais somos exigidos que atentemos. Mas, apesar disso, as leis existem. Não podemos ignorá-las. Quando falamos sobre culpa, estamos falando sobre a transgressão ou violação destas regras ou leis. 10


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O ensino bíblico é que Deus é o Legislador supremo, e ele considera cada pessoa viva como responsável por se conformar às suas ordens. Sim, Deus tem regras e leis. Pessoas me têm dito, em muitas ocasiões, que o cristianismo não é regras e estipulações; é amor. Isso não é verdade. O cristianismo é amor porque o amor é uma das regras – Deus nos ordena amar uns aos outros. O cristianismo não é apenas leis e mandamentos, mas leis e mandamentos decretados por Deus são um fato da vida, desde o dia da criação. Por isso, se definimos culpa como aquilo em que uma pessoa incorre quando transgride uma lei, nós incorremos em culpa suprema quando transgredimos a lei de Deus. Isto é verdadeiro porque a lei de Deus é perfeita. Nunca é arbitrária. Não reflete simplesmente os interesses absolutos de um grupo específico de lobistas, e sim o caráter perfeito, santo e justo próprio Deus. Obviamente, se Deus não existe, não precisamos nos preocupar com quebrar suas regras, porque ele não tem nenhuma regra. Mas ainda temos de lidar com as regras dos magistrados menores. Creio que todos nós temos quebrado a lei de Deus; mas, ainda que não tenhamos violado as leis de Deus, certamente temos transgredido as leis dos homens. Portanto, todos nós temos experimentado a situação objetiva de haver transgredido uma lei. 11


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Suponha que uma pessoa comete um assassinato com maldade premeditada; ela planeja deliberadamente tirar a vida de outra pessoa e executa o seu plano. A ampla maioria das pessoas neste mundo concorda que matar é uma coisa má e que assassinato é errado. Mesmo na era do relativismo, quando muitas pessoas dizem que não há absolutos, um indivíduo evitará seu compromisso com o relativismo, se alguém se aproximar dele com uma faca e ameaçar matá-lo. Ele dirá: “Isso é errado; se você me matar, incorrerá em culpa”. Ele está certo. Em algum nível, todos entendemos que há certas coisas que são inerentemente erradas; e, se fizermos essas coisas, incorreremos em culpa. S e n t i m e n t os d e Cu l pa: Um a R ea çã o Su bjeti va Uma coisa interessante acontece quando pergunto às pessoas: o que você faz com a sua culpa? Não pergunto o que ele ou ela fará a respeito de seus sentimentos de culpa. Minha pergunta esta relacionada à culpa. Entretanto, quase todos a quem faço esta pergunta tendem a responder em referência a seus sentimentos de culpa. Nessa altura, paro a discussão para fazer uma distinção entre culpa e sentimentos de culpa. Embora os dois estejam intima12


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mente relacionados, não são exatamente a mesma coisa. A distinção básica é entre objetividade e subjetividade. Por um momento, pensemos em sentimentos. Sentimentos são coisas que seres pessoais experimentam. Rochas, como sabemos, não experimentam sentimentos pessoais. São objetos insensíveis e sem vida. Portanto, se alguém joga uma pedra, e ela me atinge na cabeça, a pessoa que a jogou pode ou não experimentar culpa, mas posso concluir com certeza que a pedra não sofre nenhum trauma de significado psicológico. A pedra é o instrumento que foi usado nesse ataque específico, mas ela não tem sentimentos. Pessoas são diferentes. São seres pessoais. Têm mente e vontade. Cada pessoa tem um aspecto de sentimentos em sua vida. Por isso, quando falamos sobre sentimentos de culpa, estamos falando sobre algo que é pessoal e subjetivo. Culpa sem sentimentos de culpa. Enquanto procuramos estabelecer a diferença entre culpa e sentimentos de culpa, é importante lembrarmos que nossos sentimentos nem sempre têm uma correspondência exata com a nossa condição perante a lei. Dois exemplos nos ajudarão a esclarecer isto. Temos exemplos de pessoas que simplesmente não se importam em estacionar em áreas de estacionamento 13


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proibido. Quando encontram uma multa no parabrisas do carro, elas a jogam na lixeira; ou quando elas recebem intimações para pagarem a multa ou para comparecer ao tribunal, e simplesmente a ignoram. Nós as chamamos de “transgressores habituais da lei”. Parecem ser capazes de repetir seu hábito de violar as áreas de estacionamento proibido sem qualquer senso de remorso pessoal. Levando esta ideia a um nível mais elevado, no estudo da psicologia há uma categoria de pessoas que são chamadas de psicopatas ou sociopatas. O elemento comum destas duas palavras é o sufixo pata, que vem da palavra grega pathos e significa “sofrimento, sentimento, emoção”. Um psicopata ou um sociopata é uma pessoa que pode se entregar a um comportamento antissocial, como um crime horrível, sem qualquer sentimento de remorso evidente. Às vezes, se diz que uma pessoa é um mentiroso psicopático. Isto significa que a pessoa mente habitual e consistentemente, mas sem sofrer investidas específicas da parte de sua consciência. Quando pessoas cometem crimes terríveis sem sentir culpa, seus sentimentos não são proporcionais à culpa em que incorreram. Por conseguinte, é possível uma pessoa ter culpa sem ter sentimentos de culpa ou, 14


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pelo menos, sentimentos de culpa proporcionais. A ausência de sentimentos de culpa nem sempre indica uma ausência de culpa. Imagine que alguém é preso por assassinato de primeiro grau, e o promotor tem gravações em que a pessoa declara, antes do assassinato, a sua hostilidade para com a vítima e sua intenção firme de matá-la. Há também um vídeo do assassinato, evidência de DNA e a arma do assassinato. No entanto, a pessoa vem ao tribunal e, quando o juiz lhe pergunta: “O que você se declara?”, ele diz: “Eu me declaro inocente”. Depois, ele escolhe defender a si mesmo, e não servir-se de um advogado. Ele se levanta no tribunal e apresenta sua defesa, dizendo: “Eu não sou culpado, porque não me sinto culpado. Não se importem com todas as evidências objetivas. Meu testemunho subjetivo estabelece minha inocência. Não posso ser culpado porque não me sinto culpado”. Você acha que essa defesa terá sucesso num tribunal secular? O fato de que uma pessoa diz que não é culpada, porque não se sente culpada, não diz absolutamente nada sobre a sua violação da lei de assassinato. É possível pessoas não sentirem a culpa que têm diante de Deus. No capítulo três do livro de Jeremias, o profeta fala sobre a infidelidade do povo de Deus no An15


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tigo Testamento. Como ocorre frequentemente no texto bíblico, a infidelidade de Israel é descrita pelo uso da metáfora de adultério – Israel é visto como uma prostituta que se uniu a deidades estrangeiras. Jeremias escreve: Se um homem repudiar sua mulher, e ela o deixar e tomar outro marido, porventura, aquele tornará a ela? Não se poluiria com isso de todo aquela terra? Ora, tu te prostituíste com muitos amantes; mas, ainda assim, torna para mim, diz o Senhor. Levanta os olhos aos altos desnudos e vê; onde não te prostituíste? Nos caminhos te assentavas à espera deles como o arábio no deserto; assim, poluíste a terra com as tuas devassidões e com a tua malícia. Pelo que foram retiradas as chuvas, e não houve chuva ser dia; mas tu tens a fronte de prostituta e não queres ter vergonha (3.1-3).

A cena que Jeremias descreve com estas palavras é bem vívida. Ao pronunciar o julgamento de Deus contra Israel, ele acusa Israel de cometer prostituição e o descreve como que tendo uma fronte de prostituta. O que isto significa? Jeremias está dizendo que Israel esqueceu como envergonhar-se. Está tão acostumada e habitual em sua infidelidade, que perdeu qualquer senso de embraço ou vergonha. 16


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Passagens bíblicas como esta deixam claro que há, muitas vezes, uma grande lacuna entre a culpa objetiva e os sentimentos de culpa subsequentes que resultam dela. A Escritura nos diz que é possível pessoas, por meio de pecados repetidos, perderem a capacidade de sentir vergonha ou embaraço. A Bíblia fala com frequência sobre o coração endurecido, que leva uma pessoa a não sentir tristeza por sua transgressão. É perigoso confiarmos totalmente em nossos sentimentos para nos revelarem a realidade de nossa própria culpa, porque podemos abafar os estímulos de nossa consciência. Sentimentos de culpa sem culpa. Por outro lado, há pessoas que são tomadas por todo tipo de sentimento de culpa por coisas que não fizeram. Objetivamente, elas não transgrediram nenhuma lei, mas, por causa de uma ou outra aberração mental, se sentem culpadas, sentem que transgrediram uma lei ou várias leis. É possível pessoas sentirem culpa por coisas que, consideradas em si mesmas, não são pecaminosas. Suponha, por exemplo, que você foi criado em um lar cristão que faz parte de uma subcultura cristã que ensina ser errado este ou aquele comportamento. Seus pais, professores e pessoas de autoridade na igreja inculcam em você a ideia de que não é permitido aos cristãos fazerem várias coisas. 17


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Em alguns casos, estas regras e diretrizes não se acham na Escritura. Existe uma coisa chamada legalismo, que impõe leis sobre coisas em relação às quais Deus nos deixa livres. Mas, quer elas sejam verdadeiramente pecaminosas ou não, você aprende que certas ações são contra a lei de Deus; portanto, se você as faz, incorre em grande senso de culpa. Em resumo, você tem sentimentos de culpa, embora os comportamentos em que se engaja não estejam sob o julgamento de Deus. Um exemplo comum disto se refere a bebidas alcoólicas. Muitas pessoas aprendem que qualquer consumo de bebidas alcoólicas é pecaminoso. Não creio que a Bíblia ensina isso. Estou certo de que receberei cartas e telefonemas de pessoas que não concordam comigo, pessoas que têm ensinado em suas igrejas ou em seus lares que o vinho sobre o qual a Bíblia fala é meramente suco de uva não fermentado. No entanto, no antigo Israel, os festivais religiosos que foram instituídos por Deus, mais notavelmente a Páscoa, usavam o vinho genuíno. Era uma bebida que tinha a capacidade, se abusada ou tomada em excesso, de deixar as pessoas bêbadas. No Antigo Testamento, a embriaguez era um problema; Deus falou contra a embriaguez e a considerava um pecado sério. Mas o problema era a embriaguez e não a bebida. 18


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De modo semelhante, o Novo Testamento deixa claro que a embriaguez é um pecado sério. No entanto, Jesus fez vinho genuíno na festa de casamento em Caná (João 2). Oinos é a palavra grega que é traduzida por “vinho” e significa o fruto fermentado da videira. Esse vinho era usado para propósitos religiosos, para doses dietéticas diárias e em tempos de celebrações. A Bíblia fala do vinho que alegra o coração (Sl 104.15). Quando Jesus instituiu a Ceia do Senhor, ele consagrou vinho genuíno. Jesus estava celebrando a Páscoa com seus discípulos quando instituiu a Ceia do Senhor, e o vinho era usado na celebração da Páscoa. O ensino cristão comum em oposição a bebidas alcoólicas se desenvolveu a partir do movimento de proibição e temperança nos Estados Unidos. Não tem fundamento na lexicografia das línguas antigas. Apesar disso, muitos que são expostos a este ensino e, depois, consomem bebida alcoólica acabam ficando com sentimentos de culpa, embora não tenham cometido nenhum pecado. Ao mesmo tempo, a Bíblia nos diz que tudo que não provém de fé é pecado (Rm 14.23). Deixe-me ilustrar isso. Tenho um amigo que gosta muito de jogar pingue-pongue. Ora, a Bíblia não diz nada sobre jogar pingue-pongue. Este esporte nem mesmo existia no tempo em que a Bíblia 19


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foi escrita; e penso que podemos facilmente ver que não há nenhum mal intrínseco em um simples passatempo ou esporte recreativo como o pingue-pongue. Mas até esta atividade simples pode tornar-se uma ocasião de pecado. Meu amigo era um cristão sincero que tinha responsabilidades sérias em seu trabalho, mas ficou tão envolvido com pingue-pongue, que começou a negligenciar o seu trabalho, sua família e outras responsabilidades. Era viciado em jogar pingue-pongue. Então, para ele, o pingue-pongue se tornou uma questão moral, não porque o esporte é mau em si mesmo, e sim porque esta atividade se tornou uma ocasião de pecado e irresponsabilidade em sua vida. Por isso, ele começou a ter de lutar com o pingue-pongue. De modo semelhante, se você crê que tomar vinho é um pecado e o faz, então, você pecou. Em minha opinião, o pecado não é o tomar vinho, porque, se tomar um gole de vinho é pecado, Jesus foi um pecador, e ele não se qualificaria para ser o Salvador impecável de seu povo. Ele seria o Cordeiro com mácula e não o Cordeiro sem mácula (1 Pe 1.19). Mas o princípio é que tudo aquilo que é feito sem fé é pecado, e, se você faz algo que crê ser errado, o pecado que você cometeu está em agir contra a sua consciência. Você fez algo com o pensamento de transgredir, e é errado escolher fazer algo que você crê ser errado, embora não seja errado. 20


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Com estes exemplos, espero que você perceba por que é importante que tenhamos um entendimento claro da relação entre culpa e sentimentos de culpa. A presença de sentimentos de culpa não indica automaticamente a presença de culpa objetiva com respeito a uma ação específica, mas pode representar a presença da culpa de agir contra a própria consciência. A conclusão é que, toda vez que experimentamos sentimentos de culpa, precisamos parar e perguntar a nós mesmos tão honestamente quanto possível: “Eu transgredi a lei de Deus?” Sempre que confundimos culpa e sentimentos de culpa, nos expomos a vários problemas. Por exemplo, pessoas podem tirar proveito de nossa sensibilidade a certos padrões de comportamento e tentar impor-nos sentimentos de culpa que não são apropriados às ações que temos praticado. Uma das maneiras mais fáceis de manipular as pessoas é lançar sobre elas algum tipo de sentimento de culpa, em um esforço para envergonhá-las ou embaraçá-las em fazerem o que desejam. Há pessoas que se tornaram especialistas em manipulação de culpa. O processo de manipulação de culpa pode ser destrutivo e devastador nos relacionamentos humanos. Mas este é um problema pequeno, se comparado com o outro lado da moeda. Podemos nos tornar pro21


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fissionais em silenciar os sentimentos de culpa genuínos. Vivemos numa cultura que nos ensina que sentimentos de culpa são inerentemente destrutivos, porque arruínam o senso de autoestima de uma pessoa. Mesmo no âmbito da psicologia contemporânea, somos informados de que há algo errado em dizer a alguém que seu comportamento é pecaminoso. Há alguns anos, Karl Menninger escreveu um livro intitulado Whatever Became of Sin? (O que Aconteceu com o Pecado?) A ideia essencial neste livro é que não devemos dizer a ninguém que seu comportamento é errado porque podemos fazê -lo sentir-se culpado; e, se fazemos isso, ele pode sofrer algum tipo de desastre psicológico. A Re a lid a d e d e Noss a Cu l pa Quero voltar agora à pergunta que uso em minhas discussões apologéticas: o que você faz com a sua culpa? Um advogado esperto reconheceria que há um problema nesta pergunta. O problema é que não estabeleci o fato de que há alguma culpa. Minha pergunta pressupõe que a pessoa tem culpa com a qual precisa lidar. Esta pergunta é semelhante à pergunta “Você parou de bater em sua esposa?” Se um homem responde essa 22


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pergunta dizendo “Sim”, está admitindo que já bateu em sua esposa; e se responde “Não”, está dizendo que ainda bate em sua esposa. Não importa como ele responda à pergunta, está admitindo algum tipo de culpa. A pergunta está em uma forma ilegítima. Portanto, se eu lhe digo sem conhecê-lo: o que você faz com a sua culpa?, você tem todo o direito de responder-me: “Que culpa? Você está supondo que eu tenho culpa?” Isto é verdade, mas posso fazer essa suposição baseado em minha perspectiva bíblica e teológica. Essa é a razão por que, quando faço esta pergunta, não começo por argumentar que existe uma coisa chamada culpa. Posso supor que a pessoa entende a realidade da culpa. Em Romanos 3, o apóstolo Paulo apresenta uma exposição elaborada do estado caído da raça humana. Ele escreve: “Ora, sabemos que tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei, o diz para que se cale toda boca, e todo o mundo seja culpável perante Deus, visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei, em razão de que pela lei vem o pleno conhecimento do pecado... porque não há distinção, pois todos pecaram e carecem da glória de Deus” (3.19-23). Evidente e inequivocamente, as Escrituras ensinam, nesta passagem, não somente a realidade da culpa humana, mas também a sua universalidade. 23


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Deus declarou todo o mundo e cada pessoa no mundo culpados de transgredir sua lei. Você pode dizer que estou começando a questão de novo, declarando a universalidade da culpa simplesmente por afirmar uma passagem do Novo Testamento. Entretanto, a universalidade da culpa humana não é o testemunho apenas da Escritura; é parte do folclore e da sabedoria natural de muitas culturas. Em termos técnicos, esta ideia é conhecida como a jus gentium, “a lei das nações”, que é o testemunho universal dos povos, não somente aqueles que leem a Bíblia ou são comprometidos com uma religião específica, quanto à universalidade da culpa. Você já disse: “Ninguém é perfeito”? Concorda com essa afirmação negativa universal? Quantas pessoas você conhece que creem realmente que são perfeitas? Nunca conheci uma pessoa fora da igreja cristã que me dissesse que era perfeita. Sei de pessoas dentro da igreja cristã que afirmaram terem sido aperfeiçoadas e viverem num estado de perfeição. Acho que elas estavam terrivelmente iludidas neste assunto, mas não posso dizer que já conheci uma pessoa que afirma ser perfeita agora. Até essa pessoa admite imperfeições passadas, e ainda não conheci um ser humano que me fitou nos olhos e disse: “Nunca fiz nada errado em minha vida”. 24


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Ora, pode haver pessoas que pensam isso, e tenho atenção especial para com elas, mas falarei àqueles que não se encontram nesta situação, porque são a maioria das pessoas. Eles sabem que têm violado a lei de Deus. Outra vez, Paulo diz: “Todos pecaram e carecem da glória de Deus”. No Novo Testamento, na língua grega, a palavra pecado é harmartia, que significa, literalmente, “errar o alvo”. Foi emprestada do esporte de arco e flecha. O arqueiro da antiguidade praticava como os arqueiros o fazem em nossos dias, com alvos; e os alvos tinham divisões e a mosca, para que o arqueiro mirasse seu arco e tentasse atingir um nível específico de precisão, por acertar sua flecha naquela marca. Harmartia era a palavra usada na antiguidade, quando o arqueiro errava a mosca e ficava aquém de uma nota perfeita. Mas, quando transportamos esta palavra para as categorias teológicas do Novo Testamento, não falamos sobre atirar flechas em alvos, falamos sobre a vida. Falamos sobre atingir os padrões de perfeição de Deus, e as Escrituras dizem que ninguém atinge a mosca. Todos ficam aquém do padrão de justiça, o padrão de conduta moral que foi estabelecido por Deus mesmo. Porque isto é verdade, toda pessoa no mundo é culpada diante de Deus. Portanto, numa conversa normal, eu posso ser direto e perguntar a uma pessoa: o que você faz com a sua 25


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culpa? Não estou falando de culpa diante de um professor de jardim da infância, diante do delegado local ou de um tribunal de trânsito. Estou falando da culpa da pessoa diante de Deus. A resposta mais frequente para essa pergunta diz o seguinte: “Não me preocupo muito com isso, realmente; porque o negócio de Deus é perdoar”. A esperança é que, como estamos todos no mesmo barco, o Criador e Capitão do barco não ficará angustiado por uma ou mais pessoas no barco. Se ninguém é perfeito, certamente Deus terá de nos avaliar de acordo com o desempenho médio de todos. Ele terá de fazer o que fazemos – ajustar o padrão para mais baixo, a fim de que nos encontre onde estamos. Em determinado sentido, aqueles que dão esta resposta sabem que estão errando o alvo com suas flechas; por isso, em vez de afastarem-se do alvo, eles começam a se aproximar do alvo para tornarem mais fácil o acertarem a mosca. Mas uma coisa é ajustar os olhos no arco ou reduzir a distância para o alvo, e outra coisa é pedir a Deus que ajuste o seu caráter. Lembre: a lei de Deus resulta de seu caráter, e suas leis são justas porque ele é justo. Ele não ajustará a lei que reflete sua perfeição, para se acomodar a você e a mim. Visto que ele não ajustará a sua lei, permanecemos culpados diante dessa lei. 26


Culpa e Sentimentos de Culpa

No estudo da psicologia, sabemos que não há, talvez, algo mais paralisante à ação humana do que sentimentos de culpa não resolvidos. Esses sentimentos paralisam pessoas. Essa é a razão por que, quando confrontados com sentimentos de culpa, precisamos lidar com eles. Para nossa tristeza, muito frequentemente tentamos lidar com a culpa e sentimentos de culpa por meio de métodos criados por homens. No capítulo seguinte, quero examinar esses métodos, antes de considerarmos a prescrição de Deus para a culpa e sentimentos de culpa, no capítulo final.

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