Por que a Reforma ainda é importante? - Michael Reeves e Tim Chester

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“Raramente encontramos uma combinação tão rica de teologia histórica e apaixonada argumentação exegética. Trata-se de uma defesa calorosa, pastoral e rigorosa das assertivas centrais da Reforma. Inclui ainda uma defesa dessa herança comum sob as perspectivas distintas anabatista/batista, reconhecendo importantes diferenças entre os reformadores magisteriais. Por ambas as razões, o livro Por que a Reforma ainda é importante representa relevante contribuição aos debates continuados na igreja global.” Michael Horton, professor de Teologia Sistemática e Apologética da cadeira Gresham Machen, Seminário Westminster Califórnia

“Os autores Michael Reeves e Tim Chester deram uma sólida contribuição à comemoração da Reforma com seu relato claro sobre o que os principais reformadores, especialmente Martinho Lutero e João Calvino, ensinavam sobre Jesus, a graça de Deus, a Escritura, os sacramentos e outros temas importantes. Com a aproximação do aniversário de quinhentos anos da fixação das Noventa e Cinco Teses de Lutero, este livro oportuno ressalta a importância vital do que ele e outros dos primeiros protestantes dedicaram a vida a ensinar.” Mark Noll, professor emérito de História da cadeira Francis A. McAnaney, Universidade de Notre Dame; Editor de Protestantism after 500 Years


“Reeves e Chester explicam com clareza e sem rodeios a importância vital da Reforma, resumindo sua mensagem e demonstrando sua relevância permanente. Este livro, Por que a Reforma ainda é importante, pode ser um tomo de apenas cerca de duzentas páginas, mas vibra com sua vitalidade. Brilhante realização de dois modernos doutores da igreja, trata-se de um grande livro pequeno.” Sinclair B. Ferguson, professor de Teologia Sistemática, Seminário Redeemer, Dallas

“Se ainda há alguma dúvida sobre se a Reforma ainda tem importância ou se a igreja precisa de reforma contínua, Reeves e Chester a dissipam. De maneira atraente e sábia, este livro oferece sólidas razões para ser protestante, oferecendo relatos bíblica e historicamente fiéis de suas principais formulações doutrinárias. No momento em que os cristãos protestantes de todo o mundo celebram os quinhentos anos da Revolução de 1517, encontram aqui forte encorajamento. Semper reformanda!” Sean Lucas, professor de História da Igreja, Seminário Teológico Reformado, Jackson, Mississippi; Pastor titular da Primeira Igreja Presbiteriana de Hattiesburg, Mississippi


POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE? MICHAEL REEVES & TIM CHESTER


R332p

Reeves, Michael (Michael D.) Por que a Reforma ainda é importante / Michael Reeves e Tim Chester ; [tradução: Elizabeth Gomes]. – São José dos Campos, SP: Fiel, 2017. 248 p. Tradução de: Why the Reformation still matters. Inclui referências bibliográficas e índices. ISBN 9788581324081 1. Reforma protestante. 2. Teologia dogmática – Obras populares. 3. Igrejas reformadas – Doutrinas. I. Chester, Tim. I. Título. CDD: 270.6

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477

Por que a reforma ainda é importante?

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

Traduzido do original em inglês Why the Reformation Still Matters Por Michael Reeves e Tim Chester

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

© Copyright 2016 Michael Reeves e Tim Chester

Publicado por Crossway 1300 Crescent Street Wheaton, Illinois 60187 Copyright © Editora Fiel 2016 Primeira Edição em Português: 2017

Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago J. Santos Filho Tradução: Elizabeth Gomes Revisão: Shirley Lima Diagramação: Rubner Durais Capa: Rubner Durais ISBN: 978-85-8132-408-1

Caixa Postal 1601 CEP: 12230-971 São José dos Campos, SP PABX: (12) 3919-9999 www.editorafiel.com.br


In memoriam Edward Coombs Ele amou e viveu por Jesus Cristo. O mundo nĂŁo era digno dele.



Sumário Abreviaturas...................................................................................9 Introdução................................................................................... 11 1 Justificação................................................................................. 21 Como podemos ser salvos? 2 Escritura..................................................................................... 41 Como Deus fala conosco? 3 Pecado......................................................................................... 73 O que há de errado conosco? 4 Graça........................................................................................... 89 O que Deus nos dá? 5 A teologia da cruz................................................................... 107 Como saber o que é verdadeiro? 6 União com Cristo................................................................... 127 Quem sou eu? 7 O Espírito Santo..................................................................... 143 Podemos verdadeiramente conhecer a Deus? 8 Os Sacramentos...................................................................... 159 Por que tomamos pão e vinho?


9 A igreja...................................................................................... 179 A qual congregação devo afiliar-me? 1 0 Vida a cada dia......................................................................... 201 Que diferença Deus faz na segunda-feira de manhã? 1 1 Alegria e glória........................................................................ 223 Será que a Reforma ainda é importante? Índice Geral............................................................................... 237 Índice das Escrituras................................................................ 245


Abreviaturas Calvino, Comentário

Calvin’s Commentaries (Novo Testamento). Editado por D. W. Torrance e T. F. Torrance. 12 vols. Edimburgo: Saint Andrew Press, 1959-1972

Calvino, Institutas

Institutas da religião cristã. Editado por John T. McNeill. Traduzido por Ford Lewis Battles. 2 vols. The Library of Christian Classics 20-21. Filadélfia: Westminster; Londres: SM, 1961

Obras de Lutero

Luther’s Works: American Edition. Editado por Jaroslav Pelikan e Helmet T. Lehmann, 55 vols. Filadélfia: Fortress; St. Louis, MO: Concordia, 1955-1987



Introdução

Há quinhentos anos, um jovem monge alemão saiu de seu monastério e foi caminhando, pelo vilarejo de Wittenberg, até a igreja do castelo. A porta da igreja funcionava como uma espécie de mural público. Ali, o monge afixou um cartaz com 95 declarações – ou teses. Seu nome era Martinho Lutero (1483-546). As 95 teses representaram um convite para o debate público. Era a versão do século XVI de um blog provocador, convidando para uma discussão na rede. A provocação foi entre o frade dominicano Johann Tetzel (1465-1519) e o amigo próximo e colega de Lutero, Philip Melanchthon (1497-1560), que descreveu Tetzel como “um bajulador muito audaz”.1 “Um chato atrevido”, assim poderíamos dizer nos dias de hoje. À época, a maioria das pessoas acreditava em purgatório, um lugar de tormento para onde as pessoas iam depois da morte, a fim de purgar seus pecados antes de sua promoção para o céu. Tetzel vendia indulgências –promessas que vinham do papa no sentido de diminuir o tempo de purgatório. “Assim que a moeda cai no cofre, sobe a alma do purgatório”, esse era o refrão da propaganda. As 95 teses de Lutero protestavam contra 1  Philip Melanchthon, The Life and Acts of Martin Luther (1549). Em http://www.ilnet.org/pub/resources/text/wittenberg/melan/lifea-01 .txt. Acesso em: 24 fev. 2016.


POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

essas indulgências e contra a preocupação exagerada da igreja em relação à riqueza. Não foi uma série de declarações especialmente radicais, certamente não para os padrões de pensamento que, mais tarde, Lutero viria a demonstrar. Elas não indagavam acerca da existência do purgatório, nem sobre o valor limitado das indulgências. Mas atingiram a igreja onde ela se encontrava mais vulnerável: no bolso. O arcebispo local fez uma queixa ao papa. Mas tal oposição tornou Lutero ainda mais resoluto. Começou a atacar a infalibilidade do papa. Lutero queimou a bula papal que o ameaçava de excomunhão. O imperador Carlos V conclamou uma conferência na cidade de Worms. Os amigos de Lutero o defenderam habilmente, mas o imperador, por fim, chamou Lutero para participar pessoalmente, com a promessa de proteção. Ali estava Lutero, com todo o sistema da igreja a postos contra ele. Lutero, então, disse: Pela misericórdia de Deus, peço a vossa Majestade Imperial e vossos Ilustres Senhores, ou a qualquer um que tenha representatividade, que testifiquem e refutem meus erros, contradizendo-os com o Antigo e o Novo Testamentos. Estou pronto, se for melhor instruído, a me retratar de qualquer erro, e serei o primeiro a atirar meus escritos na fogueira.

E o advogado imperial respondeu em tom de reprovação: Tua resposta não vem ao caso. Não deverá haver questionamento das coisas que os Concílios da Igreja já tenham 12


Introdução condenado e sobre as quais as decisões já tenham sido tomadas [...] Dá-nos uma resposta clara a esta questão: Estás preparado a te retratar ou não?

Lutero, então, respondeu: Vossa Majestade Imperial e os Senhores Lordes exigem uma resposta simples. Aqui está ela, clara e direta. A não ser que, pelas Escrituras, eu esteja convicto do erro [...] e que minha consciência esteja cativa pela Palavra de Deus: não posso e não vou me retratar de nada, pois fazer isso contra a nossa consciência não é seguro nem é uma opção para nós. A esse respeito, tomo minha firme posição. Não posso fazer de outra forma. Ajudai-me, Deus. Amém.2

As ideias de Lutero se espalharam por toda a Europa, impulsionadas pela imprensa recém-inventada. Em muitos lugares, essas ideias encontraram ouvintes bem-dispostos. A evidente corrupção da Igreja Católica despertara em muitos o anseio por mudanças, e um renovado interesse pelo antigo conhecimento, associado à Renascença, conduziu a uma redescoberta das Escrituras. Na ocasião, já na cidade suíça de Zurique, Ulrico Zuínglio (1484-1531) introduzia a reforma com base em sua leitura da Bíblia, que ele passou a considerar a suprema autoridade em todas as questões. A princípio, suas reformas foram bem aceitas pelas autoridades católicas, mas, em 1523, depois de 2  Martinho Lutero, “The Diet of Worms: Luther’s Final Answer”, citado em Henry Bettenson e Chris Maunder, Documents of the Christian Church, 4th ed. (Oxford: Oxford University Press, 2011), 214.

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duas disputas em público, a cidade apoiou Zuínglio e rompeu relações com Roma. Na Inglaterra, William Tyndale (1494-1536) foi influenciado pelas ideias de Lutero. Servindo como capelão em Little Sodbury Manor, perto de Bath, ele ficou chocado com a ignorância do clero local. A um, ele proferiu esta célebre frase: “Se Deus poupar minha vida, antes que se passem muitos anos, farei com que o rapaz que puxa o arado conheça mais das Escrituras do que tu”.3 Tyndale partiu para Londres, esperando receber o apoio da igreja em seu plano de traduzir a Bíblia para o inglês. Mas o bispo de Londres não estava interessado nisso, porque não queria que as ideias luteranas se espalhassem pela Inglaterra. Cresceu, então, a oposição a Tyndale e, finalmente, ele deixou a Inglaterra para levar uma vida de fugitivo na Alemanha e no que hoje é a Bélgica. Tyndale, por fim, foi traído e morreu como mártir em 1536, porém não sem antes de haver traduzido todo o Novo Testamento e boa parte do Antigo Testamento. Em 1536, João Calvino (1509-1564) passava por Genebra, a caminho de Estrasburgo. Mas o líder da igreja de Genebra, Guilherme Farel (1489-1565), persuadiu-o a ali permanecer, e a cidade deu-lhe emprego como professor das Escrituras. Farel era um reformador, mas faltava-lhe o talento da organização. Assim, Calvino assumiu a liderança. Inicialmente, os cidadãos de Genebra não estavam certos de gostar da visão compreensiva de Calvino acerca de uma cidade cristã e, em 1538, ele foi expulso. Porém, três anos mais tarde, Calvino foi novamente designado para o cargo e passou o resto da vida fazendo de 3  William Tyndale, The Works of William Tyndale, 2 vols. (Cambridge: Parker Society, 1848; repr., Edimburgo: Banner of Truth, 2010), 1:xix.

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Introdução

Genebra uma força poderosa de ideias reformadas e enviando pastores por toda a Europa para plantar igrejas reformadas. Na Inglaterra, as origens da Reforma eram tanto políticas como religiosas. Henrique VIII (1491-1547) queria divorciar-se de sua primeira esposa, Catarina de Aragão (1485-1536), porque ela falhara em lhe dar o filho e sucessor que tanto almejava. No entanto, após muita prevaricação, o papa recusou-se a sancionar o divórcio. Não ajudou muito o fato de o papa estar comprometido com o imperador Carlos V, que, por acaso, também era sobrinho de Catarina. Assim, em 1534, Henrique rompeu com Roma e se fez chefe da Igreja da Inglaterra. Henrique queria manter a teologia católica longe da autoridade romana. No entanto, embora as origens da Reforma na Inglaterra pudessem ser políticas, muita gente se mostrava simpática às ideias de Lutero. O arcebispo de Henrique, Thomas Cranmer (14891556), sentia forte inclinação pela Reforma Protestante. Seu livro de oração, o Livro de Oração Comum, compôs a teologia reformada para a liturgia semanal das igrejas paroquianas por toda a Inglaterra. Nos anos subsequentes, a Inglaterra estava na gangorra entre o protestantismo e o catolicismo, até que Elizabeth I (1533-1603) estabeleceu no país sua versão peculiar inglesa do protestantismo (versão que decepcionou os puritanos). Lutero postou suas 95 teses em 31 de outubro de 1517. A Reforma foi um movimento complexo com muitos tributários. Certamente, não foi trabalho de um só homem nem mesmo de um só movimento. No entanto, a data de 31 de outubro de 1517 passou a ter um significado simbólico. Mais que qualquer outro evento, esse foi o disparo inicial que fez tudo o mais começar a se mexer. 15


POR QUE A REFORMA AINDA É IMPORTANTE?

Porém, atualmente, quinhentos anos depois, será que a Reforma ainda é importante? A reforma é importante porque essa é a nossa história. Seja você anglicano, batista, dos Irmãos Unidos, congregacional, independente, luterano, menonita, metodista, pentecostal, presbiteriano ou reformado, essas são as suas raízes. Sua história pode ser traçada de volta a esses acontecimentos que tiveram início quinhentos anos atrás. Mas será que os reformadores se assemelham àqueles avós bonzinhos, mas que nos causam algum embaraço? Será que fazem parte de uma história que preferiríamos deixar de lado ou seguramente ignorar? Ou talvez eles sejam heróis que preferimos admirar a uma distância segura? As sensibilidades da Reforma certamente parecem estranhas para as pessoas modernas. Será que a Europa foi lançada em turbulência por debates referentes ao fato de a justiça ser “imputada” ou “infundida”, a primeira uma declaração de que estamos bem com Deus e a outra simplesmente um novo poder para obter a aprovação de Deus? As pessoas realmente entraram em conflito por ideias como sermos salvos pela fé somente ou pela combinação de fé e obras? Houve realmente uma época em que a teologia era assim tão importante para as pessoas?

Será que a Reforma é uma má notícia? Recentemente, eu (Tim) assistia a um documentário da televisão em que o apresentador disse: “De muitas formas, a Reforma, acompanhada da amargura e da divisão que representa, faz-nos lembrar dos piores aspectos de nossos instintos 16


Introdução

religiosos”.4 Como eu consigo rebobinar minha televisão, foi possível certificar-me de que eu tinha ouvido direito. Palavras assim retratam a atitude de muitas pessoas. A religião é uma coisa do passado, algo misterioso, as pessoas supõem. E, ao lado dessa suposição, segue outra: afirmar conhecer a verdade e desafiar a percepção de verdade de outras pessoas constituem um ato ridículo de arrogância. Discutir religião seria falta de amor, uma negação daquilo que você afirma seguir. Com certeza, é possível agir de uma maneira que negue o evangelho que professamos e, algumas vezes, os líderes da Reforma foram responsáveis por fazer exatamente isso. Mas o pressuposto por trás dessas atitudes é que não valia a pena fazer as divisões da Reforma – afinal, a verdade não importa realmente. Mas vamos considerar o que estava em jogo. No cerne, a Reforma era uma disputa sobre como conhecer a Deus e como estar em paz com ele. Em jogo, estava nosso futuro eterno – uma escolha entre céu e inferno. Ainda hoje é assim. O fato de nosso mundo moderno considerar alheia a Reforma diz tanto sobre nós como fala sobre os reformadores. Expõe nossa preocupação com este mundo material e esta vida momentânea. Se existe um mundo além deste, e vida além desta vida, isso não nos parece muito importante – longe dos olhos, longe do coração. Trata-se de uma posição bizarra para se assumir quando há tanto em jogo. Para os reformadores, não havia necessidade mais premente do que a segurança diante do juízo divino, e não havia nada mais 4  Ifor ap Glyn, “Pagans and Pilgrims: Britain’s Holiest Places”, episódio 1, BBC4, primeiro broadcast em 7 mar. 2013.

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amável do que proclamar a mensagem da graça que concedeu vida eterna aos que responderam pela fé. A Reforma ainda é importante porque a vida eterna ainda é importante.

A Reforma seria uma notícia ultrapassada? A Reforma ainda é importante porque os debates entre católicos e protestantes não se extinguiram. Hoje, existem vozes afirmando que a Reforma acabou. Qualquer diferença substancial entre católicos e protestantes, dizem, se apagou ou foi tomada por preocupações mais prementes. Não faz sentido, de acordo com essa linha de pensamento, viver como se ainda estivéssemos empenhados nas disputas do século XVI. Em 1994, vários líderes evangélicos e católicos assinaram um documento intitulado Evangélicos e Católicos Juntos. Embora notassem diferenças que insistiam em permanecer, esse documento controverso clamava por aceitação mútua e testemunho em comum. Entre os signatários, estava o historiador evangélico Mark Noll. Em 2005, ele publicou um livro (em coautoria com Carolyn Nystrom) intitulado Is the Reformation Over?. Ele reconhece que a resposta é complexa. Mas Noll diz que, na justificação, “muitos católicos e evangélicos agora creem praticamente na mesma coisa”.5 Embora Noll identifique a natureza da igreja como uma diferença que continua, afirma: Se for verdade, como repetidamente afirmado por protestantes conscientes de seu ancoradouro em Martinho 5  Mark A. Noll e Carolyn Nystrom, Is the Reformation Over? An Evangelical Assessment of Contemporary Roman Catholicism (Grand Rapids, MI: Baker, 2005), 231.

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Introdução Lutero ou João Calvino, que iustificatio articulus stantis vel cadentis ecclesiae (a justificação é o objeto pelo qual a igreja permanece de pé ou cai), então a Reforma acabou.6

Destacando numerosos exemplos de cooperação, Noll diz que as diferenças entre católicos e evangélicos são “infinitesimais” em comparação às diferenças que ambos compartilham com o cristianismo liberal e a cultura secular.7 É claro que muita coisa mudou nos últimos quinhentos anos. Em muitas questões morais, como, por exemplo, a do aborto, católicos e protestantes encontram-se lutando por uma causa comum. Muito também tem mudado dentro do catolicismo e do protestantismo. Ambos foram impactados pelo modernismo e o pós-modernismo. Se essas diferenças estão se tornando cada vez mais estreitas, frequentemente é porque muitos católicos não seguem mais o ensino papal oficial, e muitos protestantes estão perdendo o entendimento bíblico obtido na Reforma. Precisamos de um foco mais forte, e não enfraquecido, da teologia reformada. Católicos e protestantes do século XVI reconheciam ter muita coisa em comum. E também estavam certos de que as diferenças entre eles eram fundamentais. Essas diferenças não podiam ser ignoradas naquela época, e não podem ser ignoradas agora. As linhas divisórias da Reforma não desapareceram. Nossa contenda é que, em algumas questões-chave, como justificação e Escritura, as questões permanecem e não são insignificantes. 6  Ibid., 232. 7  Ibid., 230.

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Porém, não é apenas por causa da discussão com o catolicismo que a Reforma continua a ter importância. A Reforma sempre teve a intenção de ser um projeto contínuo. Um de seus ditames era semper reformanda, expressão geralmente traduzida por “sempre reformando”; uma tradução melhor, contudo, seria “sempre sendo reformada” (pela Palavra de Deus). Isso descreve não um movimento para a frente, para um horizonte não definido, mas um movimento contínuo de volta à Palavra de Deus. Neste livro, delineamos algumas das principais ênfases da Reforma, examinando sua relevância contemporânea. Analisamos questões do tipo: Como obter a aprovação de Deus, Como vencer o pecado em nossa vida, Como Deus nos fala, Como saber o que é verdade, Por que tomamos pão e vinho, Em qual igreja devemos congregar, Que diferença Deus faz nas segundas-feiras pela manhã ou Que esperança temos em face da morte. Defendemos que, depois de quinhentos anos, as igrejas evangélicas seriam bem servidas pela redescoberta da teologia reformada. O pensamento dos reformadores não representa apenas um desafio à prática católica; também desafia muitos aspectos da prática evangélica. Os Reformadores não são avós que nos causam embaraço; são parceiros vitais desse diálogo e têm o potencial de renovar e revigorar nossas igrejas.

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1 Justificação Como podemos ser salvos? A história e a justificação de Lutero A primeira biografia de Lutero foi escrita por seu amigo Philip Melanchthon, em 1549. Melanchthon nos conta que, depois que Lutero se graduou, começou a estudar Direito. Sua família e os amigos esperavam, com confiança, que o brilhante jovem Lutero desse uma grande contribuição ao patrimônio familiar, mas, em vez disso, ele entrou no mosteiro agostiniano. Ao entrar ali, ele não somente se aplicou com máxima diligência aos estudos eclesiásticos, como também, com grande rigor na disciplina, exercitou o governo de si mesmo, e ultrapassava em muito todos os demais colegas na ampla gama de leituras e disputas, com zelosa observação de jejum e oração.8

Todos os seus esforços religiosos, contudo, não podiam dar qualquer segurança a Lutero. Quando morreu um amigo próximo, Lutero ficou aterrorizado pela ideia do juízo de Deus. E isso só se agravava diante da teologia da época. 8  Philip Melanchthon, The Life and Acts of Martin Luther (1549). Acesso em: 15 out. 2015. In http://www.iclnet.org/pub/resources/text/wittenberg/melan/lifea-01.txt.


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A teologia medieval via o pecado como um problema do ser que demandava cura. E essa cura se passava mediante os sacramentos. Nesta vida, o cristão está suspenso entre a graça de Deus (mediada pelos sacramentos) e o juízo de Deus. A teologia medieval acrescentou ainda uma distinção entre graça atual e graça habitual. A graça atual dava o perdão dos pecados, desde que fossem confessados. A graça habitual, por sua vez, mudava as pessoas mais profundamente, em seu próprio ser – vencendo o problema do pecado original. O problema de Lutero era que, como apenas os pecados atuais confessados eram perdoados, ele estava obcecado em não ignorar os pecados cometidos. E passava horas confessando a seu superior na ordem agostiniana, para, então, correr de volta com algum novo erro de que se lembrava. A certa altura, seu superior lhe disse: “Olha aqui, irmão Martinho! Se tu vais confessar tanto assim, por que não fazes algo digno de se confessar? Mata tua mãe ou teu pai! Comete adultério! Mas para de vir aqui com ninharias e falsos pecados!”.9 Em 1512, aos 26 anos, Lutero foi enviado por sua ordem como professor de estudos bíblicos à nova Universidade de Wittenberg. Foi ali, estudando Agostinho e ensinado os Salmos, Romanos e Gálatas, que Lutero chegou a uma compreensão radicalmente nova acerca do evangelho. Destacar o desenvolvimento do pensamento de Lutero é notariamente difícil. As novas convicções de Lutero levaram algum tempo até se formar. Há muito debate entre os estudiosos quanto ao que ele cria e quando veio a crer nisso. Assim, apreLuther’s Works, 33:191, citado em Timothy George, Theology of the Reformers (Nashville: Broadman; Leicester: Apollos, 1988), 65.

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Justificação Como podemos ser salvos?

sentaremos isso de forma simplificada, como um movimento duplo. É mais complexo que isso, com sobreposições significativas, mas essa forma nos ajudará a entender o que estava ocorrendo em termos teológicos.

O primeiro passo de Lutero: justiça como um presente Um momento-chave é conhecido como a “experiência da torre” de Lutero. A data é contestada, e pode ter tido um processo mais longo que um só momento do tipo “Eureca”. Lutero descreveu sua experiência da seguinte forma: Enquanto isso, nesse mesmo ano de 1519, eu começara a interpretar novamente os Salmos. Senti confiança por ser agora mais experiente, tendo trabalhado em cursos universitários com as cartas de São Paulo aos Romanos, aos Gálatas e a epístola aos Hebreus. Havia concebido o desejo ardente de entender o que Paulo queria dizer em sua carta aos Romanos, mas, até então, eu era impedido, não pelo sangue frio de meu coração, mas por uma única palavra que se encontra no Capítulo 1: “A justiça de Deus é nela revelada”. Eu odiava a palavra, “justiça de Deus” (iustitia Dei), que, pelo uso e costume de todos os meus professores, fui ensinado a entender filosoficamente como referência à justiça formal ou ativa, como eles a chamam, ou seja, a justiça pela qual Deus é justo e pela qual ele pune os pecadores e injustos. Mas eu, monge irrepreensível que era, achava que, diante de Deus, eu era pecador com uma consciência extremamente perturbada. Não podia ter certeza se Deus havia 23


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sido aplacado por minha satisfação. Eu não amava; pelo contrário, eu odiava o Deus justo que castiga os pecadores. Em silêncio, se eu não blasfemava, certamente resmungava com veemência e ficava irado com Deus. E dizia: “Não basta que sejamos miseráveis pecadores, perdidos por toda a eternidade devido ao pecado original, sermos oprimidos por toda a espécie de calamidade por meio dos Dez Mandamentos? Por que Deus amontoa tristeza sobre tristeza mediante o Evangelho e, com o Evangelho, nos ameaça com sua justiça e sua ira?”. Era assim que eu me enfurecia com consciência indômita e perturbada. Constantemente, atormentava São Paulo com aquele pedaço em Romanos 1, desejando, ansiosamente, saber o que queria dizer com aquilo. Meditava noite e dia nessas palavras até que finalmente, pela misericórdia de Deus, prestei atenção ao seu contexto: “A justiça de Deus é nela revelada, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”. Comecei, então, a entender que nesse versículo a justiça de Deus é aquela pela qual a pessoa justa vive por dádiva de Deus, ou seja, pela fé. Comecei a entender que esse versículo quer dizer que a justiça de Deus é revelada pelo Evangelho, mas é uma justiça passiva, ou seja, pela qual o Deus misericordioso nos justifica pela fé, conforme está escrito: “O justo vive pela fé”. De repente, senti ter nascido de novo e entrado no próprio paraíso por seus portais abertos. Imediatamente, vi toda a Escritura por uma ótica diferente. Percorri, de memória, as Escrituras e descobri que outros termos tinham significado análogo, ou seja, a 24


Justificação Como podemos ser salvos? obra de Deus, que é o que Deus opera em nós; o poder de Deus, que nos torna poderosos; a sabedoria de Deus, com a qual ele nos torna sábios; a força de Deus, a salvação de Deus, a glória de Deus. Exaltava estas minhas mais doces palavras: “a justiça de Deus” com tanto amor quanto antes eu as tinha odiado. Para mim, essa frase de Paulo era o próprio portal do paraíso. Depois disso, li O Espírito e a Letra, de Agostinho, onde encontrei o que eu não teria ousado esperar. Descobri que ele também interpretava “a justiça de Deus” de maneira similar, ou seja, como aquilo com que Deus nos reveste quando nos justifica. Embora Agostinho tivesse dito isso de maneira imperfeita e não explicasse em detalhes como Deus imputa sobre nós a justiça, ainda assim eu me agradei por ele ensinar a justiça de Deus pela qual nós somos justificados.10

Em Romanos 1.17, Paulo escreve: “Porque no Evangelho a justiça de Deus se revela, de fé em fé, como está escrito: ‘Mas o justo viverá pela fé’”. Lutero não conseguia entender como essa justiça de Deus poderia ser evangelho – boas-novas. Parecia oferecer apenas ameaça de juízo. A lei não somente nos condena, como também o evangelho nos condena! “Porque no Evangelho a justiça de Deus se revela”. Mas Lutero começou a ver a justiça de Deus revelada no evangelho não apenas como uma qualidade de Deus – sua justiça imparcial, pela qual ele jul10  “Martin Luther Discovers the True Meaning of Righteousness”, um excerto de “Preface to the Complete Edition of Luther’s Latin Works” (1545), tradução de Andrew Thornton de “Vorrede zu Band I der Opera Latina der Wittenberger Ausgabe, 1545”, vol. 4 de Luthers Werke in Auswahl, ed. Otto Lemen, 6th ed. (Berlim: de Gruyter, 1967), 421-28.

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ga os pecadores. Em vez disso, ele a via como um dom vindo de Deus. A justiça de Deus é a justiça que ele nos dá para que sejamos justos diante dele. A justiça de Deus não é um atributo de Deus, que se coloca acima e contra a humanidade, julgando-nos com base em nosso merecimento. É o dom de Deus, pelo qual Deus declara que somos justos, ainda que em nós mesmos não o sejamos. Lutero diz: [Paulo] diz que eles são todos pecadores, incapazes de glorificar a Deus. Eles devem, porém, ser justificados pela fé em Cristo, que mereceu isso por nós, através de seu sangue, e tornou-se para nós o trono de propiciação [compare com Êxodo 25.17; Levítico 16.14-15; 1 João 2.2] na presença de Deus, que perdoa todos os nossos pecados anteriores. Ao fazê-lo, Deus prova que é somente a sua justiça, que ele nos outorga mediante a fé, que nos ajuda, justiça que, no tempo determinado, foi revelada por meio do Evangelho e, antes disso, testemunhada pela Lei e os profetas.11

Esse primeiro passo no pensamento de Lutero vinha de uma consciência perturbada, criada pela teologia medieval, até a redescoberta do ponto de vista de Agostinho – e a visão de Agostinho acerca do pecado. Lutero, então, passou a ver o pecado não simplesmente como uma fraqueza do ser ou falta do bem , mas como uma rebeldia contra Deus. Era um problema relacional. Além do mais, o homem coram Deo 11  Martinho Lutero, “Preface to the Letter of St. Paul to the Romans”, trad. Irmão Andrew Thornton OSB. Acesso em: 9 out. 2015. Disponível em: www.ccel.org/ccel/luther/prefacetoromans (ênfase adicionada); também disponível em www.yale.edu/adhoc/etexts/luther_preface.html.

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Justificação Como podemos ser salvos?

(diante de Deus) não tinha recursos. Lutero disse: “Se alguém desejasse sentir a grandeza do pecado, não seria capaz de continuar vivo por nenhum só momento, tão grande é o poder do pecado”.12 Porém, Lutero iria além de Agostinho. Agostinho dissera que, quando o pecador reconhece a própria necessidade de salvação, volta em fé para Deus. Deus lhe outorga o Espírito Santo, que, então, começa a transformá-lo. De acordo com essa visão de Agostinho, a justiça de Deus é o dom da graça transformadora dentro de nós. E a justificação é o processo de cura que o Espírito opera dentro de nós. Deus nos transforma de pessoas egoístas para pessoas cheias de amor, para que possamos obedecer a ele de todo coração. A justificação é um dom, mas ainda requer de nós um processo de mudança como nossa resposta.

O segundo passo de Lutero: justiça externa O segundo passo no pensamento de Lutero o levou do pensamento agostiniano para uma posição distintivamente evangélica. Se esse primeiro passo do pensamento foi uma redescoberta de Agostinho, o segundo movimento pode ser visto como uma redescoberta de Paulo. Lutero passa a ver que “justificar” não significa tornar justo ou mudar uma pessoa, mas reconhecer ou considerar como justo, declarar justo, absolver. A justificação trata de meu status diante de Deus, e não daquilo que Deus faz dentro de mim. A teologia medieval pensava na graça como uma qualidade que atua dentro de nós. A justiça nos seria dada para que nos 12  D. Martin Luther’s Werke: Kritische Gesamtausgabe (Weimar: Böhlau, 1833-), 39:210. Citado em Paul Althaus, The Theology of Martin Luther (Filadélfia: Fortress, 1966), 142.

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tornássemos justificados. Seríamos curados pela graça de Deus, para que estivéssemos retos diante dele. Porém, Lutero dizia que a graça não era alguma “coisa” trabalhando dentro de nós, e sim o favor imerecido de Deus operando em nossa direção. A causa da justificação é a justiça de Cristo fora de nós. Não é algo inerente às pessoas nem pertencente a elas em qualquer sentido. É extrínseca, e não intrínseca. Lutero falava de Deus aceitar a justiça de Cristo como a nossa justiça, ainda que ela seja alheia à nossa natureza. Somos declarados justos não com base em um processo futuro e gradual de cura, mas com base na obra concluída de Cristo. Melanchthon, em especial, desenvolveu a ideia de justiça extrínseca de acordo com a ideia de “imputação” (embora Lutero também tenha empregado esse termo na descrição de sua experiência na torre). A teologia medieval (e a de Lutero logo no início) dizia da manifestação, ou da infusão, de justiça que efetuava nossa justificação. Mas Melanchthon falava da justiça de Cristo como tendo sido “imputada” a nós – ela é reputada por Deus como sendo nossa. Nossos pecados não são removidos, mas não são contados contra nós. A justificação, portanto, não trata de Deus nos fazer justos, mas de nos declarar justos. Essa é a linguagem de um tribunal de justiça, e não de um hospital. A justificação não é um processo de cura, mas uma declaração de que temos uma posição justa e positiva diante de Deus.

Pela fé somente Dessa forma, somos declarados justos pela fé somente. Lutero via as pessoas como passivas nesse processo da justificação. Não 28


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podemos dar início ao processo. Não temos esse poder e estamos escravizados. Nada temos com que contribuir para nossa salvação. Assim, a justificação é – e somente pode ser – pela fé e somente pela fé. Aqui, a fé, é fiducia, “confiança ou dependência pessoal”. No período medieval, com frequência a fé era vista como uma virtude (no sentido de “fidelidade” ou “lealdade”). Para Lutero, fé é simplesmente tomar posse de Cristo. É receber o que Cristo fez. Se alguém pensa que tais distinções são sutis ou que as diferenças em relação ao catolicismo são exageradas, considere as declarações feitas no Concílio de Trento (1545-1563). O Concílio de Trento foi a resposta do catolicismo à Reforma, resposta da qual nunca se retratou. Essa resposta era bastante explícita em sua condenação da justificação somente pela fé: Se alguém disser que pela fé somente os ímpios são justificados, de modo tal que nada mais se requeira para cooperar com o recebimento da graça da justificação, e que não é necessário que um homem esteja preparado e disposto pelo mover de sua própria vontade, que seja anátema (Seção 6, Cânone 9). Se alguém disser que a fé justificadora nada mais é que a confiança na misericórdia divina que perdoa os pecados por amor de Cristo; ou que nós somos justificados somente por essa confiança; que seja anátema (Seção 6, Cânone 12)

O contraste com Lutero é brutal. Lutero diz: “Se a fé não estiver em tudo, até mesmo nas menores obras, ela 29


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não justifica; na verdade, nem mesmo ela é fé”.13 Lutero, conforme veremos, dizia claramente que a fé continua produzindo boas obras na vida da pessoa. Mas qualquer esperança de salvação com base nas boas obras, ainda que parcial, nega a adequação de nossa única e verdadeira esperança: Jesus Cristo. Como, no catolicismo, a salvação depende de fé acrescida de obras, o concílio negou a possibilidade de assegurar a salvação. Para os reformadores, expressar segurança é jactar-se de Cristo e de sua obra acabada. Para o catolicismo, expressar segurança era motivo de orgulho e presunção em suas próprias boas obras. Se alguém disser que um homem nascido de novo e justificado está ligado pela fé a crer que certamente ele faz parte do número dos predestinados [...] e que ele possui o dom da perseverança até o fim (a não ser que tenha aprendido isso por revelação especial); que seja anátema (Seção 6, Cânones 15-16).

Recentemente, os contribuintes católicos às discussões ecumênicas têm feito declarações sobre a justificação pela fé que alguns evangélicos se julgam capazes de afirmar. Porém, tipicamente falta a essas declarações precisão quanto às principais questões da Reforma. Estão muito aquém de um repúdio relativo a anátemas contrários à teologia reformada feitos no Concílio de Trento. 13

D. Martin Luther’s Werke, 7:231. Citado em George, Theology of the Reformers, 71.

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Ao mesmo tempo justo e pecador No início, Lutero pensava nos cristãos como parcialmente pecadores e parcialmente justos. A frase em latim é simul iustus et pecator, “ao mesmo tempo justo e pecador”. Lutero continuou a empregar essa frase, entendendo-a, porém, de outra forma. Ele acrescentava a palavra semper, “sempre”. O cristão era sempre justo (quanto ao status) e sempre pecador (no estilo de vida). Não estamos em um processo gradual de uma coisa a outra. Somos pecadores porque permanecemos nos antigos hábitos pecaminossos. Mas já aparecemos diante do trono do juízo de Deus e fomos declarados justos. Somos, na verdade, totalmente pecadores, no que diz respeito a nós mesmos e ao nosso primeiro nascimento. De modo contrário, conquanto Cristo tenha sido dado por nós, somos totalmente santos e justos. Daí, em diferentes aspectos, diz-se que somos justos e pecadores ao mesmo tempo.14 Resumo Podemos resumir a teologia de Lutero sobre a justificação da seguinte forma: 1. A justificação é um ato forense mediante o qual um crente é declarado justo. Não se trata de um processo pelo qual alguém é tornado justo. “Forense” significa legal – invoca a imagem de um tribunal de justiça. Envolve uma mudança de status, e não uma mudança de natureza. 2. A causa da justificação é a justiça alheia de Cristo. Não é inerente à pessoa nem se diz pertencente a nós por qual14  D. Martin Luthers Werke, 39:523, citado em George, Theology of the Reformers, 71.

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quer sentido. É-nos “imputada” ou atribuída a nós. Não é “transmitida” nem derramada dentro de nós. 3. A justificação se dá somente pela fé. Não contribuímos com nada para ela. Cristo já realizou tudo por nós. 4. Como a justificação é um ato de Deus e se baseia na obra completa de Cristo, estamos seguros. A justificação tem uma orientação futura: é a absolvição no dia do juízo. Mas a justificação também representa segurança no presente de que o veredicto final nos será favorável. Visão luterana da justificação

Visão católica de justificação

um ato forense

um ato de cura

a imagem de um tribunal de justiça

a imagem de um hospital

justiça alheia (de Cristo)

justiça inerente (dentro do crente)

imputada

transmitida

pela fé somente

começa pela fé e continua pelos sacramentos e as boas obras

justificados agora com base na obra completa de Cristo

justificados agora com base naquilo em que nos tornaremos

futuro garantido

futuro incerto

Justificação e Santificação Erasmo, grande estudioso humanista, objetou a tudo isso, dizendo: “Os luteranos buscam somente duas coisas – riquezas e esposas [...] para eles, o evangelho significa o direito de viver 32


Justificação Como podemos ser salvos?

conforme querem”.15 Noutras palavras, toda essa conversa de justificação somente pela fé seria simplesmente uma desculpa para se levar uma vida decadente. Porém, Lutero argumentaria fortemente que, conquanto não sejamos justificados pelas obras, as obras devem seguir a fé como seu fruto. A fé salvadora sempre será ativa em amor. Esse amor não se expressa em deveres religiosos a fim de ganhar méritos diante de Deus, mas no serviço prático ao próximo. Somos libertos do peso da autojustificação para servir uns aos outros em amor. No sistema medieval, buscava-se a justificação retirando-se do mundo para um monastério, no qual o tempo seria gasto em confissão e disciplina religiosa. Justificação pela fé queria dizer que a pessoa estava livre para sair para o mundo e gastar seu tempo servindo ao próximo, sem ficar sempre olhando por cima do ombro para ver o que Deus estaria pensando dela. Havia, contudo, algumas diferenças entre os reformadores. Melanchthon e o luteranismo mais tardio estabeleciam distinção marcante entre justificação e santificação (aqui, “santificação” é o termo teológico para nosso crescimento em santidade e gradual transformação à imagem de Cristo). Queriam resguardar-se contra a ideia católica de que a justificação começa na regeneração e se completa pela santificação. O próprio Lutero não fazia uma distinção tão intensa assim. Martin Bucer (1491-1551), teólogo franco-suíço, da região da Alsácia, e um dos formadores da tradição reformada, pensava em uma “dupla justificação”: primeiro, na “justificação primária”, somos declarados justos mediante a justiça imputada de Cristo, e, se15  P. S. Allen e H. M. Allen, eds., Opus Epistolarum Des. Erasmi Roterodami (Oxford: Oxford University Press, 1928), 7:366, carta (n. 1977), de 20 mar. 1528, para Willibald Pirkheimer, citado em George, Theology of the Reformers, 72.

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gundo, pela “justificação secundária”, somos tornados justos – uma atividade que inclui o esforço humano. João Calvino – principal formulador da tradição reformada – tinha um conceito claro da justificação forense ou legal. Porém, ele evitava estabelecer forte distinção entre justificação e santificação (ou justificação secundária), colocando ambas sob o conceito anterior e sob o arco da união do crente com o próprio Cristo pela fé. Assim, embora Calvino chamasse a justificação de a “principal dobradiça sobre a qual gira a religião” e a “soma de toda piedade”,16 ele lidava com a justificação nas Institutas sob o tópico do Espírito Santo. Justificação e santificação são, ambas, frutos que fluem de nossa união com Cristo, que experimentamos mediante o Espírito. Calvino, assim, recupera a dimensão relacional de Lutero, enquanto protege a natureza legal da justificação tornada explícita por Melanchthon.

A justificação ainda é importante? Então, a justificação ainda é importante? A resposta tem de ser um retumbante “sim”. Nada tem maior importância do que a justificação somente por Cristo e somente pela fé. Se a justificação pela fé parece óbvia para você, foi por causa de Lutero. Mas não podemos simplesmente presumir o seu legado. Houve muitas tentativas no sentido de mudar o terreno central do cristianismo para outro lugar. Porém, resta o fato de que o maior problema para a humanidade é a justiça de Deus. Deus se dedica a julgar o pecado. Isso quer dizer que ele tem o compromisso de julgar o meu pecado. Esse é nosso maior problema, porque significa uma eternidade excluída da glória de Deus. 16  Calvino, Institutas, 3.11.1, 3.15.7.

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É esse o argumento de Paulo em Romanos 1.18-3.20. Passo a passo, Paulo estabelece o fato de que somos todos culpados. Romanos 2.5 diz: “Mas, por tua dureza e por teu coração não arrependido, entesouras para ti mesmo ira para o dia da ira e da revelação do justo juízo de Deus”. Ele chega a essa conclusão em Romanos 3.20: “já que, pelas obras da Lei, nenhum ser humano será justificado diante dele; porque, por intermédio da Lei, vem o conhecimento do pecado”. O cristianismo traz muitas bênçãos. É certo que os cristãos se envolvam na busca pela renovação de seu entorno e por justiça social. Mas, se um dia o justo juízo de Deus for revelado, e, nesse ínterim, estivermos armazenando a ira de Deus sobre nós, se ninguém puder ser declarado justo por sua própria justiça, então todas as pessoas da terra enfrentam um gigantesco problema: o juízo de Deus. Esse problema torna pequenos quaisquer outros problemas que possamos enfrentar. Portanto, nada tem maior importância do que a justificação. É por isso que Lutero descreve a justificação como “o resumo da doutrina cristã” e “o artigo pelo qual a igreja permanece de pé ou cai”.17 Não é apenas no nível doutrinário ou eclesiástico que isso tem tanta importância. Trata-se de uma doutrina profundamente pessoal. Toda vez que eu peco, crio uma razão para duvidar que fui aceito por Deus, e questiono meu futuro com Deus. Porém, dia após dia, a doutrina da justificação fala de paz à minha alma. Isso é especialmente verdadeiro quanto à justiça imputada. Se a justificação descreve um processo de mudança, como 17  Douglas J. Moo, The Epistle to the Romans (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1996), 242, diz que os luteranos, mais tarde, inventaram esse lema e que Lutero teria dito: “Se esse objeto está de pé, a igreja fica de pé; se cair, a igreja cairá” (Lutero, exposição do Salmo 130.4).

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ensina o catolicismo, ainda que seja iniciado pela graça, todo revés lança uma dúvida sobre meu futuro. Mas, se fui feito justo diante de Deus mediante a obra completa de Cristo, nada poderá desfazer essa realidade. Assim, posso ter segurança, mesmo em face do meu pecado. Paulo leva seu argumento da justificação pela fé em Romanos 1-4 ao clímax em 4.25: “[ Jesus, nosso Senhor] o qual foi entregue por causa de nossas transgressões e ressuscitou por causa da nossa justificação”. O que ele diz em seguida? Qual a consequência de nossa justificação? Paulo continua: “Justificados, pois, pela fé, temos paz com Deus por meio de nosso Senhor Jesus Cristo; por meio de quem obtivemos também entrada, pela fé, nessa graça na qual estamos firmes; e gloriamo-nos na esperança da glória de Deus” (Romanos 5.1-2). Justificação é o que lembra que temos paz com Deus e a esperança da glória. Necessitamos dessa lembrança não somente no dia de nossa conversão, mas dia após dia. As pessoas deste mundo estão em uma missão: a missão de provar a si mesmas. Talvez a maior razão pela qual as pessoas estejam ocupadas demais é porque tentam provar a si mesmas. Estar ocupado tem-se tornado uma marca de honra em nossa cultura. Veja, por exemplo, uma expressão como: “Sou um homem muito ocupado”. O que isso quer dizer em nossa cultura? Não quer dizer: “Minha vida está fora de controle”. Quer dizer: “Sou uma pessoa muito importante – você me deve respeito”. O resultado é um nível de exagero de trabalho que prejudica nossa saúde e nossos lares. Não precisamos do aniversário de quinhentos anos da Reforma para falar às pessoas sobre a justificação. Todo dia você 36


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encontrará gente que tenta provar a si mesma. Algumas pessoas estão tentando provar-se para Deus. Muitas tentam provar-se para os outros, a fim de estabelecer a própria identidade. E todas essas tentativas fúteis de autojustificação esticam as pessoas até o ponto de serem quebradas. E, diante de todo esse frenesi, Jesus diz: “Vinde a mim [...] e eu vos aliviarei” (Mateus 11.28). Temos boas-novas para nossa cultura ocupada demais. Provar a si mesmo é só mais um termo para se justificar. E nós temos as boas-novas da justificação pela graça. Se você estiver ocupado tentando provar a si mesmo, estará sempre ocupado. Nunca conseguirá terminar a tarefa – porque você não pode provar a si mesmo. Será como um cão correndo atrás do próprio rabo. Jesus disse na cruz: “Está consumado” ( João, 19:30). O trabalho está feito. A tarefa está completa. A expiação é plena. Nada foi deixado para você fazer.

Justificação na hinódia evangélica A grande importância da justificação para os cristãos evangélicos pode ser vista em seu destaque no culto e na hinódia evangélica. Ao longo da história, é comum ver os crentes evangélicos transformando a doutrina da justificação por Cristo somente pela fé em culto de adoração. Assim, está bastante claro que a justificação não é simplesmente uma doutrina que demarque a igreja verdadeira. Nem é apenas uma doutrina a ser pregada aos descrentes. É a fonte de conforto e esperança no meio das lutas da vida. Temos inúmeras escolhas aqui, mas tomemos, por exemplo, “Jesus, Teu Sangue e Tua Justiça”, de Nicholas Von Zinzendorf (1700-1760), traduzido por John Wesley (1703-1791): 37


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Jesus, teu sangue e tua justiça são minha beleza, minha veste gloriosa; em meio a mundos em chamas, nestes demonstrados com alegria, levantarei minha cabeça. Quando do pó da morte eu me levantar para assumir meu lar além dos céus será este meu único rogo: Jesus viveu e morreu por mim. Ousado, estarei de pé naquele grande dia E, por mais que tentem, ninguém pode me condenar; sou plenamente absolvido por ti do pecado e do temor, da culpa e da vergonha. Ó, permita que os mortos agora ouçam tua voz; que os que se perderam em pecado venham a se regozijar! Esta é sua beleza, suas vestes gloriosas: Jesus, o teu sangue e tua justiça.

O irmão de John Wesley, Charles (1707-1788), expressou esse mesmo deleite em nossa justificação em seu famoso hino, “And Can It Be” (E pode ser assim?): Nenhuma condenação agora temerei; Jesus é meu, e tudo que nele há! Vivo nele, minha Cabeça Viva, Revestido de justiça divina, Corajoso, aproximo-me do trono eterno, E reivindico a coroa, por meio de Cristo, como minha. 38


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Ou, finalmente, vejamos “Em nada ponho a minha fé”, de Edward Mote (1797-1874). Como os outros, ele encerra, de forma belíssima, a confiança que podemos ter diante de Deus em Cristo, em oposição a nosso próprio desempenho: Em nada ponho a minha fé, senão na graça de Jesus; no sacrifício remidor, no sangue do bom Redentor. A minha fé e o meu amor estão firmados no Senhor, estão firmados no Senhor. Quando a trombeta ressoar, Irei com ele me encontrar e com os salvos cantarei louvor eterno ao grande Rei! Vestido somente em sua justiça, sem culpa estarei diante do trono; Sobre Cristo, a Rocha sólida, eu me firmo; todos os outros terrenos são areia movediça.

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