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O VÍRUS DA EXAUSTÃO
from Revista Poder | 146
O VÍRUS DA
EXAUSTÃO
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A pandemia da Covid-19 mostrou os limites da produtividade e da sensação de que nós podemos (e devemos) trabalhar cada vez mais, o que acabou configurando o modo de vida que o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han definiu como “sociedade do cansaço”. Sair dessa dinâmica não é simples e envolve, acima de tudo, senso de comunidade
POR NINA RAHE
Ocansaço é um dos principais sintomas da nossa sociedade. A afirmação, que causa uma identificação rápida em quase todos nós que acostumamos a viver sob uma cobrança alta de desempenho, acompanhados também de uma sensação constante de esgotamento, é do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han. O sintoma a que o autor se refere, como bem sabemos, não é aquele de quem jogou uma partida de futebol, correu uma maratona ou dançou uma noite inteira sem parar, mas, como ele define em artigo publicado em março deste ano, “um cansaço fundamental, que acompanha de forma permanente e em toda a parte a nossa vida como se fosse a nossa própria sombra”. Uma sensação, conforme Byung-Chul Han explica, que se intensificou muito durante a pandemia, momento em que passamos a nos sentir ainda mais esgotados do que de costume.
Quando publicou Sociedade do Cansaço, em 2010, o filósofo não previa a acentuação desse sintoma em decorrência da Covid-19, mas diagnosticou como ninguém os parâmetros de uma época na qual doenças como depressão, transtorno de déficit de atenção e síndrome de burnout aparecem associadas a um excesso de positividade dentro de uma sociedade permissiva e pacificada, que é regida pelo desempenho e na qual nada é impossível. “O poder ilimitado é o verbo modal positivo da sociedade de desempenho. O plural coletivo da afirmação ‘Yes, We Can’ [‘Sim, Nós Podemos’] expressa precisamente o caráter de positividade da sociedade de desempenho. No lugar da proibição, mandamento ou lei, entram projeto, iniciativa e motivação”, define Byung-Chul Han.
Se com o desenvolvimento de novas tecnologias e a
entrada da automação nos processos industriais, como lembra Daniel Omar Perez, professor de filosofia na Unicamp, a discussão estava em torno de como os indivíduos utilizariam seu tempo livre, uma vez que se imaginava que a produtividade deslancharia sem a necessidade de aumento do trabalho, o que vimos na contemporaneidade é a formação de uma sociedade na qual o ócio é praticamente inexistente. “A ideia era a de que o mundo seria diferente, mas todos teriam seu lugar, e o que aconteceu não foi bem isso. A utopia de uma sociedade tecnologizada com tempo livre deu lugar a uma sociedade com grande concentração de capital e grandes bolsões de pobreza e, no meio disso, um sujeito que pensa que pode produzir cada vez mais”, explica Perez. “Até a universidade se tornou um lugar de produtividade, onde sou avaliado não só de forma qualitativa, mas também quantitativa, pelos artigos que publico, número de pesquisas que oriento.”
Assim, se essa mesma expectativa de possibilidade de tempo livre também ameaçou aparecer no início do isolamento social, quando achamos que teríamos que buscar atividades para nos ocupar durante o período em casa, o que vimos, de novo, foram as horas de ócio rareando cada vez mais. “Não se tratou de uma situação de tédio senão de cansaço. As pessoas ficaram mais estressadas e, para aquelas que puderam fazer home office, não havia mais separação entre o trabalho e descanso”, justifica Perez. “Nós passamos de uma sociedade repressiva para uma sociedade do poder, e aí entra, obviamente, esse discurso neoliberal no qual o sujeito é o empresário de si e as pessoas são potenciais clientes ou concorrentes”, resume.
Na sua Sociedade do Cansaço, ainda que Byung-Chul Han reconheça que a fadiga vem da pressão e explo-
ração externas, o filósofo argumenta que agora somos nós mesmos que nos exploramos “voluntária e apaixonadamente” e nos tornamos, ao mesmo tempo, senhor e escravo, alimentando a falsa ideia de que temos alguma liberdade e estamos nos realizando. E nesse caminho sem volta por meio do qual precisamos render ininterruptamente, o chamado home office (mais office do que home) parece proporcionar tempo extra para explorarmos a nós mesmos – não definimos fim do expediente, somos solicitados em reuniões a qualquer momento e perdemos a noção de fins de semana e feriados. E essa exaustão pela falta de limites vinculada à crescente demanda se intensifica ainda pela ausência das redes de apoio e o aumento da hiperexposição a luzes e telas. Na opinião de Byung-Chul Han, “também nos esgotamos com as lives permanentes, que nos transformam em videozumbis” e nos obriga a nos olharmos o tempo todo no espelho. “É cansativo contemplar a própria
‘‘É cansativo contemplar a própria cara na tela, estamos o tempo todo diante de nossa própria imagem [...]. A comunicação digital é bastante unilateral, não se transmite com o corpo ou através de olhares [...]”
Byung-Chul Han
cara na tela, estamos o tempo todo diante de nossa própria cara [...]. A comunicação digital é uma comunicação bastante unilateral, que não se transmite com o corpo ou através de olhares e que, portanto, é bastante limitada”, escreveu o filósofo em março deste ano.
No artigo “Nonverbal Overload: a theoretical argument for the causes of zoom fatigue”, Jeremy Bailenson, diretor do Stanford Virtual Human Interaction Lab (VHIL), aponta, inclusive, que reuniões por videoconferências são mais cansativas não só pelo “efeito espelho”, como pela necessidade de olhar para a tela à curta distância, pela mobilidade reduzida e pela comunicação não verbal excessiva.
Para Rodrigo Bressan, psiquiatra e professor da Unifesp e do King’s College London, quando a gente aumenta a conectividade, eleva a eficiência, mas não diminui necessariamente a carga. A hiperconexão, também, não nos afeta somente do ponto de vista cognitivo, mas influi na construção de imagem e identidade. “As mídias sociais revelam quem você é, são milhões de códigos que você precisa dominar para se colocar nesse cenário e avaliar como está sendo visto. E se me perguntarem se isso é um estresse adicional para o ser humano, não tenho a menor dúvida que sim”, diz Bressan.
Há ainda questões de gênero no efeito de exaustão. O estudo Estatísticas de Gênero - indicadores sociais das mulheres no Brasil, divulgado pelo IBGE, por exemplo, aponta que, em 2016, as mulheres se dedicaram aos cuidados de pessoas e afazeres domésticos cerca de 73% a mais do que os homens (18,1 horas semanais contra 10,5 horas). “As mulheres são sobrecarregadas com um trabalho que é invisibilizado e para o qual nós não temos remuneração. O trabalho do cuidar é principalmente feminino e não só cansa fisicamente, mas mentalmente. São horas e horas que poderíamos estar descansando e nos dedicando a atividades que nos deem prazer”, afirma Jeane Tavares, psicóloga e professora do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. “A sociedade do cansaço é antes de tudo uma sociedade violenta, que fala de um massacre do ser humano e de uma vida que não vale a pena viver porque é muito reduzida em termos de riqueza, uma riqueza que vai muito além do dinheiro.”
Realizada durante a pandemia, uma pesquisa do Centro de Inovação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (FGV-Eaesp) mostrou que 56% entre 464 entrevistados encontraram dificuldade em conciliar as atividades profissionais e pessoais no home office. O levantamento também apontou que houve aumento da carga de trabalho para 45,8% dos entrevistados, que 34% consideraram difícil manter a motivação e 36% apresentaram dificuldade para continuar com a mesma produtividade. Mas a crise evidenciada por conta da Covid-19, segundo Byung-Chul Han, também é uma crise no sentido etimológico de krisis, que significa ponto de inflexão, uma vez que a situação atual funciona como um chamado urgente à mudança do nosso modo de vida. “Muitos discursos de autoajuda, que colocavam o acento no esforço e na ideia de que ‘se você quiser, você pode’, eram populares especialmente antes da pandemia, mas agora parece que esse pensamento mostrou seu limite”, aponta Perez. E Jeane Tavares complementa: “É muito evidente para nós da saúde pública que a saúde da população é uma questão social e não apenas física, é uma questão de ter uma sociedade equilibrada e nós só vamos conseguir ter uma sociedade na qual a gente consiga descansar e ter qualidade de vida quando não houver uma distância tão grande entre um grupo social e outro”. n
Byung-Chul Han é professor de filosofia e estudos culturais da Universidade de Berlim